Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2837/18.5T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA
CONTRATO DE DEPÓSITO
VALORES MOBILIÁRIOS
NEGÓCIO FORMAL
FORMA DO CONTRATO
FORMA ESCRITA
LEI APLICÁVEL
VALIDADE
Data do Acordão: 07/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :

As exigências de forma dos contratos celebrados no âmbito da atividade de intermediação financeira, pelos quais foi subscrita uma Obrigação SLN 2004 e uma obrigação SLN 2006 regem-se pelas normas vigentes à data da ocorrência desses negócios.

Decisão Texto Integral:


Processo n. 2837/18.5T8STR.E1.S1

Recorrentes: AA, BB e CC

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. DD, residente em ..., propôs a presente ação contra BANCO BIC PORTUGUÊS, S.A., Agência de ..., pedindo o seguinte:

a) Se declare que a aquisição do produto financeiro traduzido na compra de duas obrigações SLN RENDIMENTO MAIS 2004 e SLN 2006, ao BPN (atual Banco BIC S.A., réu na presente ação), adquiridas na agência de ..., foi realizada no pressuposto de que o produto financeiro em causa se encontrava coberto pela garantia de reembolso do capital a 100% (cem por cento), garantia essa dada pelo próprio Banco BPN;

b) Se declare que é da responsabilidade do Banco BIC S.A., Agência de ..., o reembolso do capital reportado à aquisição, pelo do pai da autora, EE (já falecido), das obrigações SLN RENDIMENTO MAIS 2004 e SLN 2006, no valor global de 100.000,00 € (cem mil euros), porquanto com a transmissão do nacionalizado Banco BPN para a esfera jurídica do réu Banco BIC S.A transmitiram-se todas as obrigações emergentes dos contratos que obrigavam o BPN, independentemente de qualquer acordo que o Réu Banco BIC S.A, tenha estabelecido com o Estado Português no ato de compra ou em momento anterior, o que só lhe concede o direito de regresso a discutir entre as partes em causa (Estado Português e Banco BIC S.A.), sendo tal acordo marginal à aqui autora;

c) Seja o réu Banco BIC S.A. condenado a proceder ao imediato reembolso do capital de 100.000,00 € (cem mil euros), acrescido de juros, à taxa legal, desde 11.10.2014, reportados à obrigação SLN Rendimento Mais 2004, e de 12.10.2015 reportados à Obrigação SLN 2006, até efetivo e integral reembolso do capital, condenando-se ainda o réu Banco BIC S.A., a pagar à Autora quantia indemnizatória a fixar em liquidação de sentença, mas nunca inferior a 10.000,00 € (dez mil euros), por danos morais sofridos pela autora com o comportamento imputável ao réu Banco BIC S.A., traduzido na informação falsa prestada pelo gerente de conta do Balcão de ... e que conduziu à presente situação.

E, subsidiariamente, no entendimento de que o contrato é nulo:

d) Seja julgado nulo o contrato de intermediação financeira celebrado entre autor e réu que deu origem às ordens de subscrição de outubro de 2004 e de abril de 2006 de obrigações SLN 2006 no valor global de 100.000,00 € (cem mil euros);

e) Em consequência, o Réu BANCO BIC SA., seja condenado a restituir à autora o valor de € 100.000,00 € (cem mil euros) acrescido de juros, à taxa legal, desde 11.10.2014, reportados à obrigação SLN Rendimento Mais de 2004, e de 12.10.2015 reportados à Obrigação SLN de 2006, até efetivo e integral pagamento.

2. O réu contestou, arguindo as exceções de incompetência territorial e a prescrição, tendo também impugnado a factualidade alegada pela autora.

3. Decorridos os pertinentes tramites legais, veio a ser proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, sendo o réu condenado a pagar à autora a quantia de 50.000,00 €, referente à obrigação SLN mais 2004, acrescida de juros de mora, à taxa legal, calculados desde 27.10.2014 até integral pagamento, e a quantia de 50.000,00 €, relativa à obrigação SLN 2006, também acrescida de juros de mora à taxa legal, calculados desde 09.05.2016 até integral pagamento.

