Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19691/20.0T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
SEGURADORA
ACIDENTE DE TRABALHO
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I - Constitui abuso de direito na configuração de comportamento contraditório, a conduta da seguradora que que depois de ter determinado o acompanhamento médico/internamento do trabalhador sinistrado em instituição hospitalar privada, transferindo-o do hospital público onde se encontrava, 15 dias mais tarde ordena que o trabalhador deixe de imediato o hospital por entender que o acidente sofrido não estava coberto pelo seguro.

II - Os danos que são da responsabilidade da seguradora em razão desse seu comportamento abusivo são aqueles a que essa conduta tenha dado causa e não os do acidente sofrido e que o tribunal competente em ação própria veio a fixar, considerando ser o acidente de trabalho e responsável a seguradora.

III - Tendo o lesado sofrido com a ordem de abandonar o hospital atraso na sua recuperação, que não foi quantificado e ainda choque, perplexidades e preocupações de organização futura, dificuldades logísticas, físicas e anímicas de saída do hospital e regresso a casa com as respetivas dores e limitações, em juízo de equidade é adequado fixar em 10.000,00 € a indemnização por danos não patrimoniais.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Relatório

AA instaurou ação contra AGEAS Portugal, Companhia de Seguros, SA, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 40.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos com a interrupção injustificada, a que a Ré procedeu, dos cuidados médicos que lhe vinham a ser prestados na sequência de um acidente de trabalho e ainda € 50.000,00 de dano biológico por considerar que a sua I.P.P de 41,4% decorre, em parte, do comportamento da Ré ter suspendido os tratamentos.

Em contestação, a Ré excecionou com a incompetência material do tribunal, considerou não ser sua obrigação providenciar pela continuação da prestação de cuidados ao Autor, por tal estar excluído do contrato de seguro celebrado, e impugnou a factualidade alegada.

Em audiência prévia, julgou-se improcedente a exceção de incompetência material, definiu-se o objeto do litígio e os temas de prova, sem reclamações.

Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, que julgou a ação improcedente e absolveu a Ré do pedido.

Desta decisão interpôs o autor recurso de apelação que veio a ser julgado parcialmente procedente tendo sido a sentença revogada e condenada a ré a pagar a quantia de 20.000,00 € a título de danos não patrimoniais.

Desta decisão recorrem agora a ré e o autor.

A ré conclui que:

“ 1.º O presente recurso de revista vem interposto no seguimento da prolação do douto Acórdão, proferido pela Veneranda Relação do Porto, que decidiu “revogar a sentença recorrida na parte atinente à indemnização por danos morais, condenando-se agora a Ré a pagar ao Autor, a esse título, a quantia de vinte mil euros”.

2.º A ora recorrente, salvo o devido respeito, não pode concordar com o decidido pelo douto Acórdão recorrido, no que diz respeito à sua condenação no pagamento ao Autor do montante de €20.000,00, a título de danos morais, entendendo que existiu, salvo o devido respeito, uma clara violação da lei substantiva, assim como, erro de aplicação e determinação da norma aplicável, para efeitos do disposto no artigo 674.º n.º 1 alínea a) do CPC.

3.º Bem como, com todo o devido respeito, não concorda a Recorrente com o quantum indemnizatório, arbitrado pelo douto Acórdão do qual aqui se recorre.

4.º Considerou o douto Acórdão recorrido que para «a normalidade dos cidadãos, perante uma atitude da Ré em assumir os tratamentos, depois de 5 dias num hospital público, confiará que isso significa assunção da responsabilidade por parte da Ré» e que, com a sua conduta, a Recorrente criou legítimas expectativas ao Autor, ora Recorrido, em que aquela continuaria a assumir os cuidados médicos a este.

5.º Ora, não pode a Recorrente concordar com esta douta afirmação da Veneranda Relação do Porto, uma vez que, em momento algum, assumiu a responsabilidade pelo acidente de trabalho que vitimou o Autor, ora Recorrido.

6.º A Recorrente, ao prestar os cuidados de saúde iniciais ao Autor, ora Recorrido, em virtude da ocorrência do acidente de trabalho que este sofrera, fê-lo no estrito cumprimento das obrigações a que se encontrava adstrita, obrigações essas, que decorrem da lei.

7.º De facto, atento o exposto na Lei n.º 98/2009 de 04 de setembro, mormente o seu artigo 7.º, a Entidade Empregadora é responsável pela reparação dos acidentes de trabalho e deverá, obrigatoriamente, ter essa mesma responsabilidade transferida para uma Entidade Seguradora, conforme o disposto no artigo 79.º da mesma lei.

8.º Sendo que, a mencionada Entidade Seguradora deve assegurar as prestações, sejam estas em espécie ou em dinheiro, que sejam devidas no caso concreto do acidente de trabalho em questão, conforme o previsto no artigo 23.º da referida Lei n.º 98/2009 de 04 de setembro.

9.º Para além disso, a Entidade Seguradora, perante a presunção legal consagrada no artigo 10.º da Lei n.º 98/2009 de 04 de setembro, encontra-se adstrita à prestação dos cuidados e tratamentos ou indemnizações, que se afigurem necessárias à reabilitação do lesado que haja sofrido o acidente de trabalho.

10.º No entanto, não há qualquer norma legal prevista que obste a Entidade Seguradora, no sentido de proceder às normais diligências de averiguação tendentes ao apuramento das circunstâncias concretas em que o acidente de trabalho tenha ocorrido e que, perante as conclusões que haja retirado dessas diligências, assuma ou decline a sua responsabilidade pelo mesmo.

11.º A prestação de tratamentos médicos iniciais a um trabalhador, que haja sofrido um acidente (presumivelmente) de trabalho, por parte da Entidade Seguradora, não equivale a uma assunção da sua responsabilidade perante o mesmo.

12.º Neste sentido, vide a cláusula 31.ª, n.º 1, do anexo que faz parte integrante da Portaria n.º 256/2011 de 05 de julho (Apólice Uniforme de Acidentes de Trabalho), que prevê que «A prestação de socorros urgentes, ou a comunicação do acidente de trabalho às entidades competentes, não significa reconhecimento da responsabilidade pelo segurador.».

13.º Na verdade, não existia qualquer obrigação legal da Entidade Seguradora, in casu, da aqui Recorrente, de continuar a prestar os cuidados de saúde ao Recorrido, após vir a concluir pela descaracterização do acidente, por este sofrido, como acidente de trabalho.

