Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2395/22.6T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃOJSTJ000
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
REDUÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL
INEFICÁCIA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 10/17/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I Havendo o plano de revitalização, aprovado e judicialmente homologado, previsto o pagamento em prestações do crédito do Instituto de Segurança Social, bem como a suspensão das suas execuções contra a recuperanda, é inegável que o respectivo conteúdo traduz e consubstancia uma efectiva, real e substantiva restrição ao conteúdo desses mesmos créditos.

II Ora, o plano de revitalização não pode produzir efeitos que se traduzam na modificação restritiva do conteúdo dos créditos titulados pelo Instituto da Segurança Social, contra a sua vontade, o que constitui violação negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos e para os efeitos do artigo 215º do CIRE, extensivo ao processo especial de revitalização nos termos do artigo 17º-F, nº 7, do mesmo diploma legal.

III Contudo, a imposição legal de proibição da modificação restritiva do conteúdo do crédito tributário não implica necessariamente a solução drástica de recusa da homologação judicial do plano de recuperação em processo especial de revitalização, nos termos do artigo 215º e 17º-F, nº 7, do CIRE, que o tornaria totalmente inaproveitável, com frustração dos interesses particulares envolvidos e acentuado prejuízo para a organização económica e empresarial que o sistema jurídico tende a salvaguardar até onde lhe for juridicamente possível.

IV - A solução mais equilibrada e curial, que permitirá harmonizar os interesses sociais e económicos que o legislador se propôs salvaguardar através da instituição do processo de revitalização, bem como os compromissos internacionalmente assumidos, com a intransigente defesa dos créditos tributários em geral, consiste em fixar a ineficácia relativa à homologação do plano de revitalização no que concerne aos créditos reclamados e de que é titular o Instituto da Segurança Social.

V - O plano de revitalização produzirá assim os seus efeitos aproveitando à recuperanda e seus credores na medida do acordado, com excepção daqueles que teriam reflexo na esfera jurídica do Instituto da Segurança Social, enquanto entidade titular do crédito de natureza tributária, ao qual não serão oponíveis, permanecendo intangíveis e imodificáveis no seu conteúdo.

Decisão Texto Integral:

Revista nº 2395/22.6T8STR.E1.S1.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.

Mendes Transportes, S.A. instaurou o presente processo especial de revitalização, ao abrigo do disposto nos artigos 17.º-A e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (vulgo CIRE).

Notificada para o efeito, a requerente procedeu à junção de elementos considerados em falta, na sequência do que foi recebido o requerimento inicial, sendo nomeado administrador judicial provisório.

Concluídas as negociações, foi depositada em 25 de Janeiro de 2023 a versão final do plano de recuperação apresentado pela devedora, tendo a indicação do depósito sido publicitada no portal Citius através de anúncio de 26 de Janeiro de 2023.

Pronunciaram-se sobre o plano apresentado os credores Caixa Económica Montepio Geral, E.. ...... ........ ... e R......... ..... .. ......, bem como o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional.

Em 7 de Fevereiro de 2023 foi depositada nova versão do plano de recuperação apresentado pela devedora, tendo tal junção sido publicitada no portal Citius através de anúncio de 8 de Fevereiro de 2023.

Os credores Caixa Económica Montepio Geral, E.. ...... ........ ..., G. ... ...... ..... . ........, S.A., M................... . ........ .. ..... ...., Ld.ª e AA comunicaram que votam a favor da aprovação do plano; os credores BB e Instituto de Segurança Social, IP - Centro Distrital ..., por seu turno, comunicaram que votam contra a aprovação do plano.

O administrador judicial provisório juntou aos autos, em 28 de Fevereiro de 2023, documento com o resultado da votação, do qual consta que o plano foi votado por credores cujos créditos representam 81,06% dos créditos relacionados com direito de voto e que votaram a favor da respetiva aprovação credores cujos créditos representam 73,39% dos votos emitidos.

Notificado para o efeito, o administrador judicial provisório apresentou parecer no qual consignou, em síntese, que as medidas constantes do plano apresentado permitem à devedora garantir a sua viabilidade.

Por sentença de 17 de Março de 2023, foi homologado o plano de recuperação apresentado.

Interposto recurso de apelação pelo Instituto de Segurança Social, o Tribunal da Relação de Évora, no seu acórdão de 15 de Junho de 2023, julgou procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e em consequência declarou a ineficácia em relação ao apelante Instituto de Segurança Social, IP do plano de recuperação homologado, relativamente ao qual é inoponível.

Apresentou o revitalizado recurso de revista.

Concluiu nos seguintes termos:

A)O n.º 3 do art.º 30º da LGT não veio (e num Estado de Direito seria no mínimo de estranhar que o fizesse) conferir caráter indisponível ou imperativo ao sentido de voto do credor Segurança Social, no sentido de dele depender a aprovação e a validade do Plano, transformando-o num voto de qualidade ou num verdadeiro direito de veto.

B)A indisponibilidade ou imperatividade da lei vai reportada apenas aos créditos do Estado.