Improcedeu a ação quanto aos danos morais alegadamente sofridos pelo pai da autora e por esta.

E, atenta a decisão de procedência do pedido principal considerou-se inútil a apreciação do pedido subsidiário formulado.

4. Inconformado com essa decisão, o Banco réu interpôs recurso per saltum para o STJ, o qual veio a ser favoravelmente decidido por acórdão de 16.06.2020 (relator Pinto de Almeida)[1].

A referida decisão do STJ foi sumariada nos seguintes termos: « Ocorrida a cessão de valores mobiliários (obrigações) antes da data do seu vencimento, tal não implica a concomitante transmissão do direito de indemnização que tenha por sujeito passivo o intermediário financeiro: esse direito não constitui um direito inerente, representado através dos títulos, nem estaria perfeito à data da cessão, uma vez que o dano (perda do investimento) apenas se consumou depois, com o incumprimento definitivo pela entidade emitente.»

Por outro lado, decidiu-se ainda nesse acórdão o seguinte:

«(…) a autora pediu, subsidiariamente, a declaração de nulidade do contrato de intermediação financeira celebrado com o Banco.

Esta questão foi considerada prejudicada, tendo em atenção a decisão proferida, de procedência do pedido principal.

Não subsistindo esta decisão, há que reenviar o processo à 1ª instância para que possa ser apreciado e decidido aquele pedido subsidiário (cfr. art. 679º do CPC)

Assim, na sequência dessa decisão, os autos foram enviados à primeira instância para que se conhecesse do pedido subsidiário, ou seja, a invocada nulidade do contrato de intermediação financeira.

5. Entretanto, por falecimento da autora, foram habilitados como herdeiros, para com eles prosseguirem os ulteriores termos da causa, AA, BB e CC, identificados nos autos.

6. Realizou-se nova audiência final, tendo sido proferida sentença que julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu o réu do pedido formulado a título subsidiário, ou seja, a nulidade do contrato.

7. Inconformados com tal decisão vieram os autores habilitados interpor recurso de apelação. Todavia, o TRE entendeu que não se verificava qualquer nulidade por falta de forma no contrato de intermediação financeira celebrado entre as partes, tendo julgado improcedente a apelação e confirmado a decisão recorrida.

8. Inconformados com essa decisão, os apelantes interpuseram recurso de revista excecional. Nas suas alegações de recurso, formularam as seguintes conclusões:

«1- Os recorrentes não se resignam com a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação, que julgou improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida;

2- E não se resignam, porque entendem errada e sem fundamento a posição sustentada pelo senhor julgador de que a intermediação financeira objecto dos autos foi objecto de contrato escrito, formalmente válido, constante do documento de fls 127 e 128;

3- Cuja posição é sustentada no entendimento que o contrato para registo ou depósito de valores mobiliários, constante do documento de fls 127 e 128, consubstancia o contrato de cobertura das transações efectuadas na aquisição das obrigações SLN 2004 e SLN 2006; e consequentemente

4- É dado por assente que, nas relações de intermediação financeira estabelecidas entre pai da Autora e Réu, foram cumpridas as imposições de natureza formal que o legislador estabeleceu no Código dos Valores Mobiliários;

5- Ora, não obstante ser pacífico que a relação estabelecida entre o pai da autora e o BPN, configura uma relação de intermediação financeira, para a qual se impõe contrato redigido a escrito, o mesmo não acontece quanto à classificação do documento de fls 127 e 128 como do contrato de cobertura das transações efectuadas em 2004 e 2006;

6- Motivo pelo qual os recorrentes não se conformam com a interpretação feita pelo senhor julgador ao contrato para registo ou depósito de valores mobiliários, assinado em 16 de julho de 2003, constante do documento de fls. 127 e 128, classificando-o, de contrato de intermediação financeira, e