14.º Perante a recusa de assunção de responsabilidade de um acidente de trabalho, a cessação dos tratamentos médicos a um trabalhador sinistrado, por parte da Entidade Empregadora, é legal e legítima.

15.º Com o devido respeito, não pode a Recorrente concordar, como decidiu o douto Acórdão recorrido, que o seu comportamento de assegurar os tratamentos médicos iniciais ao Autor, foi suscetível de criar, na sua esfera jurídica, expectativas legítimas de que aquela garantisse a este, ad aeternum, a prestação de tais tratamentos, até à sua estabilização.

16.º Isto porque, o comportamento da Recorrente foi sempre pautado pela legalidade, tendo-se por referência exemplificativa, a casos semelhantes ao dos autos, o douto Acórdão da Veneranda Relação de Lisboa, datado de 21 de maio de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 10279/18.6T8LSB.L1, bem como, o douto Acórdão da Veneranda Relação de Évora, datado de 26 de Junho de 2008, proferido no âmbito do processo n.º 1330/08-3.

17.º Assim, com todo o sempre o devido respeito, não pode a Recorrente concordar, como decidiu o douto Acórdão recorrido, que o seu comportamento de assegurar os tratamentos médicos iniciais ao Autor, foi suscetível de criar, na sua esfera jurídica, expectativas legítimas de que aquela garantisse a este, ad aeternum, a prestação de tais tratamentos, até à sua estabilização.

18.º Além do mais cumpre referir que, na fundamentação do douto Acórdão recorrido, é referido o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Fevereiro de 2009, que, salvo o devido respeito, em nada se demonstra compaginável com o caso concreto dos presentes autos, pois, retrata um caso em que o lesado teve acompanhamento médico durante 6 (seis) meses, antes da interrupção do mesmo, tendo resultado provado que a cessação abrupta desse mesmo acompanhamento médico provocou um agravamento no estado de saúde daquele sinistrado.

19.º O que não aconteceu no caso dos presentes autos.

20.º Além disso, da interrupção no tratamento prestado ao Autor, aqui Recorrido, não resultou nenhum agravamento da sua condição, mas sim um atraso da sua recuperação.

21.º Pelo que, entende a Recorrente que não agiu em violação de abuso de direito e dos limites impostos pela boa-fé, nos termos e para os efeitos do artigo 334.º do CC, não existindo para si, nos termos do artigo 483.º do mesmo diploma legal, a respetiva obrigação de indemnizar o Autor, ora Recorrido.

22.º Assim, com todo o devido respeito, que é muito, entende a aqui Recorrente que não poderia a Veneranda Relação do Porto ter concluído que foram criadas expectativas legítimas ao Autor, aqui Recorrido, por parte da Ré, aqui recorrente, sendo as mesmas merecedoras da tutela do direito e decidir pela indemnização àquele, pelo montante de €20.000,00 a título de danos morais.

23.º Para além disso, o douto Acórdão recorrido, fundamentou a referida indemnização ao Autor, a título de danos morais, no valor de €20.000,00, com base na violação dos direitos de personalidade do Autor, por parte da Recorrente, direitos esses, previstos no artigo 70.º do CC.

24.º Julgou a Veneranda Relação do Porto terem sido violados tais direitos de personalidade do aqui Recorrido, na senda de ter dado como provado, no douto Acórdão do qual ora se recorre, que o transporte adequado em que o Autor se deveria ter deslocado, desde o hospital onde se encontrava internado até casa, seria uma ambulância e não um táxi, e que a Ré Recorrente deveria ter sido «proativa não só nos cuidados prestados, mas também na promoção das condições materiais e humanas para uma reabilitação o mais célere e completa possível».

25.º Ora, entende a Recorrente que é manifestamente desproporcional e exagerado que a deslocação de táxi realizada pelo Autor, desde o hospital até sua casa, se afigure suscetível de ofender, de modo ilícito, a sua personalidade física ou moral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 70.º, n.º 1 do Código Civil.

26.º Bem como, que não foi essa deslocação de táxi que influenciou o atraso na recuperação do Autor, ora Recorrido.

27.º Além disso, se uma viagem de táxi desde o hospital, onde se encontrava o Recorrido, até à casa deste comprometesse um agravamento do seu estado de saúde, sempre teria o referido hospital e a respetiva equipa médica diligenciado pelo seu transporte por meio de ambulância, o que não aconteceu.

28.º E, com o devido respeito, ainda se dirá que, numa ótica de juízo e/ou senso comum, se o Autor, ora Recorrido, não se sentisse apto a deslocar-se via táxi, poderia e devia ter-se recusado a realizar a viagem por esse meio de transporte.

29.º Viagem essa, que, salvo o erro, foi de curta duração e distância.

30.º Posto isto, discorda a Recorrente, com todo o devido respeito, que a mencionada viagem de táxi haja sido suscetível de produzir qualquer ofensa ilícita à personalidade do Autor, seja ela física ou moral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 70.º, n.º 1 do Código Civil.

31.º Sendo que, com todo o devido respeito, que é muito, numa ótica de rigorosidade e precisão jurídica, não resulta dos presentes autos em que medida é que o referido atraso na recuperação do Recorrido tenha relevado para uma ofensa dos seus direitos de personalidade que, por seu turno, justifique a atribuição de uma indemnização no valor de €20.000,00, a título de danos morais.

32.º Isto porque, apenas resultou provado, para relevância de danos morais, o seguinte facto: «50 - O A. encontra-se triste, angustiado e ansioso.».

33.º Ora, no entender da aqui Recorrente, atento o teor desse facto provado, o suposto dano moral sofrido pelo Autor, ora Recorrido, não reveste uma gravidade que mereça a tutela do Direito, para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 496.º do CC.

34.º Visto que, tal como decidido no douto Acórdão da Veneranda Relação de Lisboa, datado de 20 de outubro de 2005, proferido no âmbito do processo n.º 1082/2005- 8, «os meros transtornos, incómodos, desgostos e preocupações, cuja gravidade e consequências se desconhecem, não podem constituir danos não patrimoniais ressarcíveis;».

35.º De igual modo, também decidiu o douto Acórdão da Veneranda Relação de Lisboa, datado de 07 de novembro de 2018, proferido no âmbito do processo n.º 158/16.7T8SRQ.L2-4 que «(…) não são merecedores da tutela do direito os meros incómodos, as indisposições, preocupações e arrelias comuns.».

