Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4411/22.2T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: DOMINGOS JOSÉ DE MORAIS
Descritores: RECURSO DA REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
IDENTIDADE DE FACTOS
Data do Acordão: 11/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Sumário :

I- O artigo 671.º n.º 1 do Código de Processo Civil não contempla a apreciação de decisões interlocutórias da 1.ª instância que tenham recaído, unicamente, sobre a relação processual.


II- Para efeitos do artigo 671.º n.º 2 alínea b) do Código de Processo Civil, não há contradição de julgados, quando as situações de factos apreciadas são, essencialmente, diferentes e conduzem, naturalmente, a diferentes soluções jurídicas.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 4411/22.2T8PRT.P1.S1


Reclamação Conferência


Relator: Conselheiro Domingos Morais


Adjuntos: Júlio Gomes


Mário Belo Morgado


Acordam em Conferência na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I. - Relatório:


1. - AA intentou acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra Ordem dos Advogados.


A Ré apresentou articulado a fundamentar o despedimento.


A Autora contestou, deduziu reconvenção e requereu a intervenção principal provocada dos Dr. BB e Dra. CC, Advogados, pedindo, além do mais, a condenação da Ré e dos chamados no pagamento de indemnização a título de danos não patrimoniais.


A Ré respondeu, propugnando pela sua absolvição do pedido reconvencional e pela inadmissibilidade da intervenção principal provocada.


Por despacho de 03.06.2022, o Tribunal de 1.ª Instância admitiu o pedido de intervenção principal provocada e convolou a forma de processo para processo comum.


A Ré interpôs recurso de apelação.


Por acórdão de 14.12.2022, o Tribunal da Relação decidiu “julgar a apelação procedente e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, na parte em que admitiu o incidente de intervenção dos chamados, Dr. BB e da Dra. M. CC.”


A Autora interpôs recurso de revista, arguindo a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.


A Ré apresentou contra-alegações, nas quais arguiu a inadmissibilidade do recurso de revista e requereu a ampliação do âmbito do recurso quanto à questão da admissibilidade da apresentação da contestação/reconvenção corrigida.


A Autora respondeu ao pedido de ampliação do âmbito do recurso.


Por acórdão de 17.04.2023, o Tribunal da Relação supriu a nulidade do acórdão, julgando improcedente a excepção de falta de interesse processual da Ré.


Em 28.04.2023, a Autora veio requerer o alargamento do âmbito do recurso quanto à questão da excepção de falta de interesse em agir da Ré.


A Ré respondeu ao pedido de alargamento do âmbito do recurso.


Por despacho de 21.05.2023, o Tribunal da Relação admitiu o recurso de revista: “Admite-se a revista interposta nos autos. Subam os autos ao STJ.”.


2. - Por decisão singular do Relator neste Supremo Tribunal de Justiça, proferida a 04 de setembro de 2023, não foi admitido o recurso de revista, por irrecorrível, dado: (i) não se tratar de uma decisão nos termos previstos no artigo 671.º, n.º 1; (ii) não estarem preenchidos os pressupostos do artigo 671.º, n.º 2, alínea b); (iii) nem ser o recurso subsumível no artigo 629.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).


3. - A Autora veio reclamar para a Conferência da decisão singular do Relator ao abrigo dos artigos 643.º, n.º 4, e 652.º, n.º 3, ambos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1.º, n.º 2.º, alínea a) do Código de Processo do Trabalho, alegando, em síntese, que:


(i) “O recurso de revista interposto pela aqui reclamante integra, pois, a situação prevista no art. 671º nº 1 do CPC”, transcrevendo um excerto de “ABRANTES GERALDES, na 7ª edição da sua obra Recursos em Processo Civil, pág. 410”, sendo que a alegada “falta de interesse em agir” por parte da Ré, apenas foi apreciada na 2.ª instância, inexistindo, assim, “dupla jurisdição” (itens I e II da Reclamação).


(ii) É recorrível o Acórdão da Relação ao abrigo do disposto no art. 671º nº 2 al. b) do CPC, já que “não é pacifico para a recorrente o entendimento acolhido na douta decisão sob reclamação de que inexiste contradição entre os dois acórdãos que ora estão em causa.” (item III da Reclamação).


