Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5610/19.0T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PRINCÍPIO DA AQUISIÇÃO PROCESSUAL
INSTRUÇÃO DO PROCESSO
FACTOS PROVADOS
ÓNUS DA PROVA
SEGURADORA
TOMADOR
Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Segundo o princípio da aquisição processual (cfr. artigo 413.º do CPC), a actividade instrutória realizada no processo visa, essencialmente, determinar quais os factos que estão provados, independentemente da distribuição de ónus da prova entre as partes.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrida: Fidelidade, Companhia de Seguros, S.A.

1. Em 9 de Dezembro de 2019 veio AA, divorciado, residente em ..., ..., intentar acção declarativa de condenação com processo comum demandando Fidelidade, Companhia de Seguros, S.A., com sede no ..., em ..., pedindo a condenação da ré no pagamento da indemnização contratualizada, correspondente ao valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), acrescida da quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais, e os respectivos juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou o autor, em síntese, que no dia 29.06.2013 celebrou com a Ré um contrato de seguro – apólice IN.....08 – relativo ao prédio urbano sito no lugar de ..., freguesia de ..., Concelho de ..., inscrito na matriz predial sob o art.º 633.º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 850.º, daquela freguesia; no âmbito do descrito contrato de seguro ficou coberto, além do mais, o risco de incêndio no descrito imóvel, com o valor seguro de € 50.000,00 (cinquenta mil euros); durante a madrugada do dia ... .08.2018 deflagrou um incêndio que consumiu o descrito imóvel, deixando-o inabitável; o Autor participou o sinistro à ré no dia ... .08.2018, a qual declinou a responsabilidade pelo pagamento da indemnização contratualizada, com fundamento em que não foi possível confirmar que o evento ocorrido seja susceptível de enquadramento nas garantias da apólice; o autor sofreu danos patrimoniais no montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), pela perda total do bem seguro, tendo a ré se comprometido a pagar a referida quantia monetária em caso de incêndio; a atitude da ré causou tristeza, angustia e sofrimento ao autor, danos que deverão ser compensados pela ré com o pagamento da quantia de € 1.000,00 (mil euros).

Juntou procuração e documentos.

2. Citada, veio a ré apresentar contestação, alegando, além do mais, ser verdade que entre o autor e a ré foi celebrado um contrato de seguro, do ramo incêndio e elementos da natureza – risco simples, com a Apólice n.º IN5420208, confirmando igualmente que no dia ... .08.2018 deflagrou um incêndio no imóvel segurado na ré; por ordem da ré, foi realizada avaliação às circunstâncias em que decorreu o sinistro, por técnicos especializados, os quais concluíram que o sinistro resultou de uma situação praticada a título de dolo directo, por parte de quem tivesse acesso ao espaço, tendo transportado para o local um produto potenciador da combustão e uma fonte de calor externa; foram excluídas causas eléctricas por ausência de indícios nesse sentido e pela inexistência de corrente eléctrica no espaço desde Março de 2017 e pelo facto de os equipamentos de recheio se encontrarem desconectados; inexistem sinais de arrombamento da porta de acesso à residência atenta a posição das trancas verticais e horizontais da respectiva fechadura, que se encontravam fechadas com duas voltas na tranca de fecho; concluiu-se, assim, que o incêndio dos autos se deveu ao derramamento de um produto líquido no interior da habitação, com capacidade para potenciar e acelerar a combustão na fase inicial, por quem tivesse acesso ao espaço, sendo que, à mesma conclusão chegou a polícia judiciária no âmbito do inquérito n.º 121/18.3..., concretamente, que o incêndio teve origem dolosa, apenas se arquivando o processo por falta de elementos que permitissem apurar a autoria.