36.º Assim, no entender da Recorrente, salvo o devido respeito, deve o douto Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que decida pela sua absolvição, relativamente à sua condenação ao pagamento ao Autor, no montante de €20.000,00 a título de danos morais.

37.º No entanto, sem prescindir, caso assim não se entenda, a Recorrente não pode deixar de alegar que, todo o devido respeito, o quantum indemnizatório, no montante de €20.000,00, atribuído ao Recorrido a título de reparação por danos morais, se afigura manifestamente excessivo e exagerado, na ótica do disposto nos artigos 496.º, n.º 1, 562.º e 566.º, n.º 3, todos do Código Civil, tendo a Veneranda Relação do Porto realizado uma incorreta interpretação e aplicação desses mesmos preceitos legais.

38.º Isto porque, o referido montante indemnizatório de €20.000,00, atribuído ao autor, a Recorrido, pelo douto Acórdão de que aqui se recorre, foi o mesmo montante atribuído a lesados em casos muito mais gravosos do que o dos presentes autos.

39.º A este respeito, vide o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12 de março de 2009, proferido no âmbito do processo n.º 09P0611, no qual se decidiu por uma indemnização no valor de €20.000,00, a título de danos morais, relativamente ao sofrimento de uma vítima mortal, causada por um acidente de viação.

40.º Vide, também, o douto Acórdão proferido pela Veneranda Relação de Guimarães, datado de 28 de setembro de 2017, proferido no âmbito do processo n.º 7328/15.3T8GMR, no qual se decidiu pela indemnização no valor de €10.000,00, a título de reparação pelo sofrimento de uma vítima mortal, também ela, lamentavelmente, causada por um acidente de viação.

41.º Repare-se que, este douto Acórdão vindo de referir, proferido pela Veneranda Relação de Guimarães, atribuiu um valor inferior ao dos presentes autos, num caso de uma pessoa que sofreu um terrível acidente de viação e que, a final, veio a falecer.

42.º Assim, com todo o sempre devido respeito, o douto Acórdão recorrido violou, manifesta e exageradamente, o juízo de equidade previsto no n.º 3 do artigo 566.º do CC, bem como, não teve em conta o recurso a casos análogos, previsto no artigo 8.º, n.º 3 do mesmo diploma legal.

43.º Posto isto, o juízo de equidade vindo de referir, deve servir um propósito de equilíbrio, pautado pelo princípio da proporcionalidade, o qual tem respaldo constitucional, tendo por finalidade uma justa compensação do lesado, o que, no entender da aqui Recorrente, o douto Acórdão recorrido não fez.

44.º Salvo melhor e douta opinião, a Veneranda Relação, com todo o devido respeito, que é muito, não cuidou de fazer uma correta interpretação e consequente aplicação do disposto nos artigos 8.º, n.º 3, 70.º; 334.º; 483.º, n.º 1; 496.º, n.º 1 e 4; 562.º; 563.º; 564.º e 566.º, n.º 3, todos do CC.

45.º Pelo que, deverá ser dado provimento ao presente recurso de revista, revogando- se o douto Acórdão recorrido, por outro que conclua pela absolvição da Ré Seguradora, ora Recorrente, da condenação de indemnização no montante de €20.000,00, a título de danos morais, atribuída ao Autor, ora Recorrido.

46.º Ou, caso assim não se entenda, deverá o douto Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a redução da indemnização no valor de €20.000,00 atribuída ao Autor, aqui Recorrido, por valor nunca superior a €5.000,00.”

… …

O autor concluiu no recurso subordinado:

“ 1ª – O presente recurso versa sobre o montante da compensação fixada a título de dano moral e sobre a fixação de uma indemnização pelo dano biológico.

2ª – O valor de Eur. 20 000, 00 pelo dano moral fixado no acórdão recorrido não respeita as regras mínimas de ressarcimento deste dano, por apelo a juízos de equidade, face às práticas correntes na Jurisprudência e tendo em atenção todo o sofrimento do Autor.

3ª - Considerando os factos 23 a 51 dados como provados, torna-se imperiosa a elevação da compensação em causa, a qual deverá ser fixada em Eur. 35 000, 00.

4ª – Uma vez que a Ré ordenou a sua transferência do SNS para os seus serviços clínicos, o A. CONFIOU que iria ser tratado com os cuidados que a sua situação clínica impunha, confiando numa recuperação rápida e eficaz.

5ª - Todavia, quando se encontrava na fase mais crítica do tratamento, recebeu ordem para, sem mais, se ausentar, de imediato, dos serviços clínicos da Ré.

6ª - Foi depois atirado para dentro de um táxi, que o levou até casa, quando a sua condição clínica impunha que fosse transportado em ambulância.

7ª - Em casa, ficou ao abandono, acamado, sem autonomia, e completamente dependente de terceiros.

8ª - Além das dores e limitações físicas que apresentava, o A. ficou psicologicamente arrasado. Sentia-se incapaz, derrotado, humilhado e sem forças para enfrentar a vida.

9ª - Não fosse a ajuda e caridade de terceiros, mormente da sua irmã, o A. e o seu filho menor teriam permanecido completamente abandonados e entregues à sua sorte.

10ª - O desprezo com que a Ré o tratou, provocou-lhe um profundo abalo psicológico.

11ª - Insolitamente, e depois de tudo isto, a Ré voltou a autorizar que o A. realizasse despesas com terceira pessoa e observou-o, em consulta, nos seus serviços clínicos.

12ª – Com estes sinais, o A. voltou a acreditar que iria ser acompanhado clinicamente pelos serviços da Ré e que seria adequadamente tratado.

13ª – A sua esperança foi arrasada, uma vez mais, quando recebeu uma carta da Ré a declinar o sinistro, onde a mesma transmitia não se tratar de um acidente de trabalho.

14ª - Esta posição da Ré não tinha qualquer cabimento, pois no âmbito do processo emergente do acidente de trabalho veio a concluir-se que se tratou efetivamente de um acidente de trabalho, sendo a Ré a única responsável pela sua reparação.

15ª - Ao longo de mais de um mês, a Ré adotou posições contraditórias, criando uma expetativa no A. que não se confirmou, o que lhe causou grande angústia e ansiedade.

16ª – Após a Ré ter recusado definitivamente o seu acompanhamento clínico, a postura de desprezo da Ré não se alterou, pois não assegurou a transição do A. para o SNS.

16ª – Por força do comportamento da Ré, todo o processo de recuperação revelou-se muito mais demorado para o A. Fez fisioterapia mais tarde do que o que devia, e as sessões foram mais dolorosas, por força desse atraso.