A Reclamante nada alegou sobre o 3.º fundamento, isto é, sobre o recurso de revista não ser subsumível ao disposto no artigo 629.º, n.º 2, do CPC.


4. - A Ré pronunciou-se pela confirmação da decisão singular objecto da presente reclamação.


II. - Apreciando


1. - Na decisão singular do Relator pode ler-se:


“Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso (artigo 629.º, n.º 2 do Código de Processo Civil - CPC), a recorribilidade dos acórdãos do Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça encontra-se regulada nos artigos 671.º, n.º 1 e 2 e 673.º do CPC.


De acordo com o disposto no artigo 671.º, n.º 1, do CPC, «cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação proferido sobre a decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos».


Por seu turno, o n.º 2 estipula que «os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objecto de revista:


a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;


b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.».


O acórdão recorrido não se debruçou sobre o mérito da causa, nem absolveu a Ré da instância quanto a qualquer pedido ou reconvenção deduzida, nos termos do citado n.º 1, do artigo 671.º.


Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Almedina, 6.ª Edição Actualizada, 2020, págs. 398 a 405, defende na anotação ao artigo 671.º, n.º 1 do CPC, a possibilidade de recurso de revista de acórdãos que ponham termo ao processo total ou parcialmente, sem que haja uma decisão de absolvição da instância. É o caso das decisões de inutilidade superveniente da lide, de deserção da instância e de deserção ou rejeição do recurso de apelação.


No caso dos autos, apesar da decisão recorrida ter posto termo ao incidente de intervenção de terceiro, não pôs termo ao processo, ainda que parcialmente.


Conforme decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 29.06.2017, processo n.º 2487/07.1TBCBR.C1.S1., in www.dgsi.pt: «Diferentemente do previsto no art. 644.º, n.º 1, al. a), do CPC, quanto ao cabimento do recurso de apelação autónoma de decisão da 1.ª instância que ponha termo a incidente processado autonomamente, os parâmetros de admissibilidade da revista definidos no n.º 1 do art. 671.º do mesmo diploma não contemplam as decisões finais dos incidentes da instância que versem unicamente sobre a relação processual».


É o caso dos presentes autos.


Na verdade, estamos perante acórdão que apreciou duas decisões interlocutórias da 1.ª instância que recaíram, unicamente, sobre a relação processual:


- A admissibilidade da intervenção principal provocada - cfr. acórdão do STJ de 13.10.2020, processo n.º 954/18.0T8VRL-A.G1-A.S1, in www.dgsi.pt - e convolação do processo para a forma de processo comum;


- A inadmissibilidade do recurso de apelação (por falta de interesse em agir da Empregadora).


Nestes termos, o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível, ao abrigo do disposto no artigo 671.º, n.º 1 do CPC.


3. – Importa, agora, aferir se se verifica alguma das situações previstas no artigo 671.º, n.º 2 do CPC, que estatui:


«2 - Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:


a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;


b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.».


(…).


No que se refere à alínea b) do n.º 2 do artigo 671.º, a Recorrente não invocou qualquer contradição jurisprudencial quanto à questão da alegada falta de interesse em agir da apelante.


Já quanto à questão da intervenção principal provocada, a Recorrente invocou a existência de uma contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.09.2018, proferido no processo n.º 10118/16.2T8VNG-A.P1.S1 e cuja certidão, com nota do trânsito, juntou aos autos.


O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que a verificação deste pressuposto pressupõe que, em ambos os acórdãos, esteja em causa a mesma questão de direito, que essa questão se revele essencial/fundamental para ambas as decisões, que a oposição seja expressa e não apenas implícita ou pressuposta e que a oposição se reporte a soluções de direito e não a questões (mesmo genéricas) de facto. Exige-se ainda uma identidade fundamental da matéria de facto.


No caso dos autos, as duas decisões pronunciaram-se quanto à admissibilidade da intervenção principal provocada requerida pela Trabalhadora em reconvenção apresentada em acção de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, tendo ambas decidido que esta forma de processo não admite a referida intervenção.


