Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
331/20.3PCSTB.S2
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: M. CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO PER SALTUM
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DE COGNIÇÃO
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ERRO DE JULGAMENTO
PRINCÍPIO DA ORALIDADE
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :

I- Quando se analisam os vícios do art. 410.º do CPP, o tribunal apenas pode ater-se ao texto da decisão impugnada e não pode recorrer a elementos exteriores, nomeadamente, como neste caso o recorrente parece pretender, ao teor do relatório social, ignorando também os poderes de cognição do STJ.


II- Qualquer recorrente deve ter presente os poderes de cognição do STJ, definidos no art. 434.º do CPP, não devendo confundir os vícios do art. 410.º do CPP, que tem de resultar do texto da decisão, com o erro do julgamento (art. 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP), sendo este último da esfera do conhecimento da Relação.


III- Apesar de se ter presente os poderes de cognição do STJ, neste caso, para evitar equívocos desnecessários, esclarece-se o arguido/recorrente que, a audiência que teve lugar em 24.05.2023, onde esteve presente (novo julgamento para determinação da sanção, em consequência do decidido no ac. do STJ de 24.11.2022, no qual se confirmou a decisão quanto à culpabilidade, que se encontra definitivamente decidida desde então), permitiu-lhe pronunciar-se sobre o que entendeu, como a ata documenta, tendo inclusivamente sido questionado quanto à utilização do relatório social na elaboração do acórdão e, pelo mesmo foi dito “poder ser utilizado, mais declarando não se registarem quaisquer alterações face ao ali vertido”, o que significa que tinha conhecimento do seu teor. Por isso, alegar em sede de recurso para o STJ, que não teve oportunidade de prestar declarações ou de manifestar arrependimento ou que não foi confrontado com o relatório social é no mínimo inócuo e irrelevante (de resto, era no próprio ato que o respetivo defensor deveria ter suscitado eventual vício ou irregularidade que entendesse verificar-se, sob pena de ficar sanada, pelo que não há violação de qualquer princípio que presida à audiência de julgamento, designadamente, aos princípios da oralidade e da imediação).

Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 331/20.3PCSTB.S2


Recurso


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


Relatório


1. Em processo comum (tribunal coletivo) n.º 331/20.3PCSTB do Juízo Central Criminal de..., j... ., da comarca de Setúbal, na sequência do ac. do STJ de 24.11.2022 que declarou nulo o acórdão da 1ª instância de 3.03.2022, pelos motivos ali indicados, veio a ser proferido novo acórdão em 2.06.2023, sendo condenado o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistir agravado p. e p. nos arts. 165.º, n.º 1 e n.º 2 e 177.º, alíneas a) e c), do Código Penal (factos de 22.12.2020), na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva.


2. Inconformado com esse acórdão de 2.06.2023, recorreu o arguido em 27.06.2023 apresentando as seguintes conclusões (transcrição sem negritos nem sublinhados):


1. Produzida a prova o arguido foi condenado por um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 165.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, als. b) e c), todos do Código Penal na pena de 5 (cinco) anos e 6 (meses) de prisão efetiva.


2. O arguido e ora recorrente é primário.


3. Sendo certo que o arguido não esteve presente em sede de audiência de discussão e julgamento não foi possível valorar a sua postura de contrição, arrependimento e colaboração também é certo que não pode ser prejudicado por essa falta de presença, quanto à aferição da sua posição quanto à matéria de facto considerada provada.


4. O arguido foi ouvido pelas pelos técnicos da DGRSP com vista à elaboração do relatório social.


5. Através desse relatório, fruto da entrevista efetuada ao arguido, foi careado para os autos o percurso de vida daquele, conforme pontos 18 a 48 da matéria considerada provada quanto ao contexto vivencial do arguido.


6. O relatório produzido pela DGRSP manifestou o posicionamento do arguido perante a factualidade e perante a ofendida oferecendo uma opinião quanto ao mesmo totalmente desprovido de qualquer critério de avaliação daquelas declarações.


7. As declarações do arguido sobre a ofendida, aquando da elaboração do relatório da DGRSP, estão desprovidas dos critérios da imediação, da oralidade e do contraditório algo que só o juiz de julgamento pode salvaguardar, não podem relevar para a condenação do arguido ou para a ponderação da sanção em face da matéria considerada provada.


8. O acórdão recorrido ao utilizar as declarações obtidas para a elaboração do relatório social do arguido, quanto aos factos em discussão nos autos, sem as fazer passar pelo crivo da oralidade e imediação, baseando-se apenas na transposição para os autos daquelas declarações, viola os princípios da produção de prova conduzindo a um notório erro de julgamento.


9. O relatório elaborado pela DGRSP e os factos considerados provados não podem permitir a caracterização do dolo e culpa de forma tão intensa.


10. A ser útil para a avaliação da medida da culpa o relatório da DGRSP deverá ser entendido apenas na ótica de que o analfabetismo do arguido académico e funcional, associado à fraca interação social daquele apenas contribui para uma reduzida perceção da ilicitude e uma baixa medida da culpa.


11. Não há do arguido um desinteresse e desprezo da ofendida, há sim uma limitação do arguido que conduz a uma incompreensão daquele quanto á factualidade e quanto á ofendida.


12. A determinação da sanção efetivamente aplicada ao arguido deveria ter isto em atenção e deveria concluir que uma pena de prisão cumprida de forma efetiva apenas o afastará mais da integração social e profissional que mantém.


13. Como se verifica a sentença recorrida inclusive utiliza os demais elementos constantes da acusação para fundar a sua convicção não obstante de em sede de audiência de discussão e julgamento não se ter logrado fazer prova de factos que conduzissem a condenações adicionais além da que foi proferida.


14. Condenação essa que se coloca em crise em face da medida da pena e forma da sua execução.


15. Está inserido social e profissionalmente.


16. Ora ao crime relativamente ao qual foi condenado é suscetível de aplicar-se uma pena entre os 2 (dois) anos e 8 (oito) meses a 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses de prisão.


17. O arguido primário foi condenado numa pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, com o devido respeito é muito e é desproporcional e é injusta.


18. Pelo mero facto de o arguido ser primário deveria o tribunal a quo de proferir um juízo de prognose fundado na ausência de condenações no certificado do registo criminal do arguido e na inexistência de qualquer pendencia penal em investigação.


19. A condenação deveria ter tido como limite o seu terço inferior quedando-se no máximo nos cinco anos de prisão e ser suspensa na sua execução.


20. Só assim haveria proporcionalidade entre a pena decidida e o dolo, culpa e factos decorrentes da conduta ilícita do arguido.


21. Andou mal o tribunal “a quo” ao considerar que ao arguido se deveria aplicar uma pena de prisão, mediante os factos considerados provados, numa duração que impossibilita a sua suspensão.


22. As exigências de prevenção especial, relativamente ao arguido, são baixas e nunca deveriam ter sido avaliadas da forma tão elevada como o foram.


23. Em face de tudo o exposto acredita o recorrente, que se está perante uma medida da culpa desmedida, quando reportada ao objeto do processo e áquilo que se logrou provar em sede de audiência de discussão e julgamento, sendo que não deverá ser ponderada uma pena superior a cinco anos de prisão.


24. Da mesma forma acredita, o recorrente, que a forma de cumprimento desta pena deve ser revista e alterada.


25. O arguido nunca viveu de forma contrária à lei e aos bons costumes.


26. Deve o tribunal concluir por um prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento convencendo-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, acompanhadas pela imposição de deveres, bastarão para o aproximar do cumprimento da norma.


27. Torna-se por demais claro que a suspensão da execução da pena de prisão sujeita a um regime de prova apertado, nos termos do art.º 53.º do Código Penal terão um pleno sucesso na reintegração social do arguido e na sua plena interiorização do desvalor e correção dessas mesmas condutas.