18ª - Tudo isto criou no A. enorme tristeza, ao ver a sua dignidade espezinhada.

19ª - O comportamento da Ré agravou muito as dores suportadas pelo A., seja através da forma como foi transportado para casa, do prolongamento dos tratamentos, da angústia que sentiu e do atraso na recuperação.

20ª – Estes danos são extensamente graves e merecem adequada compensação.

21ª – Deve ser especialmente relevado a circunstância de se tratar de um comportamento voluntário da Ré, ou seja, um comportamento doloso.

22ª – A Ré manteve o tom da sua atuação em juízo, ao recusar por completo qualquer tipo de acordo, e ao alegar que os danos sofridos pelo A. não merecem a tutela do direito.

23ª - A compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo A., onde se incluem todas as suas componentes, deverá ser fixada em montante não inferior a Eur. 35 000, 00, sendo que “A indemnização por danos não patrimoniais (…) deve ser significativa e não meramente simbólica” – cfr. Ac. do STJ de 20.11.2013 (Proc. n.º 1181/12.6JAPRT.P1.S1).

…\...

24ª - O dano biológico configura uma perda de aptidão ou capacidade de ganho, independentemente da perda da retribuição, e traduz-se numa diminuição somático- psíquica do A., com natural repercussão na sua qualidade de vida.

25ª - O dano biológico contempla a lesão à integridade física e psíquica, independentemente da redução da capacidade de ganho.

26ª - O dano biológico sofrido pelo A. não deve considerar-se confinado no âmbito os danos não patrimoniais, uma vez que o mesmo goza de autonomia, quer face a estes, quer face aos danos patrimoniais. Trata-se de um dano autónomo e indemnizável.

27ª – Provou-se que o A. se encontra triste, angustiado e ansioso e que a interrupção do tratamento provocou atraso na sua reabilitação – art.ºs 50º e 51º dos factos provados.

28ª - Estes factos assumem crucial importância e gravidade, mas devem ser conjugados com os demais factos provados e os docs. n.º 1, e 5 a 11 juntos com a p.i., bem como o relatório de avaliação do INML de fls. .

29ª – Atentos os factos provados, e os indicados elementos de prova, é manifesto que o A. viu gravemente afetada a sua qualidade de vida, pelos sentimentos negativos que o comportamento da Ré lhe provocou e pelo atraso que a sua reabilitação sofreu.

30ª - O Autor viu também afetada a possibilidade de estabelecer relações sociais e afetivas, e das mesmas retirar os respetivos proveitos, pessoais e profissionais.

31ª - O comportamento da Ré, e as suas consequências, impossibilitou ainda o A. de desenvolver as atividades necessárias à autoprodução de bens.

32ª - Ao interromper os tratamentos de modo brusco e injustificado, a Ré causou tristeza, angustia e ansiedade no A., e, comprovadamente, atrasou a sua reabilitação.

33ª - A Ré impediu o A. de viver em plenitude, lesando a sua integridade físico- psíquica.

34ª - A interrupção dos tratamentos provocou um dano no A. que terá de ser ressarcido!!!

35ª – Atentos os factos provados, não pode haver dúvidas que ocorreu um dano evento, de modo que o A. tem direito a uma indemnização a título de dano biológico.

36ª - Ponderadas as concretas circunstâncias do caso, a compensação pelo dano biológico deverá ser fixada em Eur. 5 000, 00, verba modesta, mas de uma necessidade extrema, para se atingir o dito estado de justiça.

37ª - O douto acórdão recorrido violou, nomeadamente, o disposto nos artigos arts. 483º, 496º, 487º nº 2, e 566º n.ºs 2 e 3 do Código Civil.”

Nas contra alegações os recorrentes contrapõem respetivamente as razões que sustentam nos seus recursos para afastarem as posições defendidas pelo outro.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

… …

Fundamentação

Está provada a seguinte matéria de facto:

“ 1º - No dia 2 de outubro de 2015, pelas 16h30, quando se encontrava ao serviço da sua entidade empregadora, denominada “K..., Ld”, o Autor foi vítima de um grave acidente de trabalho.

2º - O Autor exercia as funções de trabalhador agrícola, nomeadamente na plantação de kiwis, na realização de podas e amarração, na pulverização e na colocação, manutenção e vigilância dos sistemas de rega.

3º - No referido dia e hora, quando se encontrava nas instalações da sua entidade empregadora, e quando se preparava para iniciar a pulverização dos kiwis, o A. detetou que o tubo que liga o depósito da água aos pulverizadores se encontrava entupido.

4º - Por ordem da sua entidade empregadora, o Autor subiu ao telhado onde se encontravam os pulverizadores para proceder à substituição da tubagem entupida.

5º - Quando se encontrava a esticar a tubagem nova sobre o referido telhado, uma das telhas soltou-se e o Autor caiu ao solo, no interior do armazém, de uma altura de cerca de seis metros.

6º - Por força da referida queda, o Autor sofreu de imediato fratura do calcâneo esquerdo, do fémur esquerdo e da 2ª vértebra lombar.

7º - No local, o Autor foi assistido pelos serviços de emergência médica, tendo sido depois transportado de ambulância para o serviço de urgência do Hospital P..., em ..., onde deu entrada às 17h30 do dia 2 de outubro de 2015.

8º - Permaneceu depois internado naquele Hospital até ao dia 7 de outubro de 2015.

9º - Dado que a entidade empregadora tinha a sua responsabilidade transferida para a Ré “Ageas Portugal”, através de uma apólice de Seguro Agrícola Genérico (Ap. n.º ..........36), o sinistro foi participado ao mediador de seguros da Ré logo no dia 2 de outubro de 2015,

10º - Contactada a Ré no dia 5 de outubro de 2015, pela manhã, apurou-se que o referido mediador não efetuou a participação de acidente de trabalho.

11º - No dia 5 de outubro de 2015, a D.ª BB, irmã do Autor, e o representante da entidade empregadora deslocaram-se às instalações da Ré, no ..., onde apresentaram a participação do sinistro.

12º - No dia 6 de outubro de 2015, ainda no Hospital P..., o Autor apresentava lesões graves, e sofria de anemia, provocada pela perda de sangue no fémur, tendo sido, por isso, submetido a uma transfusão sanguínea.

13º - Tornava-se necessário mudar o Autor de Hospital, e colocá-lo sob cuidados médicos a mando da Ré.