C)O âmbito da inderrogabilidade ou imperatividade do regime de regularização de dívidas ao Estado reporta às condições em que a lei ‘autoriza’ a Autoridade Tributária ou a Segurança Social a autorizar o pagamento em prestações, mas não inclui a autorização destas entidades”;

D) Assim, a falta de expressa e discricionária autorização do ISS expressa através da votação desfavorável de um plano de recuperação não é suficiente para impedir a sua homologação, nas situações em que do mesmo resulta o escrupuloso cumprimento do disposto nos artigos 194.°, 195.º e 215.º do CIRE, 190.º e seguintes do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro (alterado pela Lei n.º 119/2009, de 30 de dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 140-B/2010, de 30 de dezembro, pela Lei n.º 55-A/2010), artigo 81º nºs 1 e 2 da Regulamentação do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 1-A/2011 de 03.01 bem como nos n.ºs 2 e 3 do artigo 30.º da Lei Geral Tributária, conforme sucede “in casu”.

E) Por fim, importa salientar que qualquer concessão de eficácia relativa a um plano de recuperação, colocando a Segurança Social fora dos efeitos relativos à sua homologação plena impedirão, de facto, que qualquer sociedade recuperanda retome a sua actividade, “atirando-a”, inelutavelmente, para a sua liquidação insolvencial.

F) Com efeito, no âmbito da execução fiscal o entendimento com a Segurança Social é, na prática, impossível, pelo que facto de já não ter aí aplicabilidade o disposto no artigo 199º nº 13 do CPPT que isenta a sociedade recuperanda de lhe prestar garantias adicionais ou seja, “Os pagamentos em prestações ao abrigo de plano de recuperação no âmbito de processo de insolvência ou de processo especial de revitalização ou em acordo sujeito ao regime extrajudicial de recuperação de empresas em execução ou em negociação que decorra do plano ou do acordo não dependem da prestação de quaisquer garantias adicionais.”

G) E assim, será exigido o regime regra previsto no nº 6 do mesmo artigo do predito CPPT, no qual a garantia deve ser “prestada pelo valor da dívida exequenda, juros de mora contados até ao termo do prazo de pagamento voluntário ou à data do pedido, quando posterior, com o limite de cinco anos, e custas na totalidade, acrescida de 25 /prct. da soma daqueles valores, exceto no caso dos planos prestacionais onde a garantia é prestada pelo valor da dívida exequenda, juros de mora contados até ao termo do prazo do plano de pagamento concedido e custas na totalidade.”

H) Assim, como tal exigência é totalmente inviável na maioria esmagadora das situações, o giro empresarial da recuperanda torna-se impossível, pois os processos executivos não se suspendem por falta de garantia - mesmo que exista um acordo prestacional previamente acordado - sendo a sociedade de imediato cerceada de penhoras nos seus depósitos bancários e créditos a receber de clientes, “estrangulando-a” financeiramente.

I) A Recorrente já está a sentir o supra exposto, pois já possui atualmente todas as suas contas bancárias penhoradas com a natural dificuldade/impossibilidade de implementar o plano de recuperação.

J) Desta forma e sempre com o devido e muito respeito, não pode ser atribuída à decisão casuística e meramente discricionária de uma única entidade, sem qualquer crivo ou intervenção legal, o poder de decidir unilateralmente sobre o futuro de uma sociedade recuperanda e assim, não só a sorte desta como a do universo dos seus credores e créditos respetivos que, com o seu voto, fizeram aprovar um plano de recuperação.

K) A perfilhar-se o entendimento de que a decisão interna, casuística e discricionária da Segurança Social contrária à aprovação de um plano de recuperação que cumpre escrupulosamente com a própria legislação a que esta entidade se encontra sujeita é suficiente para, “de per si”, a tal plano não ficar vinculada viola, não só o princípio da tutela jurisdicional efetiva, mas igualmente o principio da legalidade e da igualdade, ínsitos nos artigos 3º, 13º nº 1 e 20º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

L) O Douto Acórdão ora recorrido pretere o disposto no artigo 30º nºs 2 e 3 da LGT e, consequentemente, o artigo 215º do CIRE.

Não houve resposta.

II – FACTOS PROVADOS.

Foi considerado provado:

a) o Instituto de Segurança Social, IP - Centro Distrital ... é titular de um crédito reconhecido no montante total de € 1.110.809,26 (correspondendo 768 636,08 a capital, € 340 185,32 a juros vencidos e € 1 987,86 a despesas);

b) consta do plano de recuperação apresentado, além do mais, o seguinte: (…)

8. PLANO DE PAGAMENTO PROPOSTO 8.1. Medidas de Incidência no Passivo

(…)

B. Estado

B1. Instituto da Segurança Social, I.P.

Regularização da totalidade da dívida à Segurança Social nas seguintes condições:

􀁸 Consolidação da dívida à data do despacho de nomeação do AJP, e a sua regularização ao abrigo do CRCSPSS;

􀁸 Manutenção do pagamento das contribuições mensais;

􀁸 Cálculo dos juros vincendos à taxa legal aplicável às dívidas ao estado e outras entidades públicas;

􀁸 Amortização da totalidade do valor de capital em dívida acrescido dos juros que resultarem dos valores fixados nos pontos anteriores, num prazo de 150 meses, em prestações mensais, iguais e sucessivas;

􀁸 A primeira prestação do plano de pagamento da dívida à segurança social vence-se no mês seguinte ao da homologação do plano de revitalização;

􀁸 Pagamento da totalidade das custas devidas no âmbito dos processos executivos que se encontram instaurados no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de revitalização;

􀁸 Manutenção das garantias existentes, nos termos do n.º 13, do artigo 199º do CPPT;

􀁸 As ações executivas pendentes para cobrança da dívida à Segurança Social não se extinguem e mantêm-se suspensas após aprovação e homologação do plano de recuperação até integral cumprimento do plano de pagamentos;

􀁸 As penhoras, arrestos ou medidas análogas incidentes sobre bens da devedora, de qualquer natureza (incluindo direitos e créditos), efetuados pela Segurança Social no âmbito dos processos de execução fiscal, não serão canceladas.