28. Termos em que se reitera a discordância com a sentença na parte em que sustenta e decide por uma pena de prisão em regime de efetiva reclusão em meio prisional.


29. Termos em que deve ser alterada, não só a medida da pena nos termos expostos, mas a forma de execução da pena proferida na sentença recorrida.


30. A pena de 5 (cinco) anos e 6 (meses) de prisão efetiva em que foi condenado o arguido deve ser substituída por uma pena de 5 (cinco) anos de prisão suspensa na sua execução por igual período.


Termina pedindo o provimento do presente recurso e, em consequência, deve ser alterada a medida da pena em que foi condenado, de forma a poder a ser suspensa nos termos do art.º 50.º do Código Penal, sujeitando-se o arguido a regime de prova, nos termos do art.º 53.º do Código Penal.


3. O Ministério Público respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:


1ª – Em obediência ao acórdão proferido em 24 de Novembro de 2022 pelo Supremo Tribunal de Justiça, realizou-se em 24 de Maio de 2023 novo julgamento (limitado à matéria pertinente à determinação da espécie e medida da pena a aplicar), onde o Recorrente compareceu e poderia ter expressado eventuais “arrependimento” e “contrição”;


2ª – Nem antes, nem durante, nem depois desse novo julgamento o Recorrente questionou o Relatório Social entretanto elaborado e junto aos autos, contrapondo-lhe qualquer objecção ou requerendo algo a seu respeito – antes tendo consentido expressamente na sua utilização no processo e declarado nada ter a acrescentar-lhe;


3ª – Por conseguinte, nada impede que o tribunal transponha para a matéria assente o posicionamento do Recorrente – que resulta dessa peça – perante os factos criminalmente puníveis e a própria ofendida (pontos 47 e 48 dos “Factos Provados”, que ele parece pretender impugnar, sem que o refira expressamente), tal como fez relativamente ao seu percurso de vida e enquadramento social, familiar e laboral (sem qualquer contestação);


4ª – Qualquer cidadão sem défice cognitivo, mesmo que de escassas ou nulas habilitações literárias, está ciente da proibição legal de impor a prática de actos sexuais a outrem incapaz de se auto-determinar livremente nesse domínio;


5ª – Contra o Recorrente militam severamente o elevado grau de ilicitude dos factos, o seu censurável modo de execução, o expressivo grau de violação dos deveres que lhe eram impostos para com a ofendida, a actuação com dolo directo de intensidade acentuada, os muito reprováveis sentimentos manifestados no cometimento do crime, a ausência de evidências de interiorização do desvalor da conduta, as fortes exigências de prevenção geral e as não despiciendas necessidades de prevenção especial;


6ª – Na determinação da medida concreta da pena o tribunal fez adequada aplicação dos critérios contemplados no art. 71º nºs 1 e 2 do C.P. e ponderou judiciosamente as finalidades das penas consagradas no art. 40º nº 1 do mesmo código, pelo que a pena de cinco anos e seis meses de prisão deverá ser mantida;


7ª – Para o caso de a pena de prisão vir a ser reduzida para medida não superior a cinco anos (hipótese que não se admite e apenas por dever de ofício se equaciona), não deverá haver lugar à suspensão da respectiva execução;


8ª – Com efeito, a ausência de antecedentes criminais não pode ser erigida em critério exclusivo ou preponderante do recurso ao instituto da suspensão da execução da pena (por traduzir tão-só o comportamento conforme ao direito exigido e esperado de qualquer cidadão), ao passo que o enquadramento laboral já se verificava aquando do cometimento dos factos (não sendo, de resto, incomum em agentes de crimes da mesma natureza);


9ª – Perante a natureza e as circunstâncias do crime cometido, a personalidade assim revelada, as acentuadas exigências de prevenção geral e as não desprezíveis necessidades de prevenção especial, é de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão nunca satisfariam adequada nem suficientemente as prementes exigências de protecção do bem jurídico violado e as sensíveis necessidades de reintegração do agente na sociedade.


Termina pedindo que seja negado provimento ao recurso interposto e mantido na íntegra o douto acórdão recorrido.


4. Subiram os autos a este STJ e o Sr. PGA no seu parecer pugnou pela improcedência do recurso, considerando ajustada, adequada e proporcionada a pena aplicada na 1ª instância, subscrevendo os fundamentos exarados no acórdão impugnado.


5. Não houve resposta ao Parecer do Sr. PGA.


6. No exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.


Cumpre, assim, apreciar e decidir, sendo da competência deste mesmo Tribunal conhecer do recurso interposto da nova decisão proferida pelo tribunal recorrido, face ao disposto no art. 379.º, n.º 3, do CPP.


Fundamentação


7. Resulta do acórdão impugnado a seguinte decisão sobre a matéria de facto relativa à questão da culpabilidade já fixada anteriormente, por ac. do STJ de 24.11.2022:


1) O arguido era casado, à data dos factos que infra se descreverão, com BB.


2) Com o casal residia CC, nascida em .../.../1986, filha apenas de BB.


3) CC padece, desde que nasceu, de oligofrenia, com défice cognitivo acentuado, doença que não lhe permite ser plenamente autónoma e autodeterminar-se em vários assuntos, nomeadamente de natureza sexual.


4) O arguido, BB e CC, no momento temporal de ocorrência dos factos infra a descrever, residiam na Rua ..., em....


5) Desde que BB sofreu um AVC (em momento anterior ao de ocorrência dos factos) o arguido assumiu ativamente o papel de cuidador quer desta quer de sua enteada, CC.


6) BB ficou totalmente dependente de terceiros, devido à sua dificuldade de locomoção.


7) No dia 22/12/2020, em horário e contexto não plenamente apurados, mas encontrando-se arguido e CC no interior do quarto de casal de arguido, e quando BB se encontrava noutra dependência habitacional, o arguido despiu-se, tendo ainda despido completamente a parte debaixo do vestuário que CC envergava.


8) Após, colocou o seu corpo por cima do de CC, que segurou com as mãos pela zona da barriga, de molde a introduzir o seu pénis ereto na vagina daquela, o que concretizou, fazendo movimentos com o corpo, repetidamente, até ejacular.


9) Em momento temporal não concretamente apurado, porém necessariamente compreendido entre a data de ocorrência da interação acabada de descrever e as 16h40m do dia 23/12/2020 (momento de admissão em unidade hospitalar em episódio de urgência tendo por causa “agressão”), por se encontrar nervosa, CC destruiu um comando remoto existente na residência.


10) Desagradado com a postura de CC, o arguido pegou numa canadiana e, fazendo uso da sua força muscular, desferiu com esta uma pancada na mão esquerda daquela, causando-lhe uma hematoma e dores.


11) O arguido sabia, por ser visível, por conhecer CC e com esta coabitar há vários anos, que aquela é portadora de deficiência mental que lhe determina acentuadas restrições cognitivas, não conseguindo opor-se a avanços indesejados a nível sexual ou de qualquer outra índole.


12) O arguido sabia igualmente que as dificuldades cognitivas de CC, derivadas da sua doença mental, a tornam completamente vulnerável e na incapacidade total de opor resistência, ficando à mercê dos seus intentos libidinosos.


13) O arguido sabia que a cópula é um ato sexual de relevo.


14) O arguido agiu, assim, de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado de praticar cópula com CC, pessoa que sabia ser incapaz, por deficiência mental, de opor resistência, aproveitando-se dessa incapacidade para satisfazer unicamente os seus desejos libidinosos.


15) Mais sabia o arguido que se encontrava numa relação familiar e de coabitação com CC, aproveitando-se nitidamente dessa relação, e que esta, em razão da deficiência mental de que padece, é pessoa particularmente indefesa.