14º - O Sr. CC, gestor do processo da Ré, prometeu tomar providências nesse sentido, embora tenha referido que a situação do Autor não era urgente.

15º - No dia 7 de outubro de 2015, pelas 21h20, o Autor foi então transferido para o Hospital da ..., no ..., a mando da Ré.

16º -O A. ficou então internado no Hospital da ..., passando a ser seguido pelos serviços clínicos da Ré, designadamente pelos médicos ao seu serviço.

17º - No Hospital da ..., o Autor foi estabilizado e submetido a consultas, a diversos meios complementares de diagnóstico, e por indicação do Dr. DD, Ortopedista, o A. ficou a aguardar o agendamento de cirurgia, logo desde o dia 8 de outubro de 2015.

18º - No dia 13 de outubro de 2015, o Autor foi submetido a uma dolorosa e longa intervenção cirúrgica consistente no encavilhamento do fémur.

19º - E foi também submetido a osteossíntese com dois parafusos do calcâneo esquerdo.

20º - Quanto às lesões na coluna vertebral (fratura de L2), os serviços clínicos da Ré optaram por não operar o A. nesse mês de outubro, receitando o uso de um colete tipo Robert-Jonnes, mas não descurando a hipótese de cirurgia, no futuro.

21º -No dia 15 de outubro de 2015 o Autor sofreu novamente anemia, tendo sido submetido a nova transfusão de sangue.

22º - O Autor foi submetido a sessões diárias de fisioterapia.

23º - Durante o período de internamento no Hospital da ..., o Autor aceitou e seguiu todas as prescrições e recomendações dos serviços clínicos da Ré, que assumiram, em exclusivo, a responsabilidade pela recuperação do Autor.

24º - No dia 22 de outubro de 2015, o Autor recebeu ordem para se ausentar de imediato do Hospital da ....

25º - Foram-lhe cedidas duas muletas e o A. foi transportado de táxi para sua casa a expensas da Ré “Ageas”.

26º - O autor encontrava-se acamado e sem autonomia para a realização das atividades básicas da sua vida diária, mormente para se alimentar, medicar e realizar a higiene pessoal.

27º - No dia 26 de outubro de 2015, a Ré autorizou o A. a realizar despesa com terceira pessoa para apoio nas tarefas do quotidiano.

28º - No dia 29 de outubro de 2015, tal como agendado, o A. foi observado em consulta de acompanhamento pelo Dr. DD, nos serviços clínicos da Ré Hospital da ...).

29º - No dia 12 de novembro, o Autor recebeu uma carta da Ré a declinar a sua responsabilidade relativamente ao acidente de trabalho ocorrido.

30º - O acidente foi participado ao Tribunal do Trabalho e o processo emergente de acidente de trabalho correu termos pelo Juízo de Trabalho de ... – Juiz 3 – Proc. n.º 1564/15.0...

31º - Decorrida a fase conciliatória, sem acordo das partes, o Autor apresentou a competente petição inicial, contra a Ré e contra a Empregadora, pedindo que fosse reconhecido o acidente como de trabalho imputando ainda a responsabilidade agravada à patronal, por violação das regras de segurança.

32º - A Ré “Ageas”, então “AXA”, contestou alegando, nomeadamente, que o sinistro se encontrava excluído das garantias do contrato de seguro, nos termos do disposto na al. h) do n.º 2 da condição especial 03 da Portaria 256/2011.

33º - Por sentença de 11 de fevereiro de 2018, a Exma. Sra. Juíza concluiu que que se tratou de um acidente de trabalho.

34º - A douta decisão do Tribunal de Trabalho de ... transitou em julgado no passado dia 25 de julho de 2019.

35º - O A. marcou consulta com a médica de família, e foi visto no dia 20 de novembro.

36º - A referida médica, encaminhou o A. para o serviço de urgência do Centro Hospitalar da..., por falta de condições de tratamento médico.

37º - No dia 4 de dezembro de 2016 – o Autor foi observado pelo ortopedista Dr. EE, na “urgência” do Hospital ...,

38º - Foi retirado o gesso ainda implantado e realizado RX à coluna e RX ao ombro.

39º - E foi solicitada a marcação com carácter urgente de fisioterapia na Santa Casa da Misericórdia de ....

40º - O A. ficou a aguardar pela marcação dos tratamentos de fisioterapia, que, no entanto, apenas se iniciaram no dia 18 de dezembro de 2016.

41º - O Autor ficou afetado com as seguintes sequelas:

- fratura de L2 consolidada com deformação acentuada,

- anquilose subastragalina à esquerda,

- limitação da flexão dorsal do tornozelo esquerdo,

- atrofia da coxa esquerda, e

- edema residual do tornozelo esquerdo.

42º - A consolidação médico-legal ocorreu a 10 de fevereiro de 2017, tendo o Autor permanecido em incapacidade temporária absoluta entre 3 de Outubro de 2015 e 10 de Fevereiro de 2017.

43º - O Autor ficou afetado com uma IPP de 41,4%.

44 - O Dr. DD informou o A. que poderia ser necessário realizar nova cirurgia para reconstruir o pé, dentro de 1 a 2 anos.

45 - O autor foi informado que sessões diárias de fisioterapia seriam para manter até à sua plena recuperação.

46 - Autor sentia que se encontrava devidamente acompanhado por estes médicos, tendo ganho a consciência de que necessitava desse apoio nos próximos meses.

47 - O transporte adequado ao tipo de lesões do Autor seria a ambulância.

48 - O A. viu-se também impossibilitado de cuidar e acompanhar o seu filho menor, que se encontra única e exclusivamente a seu cargo.

49 - Na consulta do dia 29 de outubro de 2015, foi transmitido pelo Dr. DD que por dever deontológico nunca o abandonaria, ainda que a seguradora o fizesse.

50 - O A. encontra-se triste, angustiado e ansioso.

51 - A interrupção no tratamento provocou atraso na reabilitação do Autor.

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635 n.º 4 e 639 nº 1, ex vi, art.º 679º, todos do CPC.

O conhecimento das questões a resolver nas revistas interpostas, delimitado pelos recorrentes importa em saber se no caso de verifica uma situação de abuso de direito que constitua a ré na obrigação de indemnizar o autor e, na afirmativa, se a medida da indemnização fixada na decisão recorrida deve ser alterada.

… …

Quanto ao recurso do autor importa ter presente que o autor, depois de o seu pedido (de 90.000,00 €) ter sido julgado totalmente improcedente na sentença, através de recurso de apelação obteve vencimento em 20.000,00 €. Com o recurso agora interposto pretende que lhe seja concedida a total procedência do pedido que formulou.