7- No facto de, face a tal entendimento, o tribunal a quo ter concluído pela validade formal da intermediação financeira efectuada pela entidade bancária, aquando da aquisição da obrigação SLN Rendimento Mais 2004 (aquisição em 8 de outubro de 2004) e da obrigação SLN 2006 (aquisição em data não apurada, mas que se situa entre 10 de abril e 5 de maio de 2006), ao considerar que o contrato assinado em 2003, consubstancia um verdadeiro contrato – quadro;

8- Incorrendo, com a decisão proferida, em evidente erro de aplicação do direito;

9- Acresce que a interpretação feita do documento de fls 127 e 128, viola o disposto no artigo 344º do CVM, contrariando os pressupostos de ordem formal dos contratos singulares de intermediação financeira;

10- Os referidos contratos, para serem válidos e eficazes carecem, não só de serem reduzidos a escrito, como ainda as cláusulas contratuais gerais têm de ser objecto de registo perante a CMVM;

11- Não existindo prova nos autos que sustente o cumprimento dos referidos requisitos;

12- Além de que, estando-se no âmbito de contratos singulares, a negociação de obrigações em 2004 e 2006 sempre obrigaria à redação de dois contratos, para cada uma das transações, com redução a escrito das condições de intermediação das operações financeiras, o que não aconteceu;

13- Mais entendem os recorrentes que, atenta a factualidade dada como assente, conclui-se que o Banco réu ao subscrever em nome do pai da autora as obrigações SLN Rendimento mais 2004 e SLN 2006, efectuou aplicações financeiras com o dinheiro do cliente, operações estas, que consubstanciam em si a prática de actos que dependem da formalização de um contrato de intermediação financeira.

14- Impondo o normativo do CVM que a actuação do intermediário financeiro terá de ser precedida de um contrato escrito, regulador dos direitos e obrigações das partes;

15- Contrato este que não tem a natureza de um contrato de registo e depósito de valores mobiliários, mas de um “contrato de gestão de carteira”, atendendo aos actos praticados e decisões tomadas na negociação das obrigações SLN 2004 e 2006;

16. Pois que, o gerente do balcão de ... ao assumir o papel de gestor de património, aconselhando o modo de investimento do dinheiro do cliente, e este ao atribuir poderes ao intermediário financeiro para administrar o seu dinheiro aplicando-o nos termos que este julgava mais adequados, dentro de um condicionalismo de valorização, mas também sempre de capital garantido, actuou como intermediário, como gestor de carteira.

17. Pelo que, o contrato de intermediação financeira celebrado entre o pai da autora e o BPN, no âmbito do qual foram efectuados os investimentos em Obrigações SLN 2004 e 2006, configura um típico contrato de gestão de carteira e não um contrato de registo e depósito de valores mobiliários.

18. Concluindo-se, que a interpretação feita no douto acórdão tanto do documento de fls. 127 e 128, como do Boletim de Subscrição SLN Rendimento Mais 2004, apresenta-se errada em violação do disposto no artigo 321º e 321º-A do CVM.

19. E, contrariamente ao decidido, entendem os recorrentes que a intermediação financeira celebrada entre o pai da autora e o então BPN, não só não foi sujeita a forma escrita, por não ter sido formalizado o contrato de gestão de carteira que permitiria a execução dos actos praticados aquando da aquisição das obrigações em nome do EE, como ainda.

20. O documento de fls 127 e 128 não tem o conteúdo mínimo obrigatório estabelecido no artigo 321º-A do CVM, e como tal padece de nulidade.

21. Não tendo sido reduzido a escrito qualquer contrato de gestão de carteira.

22. Conclui-se que o contrato de intermediação financeira celebrado entre as partes é nulo por falta de forma.

23. Conduzindo a falta deste requisito de forma à nulidade do contrato nos termos do artigo 220º do Código Civil, cuja consequência não pode deixar de ser a restituição de tudo o que foi prestado, neste caso, a quantia de 100.000,00€, de acordo com o disposto no art.º 289.º, n.º 1 do CC;

24- Devendo ser declarada a nulidade do contrato de cobertura – o contrato de intermediação financeira -, e em consequência da declaração dessa nulidade, todos os negócios dele, emergentes, nomeadamente a subscrição da Obrigação SLN 2004 e da Obrigação 2006, também são nulos, em conformidade com a retroactividade da declaração de nulidade;