(…)

F. Outras Disposições

Em caso de homologação do plano apresentado:

􀁸 As garantias prestadas no passado mantêm-se válidas e eficazes, com um compromisso por parte dos Garantes no sentido de que sendo o presente Plano aprovado, os mesmos desistem dos Embargos apresentados, no âmbito das execuções que pendem sobre estes e sobre a revitalizanda (conforme Declaração anexa ao presente plano Anexo I);

􀁸 Salvaguarda-se aos credores a possibilidade de se ressarcir através da excussão de garantias hipotecárias externas ao património da Mendes Transportes, S.A.;

􀁸 Todas as ações de cobrança de dívidas (executivas ou não) instauradas contra a empresa, deverão ser extintas, com exceção das que respeitem à Segurança Social e à Autoridade Tributária;

􀁸 Nas ações de cobrança de dívida pendentes em juízo nas quais tenham sido proferidas, antes do PER, e as respetivas sentenças que venham, entretanto, a transitar em julgado, os credores serão pagos nos termos e condições previstos no plano para a respetiva classe de créditos a que os mesmos pertençam;

􀁸 Nas ações de cobrança de dívida com sentença transitada em julgado antes do PER, os credores serão pagos nos termos e condições previstos no plano para a respetiva classe de créditos a que os mesmos pertençam;

􀁸 Os créditos “sob condição” em que se tenha verificado ou venha a verificar a condição, serão pagos nos mesmos e exatos termos em que fica estabelecido para os créditos do mesmo tipo e natureza, verificados sem condição, após a referida verificação da condição.

(…)

c) o credor Instituto de Segurança Social, IP - Centro Distrital ... juntou aos autos, em 22-02-2023, deliberação do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, da qual consta o seguinte:

«(…)

Assim, delibera-se o seguinte:

1. A Segurança Social vota contra o plano de revitalização apresentado.

2. Caso o plano de revitalização seja aprovado e homologado, o mandatário da Segurança Social deve interpor recurso da sentença de homologação, requerendo a declaração da ineficácia do plano face à Segurança Social uma vez que este credor não deu o seu consentimento expresso à modificação dos seus créditos, situação que viola a legislação específica da Segurança Social, bem como a legislação tributária, designadamente o artigo 30.º, da Lei Geral Tributária, que refere que os créditos da Segurança Social são indisponíveis.

3. A presente deliberação faz parte integrante do plano de revitalização, sendo junta aos respetivos autos.»

d) o credor Instituto de Segurança Social, IP - Centro Distrital ... votou contra a aprovação do plano.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

Homologação do plano de revitalização que envolve o estabelecimento de um plano prestacional de pagamento relativamente aos créditos de que é titular o Instituto da Segurança Social e a suspensão das acções executivas em que é exequente, à luz do disposto nos artigos 215º e 17º-F, nº 7, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (vulgo CIRE), havendo este especial credor votado contra a respectiva aprovação. Fixação da eficácia relativa (inoponiblidade) à homologação do plano, sem afectação dos créditos de natureza tributária.

Passemos à sua análise:

Quanto ao conhecimento da questão de mérito que constitui o objecto da presente revista seguir-se-á, como se compreende, de muito perto (e praticamente ipsis verbis) a posição que foi assumida, repetidamente, nos dois acórdãos relatados pelo ora Juiz Conselheiro (igualmente) relator e que se encontram indicados infra (inexistindo razões de fundo ou de forma para dela divergir) – a que acresce a circunstância de o próprio acórdão recorrido nela se haver louvado.

Ou seja, na presente revista deverá essencialmente aferir-se:

- a legalidade da decisão de homologação judicial do plano de revitalização que, embora votado favoravelmente pela maioria necessária dos credores, incluiu o pagamento em prestações, nos termos a definir e desenvolver futuramente, dos créditos do Instituto da Segurança Social e a suspensão das execuções pendentes em que este é exequente, contra a vontade expressa e devidamente manifestada do mesmo Instituto de Segurança Social, ora recorrente;

- a possibilidade de salvaguarda dos efeitos a produzir pela homologação judicial do plano, desde que não afectem, modificando restritivamente, o conteúdo dos créditos de natureza tributária. A este respeito, dispõe o artigo 215º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplicável aos processos especiais de revitalização nos termos do artigo 17º-F, nº 7, do mesmo diploma legal: “O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devem preceder a homologação”.

Conforme salientam Carvalho Fernandes e João Labareda in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, 2008, a páginas 713 a 714: “(...) não são negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infracções que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido. (...) O que importará é, pois, sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição de credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta -, tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável”.

(Relativamente aos critérios de recusa de homologação do plano de revitalização, vide também Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, in “PER. O Processo Especial de Revitalização. Comentário aos artigos 17º-A a 17º-I do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Coimbra Editora, Março de 2014, páginas 128 a 155).

Estabelece, a este propósito, o artigo 30º, nº 2, da Lei Geral Tributária: “O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e legalidade tributária”.

Acrescenta no nº 3 do mesmo preceito – aditado pelo artigo 123º da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2011): “O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”.

No mesmo sentido, o artigo 125º da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, (Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2011) tornou extensiva a aludida norma aos processos de insolvência que se encontravam pendentes e ainda aos que não tivessem sido objecto de homologação.