Na análise das decisões das instâncias, verifica-se que depois de a sentença ter absolvido a ré na totalidade do pedido, a decisão recorrida, mantendo em grande parte essa improcedência, acabou por melhorar a situação do autor condenando a ré a pagar a quantia de 20.000,00 €. Se a Relação tivesse mantido a improcedência total do pedido haveria dupla conforme impeditiva do recurso de revista, dita normal, no entanto, a circunstância de a total improcedência da sentença ter passado, em resultado da apelação, a ser procedência parcial com o respetivo e correspondente ganho de causa, poderia constituir um impedimento do recurso de revista normal por se verificar uma dupla conforme melhorada, como cabe na previsão do art. 671 nº 3 do CPC.

Aceitando este entendimento, no caso em presença ele não deve ser aplicado uma vez que a dupla conformidade impeditiva do recurso de revista ocorre quando o acórdão da Relação confirme (mesmo parcialmente e nessa parte) sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente a decisão proferida em 1ª instância. Como a decisão recorrida para julgar parcialmente procedente o pedido entendeu estarem verificados os pressupostos do abuso do direito e a sentença julgou inverificados esses mesmos pressupostos, temos de concluir que no caso a fundamentação essencialmente diferente das decisões proferidas permite o recurso do autor para discussão do valor da indemnização sem se poder opor a existência de uma dupla conforme melhorada.

… …

Quanto ao recurso da autora

Nos presentes autos pretende-se efetivar a responsabilidade civil por factos ilícitos, constituindo causa de pedir a violação das regras da boa-fé, do abuso de direito e, também, dos direitos de personalidade do Autor. Tudo isso, na sequência de um acidente de trabalho, em que a Ré como seguradora depois de ter garantido a assistência médica do sinistrado, antes de o tribunal ter realizado a qualificação do acidente como de trabalho, decidiu suspender/interromper a provisão dos tratamentos e assistência, por ter vindo a entender que o sinistro em causa “não se incluía nas garantias do contrato de seguro, nos termos e para os efeitos da al. h) do nº 2 da condição especial 03 da Portaria 256/2011”.

A responsabilidade por acidentes de trabalho, configurada legalmente como objetiva ou pelo risco, prescinde da culpa sem embargo de se prever uma responsabilidade subjetiva nos termos do art. 18 da LAT. A responsabilidade da reparação dos danos derivados de acidente de trabalho, sendo do empregador: art.º 7º nº 1 da Lei n.º 98/2009, de 04/09, dita Lei dos Acidentes de Trabalho (LAT) é obrigatoriamente transferida para uma entidade seguradora (art.º 79º nº 1 da LAT), que iguala, na medida, aquela responsabilidade do empregador. Dizer-se que a reparação dos danos derivados de acidente de trabalho é da responsabilidade do empregador: art.º 7º nº 1 da Lei n.º 98/2009, de 04/09, dita Lei dos Acidentes de Trabalho (LAT) significa que é cometida à Seguradora a obrigação de reparação, ficando subsidiariamente responsável pelas prestações normais e exercendo depois o direito de regresso contra o empregador (art.º 79º nº 3 da LAT). Cf. ainda o art.º 21º da Norma Regulamentar nº 12/99-R, de 30.11.

Na delimitação do âmbito do que seja acidente de trabalho importa ter presente que o legislador por opção de sistema estabeleceu como regra a regra ser considerado acidente de trabalho todo o sinistro que se verifique no local e no tempo de trabalho (art.º 8º LAT) e que qualquer lesão constatada no local e no tempo de trabalho se presume consequência de acidente de trabalho (art.º 10º nº 1 LAT). O resultado desta presunção tem como consequência que perante uma lesão ocorrida no local e no tempo de trabalho se deve ter como princípio a existência de um acidente de trabalho enquanto a presunção não for ilidida - art.º 349º e 350º do CCivil.

Como notado na decisão recorrida, interessa à decisão do caso que o art. 35 da LAT, no concreto do tratamento do acidentado de trabalho deixa esclarecido que “ 1 - No começo do tratamento do sinistrado, o médico assistente emite um boletim de exame, em que descreve as doenças ou lesões que lhe encontrar e a sintomatologia apresentada com descrição pormenorizada das lesões referidas pelo mesmo como resultantes do acidente.

2 - No final do tratamento do sinistrado, quer por este se encontrar curado ou em condições de trabalhar quer por qualquer outro motivo, o médico assistente emite um boletim de alta clínica, em que declare a causa da cessação do tratamento e o grau de incapacidade permanente ou temporária, bem como as razões justificativas das suas conclusões.

3 - Entende-se por alta clínica a situação em que a lesão desapareceu totalmente ou se apresenta como insuscetível de modificação com terapêutica adequada.”. Trata-se de exigir um registo médico discriminativo e pormenorizado das lesões e de, no final dos tratamentos, um boletim de alta clínica com declaração da causa, obviamente clínica, da cessação do tratamento e do estado final do sinistrado em termos de incapacidades.

No caso, os factos provados confirmam que o autor no seu local e tempo de trabalho sofreu um acidente tendo sido assistido pelos serviços de emergência médica e transportado de ambulância para o serviço de urgência do Hospital P..., em ... no dia 2 de outubro de 2015.

Permanecendo aí internado até 7 de outubro de 2015 foi transferido nesta data para o Hospital da ..., no ..., a mando da Ré onde ficou internado, passando a ser seguido pelos serviços clínicos da Ré, designadamente pelos médicos ao seu serviço e onde foi submetido a uma intervenção cirúrgica em 13 de outubro de 2015, consistente no encavilhamento do fémur e osteossíntese com dois parafusos do calcâneo esquerdo. Quanto às lesões na coluna vertebral, os serviços clínicos da Ré optaram por não operar o A. nesse mês de outubro, receitando o uso de um colete, mas não descurando a hipótese de cirurgia, no futuro.

Durante o período de internamento no Hospital da ..., o Autor aceitou e seguiu todas as prescrições e recomendações dos serviços clínicos da Ré, que assumiram, em exclusivo, a responsabilidade pela recuperação do Autor, até que em 22 de outubro de 2015, enquanto decorria esse internamento, o Autor recebeu ordem para se ausentar de imediato do Hospital da ... tendo-lhe sido cedidas duas muletas e transporte de táxi para sua casa a expensas da Ré, o que ocorreu quando o autor se encontrava acamado e sem autonomia para a realização das atividades básicas da sua vida diária, mormente para se alimentar, medicar e realizar a higiene pessoal.