25- Em suma, o Réu recorrido, pelas razões invocadas, deverá ser obrigado a restituir aos Recorrentes a quantia dos 100.000,00 € que recebeu do pai da autora com vista a investimento, e que o réu destinou à aquisição de obrigações SLN 2004 e 2006, em consequência da declaração de nulidade do contrato de intermediação financeira, verbalmente celebrado entre o pai da Autora já falecida, por inobservância da forma legal;

26- E decidindo como decidiu o Acórdão recorrido, o tribunal violou o normativo dos artigos 321º, nº1, 335º, nº1 e 344, nº1 todos do CVM e o artigo 220º do CC.

27- Motivo pelo qual a sentença é, pois, de censurar, devendo ser corrigida e substituída por outra que condene o Réu recorrido a restituir aos Recorrentes a quantiade100.000,00€, em consequência da declaração de nulidade do contrato de intermediação financeira, verbalmente celebrado entre BPN e o pai da Autora já falecida.

Termos em que nos melhores de direito aplicável e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso e em consequência, revogado o douto Acórdão recorrido e substituído por outro que condene o Réu recorrido a restituir aos Recorrentes a quantia de 100.000,00€, em consequência da declaração de nulidade do contrato de intermediação financeira, verbalmente celebrado entre BPN e o pai da Autora já falecida.»

9. O recorrido apresentou contra-alegações defendendo a não admissibilidade da revista, bem como a sua improcedência.

10. O recurso veio a ser admitido pela Formação a que alude o art.672º, n.3 do CPC, por ter entendido que a questão da validade formal do contrato de intermediação financeira tinha relevância jurídica e social, nos termos do n.1 do art.672º.

Cabe apreciar.

*

II. FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso

A presente revista foi admitida a título excecional para que se conhecesse da validade formal dos contratos de intermediação financeira, pelo que o respetivo objeto se restringe ao conhecimento desta questão.

2. A factualidade provada

As instâncias deram como provada a seguinte factualidade:

«1 – No dia 16 de julho de 2003, o pai da autora e o Banco BPN subscreveram o contrato

para registo e depósito de valores mobiliários, constante de fls. 127 e 128.

2 – Em data não concretamente apurada, mas que se situa antes do dia 8 de outubro de 2004, o pai da autora, EE (já falecido), dirigiu-se ao Balcão do BPN, da agência de ..., com vista a proceder a um depósito a prazo, no montante de € 50 000,00 (cinquenta mil euros).

3 – Aí chegado, foi recebido pelo gerente de conta do BPN, FF, que ao inteirar-se das intenções do pai da autora, lhe propôs que, ao invés de fazer o depósito a prazo a que se propunha, adquirisse um produto financeiro, que tinha as mesmas garantias e segurança de um depósito a prazo, mas que lhe daria um maior rendimento.

4 – Para tal efeito, foi-lhe dito que, porque o valor de aquisição do referido produto tinha como limite mínimo de aplicação € 50 000,00 (cinquenta mil euros), o pai da autora poderia adquirir uma obrigação SLN Rendimento Mais 2004, por aquele valor e assim obteria o referido produto, que lhe traria um melhor rendimento, e que tinha o reembolso do capital garantido pelo BPN.

5 – Desta forma, e perante o que lhe estava a ser proposto (maior rendimento na aplicação do seu dinheiro) e dadas as garantias que lhe estavam a ser dadas (segurança do produto como se fosse um depósito a prazo), o pai da autora, anuiu a tal proposta e aceitou adquirir tal produto.

6 – Com data de 8 de outubro de 2004, o pai da autora, EE adquiriu o produto designado como SLN Rendimento Mais 2004, subscrevendo o documento de fls. 61, aquisição essa subordinada às garantias que lhe estavam a ser dadas pelo identificado gerente de conta do BPN, na agência de ... (atual BANCO BIC, ora réu).