Mais alegou a ré, que o facto de se ter apurado que o incêndio teve origem dolosa exclui o mesmo da cobertura do seguro, porquanto, como resulta da Cláusula 1.ª das Condições Gerais da Apólice, para que o risco de incêndio esteja coberto pelo seguro é necessário que se trate de uma combustão acidental, com desenvolvimento em chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios; no caso dos autos está-se perante uma situação de fogo posto, de um acto criminoso, com intenção de causar danos, o que não se encontra garantido pela Apólice subscrita

Juntou procuração e documentos.

3. Respondeu o autor à defesa por excepção deduzida pela ré. Conclui pela improcedência das excepções.

4. A ré arguiu a ilegitimidade activa do autor para os pedidos formulados na medida em que é apenas usufrutuário do prédio e da habitação ardida, senda a proprietária BB.

5. Foi esta última admitida a intervir em sede de intervenção principal provocada (cfr. artigo 319º do CPC) e por isso se julgou suprida a ilegitimidade apontada.

6. Saneou-se a causa e atribuiu-se valor à acção.

Teve lugar audiência final com gravação dos trabalhos.

7. Por fim, proferiu-se sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e por via disso:

A) Condenou a sociedade “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.” no pagamento dos danos patrimoniais sofridos por AA em consequência directa e necessária do incêndio da habitação descrita em 1-, dos factos provados, a apurar em sede de liquidação de sentença;

B) Absolveu a sociedade “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.” do mais peticionado por AA;

C) Condenou o Autor e a Ré nas custas, fixando-se estas em 2 UC para o primeiro e em 5 UC para a segunda, nos termos dos artigos 527.º, do Cód. Proc. Civil, 6.º, n.º 1, do RCP e Tabela I-A, ao mesmo anexa.

8. Inconformada, interpôs a ré recurso de apelação.

9. O Tribunal da Relação de Coimbra proferiu Acórdão em cujo dispositivo pode ler-se:

Pelo que fica exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, indo por via disso revogada a sentença recorrida que se substitui por outra onde a Ré é absolvida dos pedidos formulados”.

10. Desta vez é o autor quem vem interpor recurso de revista “nos termos do art. 671.º do CPC, tendo por fundamento as nulidades previstas nos art. 615.º e 666.º do CPC por via do art. 674.º do mesmo diploma”.

Conclui as suas alegações deste modo:

a) O presente recurso de revista vem interposto do Acórdão recorrido que julgou a apelação procedente e revogou a sentença recorrida, por entender não ter o A. logrado provar que o incêndio dos autos resultasse de uma combustão acidental, dando antes por provado que o incêndio resultou de “fogo posto” mais que, no caso, não foi acordada pelas partes a cobertura “atos de vandalismo”, daí concluindo estar o sinistro excluído da cobertura acordada na apólice.

b) Nos factos 36.º a 46.º, sob a epígrafe “Da exclusão da cobertura dos danos”, em nenhum momento a R. invoca, em consequência do que alega (que incêndio ter sido causado dolosamente por terceiro), a ausência de subscrição da cobertura “atos de vandalismo” como causa/ fundamento para a exclusão das proteções estabelecidas no seguro no caso em apreço, pelo que é extemporânea a sua invocação em sede de recurso.

c) Ao ter decidido de encontro ao alegado apenas em sede de recurso, o Tribunal recorrido cometeu excesso de pronuncia, pois que não poderia nesta instância tomar conhecimento da exceção perentória extintiva levantada pela R. (por não ter vindo deduzida aquando da contestação), por se reconduz a uma nova questão.

d) Termos em que, o Acórdão recorrido é nulo, por excesso de pronúncia (cfr. arts. 674.º, n.º 1, al. c), 666.º e 615.º, n.º 1, al. d) todos do CPC), impondo-se a sua substituição por outro que reponha a decisão proferida em 1.ª instância, condenando a R. no pedido deduzido.

e) Mais que, nas condições gerais da apólice, “incêndio” vem definido como uma “combustão acidental”, enunciando-se meramente na cláusula 4.ª das condições gerais as circunstâncias nas quais se considera excluída a responsabilidade da seguradora; e a previsão das referidas cláusulas de exclusão da responsabilidade constitui implícita convenção de inversão do ónus da prova, cabendo à Seguradora, para se ver livre da responsabilidade emergente dos danos resultantes do incêndio, demonstrar que ocorreram as circunstâncias ali descritas: que a combustão não foi acidental e que resultou de ato de vandalismo.