Não obstante ter agido dando a ordem de cessar o tratamento ao autor a ré em 26 de outubro de 2015 autorizou aquele a realizar despesa com terceira pessoa para apoio nas tarefas do quotidiano e no dia 29 de outubro de 2015, tal como agendado, o A. foi observado em consulta de acompanhamento pelo Dr. DD, nos serviços clínicos da Ré Hospital da ...). No dia 12 de novembro, o Autor recebeu uma carta da Ré a declinar a sua responsabilidade relativamente ao acidente de trabalho ocorrido.

É com base nestes factos que o autor reclama indemnização da ré alegando responsabilidade civil (designadamente o abuso de direito e a violação da boa-fé e dos direitos de personalidade), já que a responsabilidade laboral ficou decidida nos competentes processos, onde o acidente foi considerado como de trabalho.

Normativamente o art. 334 do CCivil estabelece como ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Esta norma visa responder aos casos em que a existência de titularidade de um direito colide com o seu exercício em termos que, no plano jurídico-normativo, a tutela da confiança e da legítima consolidação das expectativas das pessoas foi defraudada. A regra de que os sujeitos de relações jurídicas devem subordinar-se à tutela do Direito, adotando os comportamentos instituídos pelas normas aplicáveis, é respaldado pela salvaguarda da advertência de comportamentos que entrem em contradição com outra conduta anteriormente assumida, no que se traduz a expressão venire contra factum proprium que tem abrigo no princípio da tutela da confiança e como concretização da boa-fé que deve existir nessas relações sociais. Este princípio responde e responsabiliza a incoerência de quem adota uma conduta contraditória com outra anterior, fazendo rebater na esfera patrimonial do que foi contraditório a responsabilidade pela “situação de confiança” que criou e que só a ele seja imputável. Em expressão doutrinária de Menezes Cordeiro “[P]erante comportamentos contraditórios, a ordem jurídica não visa a manutenção do status gerado pela primeira atuação, que o Direito não reconheceu, mas antes a proteção da pessoa que teve por boa, com justificação, a atuação em causa.” - “Da Boa Fé no Direito Civil”, pág. 789.

O princípio da confiança surge como uma mediação entre a boa-fé e o caso concreto e exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas. Todavia a tutela da confiança só opera quando se mostrem reunidos especiais os pressupostos de existência de uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;

De uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocar uma crença plausível;

De um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;

De uma imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante: tal pessoa, por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu – vd. Menezes Cordeiro im https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/ artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star.

Explicado o enunciado legal de que ninguém deve sofrer prejuízos causados por uma circunstância ou conduta imputável só à outra parte, no caso em presença observamos que um sinistrado no seu local e tempo de trabalho sofreu um acidente que se traduziu numa queda de um telhado com lesões/fraturas no calcâneo, fémur e coluna. De imediato (no dia 2 de outubro 2015) foi assistido no local pelos serviços de emergência médica que o transportaram para o Hospital público onde permaneceu internado e a ser assistido até ao dia 7 de outubro de 2015. Decorre destes elementos que, em ato contínuo ao acidente o autor deu entrada num hospital público onde recebeu cuidados médicos e onde continuaria a ser assistido caso tal situação não tivesse sido interrompida por determinação da Ré que em 7 de outubro de 2015 transferiu o autor para o Hospital da ..., onde ficou internado e passou a ser seguido pelos serviços clínicos da Ré e médicos a eles afetados. Tal situação de acompanhamento clínico manteve-se até 22 de outubro de 2015, data em que o autor se encontrava ainda acamado e sem autonomia para realizar as atividades básicas da sua vida, tendo recebido ordem para sair de imediato do hospital tendo-lhe sido entregues duas muletas e colocado à disposição um táxi que o levou a casa. E é ainda de registo que no dia 26 de outubro de 2023 a ré autorizou o Autor a realizar despesa com terceira pessoa para apoio nas tarefas do quotidiano; em 29 de outubro 2015 foi observado em consulta de acompanhamento pelo Dr. DD, nos serviços clínicos da Ré (Hospital da ...) e, finalmente, em 12 de novembro de 2015 recebeu uma carta da Ré a declinar a sua responsabilidade relativamente ao acidente de trabalho ocorrido.

Em resumo, o autor que inicialmente tinha sido internado e acompanhado num hospital público foi daí retirado e transportado para o Hospital da ... por determinação da ré e que por sua vez, 15 dias depois, retira essa assistência médica para devolver o autor aos seus próprios meios e cuidados, tendo este voltado a ser acompanhado pelos serviços públicos do SNS (Hospital ...) até consolidação médico legal que ocorreu em 10/02/2017.

Como consequências de toda esta situação a prova revela que o autor se encontra triste, angustiado e ansioso e que a interrupção no tratamento provocou atraso na reabilitação.

Neste texto de ocorrência a questão que se suscita é a de saber se o comportamento da ré ao determinar que o autor fosse acompanhado no Hospital da ... retirando-o dos serviços públicos (em 7 de outubro) para mais tarde o devolver a sua casa e aos serviços públicos (em 22 de outubro) constitui um abuso de direito na modalidade de comportamento contraditório que justifique e imponha o dever de indemnização pelos resultados danosos desta conduta.

Sabemos, como a decisão recorrida o refere, que as expetativas para serem juridicamente relevantes têm de resultar de um comportamento que de um ponto de vista objetivo, possa e deva ser entendido como uma tomada de posição vinculante em relação a uma situação futura. Em expressão doutrinária esta expectativa de direito ou expectativa jurídica é “ a situação juridicamente relevante de tutela de interesses durante o curso de constituição (ou aquisição) de um direito, cuja constituição (ou aquisição) depende de um facto complexo de produção sucessiva. (…)

Deve ter-se bem presente que a expectativa de direito não é uma simples esperança de vir a adquirir um direito, uma spes iuris. É algo mais, (…). De um lado, só existe expectativa jurídica quando se verificou já um dos factos do ciclo complexo de cuja total ocorrência depende a aquisição do direito subjetivo; de outro, concorrendo este requisito, tem de existir alguma forma de tutela jurídica do interesse do futuro e eventual adquirente do direito.» vd. Luís A. Carvalho Fernandes, “Teoria geral do direito civil”, vol. II, 5ª edição, revista e atualizada, Universidade Católica Editora, 2017, pág. 640-641.