O acórdão fundamento entendeu, contudo, que no caso em apreço, face à invocação de uma situação de pluralidade de empregadores, se justificava a adequação formal dos autos mediante a convolação para a forma de processo comum e subsequente admissão da intervenção principal provocada da entidade que a Trabalhadora entendia ser também sua empregadora.


O acórdão fundamento considerou que «para além de poder estar em causa uma responsabilidade solidária de ambos os demandados (a empregadora inicial e a chamada), os factos invocados pela trabalhadora podem determinar uma antiguidade diferente da que foi considerada pela empregadora, podendo desta forma estar em causa o próprio montante da indemnização de antiguidade que foi colocada à disposição da trabalhadora, e por arrastamento, a própria regularidade do despedimento, conforme prevê a alínea d) do artigo 384º do Código do Trabalho.


Além disso, estando em causa um despedimento por extinção do posto de trabalho, a provar-se a tese da pluralidade de empregadores, os motivos invocados poderão ter que ser analisados tendo também em consideração a realidade das duas empresas, situação que só por si justifica plenamente a convolação efectuada, pois só desta forma se obterá uma justa apreciação e composição do litígio».


Por sua vez, o acórdão recorrido afastou expressamente a aplicação da jurisprudência decorrente do acórdão fundamento por considerar «que a situação em apreço não é similar à que se apreciou naquele processo, em que se justificou a convolação do processo especial em processo comum, com o facto de se estar, alegadamente, perante uma pluralidade de empregadores em que se pedia a condenação solidária da Ré (inicial) e da chamada, no pagamento das quantias respeitantes à ilicitude do despedimento de que o trabalhador foi vítima. O que não é, seguramente, o nosso caso. Neste não há qualquer dúvida quanto à entidade empregadora da A., nem esta o invoca».


Na verdade, a situação fáctica subjacente às duas decisões é distinta e não equiparável.


Com efeito, no acórdão fundamento estava em causa um despedimento por extinção do posto de trabalho, tendo a Trabalhadora invocado na contestação uma situação de pluralidade de empregadores e requerido a intervenção principal provocada da outra empregadora e peticionado a condenação solidária de ambas, nos termos do artigo 101.º, n.º 3 do Código do Trabalho.


No acórdão recorrido está em causa o despedimento por facto imputável ao trabalhador, tendo a intervenção sido requerida com vista a obter a condenação solidária do Presidente e da Vice-Presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados (Entidade Empregadora) no pagamento de danos não patrimoniais, nos termos dos artigos 335.º do Código do Trabalho e 79.º do CSC.


Face à diferente factualidade subjacente, não se pode falar na contradição que a lei exige entre as duas decisões.” - fim de transcrição.


2. - Quanto ao 1.º fundamento, a Reclamante alegou:


“Com efeito, referiu, na sua alegação do presente recurso de revista, que tinha ele por pressuposto “uma situação análoga ou equiparável à absolvição da instância dos chamados pela recorrente na sua contestação/reconvenção, tudo conforme expressamente previsto no art. 671 nº 1 do CPC.”


É verdade que se dispensou a recorrente de aí concretizar e explicar tal afirmação/convicção, mas a verdade é que se “escorou” no entendimento de ABRANTES GERALDES, que expressamente afirma a este propósito: «não se encontra efectivamente motivo algum para que, em face de decisões que implicam o mesmo efeito processual (extinção da instância), seja feita uma distinção entre os casos em que a Relação declara formalmente a “absolvição a instância”, mesmo quando atinge apenas algum dos seus elementos objectivo e/ou subjectivo, e os casos cujo relevo é semelhante, em que é posto termo a todo o processo ou a parte dele por outros motivos formais determinantes da extinção da instância» (vide Recursos em Processo Civil, 7ª edição actualizada, Almedina- Março 2022, pág. 409) , logo prosseguindo que «na economia do preceituado no nº 1 do art, 671º, deve passar para um plano secundário a alusão à “absolvição da instância” que parece ter sido inquinada tanto pelo precedente art. 644º nº 1 al. b), como ainda pelo facto de constituir a causa típica mais frequente de decisões de que resulta o termo do processo ou a extinção da instância, bem distante, aliás, das demais vias extintivas previstas no art. 277º als. b) a e), ou em outras normas avulsas, designadamente em matéria de recursos (art. 652º nº 1 als. b) e h), e art. 655º», o que o leva a concluir, na citada obra que vimos seguindo, pela aplicação analógica, por via interpretativa, do art. 671º nº 1 a todos os casos «em que o efeito extintivo da instância ou do recurso é consequência de qualquer outro motivo de ordem formal.» (vide pág. 410). (sublinhado nosso)