7 – Posteriormente, em data não concretamente apurada do ano de 2006, mas que se situa entre 10 de abril de 2006 e 5 de maio de 2006, o pai da autora foi contactado pelo gerente de conta do BPN, da agência de ..., FF, que lhe propôs de novo a aquisição de uma Obrigação SLN, agora de 2006, reafirmando-lhe que tal produto tinha exatamente as mesmas garantias daquele que anteriormente tinha adquirido, isto é, que tinha juros garantidos, capital garantido e maior remuneração em relação ao depósito a prazo, e que era como se fosse um depósito a prazo mas com juros mais elevados, e que tinha garantia de reembolso do capital a 100% (cem por cento), garantia essa que era dada pelo próprio Banco.

8 – Desta forma, e perante as garantias que lhe estavam a ser dadas pelo gerente acima referido, que lhe propôs de novo a aquisição de uma Obrigação SLN agora de 2006, reafirmando-lhe que tal produto tinha exatamente as mesmas garantias daquele que anteriormente tinha adquirido, isto é, que tinha juros garantidos, capital garantido e maior remuneração em relação ao depósito a prazo, e que era como se fosse um depósito a prazo mas com juros mais elevados, e que tinha garantia de reembolso do capital a 100% (cem por cento), garantia essa que era dada pelo próprio Banco, o pai da autora anuiu à aquisição de tal produto, já que quer as garantias que lhe estavam a ser dadas, quer a total confiança que lhe merecia o seu gerente de conta, a tanto o convenceram.

9 – O pai da autora desconhecia que o produto em causa consubstanciava aquisição de dívida e quem era a emitente do mesmo.

10 – Em 28 de fevereiro de 2014, pai da autora deu ordem de transferência para o nome da sua filha, aqui autora, da Obrigação SLN Rendimento Mais 2004 e da Obrigação SLN de 2006, tendo a mesma aceite tal transferência para seu nome.

11 – Com tal transferência de posição, ficou a autora a ser titular das referidas obrigações, titularidade que ainda hoje se mantém.

12 – No que reporta à aplicação SLN Rendimento Mais de 2004, foram pagos integralmente os juros contratualizados, e no que reporta à Obrigação SLN 2006, foram pagos até ao dia 12 de outubro de 2015.

13 – As Obrigações SLN Rendimento Mais 2004 e as Obrigações SLN 2006 foram emitidas pela “SLN, SGPS, S.A.”, sociedade titular de 100% do capital social do BPN, participação que deteve de forma permanente até novembro de 2008, altura em que foi nacionalizado.

14 – Foi com base na informação de que o capital investido estava garantido que o pai da autora deu o seu acordo na aquisição dos mencionados títulos, sendo certo que sem essa informação aquele não daria o seu acordo na aquisição dos identificados produtos financeiros.

15 – Se o Banco réu não tivesse dado ao pai da autora a garantia do retorno do capital investido este não teria dado a sua anuência na aquisição dos identificados produtos financeiros.

16 – Atentas as relações de confiança mútuas estabelecidas entre o pai da autora e o BPN, aquele confiou nas informações prestadas pelo seu gerente de conta, FF, de que se tratava de aquisição de um produto com garantia do montante investido, como tal, sem risco, e que tinha o seu reembolso garantido pelo Banco.

17 – Os produtos financeiros adquiridos pelo pai da autora foram-lhe apresentados como sendo tão seguros como um depósito a prazo, que tinham as mesmas garantias de um depósito a prazo, mas que não eram um depósito a prazo

18 – Na data do vencimento o Banco réu não restituiu o montante de € 10 000,00 (leia-se € 100 000,00) que este lhe havia confiado por virtude da aquisição das Obrigação SLN Rendimento Mais 2004 e da Obrigação SLN de 2006.»

*

3. O direito aplicável

3.1. O objeto do presente recurso respeita, tão-só, à questão de saber se os negócios pelos quais o pai da autora adquiriu duas Obrigações SLN (2004 e 2006), no valor de 50.000 Euros cada uma, foram formalmente válidos ou se, pelo contrário, foram nulos por falta de forma (com as inerentes consequências legais). Está, portanto, em análise apenas o pedido subsidiário da ação.