16) O arguido agiu ainda forma deliberada, livre e consciente com o propósito alcançado de ofender o corpo de CC.


17) O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.


Mais se provou, na sequência da realização do novo julgamento efetuado ao abrigo do art. 426-A do CPP, para averiguação de factos com vista à escolha e medida da pena, conforme o determinado no mesmo ac. do STJ de 24.11.2022, o seguinte aqui transcrito (sem sublinhados):


Do contexto vivencial do arguido:


18) AA é natural de ..., país onde decorreu o seu processo de crescimento e socialização.


19) É o terceiro filho de uma fratria de sete elementos, da relação mantida entre os pais.


20) O pai teve anteriormente e posteriormente à relação mantida com a mãe do arguido outros relacionamentos conjugais, desconhecendo AA o número de irmãos que tem em concreto.


21) Os pais do arguido separam-se quando aquele era criança, tendo crescido conjuntamente com uma irmã, integrados no agregado refeito do pai.


22) O pai do arguido era nesta altura proprietário de várias quintas, que explorava por conta própria, fazendo venda de produtos agrícolas e de animais de pastorícia, o que concedia uma situação económica estável ao agregado formado pelo arguido.


23) AA não frequentou a escola, sabendo apenas assinar o seu nome.


24) Começou a trabalhar ainda criança com o pai na área da agricultura e pastorícia, atividades que manteve após o falecimento do progenitor em 1984.


25) Nos últimos anos de vida do pai assistiu-se à degradação do património da família, vindo o próprio arguido a cessar a referida atividade laboral em 1993.


26) Emigrou então, através do apoio de um irmão, para Portugal, há cerca de uma década, fixando-se em ..., no bairro d. ........., onde tem vivido.


27) Com o apoio do irmão, AA conseguiu colocação no setor da construção civil, área onde tem trabalhado de modo relativamente regular, nem sempre com estabilidade contratual.


28) Passados alguns anos conseguiu que lhe fosse atribuída uma habitação social, onde viveu com uma companheira, que manteve ao longo de cerca 10 anos, até ao falecimento desta, por motivos de doença.


29) Em 2010 AA iniciou a relação marital com BB, mãe da ofendida CC, tendo casado em 2018.


30) Ao longo do período de vida em comum, o casal viveu numa habitação social pertença da Câmara Municipal de ..., arrendada em nome do arguido e onde este já vivera com a anterior companheira.


31) Com exceção dos primeiros quatro anos de vida em comum, período em que a ofendida viveu em ... junto do agregado de uma irmã, o agregado foi constituído pelo casal e por CC, enteada do arguido, a qual tem um défice cognitivo acentuado.


32) Pouco tempo após o início desta relação, BB sofreu vários Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC), que condicionaram a sua autonomia, tendo o arguido assumido o papel de cuidador do cônjuge, pelo menos desde 2018.


33) Passou então a repartir o seu tempo entre a atividade laboral, os cuidados ao cônjuge e ainda a gestão da vida doméstica.


34) À data dos factos, o arguido vivia na morada indicada na acusação, sendo o agregado


35) constituído pelo próprio, o cônjuge e a filha desta, CC, ofendida no âmbito do presente processo.


36) A situação financeira do agregado familiar era modesta, tendo como rendimentos o salário do arguido, trabalhador da construção civil, e as prestações sociais atribuídas ao cônjuge e enteada.


37) Nesse período e em virtude dos AVC sofridos, o cônjuge encontrava-se bastante limitado seja a nível da mobilidade seja a nível cognitivo e da capacidade de vigília, dormitando a maior parte do tempo.


38) Deste modo era o arguido a pessoa que assegurava a gestão doméstica e os cuidados ao cônjuge, realizados, por regra, após o termo do horário laboral.


39) Em virtude dos problemas cognitivos apresentados, CC era acompanhada pela APPACDM, instituição especializada que tem frequentado em regime externo, onde desenvolve várias atividades no período entre as 8 e as 17 horas.


40) Na sequência da instauração do presente processo e da medida de coação de proibição de contatos com a ofendida aqui imposta, AA solicitou apoio a um conhecido, coabitando desde então com o mesmo, na morada deste, a qual se situa num bairro relativamente próximo àquele onde a ofendida reside.


41) Solicitou já a atribuição de nova casa de renda social, encontrando-se a aguardar a sua concessão.


42) AA trabalha desde janeiro de 2021 na empresa G......... como servente, auferindo um salário mensal no valor de 850€, verba que lhe permite assegurar as várias despesas pessoais, contribuindo ainda com uma pequena verba para as despesas com os consumos domésticos da habitação onde reside.


43) No trabalho é descrito como pontual, assíduo e cumpridor das regras e normas.


44) O seu quotidiano mantém-se sensivelmente idêntico ao longo do tempo, sendo um sujeito que tem o modo de vida organizado em torno da atividade profissional e do espaço habitacional, mantendo vida social reduzida.


45) O arguido não voltou a ter qualquer contacto com CC (a qual reside com o irmão DD) ou com a progenitora desta, cônjuge do arguido, entretanto falecida.


46) AA apresenta-se como uma pessoa reservada e que pouco partilha da sua vida privada.


47) No que se refere ao presente processo judicial, o arguido revelou moderada capacidade em reconhecer a gravidade da prática criminal que lhe é imputada, reconhecendo que uma pessoa adulta, mas com défice cognitivo, não tem total capacidade de autodeterminação e avaliação dos acontecimentos.


48) Porém, não denotou capacidade de descentração e empatia relativamente à ofendida, evidenciando no seu discurso tendência para a diminuir, afirmando ser do conhecimento geral que CC, em virtude do seu défice cognitivo teria sido já abusada por diversas pessoas.


Do passado criminal do arguido:


49) O arguido não apresenta antecedentes criminais.


Factos dados como não provados (relativos à declaração de culpabilidade)


Não se fez prova cabal e inequívoca da seguinte factualidade:


Adveniente da acusação pública:


A) Que, desde que se encontram a residir em Portugal, o arguido, BB e CC sempre residiram na morada indicada em 4).


B) No dia 25/06/2020, cerca das 08h30m., de modo não concretamente apurado, o arguido encaminhou CC até ao seu quarto.


C) Aí chegados, o arguido deitou CC na cama, despiu-a e despiu-se e agarrou-a para ficar sossegada.


D) Ato contínuo, o arguido deitou-se sobre CC e mexeu-lhe na vagina com a mão e disse-lhe: “estou teso”.


E) Volvidos alguns momentos, o arguido introduziu o seu pénis ereto na vagina de CC e fez vários movimentos com o seu corpo para cima e para baixo até ejacular.


F) BB de nada se apercebeu porque estava a dormir no sofá da sala da habitação


G) Com a conduta permitida dar por assente, descrita em 7) e 8), o arguido causou em CC, na região genital, muitas dores.


Motivação1


A convicção do Tribunal resultou da análise crítica e conjugada da prova carreada para os autos, destacando-se:


- No domínio documental (designadamente):


- auto de denúncia/notícia de fls. 2 e 3 (datado de 16/04/2020);


- auto de fls. 29 (replicado a fls. 81 e 85), 71 e 72 dos autos principais (datado de 25/06/2020);


- auto de notícia/denúncia datado de 23/12/2020 (constante a fls. 2 a 4 e 6 e 7 do processo originariamente numerado sob o NUIPC 1221/20.5..., após incorporado nos presentes – replicado pois a fls. 162 dos autos principais);


- registos hospitalares constantes de fls. 39 a 49;


- relatório de urgência hospitalar de fls. 50 a 63;


- informação da APPACDM, constante de fls. 105 a 110;


- relatório policial de fls. 139 a 141;


- CRC de fls. 332.