Acontece que o transcrito excerto não contraria, em nada, o já decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no supra mencionado acórdão de 29.06.2017, processo n.º 2487/07.1TBCBR.C1.S1., Tomé Gomes (Relator) que consignou:


“(…), diferentemente do previsto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC, quanto ao cabimento do recurso de apelação autónoma de decisão da 1.ª instância que ponha termo a incidente processado autonomamente, os parâmetros de admissibilidade da revista definidos no art.º 671.º, n.º 1, do mesmo diploma circunscrevem-se aos acórdãos da Relação que, proferidos sobre decisão da 1.ª instância, conheçam do mérito da causa ou ponham termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos. Não se contemplam, pois, neste normativo as decisões finais dos incidentes da instância que versem unicamente sobre a relação processual.”; e cita Abrantes Geraldes, In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, 4.ª Edição, p. 345: «Tratando-se de acórdãos da Relação que incidem sobre decisão da 1.ª instância de natureza interlocutória (…) que versam sobre matéria adjectiva (…), considera-se que, em regra, é bastante o duplo grau de jurisdição, tal como já ocorria no âmbito do sistema dualista relativamente ao recurso de agravo que também só era admitido, sem entraves, até à Relação.» (negrito nosso)


Com decorre da decisão singular do Relator, o acórdão recorrido apreciou duas decisões interlocutórias da 1.ª instância que recaíram, unicamente, sobre a relação processual, situação não contemplada no artigo 671.º, n.º 1 do CPC.


3. - No que se refere ao 2.º fundamento, consta na decisão singular:


“(…), a situação fáctica subjacente às duas decisões é distinta e não equiparável.


(…).


Face à diferente factualidade subjacente, não se pode falar na contradição que a lei exige entre as duas decisões”.


Na reclamação, a Autora alegou:


No caso dos presentes autos, é pacífico que o douto acórdão recorrido e acórdão fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação.


(…).


A recorrente reconhece que o quadro factual subjacente às duas decisões em confronto não coincide.”. (negrito nosso).


Se a própria Autora reconhece que a situação fáctica subjacente às duas decisões em confronto “não coincide”, nada mais temos a acrescentar ao já exposto na decisão singular sobre o entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria: identidade do núcleo essencial de factos para a contradição de julgados.


[cfr., entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de: 20-12-2017 Revista n.º 18588/16.2T8LSB-D.L1.S1-6.ª Secção Ana Paula Boularot (Relatora); 14-03-2019 Revista n.º 406/17.6YHLSB.L1.S1-7.ª Secção Nuno Pinto Oliveira (Relator); 05-12-2019 Revista n.º 630/19.7T8LRA.C1.S2-2.ª Secção Rosa Tching (Relatora); 20-02-2020 Revista n.º 23178/09.3YYLSB-C.L1.S2-7.ª Secção Oliveira Abreu (Relator); 28-01-2021 Revista n.º 1090/15.7T8VFR.P1.S1-2.ª Secção Bernardo Domingues (Relator); 05-07-2022 proc. 222/21.0T8VRL-A.G1-A.S1 Ricardo Costa (Relator), todos in www.dgsi.pt].


III. - Decisão


Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social indeferir a reclamação da Autora e confirmar a decisão singular do Relator.


Custas a cargo da Autora/reclamante, fixando em 3 UC de taxa de justiça.


Lisboa 03 de novembro de 2023


Domingos José de Morais (Relator)


Mário Belo Morgado


Júlio Gomes