Não está, assim, em causa, no presente recurso, qualquer apreciação sobre a responsabilidade (contratual ou pré-contratual) do Banco réu pela não restituição do capital mobilizado para a subscrição das referidas Obrigações SLN, pois tal matéria encontra-se definitivamente decidida, como supra relatado, o que correspondeu ao pedido principal da ação.

Deve notar-se que a autora da presente ação (DD, entretanto falecida) não foi interveniente nos contratos cuja nulidade invoca. Esses contratos foram celebrados, em 2004 e 2006, pelo pai da autora, o qual lhe transmitiu a titularidade das duas Obrigações SLN, em 2014, por ato inter vivos. A autora é, portanto, uma terceira adquirente, por via negocial, das Obrigações cuja subscrição pretende ver invalidada. Dado que nas instâncias não foi posta em causa a legitimidade da autora para invocar a nulidade dos negócios realizados, essa legitimidade deve ser dada como assente, apesar de a autora não ter adquirido as Obrigações SLN por via sucessória, mas sim por via negocial.

3.2. Para se concluir que os negócios celebrados entre o pai da autora e o Banco réu foram nulos por falta de forma, há que saber qual a forma que a lei exigia à data da celebração dos negócios em causa, bem como conhecer a natureza da forma exigida, ou seja, saber se a observância de determinada forma é condição substancial de validade do negócio ou se, pelo contrario, assume apenas natureza probatória.

Estando em causa contratos de intermediação financeira, celebrados em 2004 e 2006, as correspondentes exigências de forma eram as previstas na legislação própria, ou seja, o Código de Valores Mobiliários, na versão vigente à data da respetiva conclusão.

Como consta da factualidade assente (n.1 e n. 6 dos factos provados), entre o Banco réu e o pai da autora foi celebrado, em 16.07.2003, um contrato (junto pelo réu a folhas 127 e128) designado como “contrato para registo e depósito de valores mobiliários”. Por outro lado, a folhas 61 dos autos, encontra-se assinado pelo pai da autora o Boletim de subscrição da Obrigação SLN 2004 (com data de 08.10.2004). Não consta dos autos qualquer documento assinado pelo pai da autora respeitante à subscrição da Obrigação SLN 2006.

3.3. No que respeita ao regime dos contratos para registo e depósito de valores mobiliários, à data em que foram subscritas as Obrigações SLN 2004 e 2006 vigoravam as seguintes normas (com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13.11):

Artigo 343.º (Conteúdo)

1 - Os contratos para registo ou depósito de valores mobiliários devem incluir a menção das obrigações que para o intermediário financeiro resultam da lei e de normas regulamentares.
2 - O contrato obriga o intermediário financeiro a prestar os serviços relativos aos direitos que são inerentes aos valores mobiliários registados ou depositados.

3 - O intermediário financeiro pode encarregar outrem de prestar algum ou alguns dos serviços que resultam do contrato.

4 - Com ressalva do n.º 1 do artigo 324.º, é permitida cláusula contratual que disponha de modo diferente dos n.os 2 e 3 do presente artigo.

Artigo 344.º (Forma e padronização)

1 - O contrato de registo ou de depósito deve ser reduzido a escrito até oito dias após o primeiro registo ou a primeira recepção para depósito.

2 - Os contratos singulares são celebrados com base em cláusulas contratuais gerais registadas na CMVM.

As atividades do intermediário financeiro encontram-se previstas no art.289º e seguintes do Código dos Valores Mobiliários, nas quais se compreendem “os serviços e atividades de investimento em instrumentos financeiros”, que se encontram especificamente previstos no artigo 290º e nos quais se compreendem:

- a receção e transmissão de ordens por conta de outrem;

- a execução de ordens por conta de outrem.

No que respeita à forma a que devem obedecer essas ordens, dispunha o artigo 327.º do CVM, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 486/99 (de 13 de novembro):

«1 - As ordens podem ser dadas oralmente ou por escrito, devendo no primeiro caso ser reduzidas a escrito pelo receptor ou fixadas por este em suporte fonográfico.