No plano pericial:


- relatórios periciais de natureza sexual de fls. 154 a 160 (relativo a episódio de abril de 2020) e 221 a 228 (episódio de junho de 2020);


- relatório de criminalística biológica de fls. 257v a 260;


- relatório de perícia forense de fls. 286 a 294.


- No domínio declaracional:


- declarações para memória futura (constantes de fls. 205 a 207 e dotadas de registo áudio);


- prova testemunhal produzida.

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Os elementos probatórios supra careceram de ser interpretados sob perspetiva de juízo crítico e complementar entre si, com natural apelo às regras da experiência comum, de acordo com a livre convicção do julgador, em observância ao disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal.


Efetivamente, o artigo 127º do Código Processo Penal estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e naturezas completamente diferentes: uma avaliação da prova inteiramente objetiva quando a lei assim o determinar; outra também objetiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjetiva, que resulte da livre convicção do julgador.


A prova resultante da livre convicção do julgador pode ser motivada e fundamentada mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjetivos, embora explicitados para serem objeto de compreensão (neste sentido, acórdão do STJ de 18/1/2001, Proc. nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88).


Tal como refere o Prof Germano Marques da Silva no Curso de Processo Penal, Vol II, a pág 131 “(…) a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objetividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjetividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objetividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objetiva”.


Ou seja, a livre apreciação da prova realiza-se de acordo com critérios lógicos e objetivos.


Também a este propósito, refere o Professor Cavaleiro de Ferreira que esta “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade” -Cfr. "Curso de Processo Penal", Vol. II , a pág.30. Por outras palavras, diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é "(...) uma convicção pessoal -até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros ."- Cfr., Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, a págs. 203 a 205.


Noutro plano, a referida tarefa de apreciação crítica assumirá a sua natural consagração face ao princípio da oralidade e da imediação da prova, no plano da audiência de discussão e julgamento.


O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto direto, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.


Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: “Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais". - In Direito Processual Penal", 10 Vol., Coimbra Ed., 1974, a págs. 233 a 234.

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Assim:


Desenrolando-se os trabalhos na ausência do arguido (procurada suprir pela emissão de mandados de detenção e condução, cujo cumprimento se veio a frustrar), a tarefa probatória ficaria suportada na demais atividade probatória, com especial enfoque na prova de teor testemunhal.


Neste enquadramento, primordial relevância veio a ser concedida ao depoimento da ofendida CC (obtido em declarações para memória futura), a qual, não obstante as evidentes dificuldades comunicacionais e de discurso verbal, inerentes à sua condição de limitação do estado mental (elucidada pela análise do documento de fls. 105 a 110), se revelou ainda assim clarividente no relato de dois episódios de abuso por parte do padrasto, ambos implicando penetração vaginal (a testemunha utilizou, em linguagem simplificada e mesmo infantilizada, a expressão pôs a “pilinha” no seu “pipi”).


Relatou a ocorrência de tais eventos em contexto doméstico, no qual apenas aquela, o arguido e a mãe viviam, mas em condição em que esta última, já acometida de AVC, se encontrava muito incapacitada, designadamente em plano de movimentação e locomoção.


Afiançou, no detalhe possível, terem ambos os episódios ocorrido, mais especificamente, no quarto dos “pais”, quando a progenitora se encontrava na sala, partindo a sua verificação da iniciativa/sugestão do arguido, a qual lhe sussurrava pretender fazer com ela “má criadices” (sic.), após despindo-se a igualmente desnudando a declarante da cintura para baixo, e após colocando o seu corpo por cima do da testemunha, agarrando-a pela zona da barriga por forma a evitar que a mesma opusesse maior resistência física.


Questionada quanto à vontade própria de assumir tais envolvimentos, afirmou, de forma espontânea e pronta, não pretender os mesmos, vendo em todo o caso a sua oposição prejudicada pela identidade do arguido, pela proximidade vivencial do mesmo, e pelo receio/medo da reação que o mesmo pudesse quanto a si assumir.


Não obstante a incapacidade de detalhar temporalmente o intervalamento entre ambas as ocasiões enunciadas, referiu ter ditado a formalização subsequente de relato em esquadra policial.


Já no tocante ao evento agressório descrito na acusação pública, afirmou ser o mesmo próximo de subsequencial ao momento de ocorrência de um dos indicados envolvimentos sexuais, sendo despoletado pelo estado de exaltamento evidenciado pela declarante, a qual admite ter partido um comando remoto, em face do que menciona ter sido atingida na mão, por ação do arguido, com recurso a uma canadiana.


As declarações em evidência foram prestadas em fase de inquérito, em plano de memória futura, sendo em todo o caso colhidas com registo áudio e vídeo, possibilitando ao julgador a análise dos termos da sua prestação, expressões visuais, encadeamentos verbais e estados emotivos, sendo percetível que, não obstante a desenvoltura possível face à condição mental da declarante, a mesma sempre adotou um discurso nervoso e emotivo (chegando mesmo e exibir má disposição física no decurso da sua inquirição), não evidenciando, além do mais, um discurso de “ataque” ao arguido, do qual admitiu inocentemente não gostar apenas face às abordagens de que foi alvo.


E, na referida postura declaracional, permitiu-se ao Tribunal extrair ao contributo declaracional em referência (único passível de evidenciar perceção própria e vivenciada dos factos) credibilidade e verosimilhança, igualmente não se extraindo do mesmo qualquer idealização, inverosimilhança ou fantasia, em redor do arguido ou da temática de intimidade inerente aos autos (vendo-se, além do mais, reforçada nos contributos infra uma ausência de domínio ou vivenciação mais alargada ou intensa de hábitos ou aptidões sexuais).

*

Por outro lado, e ainda que desprovidos de perceção sensorial direta e em tempo real dos factos sob julgamento, os depoimentos das testemunhas DD e EE trouxeram contributos válidos no sentido de fazer enquadrar os relatos trazidos pela prova direta, elucidando, no mais, quanto aos termos da incapacidade da ofendida.


Nesse enquadramento;


DD, irmão de CC, esclareceu:


- viver a irmã, à data dos factos, na companhia do arguido e da mãe (esta última evidenciando limitações físicas advenientes de vários AVC´s sofridos bem como por inerência ao incremento de peso por ocasião dos confinamentos obrigatórios – no contexto da pandemia COVID 19 -, carecendo de ver auxiliada a marcha por recurso a uma canadiana);


- ter tomado conhecimento dos factos por relato das autoridades policiais, após formulação de denúncia de CC;


- no contacto após mantido com aquela, ter sentido a irmã emocionalmente abalada, mais nervosa e receosa face ao habitual;


- questionado quanto à condição psíquica e clínica da ofendida, esclareceu sofrer a mesma de atraso mental, quadro a que era complementar um problema de epilepsia e de vivenciação de crises de nervosismo;


- instado a esclarecer a condição de dependência ou autonomia vivencial da mesma, afirmou poder até ter a mesma a capacidade de viver sozinha, carecendo todavia do auxílio e supervisão de terceira pessoa por forma a assegurar a toma de medicação, cuja não realização acarretaria, inevitavelmente, a degradação da sua condição de saúde;


- no domínio da sexualidade, afirmou não apresentar a mesma vida sexual ativa (não lhe conhecendo qualquer namorado), sabendo em todo o caso destrinçar o bem e o mal;


- concretizando a afirmação supra, declarou ter a ofendida incutida, pela educação a que foi sujeita, que a adoção de intimidade no contexto de namoro ou casamento é normal, já assim não sucedendo num quadro de relacionamento com marido ou companheiro da mãe;


- mais, afiançou a incapacidade da ofendida representar realidades conexas ou advenientes da adoção de práticas sexuais, tais como sejam a suscetibilidade de engravidar ou de contrair doenças sexualmente transmissíveis;


- por último, questionado quanto ao vislumbre de qualquer marca física em CC, afirmou, sem maior contextualização temporal, ter-lhe visto por uma ocasião um hematoma no braço, marca face à qual CC verbalizou sentir dor, nunca se detalhando, em todo o caso, a origem de uma tal marca.