Perante esta intervenção legislativa que evidencia, pela sua assertividade, de forma absolutamente clara e inequívoca, o carácter imperativo conferido à tutela do crédito de natureza tributária, queda insofismável e incontornável a ilegalidade de homologação pelo tribunal do plano que se traduza numa afectação substancial, real e efectiva, pela modificação restritiva do seu conteúdo, dos créditos de natureza tributária que foram reclamados e reconhecidos.

(Neste mesmo sentido, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 2011 (relator Silva Gonçalves), proferido no processo nº 467/09.1TYVNG-Q.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Maio de 2012 (relator Álvaro Rodrigues), proferido no processo nº 368/10.0TBPVL-D.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, que constituíram uma inflexão na corrente jurisprudencial em sentido inverso, apelando então para a especialidade das normas pertinentes ao processo de insolvência e de revitalização.

Sobre tal mudança de rumo e referenciando a jurisprudência que defendeu posição contrária, vide Catarina Serra, in “O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência”, Almedina, 2017, 2ª edição, páginas 104 a 105.

Precisamente sobre esta temática, vide ainda Sara Luís Dias in “A afectação do crédito tributário no plano de recuperação da empresa insolvente”, artigo publicado in Revista do Direito da Insolvência, Ano 0, páginas 256 a 261.

Por sua vez, criticando assertivamente a mencionada opção legislativa, chegando a advogar a interpretação restritiva da norma que permita compatibilizar a protecção dos créditos tributários com a efectiva prossecução das finalidades do CIRE e com o cumprimento das obrigações a que o Estado Português se vinculou no “Memoradum de entendimento sobre condicionalismos específicos de política económica”, de 17 de Maio de 2011, onde se consagra: “as autoridades tomarão também as medidas necessárias para autorizar a administração fiscal e a segurança social a utilizar uma maior variedade de instrumentos de reestruturação baseados em critérios claramente definidos nos casos em que os credores tenham aceite a reestruturação dos seus créditos, e para rever a lei tributária com vista à remoção de impedimentos à restruturação voluntária das dívidas”, vide Catarina Serra, in “Processo Especial de Revitalização - contributos para uma “rectificação”, artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados, nº 72, Abril/Setembro de 2012, páginas 739 a 741).

Na situação sub judice, o plano aprovado pela maioria dos credores prevê concretamente que:

B1. Instituto da Segurança Social, I.P.

Regularização da totalidade da dívida à Segurança Social nas seguintes condições:

􀁸 Consolidação da dívida à data do despacho de nomeação do AJP, e a sua regularização ao abrigo do CRCSPSS;

􀁸 Manutenção do pagamento das contribuições mensais;

􀁸 Cálculo dos juros vincendos à taxa legal aplicável às dívidas ao estado e outras entidades públicas;

􀁸 Amortização da totalidade do valor de capital em dívida acrescido dos juros que resultarem dos valores fixados nos pontos anteriores, num prazo de 150 meses, em prestações mensais, iguais e sucessivas;

􀁸 A primeira prestação do plano de pagamento da dívida à segurança social vence-se no mês seguinte ao da homologação do plano de revitalização;

􀁸 Pagamento da totalidade das custas devidas no âmbito dos processos executivos que se encontram instaurados no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de revitalização;

􀁸 Manutenção das garantias existentes, nos termos do n.º 13, do artigo 199º do CPPT;

􀁸 As ações executivas pendentes para cobrança da dívida à Segurança Social não se extinguem e mantêm-se suspensas após aprovação e homologação do plano de recuperação até integral cumprimento do plano de pagamentos;

􀁸 As penhoras, arrestos ou medidas análogas incidentes sobre bens da devedora, de qualquer natureza (incluindo direitos e créditos), efetuados pela Segurança Social no âmbito dos processos de execução fiscal, não serão canceladas.

(…)

F. Outras Disposições

Em caso de homologação do plano apresentado:

􀁸 As garantias prestadas no passado mantêm-se válidas e eficazes, com um compromisso por parte dos Garantes no sentido de que sendo o presente Plano aprovado, os mesmos desistem dos Embargos apresentados, no âmbito das execuções que pendem sobre estes e sobre a revitalizanda (conforme Declaração anexa ao presente plano Anexo I);

􀁸 Salvaguarda-se aos credores a possibilidade de se ressarcir através da excussão de garantias hipotecárias externas ao património da Mendes Transportes, S.A.;

􀁸 Todas as ações de cobrança de dívidas (executivas ou não) instauradas contra a empresa, deverão ser extintas, com exceção das que respeitem à Segurança Social e à Autoridade Tributária;

􀁸 Nas ações de cobrança de dívida pendentes em juízo nas quais tenham sido proferidas, antes do PER, e as respetivas sentenças que venham, entretanto, a transitar em julgado, os credores serão pagos nos termos e condições previstos no plano para a respetiva classe de créditos a que os mesmos pertençam;

􀁸 Nas ações de cobrança de dívida com sentença transitada em julgado antes do PER, os credores serão pagos nos termos e condições previstos no plano para a respetiva classe de créditos a que os mesmos pertençam;

􀁸 Os créditos “sob condição” em que se tenha verificado ou venha a verificar a condição, serão pagos nos mesmos e exatos termos em que fica estabelecido para os créditos do mesmo tipo e natureza, verificados sem condição, após a referida verificação da condição (…)”.