2 - Devem ser dadas por escrito as ordens de aceitação e de revogação em oferta pública

Por outro lado, o artigo 4º do Código de Valores Mobiliários estabelecia (e mantém) a seguinte regra geral em matéria de forma:

 «A exigência ou a previsão de forma escrita, de documento escrito ou de redução a escrito, feita no presente Código em relação a qualquer ato jurídico praticado no âmbito da autonomia negocial ou do procedimento administrativo considera-se cumprida ou verificada ainda que o suporte em papel ou a assinatura sejam substituídos por outro suporte ou por outro meio de identificação que assegure níveis equivalentes de inteligibilidade, de durabilidade e de autenticidade

Constata-se, a partir do teor desta norma e da diversidade de meios substitutivos ou sucedâneos de forma, que a exigência de forma escrita (ou do seu sucedâneo) visa, em última análise, permitir provar a autenticidade dos atos praticados.

A mesma ideia se extrai do que se dispunha no art.327º, que permitia ordens verbais. Por outro lado, determinava o art. 344º (na redação vigente à data da subscrição das Obrigações em causa) que o contrato não tinha de ser reduzido a escrito no momento da sua celebração, podendo tal acontecer até oito dias após o primeiro registo ou a primeira receção para depósito.

Em resumo, das disposições que estabeleciam regras sobre a forma dos atos integrados na atividade de intermediação financeira, vigentes à data em que foram subscritas as Obrigações SLN 2004 e 2006, não se pode concluir que as exigências de forma aí previstas tivessem a natureza de formalidades ad substantiam, mas sim, essencialmente, de formalidades ad probationem

3.4. Face às exigências de forma estabelecidas pelas normas supra referidas, facilmente se constata que a factualidade assente permite concluir que tais exigências foram observadas tanto quanto ao “contrato para registo e depósito de valores mobiliários”, celebrado em 2003, como quanto à ordem de subscrição da Obrigação SLN 2004, pois ambos revestiram a forma escrita e estão assinados pelo pai da autora.

Quanto à ordem de subscrição da Obrigação SLN 2006, que não se sabe se foi dada por escrito ou por forma verbal, pois tal não consta da factualidade assente, resultava do art.327º que essa ordem podia ser dada de modo verbal.

Por outro lado, deve ter-se presente que ao transmitir, por ato inter vivos, a Obrigação SLN 2006, para a autora, a qual a aceitou, em 28.02.2014, o seu pai se comportou como titular dessa Obrigação, o que, obviamente, não poderia ter acontecido se nunca tivesse dado ordem (escrita ou verbal) para subscrição de tal obrigação ao Banco réu.

3.5. Neste quadro, concluiu-se que o acórdão recorrido não merece censura quando concluiu (confirmando a decisão da primeira instância) não haver fundamento para concluir pela nulidade dos negócios de intermediação financeira pelos quais o pai da autora subscreveu as Obrigações SLN 2004 e 2006.

O acórdão recorrido fundamentou, corretamente, a sua decisão nos seguintes termos:

«O documento de fls. 127 e 128 (junto com a contestação em 05-12-2018) constitui um impresso titulado de “Contrato para Registo e Depósito de Valores Mobiliários”, data do ano anterior à 1ª aquisição pelo pai da A. de obrigação SLN Rendimento Mais 2004, estabelece Cláusulas Gerais que preveem, entre o mais:

- A abertura de uma conta de valores mobiliários, pelo cliente, associada a uma conta de depósitos à ordem do mesmo cliente;

- A atribuição ao BPN do direito de proceder ao débito de todos os valores que forem devidos por via das operações efetuadas por conta do cliente; Bem como do dever do BPN em creditar na conta do cliente todos os valores que lhe forem devidos por via das operações efetuadas por conta do cliente;

- A obrigação do BPN remeter ao cliente extratos de conta, periodicamente;

- As ordens do cliente para a realização de quaisquer operações sobre valores mobiliários deverão ser dadas por qualquer meio escrito;

- No entanto as ordens do cliente poderão ser transmitidas com recurso a meios informáticos ou telefónicos; ficando o BPN expressamente autorizado a gravar e registar as mensagens recebidas pelo tempo que entender;