Por seu turno, EE, psicóloga em exercício funcional na APPACDM d. ......., afirmou, no âmbito do conhecimento de CC como utente daquela instituição:


- ter a mesma, por ocasião dos relatos de eventuais abusos (em momento temporal em que, por via do contexto pandémico, ocorreu um acompanhamento à distância da ofendida), que determinaram o encaminhamento de CC para o contacto com as forças policiais, passado a evidenciar maior agitação emocional, passando a ser mais frequente a alternância de momentos de depressão e de euforia;


- instada a definir a postura ou desenvoltura sexual da mesma, afirmou ter CC a noção do que são atos sexuais, que consegue relatar e descrever, tendo além do mais a noção e raciocínio do errado, não tendo em todo o caso uma maior apetência para a vivenciação de situações de envolvimento, intimidade ou mesmo contacto físico/íntimo.

*

A prova supra careceu de ser vista à luz e sob o complemento permitido dar pela prova documental e pericial coligida nos autos, sendo ainda a analisar todos aqueles meios probatórios com as regras da experiência comum e da vivência social e humana.


Nesse plano, e no domínio da comunicação pública de factos selecionados na acusação pública, diga-se perante as autoridades policiais, evidenciam-se, com enfoque para as duas situações selecionadas na acusação pública, dois autos policiais tidos por relevantes, sendo um primeiro constante de fls. 29 (replicado a fls. 81 e 85), 71 e 72 dos autos principais (datado de 25/06/2020) e um outro de 23/12/2020 (constante a fls. 2 a 4 e 6 e 7 do processo originariamente numerado sob o NUIPC 1221/20.5..., após incorporado nos presentes – replicado pois a fls. 162 dos autos principais).


Dir-se-á que, antes da elaboração do primeiro auto indicado, constam igualmente registos policiais datados de abril de 2020, gerando ainda assim os registos clínico-hospitalares de fls. 39 a 44 e 50 a 63 e participação policial de fls. 65 e segs., e avaliação forense de fls. 158 e 159 e 160, na qual não é detetada a presença de qualquer haplótipo do cromossoma Y (sémen) na zaragatoa vaginal, apontando-se pois para a impossibilidade de demonstração plena (sob vertente de vestígios biológicos) de interação sexual (isto não obstante ali se realce poder o mesmo ocorrer, porém sem inerente vestígio).


Assim, e no que ao primeiro evento descrito na acusação pública (que se contextualiza em junho de 2020), temos que:


No auto em que se dê conta de tal evento (acima enunciado) dá-se conta do relato, pela vítima, da ocorrência de um ato de masturbação do arguido, com ejaculação nas cuecas da ofendida, isto é, nunca implicando contacto de maior intimidade ou de penetração vaginal.


Em plano subsequente à comunicação perante autoridade policial da suspeita de tal ato de abuso sexual é a ofendida conduzida, em 25/06/2020, ao Serviço de Urgência Obstétrica do Hospital de ..., em ..., e, após, ao Gabinete Médico-Legal, a fim de ser sujeita a exame sexual (fls. 92 a 94 e 95).


Por outro lado, a fls. 119 e 120 é colhido material biológico ao arguido com vista à realização de exame comparativo de correspondência, solicitando-se, a fls. 122 e 123, tal examinação (ofício da Polícia Judiciária com a referência 04435 e 3/07/2020).


A tal pedido é apresentada resposta, constante de fls. 149, com o seguinte teor: “Em referência ao processo supramencionado, cumpre informar V. Exa. que, o estudo para identificação de material biológico de origem masculina realizado nas amostras referentes à vítima CC, revelou ausência de haplótipo do cromossoma Y. Assim, não é possível qualquer comparação com os perfis de ADN de AA”.


A este evento é ainda correspondente o relatório de perícia de natureza sexual após junto a fls. 221 a 228.


Aí assinala-se, a fls. 227, o seguinte:


6. Nos exames periciais realizados às amostras biológicas da examinada (exames de exsudado vaginal e vulvar): 6.1 – a prova de orientação para a deteção de sémen, não evidenciou a presença de sémen nas zaragatoas vaginal (C1) e vulvar (C1), nas cuecas (C1) e no vestido (C1, C2). 6.2 – O estudo do ADN autossómico, selecionado após quantificação, revelou “nas cuecas (C1) a presença de um perfil genético de mistura (feminino e masculino XY) incompleto, compatível, nos marcadores identificados, com o perfil da vítima CC e com o perfil de outro(s) indivíduo(s); 6.3 – o estudo do ADN do cromossoma Y revelou, “nas cuecas (C1), a presença de uma mistura de haplótipos de cromossoma Y, incompleta, e nas zaragatoas vaginal (C1) e vulvar (C1), e no vestigo (C1 e C2), a ausência de qualquer haplótipo do cromossoma Y”.


E adianta: “7 – O resultado do exame biológico referido na última conclusão e acima transcrito (presença de um perfil genético de mistura – feminino e masculino, XY -, e mistura de haplótipos do cromossoma Y, ambos na cueca pertencente a CC), não permite excluir que a examinanda tenha contribuído para essa mistura.


Por outro lado, salienta: “8 – Tendo em atenção, por um lado, a ausência de lesões traumáticas, quer a nível da superfície corporal em geral, quer a nível das áreas genitais em particular, por outro, o resultado nos exames de criminalística biológica, e ainda a inconsistência anamnéstica, o perito não possui elementos médico-legais bastantes que lhe permitam concluir que a examinada possa ter sido vítima de crime contra a liberdade sexual”.


Ora, à luz dos elementos probatórios supra, temos que inexiste, quanto ao evento de junho de 2020 (o primeiramente selecionado na acusação pública), a deteção de sémen no interior da cavidade vaginal da ofendida.


Ao invés, destaca-se apenas a deteção de uma mistura de haplótipos do cromossoma Y, nas cuecas de CC, cuja origem não se permite (face ao estado da sua apresentação) conexionar com o ADN do arguido.


Ora, ainda que se deixe, sob natural e forte suspeição, que o material biológico masculino possa pertencer ao arguido, único indivíduo que se identificou como apto, propenso e disponível para contactos de maior intimidade face à vítima (e com acesso a contacto privilegiado com a mesma, em período temporal de limitação de contactos sociais por via da pandemia de COVID 19), imperioso será concluir que, nas declarações prestadas em memória futura, CC nunca aludiu ou descreveu outros atos que não os de penetração vaginal, também nunca tendo sido questionada quanto a atos de masturbação do arguido na sua presença (desde já se adianta que uma repetição ou complemento do seu depoimento em julgamento conduziria à uma intolerável e desnecessária vitimização suplementar da vítima).


Assim, concede-se que no relato por si dado, ao mencionar a ocorrência de dois relacionamentos de cópula vaginal, pudesse CC reportar-se aos eventos a que aludem os autos de abril e de dezembro de 2020 (último dos quais a analisar seguidamente), sendo que, quanto ao primeiro daqueles, o despacho final nada ditou, não contemplando opção pela acusação ou arquivamento.


Assim, e no que ao evento acabado de analisar, impor-se-á a ausência de demonstração probatória plena da versão factual feita acolher em acusação pública (ato de penetração vaginal).


Atentemos pois, e neste momento, quanto ao segundo evento ali descrito.


Quanto ao relato balizado no dia 22/12/2020, importa atentar que:


Emerge a investigação quanto ao mesmo do auto policial acima identificado (de 23/12/2020).