f) E a R. não logrou demonstrar nenhuma das aludidas circunstâncias suscetíveis de determinar o afastamento da sua responsabilidade, cabendo-lhe por tanto suportar os danos correspondentes à semelhança do decidido em primeira instância.

g) E não se diga que o demonstram os relatórios periciais e o elaborado pela PJ juntos aos autos quando, neste último, se diz expressamente que, “somos levados a presumir que a fonte térmica terá sido transportada intencionalmente para o local referido, indicando assim estar-se perante ato ilícito perpetrado de forma deliberada”; mais, o valor probatório do documento – Relatório da PJ, não foi posto em causa pela R., motivo pelo qual não pode o Tribunal recorrido vir, em instância recursiva, contra ele decidir, fazendo tábua rasa do que dele consta, porquanto lhe é conferida autenticidade/ veracidade quanto ao seu conteúdo.

h) Ao ter decidido nos termos sobreditos, o Tribunal recorrido violou ainda as normas constantes dos arts. 236.º e 344.º, n.º 1 do CC e 573.º, n.º 1 do CPC”.

11. A ré apresenta contra-alegações pugnando, essencialmente, pela manutenção do Acórdão recorrido.

12. O Exmo. Senhor Desembargador proferiu despacho com o seguinte teor:

Por estar em prazo e ter legitimidade admito o recurso interposto pelo Autor relativamente ao ac. prolatado, que é de revista normal a subir ao Colento STJ, imediatamente, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo”.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:

1.ª) se o Acórdão recorrido enferma de nulidade por excesso de pronúncia; e

2.ª) se o Tribunal a quo decidiu em conformidade à lei ao reconhecer que o incêndio não tinha sido acidental e, consequentemente, absolver a ré dos pedidos formulados pelo autor.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1 - No dia ... de junho de 2013 AA acordou, por escrito, com a sociedade “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.” na celebração de contrato de seguro na modalidade “Incêndio – Elementos da Natureza-RS”, relativo ao “edifício para habitação” e “recheio de habitação” sita na Rua ..., ..., ..., ..., com a apólice n.º IN......09, pelo prazo de 1 (um) ano, renovável por igual período, conforme de fls. 7v a 21, dos autos, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido;

2 - No dia ... .08.2018, em hora não concretamente apurada da madrugada, ocorreu um incêndio na habitação referida em 1-;

3 - O contrato de seguro referido em 1- encontrava-se em vigor no dia ... .08.2018;

4 - O incêndio referido em 2- consumiu a habitação em questão, tornando-a inabitável;

5 - No dia ... .08.2018, AA participou, por escrito, a ocorrência o incêndio descrito em 2- à sociedade “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.”;

6 - A sociedade “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.” considerou que do sinistro participado por AA resultou a perda total do bem seguro;

7 - Na sequência do referido incêndio foi aberto um inquérito criminal, a que coube o número 121/18.3..., que correu os seus termos no Departamento de Investigação e Acção Penal de...;

8 - No âmbito da respectiva investigação criminal, foi considerado que o incêndio em apreço teve origem dolosa (alterado pelo Tribunal da Relação, na procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto);

9 - Por despacho proferido no dia ... 03.2019, no âmbito do inquérito referido em 7-, foram os autos arquivados por não se terem reunido indícios suficientes relativamente à autoria do incêndio;

10 - No dia ... de junho de 2019 a sociedade “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.” comunicou, por escrito, a AA que não procederia ao pagamento de indemnização relativa ao evento pelo mesmo participado, por não ter apurado que o mesmo ocorreu em circunstâncias que permitam o seu enquadramento nas garantias da apólice de seguro;