Embora se tenha, de certo modo, procurado estabelecer, na elaboração do plano de revitalização apresentado, um regime relativamente moderado quanto à afectação dos créditos da credora Segurança Social, afigura-se-nos, contudo, ser inegável que o respectivo conteúdo traduz e consubstancia uma efectiva restrição ao conteúdo desses mesmos créditos, o que é por si suficiente para que se tenha de considerar ofensiva da mencionada disposição legal e que motivou aliás o voto desfavorável do Instituto da Segurança Social, ora recorrente.

Ora, o plano de revitalização não pode produzir efeitos que se traduzam na modificação restritiva do conteúdo dos créditos titulados pelo Instituto da Segurança Social, contra a sua vontade, constituindo violação negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos e para os efeitos do artigo 215º do CIRE, aplicável ao processo especial de revitalização nos termos do artigo 17ºF, nº 7, do mesmo diploma legal.

(Sobre esta matéria, vide Alexandre Soveral Martins, in “Um Curso de Direito da Insolvência”, Almedina 2015, a páginas 412 a 413, onde se enfatiza que “O aditamento do nº 3 referido (ao artigo 30º da Lei Geral Tributária) visava, designadamente, enfrentar as dúvidas que até aí surgiam acerca da relação entre o CIRE, a LGT, o CPPT, e o regime da regularização das dívidas à segurança social. Com efeito, a jurisprudência mostrava-se dividida quanto à possibilidade de o plano de insolvência, porque previsto em lei especial, afastar o regime contido em normas imperativas da legislação referida. O artigo 30º, nº 3, da LGT não permite agora dizer que as soluções previstas no plano prevaleceriam sobre a legislação fiscal”).

Todavia, da imposição legal de proibição de modificação restritiva do conteúdo do crédito tributário não resulta necessariamente a solução drástica de recusa, pura e simples, de homologação do plano de recuperação da revitalizada que o tornaria totalmente inaproveitável, com frustração dos interesses particulares envolvidos e acentuado prejuízo para a organização económica e empresarial que o sistema jurídico tende a salvaguardar até onde lhe for juridicamente possível.

Neste sentido, a solução mais equilibrada, adequada e curial que permitirá, simultaneamente, harmonizar os relevantes interesses sociais e económicos que o legislador se propôs salvaguardar através da instituição do processo de revitalização, reforçados através de compromissos assumidos internacionalmente pelo Estado Português, com a imperativa e intransigente defesa dos créditos tributários em geral, consiste em fixar ineficácia relativa à homologação da aprovação do plano de revitalização no que concerne aos créditos de natureza tributária reclamados e de que é titular o Instituto da Segurança Social.

Ou seja, o plano de revitalização produzirá todos os seus efeitos, viabilizando o prosseguimento da actividade económica e comercial da empresa e satisfazendo os interesses dos credores na exacta medida acordada e por eles aceite, à excepção daqueles que teriam reflexo na esfera jurídica do Instituto da Segurança Social, enquanto entidade titular de créditos de natureza tributária, ao qual não serão oponíveis, permanecendo intangíveis e imodificáveis no seu conteúdo.

(Neste preciso sentido, vide:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Abril de 2018 (relator Pinto de Almeida), proferido no processo nº 5781/16.7T8VIS-D.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 2014 (relator Fonseca Ramos), proferido no processo nº 1786/12.5TBTNV.C2.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Abril de 2014 (relator Fernandes do Vale), proferido no processo nº 185/13.6TBCHV-A.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 2014 (relator Fonseca Ramos), proferido no processo nº 217/11.2TBBGC.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Março de 2015 (relatora Ana Paula Boularot), proferido no processo nº 664/10.7TYVNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Junho de 2021 (relator Luís Espírito Santo), proferido no processo nº 1412/20.9T8VNF.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 2023 (relator Luís Espírito Santo), proferido no processo nº 1311/21.7T8VFX.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt.

Trata-se de resto da opção jurídica consistentemente perfilhada em geral por esta 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, à qual se encontra deferida a competência neste tipo de acções (artigo 128º da Lei da Organização do Sistema Judiciário), não havendo motivo para dela divergir.

Sobre o tema escreveu Catarina Serra in “O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência”, Almedina, 2017, 2ª edição, páginas 105 a 106:

“Baseando-se na essência contratual do plano de recuperação, o Supremo Tribunal de Justiça e alguns Tribunais da Relação têm vindo a afirmar que o plano de recuperação de recuperação pode e dever ser homologado desde que se preservem os créditos tributários. Para tanto basta que se proceda, segundo uns, à restrição dos efeitos do plano aos créditos não tributários e, segundo outros, presumindo que a vontade hipotética ou conjectural das partes é no sentido de conservar o plano, à redução do plano às cláusulas incidentes sobre estes últimos créditos”.

A mesma autora discrimina, de seguida, os arestos que sufragaram tal posição jurisprudencial, a qual mereceu de resto o seu aplauso.

Em defesa desta solução vide Fonseca Ramos in “Os créditos tributários e a homologação do plano de recuperação da insolvência”, publicado in Revista do Direito da Insolvência, Ano 0, páginas 267 e seguintes.

Em sentido relativamente divergente, pronuncia-se Sara Luís Dias, no artigo citado supra, onde revela as suas reservas quanto à solução encontrada – que não obstante louva -, na medida em que, segundo refere, o CIRE não só prevê nos artigos 212º a 217º e 176º a aplicação das medidas a todos os credores, sem excepcionar a Autoridade Tributária, como privilegiou, através da Lei nº 16/2012, de 12 de Abril, a sua protecção pelo crédito tributário, o que nos parece indiciar a sua tomada de posição pela recusa, pura e simples, de homologação do plano.