Consta, a fls. 33 e segs. do apenso, registo de observação hospitalar realizado no dia 23/12/2020, pelas 16h38m/16h40m, dando conta da evidência de traumatismo na mão esquerda, cuja razão de ser ali se conexiona com agressão com recurso a objeto contundente.


Sequencia-se a examinação e comparação biológica de amostras recolhidas à ofendida e já obtidas junto do arguido, conduzindo à elaboração do relatório pericial de criminalística biológica constante de fls. 257v a 260, do qual emerge ser detetado, nas cuecas de CC, material biológico (ADN) de contributo masculino, sendo inequivocamente identificado o haplótipo de cromossa Y pertencente ao arguido.


Neste enquadramento, cremos existir pois sustentação probatória (pericial) plena ao contributo declaracional adveniente de CC, conduzindo pois à demonstração probatória da ocorrência de relacionamento sexual (penetração vaginal) entre aquela e o arguido à data de 22/12/2020 (o auto policial faz anteceder o ato à véspera da informação policial), provando-se pois a sequência factual explicitada em 7) e 8) e 9) e 10).


A corroboração probatória de tal contacto sexual encontra igualmente sustentação nos contributos, ainda que indiretos, dados pelos depoimentos de DD e EE, os quais destacam, com propriedade e proximidade face à vítima, a alteração do seu estado anímico, passando a apresentar-se mais agitada.


O depoimento prestado por DD (irmão de CC) igualmente se revelou apto a elucidar quanto ao contexto vivencial da vítima, designadamente no plano habitacional e de proximidade vivencial face ao arguido, contribuindo ainda para a elucidação dos termos da limitação do estado de saúde de BB (progenitora da ofendida) – fazendo-o em conformidade genérica face ao feito plasmar em acusação pública.


Quanto à situação clínica de CC, a elucidação probatória advém da análise da informação da APPACDM de fls. 105 e 106 e relatório subscrito pela mesma entidade a fls. 107 a 110, onde se aponta para um quadro de “desenvolvimento intelectual compatível com deficiência mental moderada. Revela grandes limitações ao nível das cognições, dificuldades que são generalizadas a todas as áreas apresentadas. Muitas vezes não compreende sequer a instrução que lhe é dirigida, por mais que seja explicada”, sendo tal quadro corroborado pelo relatório de perícia psicológica de fls. 286 a 294.


No que a este último elemento probatório respeita, e na tarefa de elucidação da capacidade de relato ou perceção dos factos, conclui-se: “Não se observa défice na perceção dos factos ou experiências vividas, mas sim na capacidade de conservar e recuperar memórias e no relato dos factos”.


Assim, e em síntese, no cotejo e articulação da prova supra, vista à luz das regras da experiência comum e com apelo à desenvoltura possível, sentimento e crédito que, em especial, o depoimento da ofendida mereceu, permite-se ao Tribunal a demonstração probatória dos factos elencados em 1) a 17).


Apenas não se permitiu, pelas razões acima apontadas no tangente à prova produzida ou examinada nos autos, ou em atenção à ausência de prova que para a sua verificação/demonstração apontasse, a elucidação probatória dos factos A) a G).


No tangente à definição do plano vivencial do arguido (atual e à data dos factos), e à elucidação do posicionamento pelo mesmo preconizado face à vítima, o Tribunal considerou o relatório social entretanto permitido juntar aos autos (e constante de fls. 488 a 490), cujo teor o arguido consentiu ser usado para a presente análise e decisão, reiterando o ali consignado em plano de atualidade – permitindo a demonstração probatória dos factos 18) a 48)


Por último, para elucidação do passado criminal do arguido, atendeu-se ao CRC, junto aos autos atualisticamente a fls. 479 (facto 49)).

***

Direito


6. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).


A questão que o recorrente coloca neste recurso prende-se com a apreciação da medida da pena aplicada, com a qual discorda, por considerar excessiva, uma vez que, na sua perspetiva, por um lado, não teve oportunidade de revelar o seu posicionamento perante o crime cometido, para além de não terem sido avaliados adequadamente determinados fatores que indica (a sua personalidade, as suas condições pessoais e sociais, as suas limitações emocionais e de alfabetização, não podendo ser equiparado ao homem médio, sendo primário e extremamente baixas as exigências de prevenção especial), que lhe eram favoráveis e permitiriam reduzir a pena de prisão aplicada de modo a poder ser suspensa na sua execução, ainda que fosse sujeita a regime de prova.


Vamos então analisar a questão suscitada pelo recorrente, tendo presente que, tal como resulta da leitura do texto da decisão recorrida, não ocorrendo quaisquer dos vícios previstos nas alíneas a), b) ou c) do n.º 2 do art. 410.º, do CPP, nem nulidades ou irregularidades de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto acima transcrita, a qual nessa parte se mostra devidamente sustentada e fundamentada.


Quando se analisam os vícios do art. 410.º do CPP, o tribunal apenas se pode ater ao texto da decisão impugnada e não pode recorrer a elementos exteriores, nomeadamente, como aqui o recorrente parece pretender, ao teor do relatório social, ignorando também os poderes de cognição do STJ.


Deverá ter presente o recorrente os poderes de cognição do STJ, definidos no art. 434.º do CPP, não devendo confundir os vícios do art. 410.º do CPP, que tem de resultar do texto da decisão, com o erro do julgamento (art. 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP), sendo este último da esfera do conhecimento da Relação.


Apesar de se ter presente os poderes de cognição do STJ, esclarece-se o arguido/recorrente que, a audiência que teve lugar em 24.05.2023, onde esteve presente (novo julgamento para determinação da sanção, em consequência do decidido no ac. do STJ de 24.11.2022, no qual se confirmou a decisão quanto à culpabilidade, que se encontra definitivamente decidida desde então), permitiu-lhe pronunciar-se sobre o que entendeu, como a ata documenta, tendo inclusivamente sido questionado quanto à utilização do relatório social na elaboração do acórdão e, pelo mesmo foi dito “poder ser utilizado, mais declarando não se registarem quaisquer alterações face ao ali vertido”, o que significa que tinha conhecimento do seu teor. Por isso, alegar em sede de recurso para o STJ, que não teve oportunidade de prestar declarações ou de manifestar arrependimento ou que não foi confrontado com o relatório social é no mínimo inócuo e irrelevante (de resto, era no próprio ato que o respetivo defensor deveria ter suscitado eventual vício ou irregularidade que entendesse verificar-se, sob pena de ficar sanada, pelo que não há violação de qualquer princípio que presida à audiência de julgamento, designadamente, aos princípios da oralidade e da imediação).


Posto isto, não está em discussão que perante os factos dados como provados o arguido constituiu-se autor material de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistir agravado p. e p. nos arts. 165.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, als. a) e b), do CP.


Neste caso, no que aqui interessa, consta no acórdão agora sob recurso o seguinte quanto à fundamentação da medida da pena que lhe foi imposta:


VI. MEDIDA DA PENA2:


Como acima se deixou dito, o arguido incorreu na prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistir (agravado), punível com pena de prisão de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses a 13 (dez) anos e 4 (quatro) meses (n.º 2 do artigo 165º, sob a agravação complementar prevista no artigo 177º, n.º 1, alíneas b) e c), ambos do Código Penal);


Não colocando a lei um cenário de punibilidade alternativa (em prisão ou multa), não se impõe a ponderação, ab initio, da aplicabilidade de qualquer uma das indicadas penalidades (artigo 70º do Código Penal).


Importará, em todo o caso, e partindo do plano punitivo da prisão, aferir qual a medida da pena e a forma de execução de pena mais conforme com as finalidades pretendidas proteger por lei (as referenciadas nos artigos 40º e 71º do Código Penal).