11 - No dia ... de Novembro de 2013, BB declarou, por escrito, perante notário, que na qualidade de dona e legitima possuidora do prédio descrito em 1-, doar o usufruto vitalício do mesmo a AA, o qual, por sua vez, declarou aceitar, conforme de fls. 38 e 39, dos autos, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido;

12 - No dia ... .08.2018, a habitação referida em 1- não se encontrava habitada, não dispondo de ligação à rede de energia eléctrica;

13 - No dia ... de Agosto de 2018, a hora não concretamente apurada, BB deslocou-se à habitação referida em 1- a pedido de AA, sendo que, quando se ausentou da mesma, deixou as chaves da porta de entrada na respectiva fechadura, do lado exterior;

14 - O incêndio que deflagrou na madrugada do dia ... .08.2018 na habitação descrita em 1-, dos factos provados, foi causa directa e adequada de um comportamento humano intencional (aditado pelo Tribunal da Relação, na procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto).

E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

1 - (eliminado pelo Tribunal da Relação, na procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto)

2 - Em consequência directa e necessária de tal incêndio advieram para o Autor prejuízos no montante de € 50.000,00 ou que o mesmo tenha sentido tristeza, angústia e sofrimento.

Registou-se ainda no Acórdão recorrido que sobre estes factos havia emitido o Tribunal de 1.ª instância a seguinte declaração:

No que tange ao mais alegado pelas partes nos seus articulados, não descrito nos factos provados e não provados, trata[]-se de expressões jurídico-conclusivas, insusceptíveis de prova, ou de factos irrelevantes para a decisão da causa, atentos os factos dados como provados e não provados, razão por que se não atendeu aos mesmos”.

O DIREITO

1. Da alegada nulidade por excesso de pronúncia

O autor sustenta que o Acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia, invocando o artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC [cfr. conclusões a) a d)].

Como resulta da norma invocada, existe excesso de pronúncia sempre que o tribunal se pronuncia sobre questões de que não pudesse ou devesse conhecer.

Ora, a pronúncia que o recorrente qualifica como “excessiva” nestes termos é a decisão sobre a não cobertura do acidente pelo contrato de seguro, decisão esta que visa responder à questão fundamental subjacente aos pedidos formulados na presente acção: a responsabilidade contratual da ré seguradora pelos danos causados pelo acidente.

Logo se conclui que não há excesso de pronúncia nem, portanto, a alegada nulidade.

2. Da irresponsabilidade da ré Seguradora

Para apoiar a sua decisão veio o Tribunal recorrido expor o seguinte:

O Autor celebrou com a Ré um contrato de seguro, facultativo, para cobrir riscos, nomeadamente o de incêndio, relativamente à habitação em apreço, que era do tipo pré-fabricado, em madeira, a que se refere o ponto 1 dos factos provados.

Trata-se de um contrato que cobre danos próprios.

Por força do referido art.º 32.º e do art.º 37.º, do RGCS, - DL n.º 72/2008, de 16/04, na versão dada pela Lei n.º 75/2021, de 18.11 – a apólice deve conter cláusulas que constituem as condições gerais e especiais, se as houver, designadamente, a natureza do seguro e os riscos cobertos e as cláusulas que estabeleçam o âmbito das coberturas, concretamente, a sua exclusão ou limitação (cfr. als. c) e d), do n.º 2, e al. b), do n.º 3, do art.º 37.º, do RJCS).

O seguro de incêndio se trata de um seguro de danos, encontrando-se previsto nos art.º 149.º a 151.º do RJCS, dispondo o primeiro preceito referido que: «O seguro de incêndio tem por objecto a cobertura dos danos causados pela ocorrência de incêndio no bem identificado no contrato».

O conceito de “incêndio”, para efeitos de definição de um sinistro coberto por um contrato de seguro de incêndio, não foi expressamente consagrado na lei, pelo que cabe às partes a respectiva concretização, ao abrigo da liberdade contratual.