A mesma autora conclui fazendo fé numa futura alteração legislativa direccionada ao combate aos efeitos nefastos associados ao encerramento de empresas, em que se prevejam medidas de redução dos créditos tributários, caso se demonstre a viabilidade da sociedade e a necessidade dessa aquiescência (salvífica).

Intervenção legislativa esta que, como bem se compreende, virá quando vier – se vier – de nada servindo actualmente, enquanto mera expectativa ou vã esperança, para acudir, enfrentar e resolver os sérios prementes e inadiáveis problemas das empresas em graves dificuldades financeiras, embora viáveis, num contexto económico crescentemente problemático e de gravíssima crise social).

Acresce dizer ainda que o valor dos créditos privilegiados reclamados pelo Instituto de Segurança Social e a amplitude que caracteriza o plano apresentado para o seu pagamento – onde se prevê a sua regularização em 150 meses, através de prestações mensais e sucessivas, bem como a suspensão das execuções pendentes, – não justificam, na situação sub judice, o recurso à “válvula de segurança interpretativa” ensaiada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Março de 2015 (relatora Ana Paula Boularot), proferido no processo nº 664/10.7TYNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, para as situações em que se trate de “uma mera modificação dos prazos de pagamento e/ou taxas de juros que reflictam e exprimam uma redução global do crédito pouco expressiva”.

Em suma, a solução da fixação de eficácia relativa à homologação do plano de revitalização, que se adopta, permitirá – sem perigo de ofensa de qualquer disposição legal imperativa – criar as condições necessárias para que a recuperanda retome a sua actividade e procure porventura no âmbito da execução fiscal pendente, fazendo realçar as inegáveis vantagens sociais e económicas associadas continuação do seu giro empresarial, apresentar alternativas negociais realistas e viáveis que sejam aceites pela credora pública, em termos da regularização escalonada destes créditos.

Caberá exclusivamente à esta última entidade de natureza pública, directamente vocacionada para os ditames da emergência e coesão sociais, ponderar e aquilatar devidamente os interesses em contraposição e optar pela solução que se afigure mais razoável e conforme ao espírito da legislação (CIRE) em causa, sem que seja legalmente possível, impor-lhe em consequência da manifestação de vontade dos restantes credores, um regime fraccionado de pagamento da dívida dessas prestação e a imediata suspensão das execuções pendentes (mormente nas hipóteses em que tenha porventura falhado já o cumprimento de obrigações já vencidas no decurso do processo de recuperação) que se revelem contra a sua vontade.

É assim negada a revista.

IV – DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar provimento à revista confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 17 de Outubro de 2023.

Luís Espírito Santo (Relator)

Maria Olinda Garcia

António Barateiro Martins (vencido, conforme declaração que junta).

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Concederia a Revista, repristinaria a Sentença da 1.ª Instância e homologaria a totalidade do Plano de Recuperação, tal como foi apresentado/aprovado.

Pelo seguinte:

É conhecida a polémica que a homologação do “Plano” que modifique os créditos tributários (designadamente, do Estado e das Instituições de Segurança Social) tem gerado.

Por o “Plano” – convenção ou negócio jurídico próprio do direito da insolvência – ter a força jurídica especial de afetar os direitos dos credores (aparentemente, todos os credores, com exceção das entidades referidas no art. 196.º/2 do CIRE, em que se incluem o BCE e os Bancos Centrais dos Estados membros), passou a entender-se neste STJ1, pese embora a regra da “indisponibilidade” dos créditos tributários estabelecida nos art. 30.º/2, 36.º/2 e 3 da LGT2, que as dívidas fiscais e as dívidas à segurança social podiam ser comprimidas pelo “Plano” (argumentou-se que não existia, no caso do “Plano” prever perdões, reduções ou moratórias no pagamento das dívidas fiscais e da segurança social, violação das normas fiscais imperativas por vontade das partes ou dos credores, mas sim a necessidade de observar um regime especial, consagrando-se a igualdade de tratamento para todos os credores, criado pelo próprio legislador.)

Face a tal contexto e entendimento jurisprudencial, a Lei do Orçamento de 2011 veio dizer, nos seus arts. 123.º e 125.º, que a regra geral tributária constante do art. 30.º/2 – que estabelece a indisponibilidade do crédito tributário e que diz que só no respeito pelos princípios da igualdade e da legalidade tributárias o mesmo poderá ser comprimido – não é alterável por uma qualquer legislação ou regime especial, querendo referir-se, não há qualquer dívida, ao CIRE.

Temos pois, a partir de tal Lei do Orçamento, que o mesmo legislador que impõe aos particulares um regime de exceção, obrigando-os a um “Plano” (seja de recuperação seja de insolvência) que inclui o perdão ou a redução dos seus créditos sem ou contra o seu acordo, se pretende abster, ele próprio, de contribuir para a prossecução dos fins que visou atingir com o processo de insolvência, pretendendo manter intocáveis os seus créditos e impondo aos demais credores todo o esforço de recuperação do insolvente.

E é neste ponto – perante a desarmonia e inconciliabilidade das leis, perante o Estado que produz legislação insolvencial com a função de recuperação de empresas (e que anuncia medidas legislativas de recuperação e revitalização das empresa), mas não quer participar nos sacrifícios que tais medidas representam – que este STJ (sem embargos de reconhecer a referida desarmonia e inconciliabilidade) excogitou a “tese da ineficácia relativa”, que, segundo o Conselheiro Fonseca Ramos (no local e artigo referidos no Acórdão), “(…) a par de constituir a solução que melhor satisfaz a conciliação dos interesses em jogo e supera a intransigência do legislador fiscal, obviando às drásticas consequências da não homologação do plano de insolvência, possibilitando a recuperação do insolvente, as mais das vezes à custa de pesados sacrifícios”.