Nesse percurso, o limite máximo da penalidade aplicável, encontrar-se-á, à partida, balizada pela culpa do agente, sendo certo que, em caso algum, deverá a pena aplicada ao agente exceder a medida daquela. Poderemos, convictamente, afirmar que, no Código Penal vigente, rege pois um princípio basilar que assenta na compreensão de que toda a pena repousa no suporte axiológico–normativo de culpa concreta (artigo 13.º do Código Penal), o que sempre terá como consequência que se admita ainda a ausência de pena sem culpa, e se condicione os seus limites máximos à intensidade daquela (vide Acórdão do STJ de 15/04/99, Proc.243/99, in www.dgsi.pt).


Ademais, na determinação da medida concreta da pena, haverá igualmente de atender ao cumprimento das finalidades das penas.


Tais finalidades são as constantes do artigo 40º, n.º 1 do Código Penal, ou seja, a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.


Como escreve a este propósito a Prof.ª Maria Fernanda Palma, “A proteção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente eventual” – cfr. autora citada, in Casos e Materiais de Direito Penal, 2.ª edição, Almedina, 2002, a pág. 32. Nesse sentido vide também o Ac. STJ de 30/11/2000, ASSTJ, n.º 45, pág. 89.


Assim, para a aferição da medida concreta da pena haverá que considerar primeiro a delimitação rigorosa da moldura penal abstratamente aplicável ao caso concreto, determinando, nos limites mínimos e máximos daquela, a pena concretamente a aplicar, em consonância com o vector axiológico-normativo que atrás se deixou exposto.


Neste percurso, atender-se-ão a todos os elementos que, não fazendo parte integrante do tipo, depuserem a favor ou contra o agente, atendendo-se, de entre outras, às vertidas no n.º 2 do artigo 71º do Código Penal.


Ora, dentro da moldura penal abstrata, as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime depõem a favor ou contra o agente são, designadamente:


- O grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente);


- A intensidade do dolo ou negligência;


- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;


- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;


- A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;


- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.


Atentos estes vetores, a natureza do facto punível, a sua gravidade e a forma de execução, decidirá o tribunal, aplicando o direito, escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas, conformando-se, enquanto limite máximo, com a culpa do agente.


Posto isto, in casu, é de ponderar o seguinte:


Contra o arguido pesa desde logo o dolo, agora perspetivado sob o ponto de vista volitivo, que se revelou intenso. A censura ético-jurídica da sua conduta radica, segundo entendimento deste Tribunal, na modalidade de dolo direto, porquanto o arguido sempre representou a ilicitude da sua conduta, bem sabendo que, ao agir do modo descrito, colocava em causa a esfera de intimidade sexual de CC, com a qual coabitava e, por inerência à situação de fragilidade da mesma, se assumia também ele responsável, face a quem era assim de exigir um comportamento de especial cuidado e proteção, expondo-a a uma situação que a mesma não desejava, sob o único desígnio de satisfazer os seus caprichos sexuais (artigo 14º, n.º 1 do Código Penal e artigo 71º, n.º 2, alínea b) do Código Penal).


A ilicitude e gravidade do facto demonstram-se num patamar muito elevado, considerando o manifesto desprezo e desconsideração que o arguido assumiu perante a vítima, num contexto em que a mesma apenas o tinha como verdadeiro e efetivo cuidador e garante, e que, ao invés, o arguido não enjeitou em “usar” para a obtenção de prazer sexual, alheio à consequência adveniente dos factos para a visada.


Do ponto de vista preventivo, avultam as necessidades de prevenção geral, considerando que comportamentos como os assumidos pelo arguido não podem nem devem ser tolerados numa sociedade moderna, devendo ser fortemente censuráveis todas as formas de atuação que, designadamente sob índole sexual, traduzam o aproveitamento das fragilidades da vítima (atenta a sua idade, deficiência ou situação de especial dependência ou ligação).


No plano da prevenção especial, são igualmente relevantes as exigências cautelares sentidas.


Na realidade, pese embora em favor do arguido pese a ausência de antecedentes criminais registados, bem como a ausência de contacto atual e próximo com a vítima, merece especial censura e preocupação o desinteresse e desprezo demonstrados face a CC, face à qual nunca evidenciou (no passado ou atualmente) qualquer arrependimento ou contrição, deixando-se, além do mais, indiciada uma atuação porventura mais intensa e repetida por banda do arguido.


De resto, evidenciam os autos a forma mais gravosa do crime, por objetivar ato de cópula, sendo o arguido insensível à especial fragilidade da vítima, que ao invés procurou aproveitar de forma ilícita e seguramente censurável.


A este propósito, e na demonstração concreta e bem clara de uma tal realidade ou posicionamento, relevante para esta sede e decisão, consta do relatório social, elaborado tendo por contributo e fonte informativa o próprio arguido, o seguinte: “No que se refere ao presente processo judicial, o arguido revelou moderada capacidade em reconhecer a gravidade da prática criminal que lhe é imputada, reconhecendo que uma pessoa adulta, mas com défice cognitivo, não tem total capacidade de autodeterminação e avaliação dos acontecimentos. Porém, não denotou capacidade de descentração e empatia relativamente à ofendida, evidenciando no seu discurso tendência para a diminuir, afirmando ser do conhecimento geral que CC, em virtude do seu défice cognitivo, teria sido já abusada por diversas pessoas”.


Quer isto dizer que o arguido, não obstante a gravidade dos factos e das repercussões dos mesmos para a vítima, não só não demonstra interiorizar ou aceitar a mesma, como desvaloriza a vítima, que tende a ver, pela sua deficiência, menos digna de consideração, respeito ou estima, e que assim reduz a uma “coisa” face à qual poderá também ele próprio exercer um domínio (usando e abusando da mesma como lhe aprover), impondo-lhe a sujeição a comportamentos sexualizados (na lógica se outros podem tê-la abusado no passado, aproveitando o défice cognitivo, ele próprio teria o direito de também o poder fazer).


Neste posicionamento, e contraditando o invocado pelo arguido em sede de alegações finais, não obstante a reduzida instrução escolar ou educativa do arguido, o mesmo denota plena perceção da condição da vítima, a qual lhe era então próxima e face à qual, perante a condição de limitação da então mulher, se assumia ou deveria assumir como primordial (diremos mesmo único) cuidador/protetor, sendo também de salientar que tal noção do “correto” ou do “incorreto” não advém da transmissão de conhecimentos em contexto escolar, antes advém da formação humana e social, sendo transversal à noção de sociedade e aos sentimentos de empatia, solidariedade e cuidado face ao próximo.


Por outro lado, e ainda que dos autos pareça resultar atenuado o risco de atuação tendo por visada, uma vez mais, a vítima CC – face à colocação desta última na esfera protetora de outro familiar -, não será de considerar inexistente o risco do arguido replicar comportamentos sexualizados ditos impróprios perante outras pessoas, desde logo face à desvalorização assumida pelo arguido e desconsideração óbvia da esfera da intimidade e dignidade humana alheia.


Tudo visto e ponderado, e por forma a traduzir a censura comportamental do arguido, entende o Tribunal continua a entender ajustada a aplicação de uma pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

***

Quanto à forma de execução da pena acabada de aplicar:


Atenta a medida da pena ora acabada de aplicar, impõe-se, por óbvia, a sua efetividade.

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Pois bem.


Como sabido, as finalidades da pena são, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade3.


Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstrata e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para, de seguida, escolher a espécie da pena que efetivamente deve ser cumprida4.


Nos termos do artigo 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele.


Diz Jorge de Figueiredo Dias5, que “só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. (...) Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.”


Mais à frente6, esclarece que “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena em sentido estrito”.