No caso as Partes acordaram que incêndio era «A combustão acidental, com desenvolvimento em chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nessa possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios». Cfr. Ponto IV, da Cláusula 1.ª, das condições gerais da apólice.

Porém, não logrou provar o Autor que o incêndio dos autos resultasse de uma combustão acidental.

Logo a apólice não pode funcionar.

Por outro lado, ficou provado que:

8- No âmbito da respectiva investigação criminal, foi considerado que o incêndio em apreço teve origem dolosa;

14- O incêndio que deflagrou na madrugada do dia ... .08.2018 na habitação descrita em 1-, dos factos provados, foi causa directa e adequada de um comportamento humano intencional.

Resulta provado que o incêndio resultou de “fogo posto”.

Ora, conforme se pode ver de fls. 69, as Partes acordaram que as protecções estabelecidas no seguro ficam excluídas quando em face de actos de vandalismo ou maliciosos, sem prejuízo dos direitos do segurado quando contratada a cobertura de “Actos de Vandalismo”- al. d) do nº 2 do ponto B. da cláusula 4ª (página 5/25 das CGA).

No caso não foi acordada a cobertura “actos de vandalismo”.

Veio o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 9/2022, de 24/11, decidir o seguinte:

“A cláusula contratual geral inserta em contrato de seguro, mesmo facultativo, em que se define o sinistro “Incêndio” como “combustão acidental” não cobre, no seu âmbito e alcance, o incêndio causado dolosamente por terceiro, ainda que não seja identificado o seu autor.”

Cfr. Ac. do STJ n.º 9/2022, de 19.10. (in DR n.º 227/2022, Série I, de 24.11.).

Daqui se tenha de concluir estar o sinistro excluído da cobertura acordada na apólice.

A acção improcede – artigo 342º, 2 do CC”.

O autor insurge-se contra esta decisão.

O seu argumento central – na verdade, único – é o de que cabia à ré provar que o incêndio não havia sido acidental e ela não o fez [cfr. conclusões e) a h)].

Mas não tem razão.

No contrato de seguro, as partes haviam acordado que a protecções estabelecidas no seguro ficariam excluídas em face de actos de vandalismo.

Ora, a autora não conseguiu provar que o sinistro não havia resultado de um acto de vandalismo.

Bem pelo contrário, ficou provado que a combustão havia sido dolosa e imputável a comportamento humano intencional (cfr. factos 8 e 14), ou seja, resultante de um acto de vandalismo.

Nessa medida, independentemente de quem carreou para os autos os elementos relevantes (i.e., de quem provou aqueles factos), o Tribunal podia e devia concluir que o sinistro estava excluído da cobertura acordada na apólice de seguro e decidir pela irresponsabilidade da ré.

Segundo o princípio da aquisição processual (cfr. artigo 413.º do CPC), a actividade instrutória realizada no processo visa, essencialmente, determinar quais os factos que estão provados, independentemente da distribuição de ónus da prova entre as partes1.

O objectivo da disciplina da distribuição do ónus da prova é, essencialmente, determinar qual dos litigantes deve ser prejudicado pela falta de prova de um facto relevante para a decisão do processo. Por isso, só se deve recorrer a ela quando haja alegações que exijam a actividade probatória, destinada a formar a convicção do tribunal. De tudo isto resulta que, quando existem, no processo, elementos de prova suficientes, deixa de interessar a quem compete o onus probandi.

Em conclusão, a decisão do Tribunal a quo não merece qualquer censura porquanto é plenamente conforme à lei.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelo recorrente.

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Lisboa, 2 de Novembro de 2023


Catarina Serra (relatora)

Fernando Baptista

Ana Paula Lobo

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1. Cfr., sobre o artigo 413.º do CPC e o princípio da aquisição processual, por todos, José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, Coimbra, Almedina, 2017 (3.ª edição), pp. 212 e s. Cfr., para um caso de aplicação do princípio da aquisição processual, por exemplo, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2019 (Proc. 131502/16.0YIPRT.G1.S1).