Sucede, a nosso ver e com todo o respeito – quando, como é o caso, o “Plano” (seja de insolvência ou de recuperação) viola normas tributárias (o art. 30.º/2 e 3 da LGT), ou seja, quando, sem a autorização/acordo do Estado ou Seg. Social, reduz os juros ou dilata prazos de pagamento das obrigações tributárias – que não se está perante uma situação juridicamente configurável como de possível “ineficácia relativa”, mas sim perante uma invalidade/nulidade, na medida em que um tal “Plano” infringe uma norma imperativa (o referido art. 30.º/2 e 3 da LGT) e, para tal, a sanção é a nulidade (cfr. art. 294.º do C. Civil)3.

Por outro lado, a decisão de julgar ineficazes as cláusulas do “Plano” que afetem créditos tributários é, na realidade, uma recusa de homologação de parte do “Plano” aprovado pelos credores4: é uma decisão de recusa de homologação da cláusula que prevê a modificação dos créditos fiscais. E, a nosso ver, o art. 215.º do CIRE não consente, em relação a um mesmo Plano, uma decisão de homologação em relação a uma parte dele e uma decisão de não homologação em relação a outra parte.

Ademais, a prolação de duas decisões – uma a homologar parte do Plano e outra a recusar a homologação de outra parte – coloca em causa as formas de satisfação dos credores no processo de insolvência.

Efetivamente, segundo o art. 1.º/1 do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores por uma de duas formas: pela forma prevista num plano de insolvência baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente; ou, quando tal não se afigure possível, através da liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

A ideia do CIRE é a de que todos os credores fiquem sujeitos ou ao regime do plano de insolvência ou ao regime do procedimento de liquidação, não estando prevista uma “terceira via”, nem que o “Plano”, uma vez aprovado, não estenda os seus efeitos a todos os credores5.

E, admitindo-se a não homologação parcial do “Plano”, em relação aos credores tributários, tal significaria que a satisfação de tal crédito não seria feita nem pela forma prevista no plano nem através da liquidação do património do devedor insolvente, ou seja, seria feita por uma forma diferente, ao arrepio do prescrito no CIRE (e o objetivo tido em vista com o Plano poderia ser frustrado com a liberdade de que dispunham os credores tributários para exercerem os seus direitos contra o devedor sem quaisquer restrições).

Enfim, a questão da homologação ou não do Plano, no seu todo, passa pela aplicação do art. 215.º do CIRE.

Quando o conteúdo do “Plano” viola o art. 30.º/2 e 3 da LGT deve, em princípio, a meu ver, em face da referida imperatividade de tal preceito, ser recusada a homologação de todo o “Plano”.

E dizemos “em princípio”, na medida em que deve haver algum espaço/margem para, por interpretação, poder “sair/resultar” uma solução que respeite minimamente a unidade e harmonia do sistema jurídico.

Dispondo-se no art. 215.º do CIRE (para que remete o art. 17.º-F/5 do CIRE) que o juiz só deve recusar a homologação em caso de “violação não negligenciável (…) das normas aplicáveis ao seu conteúdo”, deve considerar-se ser possível entender, em certos e concretos casos de violação do art. 30.º/2 e 3 da LGT, que estaremos tão só perante violações negligenciáveis das normas tributárias.

Vem-se entendendo, é certo, que devem ser consideradas como não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretam a produção dum resultado que a lei não autoriza; todas as violações de normas que interfiram com a justa salvaguarda dos interesses/posições dos credores.

Mas será o caso – violação não negligenciável – se a violação se traduzir numa mera modificação dos prazos de pagamento e numa redução das taxas de juros, que reflitam e exprimam uma redução global do crédito pouco expressiva e se tal modificação dos prazos e redução de juros não estiver à partida e em abstrato proibida pelas disposições tributárias convocáveis e invocáveis (no que acompanhamos o Acórdão deste STJ de 24 de Março de 201, referido no texto deste Acórdão).

Todos estão de acordo – veja-se o que o que o Conselheiro Fonseca diz no seu já referido artigo – em dizer que não se justifica manter o credor tributário totalmente à margem dos deveres de cooperação e solidariedade económica e social que devem recair sobre todos os credores, no sentido de possibilitar a recuperação da empresa e evitar o seu encerramento e as consequências económicas que tal pode gerar, nomeadamente, fomentar a insolvência de outras empresas, o acréscimo de desemprego, entre outras consequências nefastas para a economia, enfim, todos dizem que o legislador já devia ter “deslindado” esta desarticulação de objetivos e de diplomas legais, mas, volvidos 12 anos sobre a Lei do Orçamento de 2011, o certo é que o legislador não fez.

A nosso ver, uma adequada ponderação dos interesses que a questão convoca, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam (recuperação de empresas) e, por outro lado, o interesse público na arrecadação das receitas fundamentais à preservação e desenvolvimento do Estado Social (o dever geral que todos temos de contribuir para as receitas suficientes para fazer face às necessidades coletivas), tem que permitir, no respeito pelo princípio da proporcionalidade, uma interpretação, em certos casos, restritiva dos art. 30.º/2 e 3, 36.º/3 da LGT, uma interpretação que restrinja o seu pleno campo de aplicação à relação tributária e que permita, em certos casos de confronto com a legislação especial do direito falimentar, uma interpretação restritiva.