Acrescenta, também, o mesmo Autor7 que, “tomando como base a ideia de prevenção geral positiva como fundamento de aplicação da pena, a institucionalidade desta reflecte-se ainda na capacidade para abranger, sem contradição, o essencial do pensamento da prevenção especial, maxime da prevenção especial de socialização. Esta (…) não mais pode conceber-se como socialização «forçada», mas tem de surgir como dever estadual de proporcionar ao delinquente as melhores condições possíveis para alcançar voluntariamente a sua própria socialização (ou a sua própria metanoia); o que, de resto, supõe que seja feito o possível para que a pena seja «aceite» pelo seu destinatário - o que, por seu turno, só será viável se a pena for uma pena suportada pela culpa pessoal e, nesta acepção, uma pena «justa». (…) A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial - nomeadamente de prevenção especial de socialização - os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena. (…) E é ainda, em último termo, uma certa concepção sobre a ordem de legitimação e a função da intervenção penal que torna tudo isto possível: parte-se da função de tutela de bens jurídicos; atinge-se uma pena cuja aplicação é feita em nome da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada; limita-se em seguida esta função pela culpa pessoal do agente; para se procurar atingir a socialização do delinquente como forma de excelência de realizar eficazmente a protecção dos bens jurídicos”.


No caso de ser aplicada pena até 5 anos de prisão, coloca-se a questão da suspensão da sua execução (art. 50.º do CP).


Feitas estas resumidas considerações teóricas, importa apreciar a questão colocada pelo recorrente.


Assim.


Como sabido a medida da pena é determinada a partir do que resulta dos factos provados (e do que deles se pode deduzir) em relação a cada arguido que tenha cometido ilícito penal e não a partir de considerações feitas pelo recorrente que não se extraem ou que não encontrem apoio nesses mesmos factos dados como provados.


Perante os factos apurados e o que deles se pode deduzir, como veremos, no essencial, estamos de acordo com as considerações feitas pela 1ª instância, quanto à determinação da medida da pena individual que foi imposta ao recorrente, acima já transcritas, considerando a moldura abstrata (pena de prisão de 2 anos e 8 meses a 13 anos e 4 meses) do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistir agravado p. e p. nos arts. 165.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, als. b) e c), do CP, por si cometido.


Assim, havia que considerar, como bem diz o Coletivo, que o arguido/recorrente agiu com dolo (direto) e com consciência da ilicitude da sua conduta.


Essa culpa e dolo são intensos, tendo presente a respetiva conduta, por si praticada.


A ilicitude dos factos apurados é muito elevada (como assinala o Coletivo) perante o circunstancialismo fáctico apurado, do qual resulta o modo de atuação do arguido, a gravidade da ação concreta cometida, tendo agido sobre a vítima naquele contexto, dentro de casa, naquela altura em que a mesma apenas o tinha a ele como efetivo cuidador e garante, quando estavam sozinhos, atuando ele em busca do seu próprio prazer sexual e sem se preocupar com a gravidade das consequências da sua conduta sobre a vítima.


Esse modo de atuação mostra bem o caráter e tipo de personalidade do arguido, o qual não se coibiu de agir do modo descrito com uma pessoa próxima (enteada, filha da companheira que estava incapacitada), sendo indiferente às fragilidades da vítima (não só considerando a sua idade, deficiência de que padecia e própria situação de especial dependência para com o arguido).


Também são elevadas as razões de prevenção geral positiva que se fazem sentir, tendo em atenção o bem jurídico primordial violado no crime cometido.


São também “prementes” as mesmas razões de prevenção geral positiva (pois este tipo de criminalidade deve ser combatido com maior severidade, embora de forma proporcional à danosidade que causa e tendo em atenção as particulares circunstâncias de cada caso).


Importa ainda ter em atenção, embora tendo como limite a medida da sua culpa, a necessidade de prevenir a prática de futuros crimes, sem esquecer que o arguido não tem antecedentes criminais.


De notar que, ao contrário do que alega o recorrente, foi também ponderado o facto de não ter antecedentes criminais, embora essa circunstância tenha pouco relevo por ser o comportamento de esperar de qualquer cidadão comum.


O facto de não ter frequentado a escola e apenas saber assinar o seu nome, não o impedia (tal como a muitos outros cidadãos que estão nas mesmas condições) de saber que não podia cometer crimes, nomeadamente como o em apreço nestes autos e tão pouco indicia que tivesse qualquer défice cognitivo que não se apurou. O mesmo se passa com as alegadas “limitações emocionais” que não resultam dos factos provados e que não justificavam, nem atenuavam a prática dos factos delituosos cometidos.


Quanto ao seu posicionamento em relação ao crime cometido, revelou moderada capacidade em reconhecer a gravidade da prática do crime, o que mostra que tem que apurar o sentido crítico e refletir sobre as consequências dos seus atos.


Antes o que resultou dos factos provados é que o arguido não interiorizou o desvalor da sua conduta criminosa, até desvalorizando-a, o que mostra uma personalidade adequada aos factos que cometeu.


Por sua vez, ao contrário do que alega o recorrente, as razões de prevenção especial e a necessidade de ressocialização são relevantes, já tendo em consideração as condições pessoais, sociais e profissionais do recorrente, dadas como provadas, as quais também foram ponderadas na decisão sob recurso (devendo ter-se em atenção que essa integração pessoal, social e profissional de que já gozava antes da prática dos factos em questão, não o impediu de cometer o crime em questão).


Tudo ponderado, olhando para os factos apurados e tendo presente o limite máximo consentido pelo grau de culpa do arguido/recorrente, bem como tendo presente os princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, julga-se adequada e ajustada a pena que lhe foi aplicada pela 1ª instância de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão que (como bem diz o MP) se situa no limite superior do primeiro terço da respetiva moldura abstrata do crime cometido.


Na perspetiva do direito penal preventivo, a pena de prisão que lhe foi aplicada mostra-se adequada, equilibrada e proporcionada em relação à gravidade dos factos cometidos e carência de socialização do recorrente (evidenciada pela personalidade adequada aos factos que cometeu), satisfazendo as finalidades das penas.


A pretendida redução da pena mostra-se desajustada e comprometia irremediavelmente a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas, não sendo comunitariamente suportável aplicar pena inferior à que lhe foi imposta.


Pelos motivos expostos, entendemos (ao contrário do recorrente) que foi adequada a ponderação feita dos fatores a considerar na determinação da medida da pena.


Improcede, pois, a argumentação do recorrente, não tendo sido violados os princípios e normas por ele citados, sendo certo que outros factos e deduções por ele alegados, mas que não se extraem dos dados como provados não podem ser aqui atendidos, como acima já se referiu.


Perante a pena que lhe foi aplicada (5 anos e 6 meses de prisão), afastada está a possibilidade de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão (art. 50.º do CP), improcedendo, igualmente, nessa parte, o requerido pelo recorrente.


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Dispositivo


Pelo exposto, acordam nesta Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.


Custas pelo recorrente/arguido, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC`s.


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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.


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Supremo Tribunal de Justiça, 26.10.2023

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Leonor Furtado (Juíza Conselheira Adjunta)

José Eduardo Sapateiro (Juiz Conselheiro Adjunto)




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1. Transcrição sem negritos.↩︎

2. Transcrição sem negritos, nem sublinhados.↩︎

3. Anabela Rodrigues, «O modelo da prevenção na determinação da medida concreta da pena», in RPCC ano 12º, fasc. 2º (Abril-Junho de 2002), 155, refere que o art. 40.º CP condensa “em três proposições fundamentais, o programa político-criminal - a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos; de que a culpa é tão só um limite da pena, mas não seu fundamento; e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena”.↩︎

4. Neste sentido, v.g. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, p.198.↩︎

5. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 72.↩︎

6. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 214.↩︎

7. Jorge de Figueiredo Dias, "Sobre o estado actual da doutrina do crime”, RPCC, ano 1º, fasc. 1º (Janeiro-Março de 1991), p. 29.↩︎