- O BPN obriga-se a realizar as operações sobre valores mobiliários que lhe forem ordenadas pelo cliente;

- A execução das ordens do cliente relativamente a valores inscritos ou depositados na sua conta, bem como a compensação e liquidação das operações correspondentes realizadas em mercados organizados, respeitarão os prazos, termos e moldes fixados na lei;

- O BPN obriga-se a exercer em nome e representação do cliente, os direitos a dividendos, juros e remunerações de qualquer tipo, inerentes aos valores mobiliários registados ou depositados, bem como o direito à amortização, resgate ou reembolso a que haja lugar;

- O cliente pagará ao BPN, em contrapartida da prestação do serviço de depósito e registo de valores mobiliários, as comissões previstas no preçário em anexo;

- o BPN fica expressamente autorizado a recorrer a outros intermediários ou agentes do mercado sempre que tal se mostrar necessário à execução das operações ordenadas pelo cliente.

Tal contrato está assinado pelo pai da autora (EE) e outra cliente. Estamos perante um “contrato de registo e depósito de valores mobiliários” que se inscreve no âmbito da atividade de intermediação financeira regulada nos arts. 289º e ss. do CVM.

Sendo este o contrato de cobertura ou o contrato-quadro para os singulares e subsequentes atos jurídicos de registo e depósito.

Tendo este contrato obedecido à forma escrita, respeitado está o condicionalismo de que depende a sua validade formal.»»

Quanto à validade formal das ordens de subscrição da Obrigação SLN 2004 e da Obrigação SLN 2006, afirmou-se no acórdão recorrido o seguinte:

«E no que diz respeito às concretas ordens de subscrição, não estando as mesmas sujeitas a essa formalidade “ad substantiam”, documentada apenas uma delas, mas aceite pelas partes a sua emissão, mostra-se irrelevante apurar a sujeição a escrito ou do registo fonográfico dessas ordens.

Não se verifica, pois, qualquer nulidade por falta de forma no contrato de intermediação financeira celebrado entre as partes.

Termos em que se julga improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.»

3.6. Nas conclusões das suas alegações (particularmente no ponto n.15 e seguintes) os recorrentes parecem fazer algumas confusões entre a questão da validade dos contratos que foram efetivamente celebrados (como consta da factualidade provada) e os contratos que em sua opinião deviam ter sido celebrados.

Apesar de se ter dado expressamente como provado (no ponto n.1 da factualidade provada) que as partes assinaram o contrato que se encontra a folhas 127 e 128 dos autos, intitulado como “contrato para registo e depósito de valores mobiliários”, os recorrentes entendem que devia ter sido celebrado um contrato diferente, ou seja, um “contrato de gestão de carteira”, o qual devia observar o conteúdo e a forma previstos no artigo 321º-A do CVM. Assim, por não ter sido celebrado o contrato que os recorrentes entendem que devia ter sido, aquele que foi efetivamente celebrado seria nulo.

Ora, as questões de validade em apreço não podem ser colocadas assim. O que está em causa é a questão de saber se os contratos que foram celebrados são nulos por falta de forma; e não a questão de saber se devia ter sido celebrado um contrato diferente, pois tal temática não teria o mínimo suporte na factualidade provada.

Aliás, é absolutamente destituída de fundamento a pretensão dos recorrentes ao pretenderem aplicar o disposto no art.321º-A do CVM ao caso concreto, quando tal norma não existia à data em que foram subscritas as Obrigações SLN 2004 e 2006, pois só viria a ser introduzida pela Lei n.35/2018 (de 20.07) e alterado pela Lei n.99º-A/2021 (de 31.12).

Em resumo, o acórdão recorrido não merece censura, pois fez a correta aplicação da lei vigente à data dos factos que foram dados como provados.

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Decisão: Pelo exposto, decide-se pela improcedência da revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 11.07.2023

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins

Sumário, art.o 663, n.o 7, do CPC.


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[1] Publicado em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/844ac621a849fa5c8025862b0039e495?OpenDocument