Repare-se:

- Uma das funções/princípios da nossa lei de insolvência é a recuperação de empresas;

- Tanto o Estado como a Segurança Social são, na maioria dos casos, titulares de créditos avultados sobre o devedor, pelo que, se não puderem participar no esforço de recuperação da empresa, o processo poderá ficar por vezes votado ao insucesso, o que contraria frontalmente a teleologia do PER (da reforma de 2012, confirmada em 2017), sendo certo que o direito deve ser (e é suposto que seja) um sistema harmónico e coerente;

- O princípio da indisponibilidade tributária e o que resulta do art. 103.º/1 e 2 da CRP tem que ser articulado com outras disposições constitucionais, designadamente das que tutelam a posição dos trabalhadores (53.º e 58.º/2/a) da CRP) e a manutenção do tecido económico e empresarial (100.º/d) da CRP);

- O próprio princípio da igualdade e legalidade tributária (cfr. art. 30.º/2 da LGT; do devedor, face aos outros contribuintes), perspetivado em sentido material, não será violado se se perceber que o Estado e a Segurança Social recebem mais (aceitando alguma modificação/redução do seu crédito) do que viriam a receber em caso insolvência (até poderá ser “bom” para os outros contribuintes, na medida em que o Estado cede facilmente à tentação de ir buscar dinheiro onde ele existe, no caso, perante a insolvência dum contribuinte, aos outros contribuintes).

Em face disto, ponderando tudo adequada e proporcionalmente, desde que a intervenção nos créditos do Estado e Seg. Social não evidencie uma modificação injusta e desproporcional – tendo em conta o somatório dos créditos dos particulares e a medida em que eles abdicam, visando a recuperação da empresa pré-insolvente – entendemos que será de admitir que o “Plano” possa incluir alguma modificação dos prazos de pagamento ou das taxas de juros (ou mesmo, em casos muito extremos, desde que devidamente justificado/explicado, uma moratória e o perdão ou redução do valor do capital) dos créditos da AT ou da Seg. Social.

Enfim, entendemos, verificada/apreciada uma concreta, precisa e “exigente” conjugação de circunstâncias, que poderemos estar “apenas” perante uma violação negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do “Plano”.

Todos estão de acordo que a lei/legislador já devia ter previsto as situações, excecionais, em que uma “intervenção” nas dívidas tributárias pudesse acontecer nos processos que visem a recuperação económica do devedor, estabelecendo as condições em que tal poderia acontecer, quando tal se demonstre indispensável à viabilização da empresa, já que também constitui interesse público digno de proteção a continuidade das empresas que revelem a possibilidade de se recuperarem, pelo que o que se refere – e a que se procura chegar por interpretação restritiva dos art. 30.º/2, 36.º/2 e 37.º/2 da LGT – procura colmatar tal omissão legislativa.

Ora – é o ponto – o caso dos autos/recurso preenche, a meu ver, o concreto, preciso e “exigente” circunstancionalismo que leva a que se possa admitir que o “Plano” inclua, como é o caso, a modificação dos prazos de pagamento dos créditos da Seg. Social: não prevê qualquer perdão ou redução do crédito reclamado pela Seg. Social, prevendo-se a sua “regularização ao abrigo do CRCSPSS”, com modificação do prazo e pagamento em 150 prestações iguais, sem moratória, pelo que, tendo em conta o somatório dos créditos dos particulares e a medida em que eles abdicam, visando a recuperação da devedora, a “intervenção” que o Plano faz nos créditos da Seg. Social não evidencia qualquer “redução injusta ou desproporcional”.

Estamos até perante uma “intervenção” que compreende uma modificação do prazo que é à partida (e em abstrato) viabilizada pelos arts. 189.º e 190.º do CRCSPSS, que “grosso modo” (e preenchidas certas condições) admite, quando tal for indispensável à viabilidade do contribuinte e este se encontre em processo de insolvência ou recuperação, que seja autorizado o pagamento prestacional da dívida e a redução dos respetivos juros vencidos e vincendos.

Em face de tudo isto, homologaria, como comecei por referir, in totum o Plano de Recuperação apresentado/aprovado.

António Barateiro Martins.

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V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.

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1. Cfr. v. g. Ac. do STJ de 13/01/2009, 04/06/2009 e 02/03/2010, in DGSI↩︎

2. Que significa, nas palavras de José Casalta Nabais [Direito Fiscal, Almedina (2010, 6.ª Edição, páginas 249 e 250], que ao “… credor não cabem, em princípio, quaisquer poderes para conceder moratórias, admitir o pagamento em prestações ou conceder o perdão da dívida”.↩︎

3. Segundo o art. 294.º do C. Civil, os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei; e não existe uma qualquer disposição especial a sancionar a violação do art. 30.º/2 e 3 da LGT com a ineficácia, valendo a regra dos negócios celebrados contra a lei: nulidade.↩︎

4. Ou, noutra perspetiva, uma alteração do “Plano”, sendo que, depois da aprovação do plano pelos credores, não é lícito ao juiz introduzir-lhe alterações.↩︎

5. Afirma-se no art. 217.º/1 do CIRE que, com a sentença de homologação produzem-se as alterações dos créditos sobre a insolvência introduzidas pelo plano de insolvência, independentemente de tais créditos terem sido, ou não, reclamados ou verificados.↩︎