Dispensando qualquer sentido de originalidade e remetendo para a decisão recorrida que se apresenta exemplar nessa reflexão, acompanhamos que “a normalidade dos cidadãos, perante uma atitude da Ré em assumir os tratamentos, depois de 5 dias num hospital público, confiará que isso significa assunção da responsabilidade por parte da Ré, sem conceber que essa atitude terá um volte-face ao fim de 15 dias, com interrupção dos tratamentos que lhe eram devidos. A ser assim, as expetativas do Autor (qualquer bónus pater famílias as criaria em tal circunstancialismo) eram legítimas e merecedoras da tutela do direito.”.

Perante a participação da existência de um acidente de trabalho é imposto legalmente à seguradora, para a qual se ache a transferida responsabilidade, assumir as obrigações inerentes às entidades empregadoras e também as suas próprias; de proceder ao tratamento imediato da saúde do sinistrado, não obstante poder estar em dúvida a caracterização do acidente como de trabalho e, como tal, englobado no âmbito da respetiva apólice. Sendo lícito à seguradora vir a declinar a sua responsabilidade quando um quadro circunstancial superveniente o justifique, apesar de, até, já ter pago indemnizações, podendo reaver o despendido – cfr artº 17º da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes, publicada no dia 07/01/2000 no DR II Série – o ponto central da responsabilidade da seguradora pela assistência assenta na presunção de, enquanto não houver decisão sobre a qualificação do sinistro, tem de se configurar como acidente de trabalho aquele que ocorre no tempo e lugar da prestação laboral (art.º 8º e 10º nº 1 LAT) por o nexo de causalidade trabalho-danos estar em desfavor da seguradora da entidade empregadora.

A possibilidade de a seguradora afastar a sua responsabilidade pela prestação de assistência médica, mesmo antes de esta ser decidida em processo laboral, quando lhe cabe dar uma resposta imediata de tratamento impõe um exercício criterioso e casuístico conformado pela boa-fé. E está manifestamente fora desse critério, a ordem avulsa para o autor se ausentar do hospital onde se encontrava acamado e em tratamento a mando da ré, ordem essa não determinada por critérios clínicos nos termos da antes citada disposição do art. 35 da LAT, mas apenas porque a seguradora decidiu que, segundo a sua avaliação, o acidente que sinistrara o réu não era qualificável como de trabalho (se bem que judicialmente tenha vindo posteriormente a ser entendido que o era). E importa ter atenção a que, de acordo com a prova, se no dia 22 de outubro de 2015, o Autor recebeu ordem para se ausentar de imediato do Hospital da ... apenas em 12 de novembro, o Autor recebeu uma carta da Ré a declinar a sua responsabilidade relativamente ao acidente de trabalho ocorrido, o que caracteriza a ordem como abruta, não fundamentada, não explicada e não antecedida (nem poscedida) de qualquer informação.

Independentemente de se questionar se perante uma participação de um acidente relativo a uma pessoa por ela segurada, a seguradora pode ou não declinar, à priori, o tratamento ao sinistrado bem como o pagamento das indemnizações devidas pela incapacidade temporária de que era portador e que se vão vencendo, não cremos que possa ser colocado em causa que o auto afastamento da responsabilidade seguradora tendo por fundamento o não aceitar a qualificação do acidente como de trabalho só pode ter lugar quando, desde logo em face da participação ou através do conhecimento de factos do seu conhecimento a seguradora suspeite não ser o acidente de trabalho e empreenda investigação concluindo no final pela sua não responsabilidade. Todavia, a necessidade de averiguar a concreta realidade do acidente - não declarada na participação porquanto se a participação contém os factos e apenas é uma interpretação normativa dos mesmos que a seguradora realiza, não carece de investigação mas apenas de leitura - para qualificar o acidente como de trabalho deve ser expedita e esclarecedora de forma que, quando conclua não ser sua a responsabilidade, a forma de comunicar deve respeitar os direitos de personalidade do sinistrado, nomeadamente o seu direito à saúde e a garantia de não ser a assistência médica necessária interrompida ou aumentada no seu tempo de duração ou gravidade.

No caso em decisão, os factos consistentes na participação do acidente não foram contrariados pela ré, quer no seu lugar, tempo ou modo, nem tão pouco foi alegado ou provado que a ré tenha aberto investigação aos factos da participação. Era então expetável que um homem médio colocado na posição concreta do autor, se a seguradora na posse da participação e perante a sua descrição tomara a iniciativa de o retirar dos serviços de assistência pública onde se encontrava para o conduzir para os seus serviços privados, tal só poderia gerar a expetativa de que assumia a responsabilidade pelo seu acompanhamento médico até à sua alta clínica.

O protesto de existir um direito da ré a sobrestar na assistência que se encontra a realizar por ter revisto a sua disposição inicial não dispensa uma ponderação tão criteriosa e exigente que permita o corte abruto e a contradição imediata com aquilo que a seguradora aceitou até esse momento. Por absurdo, para que o excesso o explique melhor, uma tal situação permitiria, por exemplo, que alguém em estado de coma num estabelecimento hospitalar fosse enviado para casa com a justificação de a seguradora ter passado a entender, a partir de um determinado momento, que não era de trabalho o acidente que inicialmente aceitara ser. Veja-se que não foi no fim de um ciclo de assistência e quando o autor podia ter alta clínica para regressar a sua casa que a ré determinou cessar o seu acompanhamento por declinar a sua responsabilidade. Mesmo a entender-se que (e dificilmente se pode entender no caso em concreto quando o autor já se encontrava há 5 dias internado num hospital público) que a seguradora ré assumiu a responsabilidade de lhe assegurar os tratamentos e o transferir para outro hospital (privado) por imposição legal não colhe o argumento de que o autor não poderia ter interiorizado a confiança de, perante a assistência dada pela ré esta se responsabilizava pelo ressarcimento de todos os danos resultantes do sinistro. É que a prova não revela que o autor tivesse conhecimento (por lhe ter sido dado pela ré) que por parte da seguradora se encontrasse em curso uma averiguação acerca das circunstâncias do acidente participado ou que a assistência prestada estava condicionada por uma investigação que estivesse a realizar, tendente a concluir se o acidente era ou não de trabalho. Por outro lado, como antes afirmámos, uma eventual averiguação por parte da seguradora de ser ou não de trabalho o acidente participado não autoriza, em termos de exercício do direito, a que a decisão de não assumir essa qualificação produza os seus efeitos de imediato e independentemente do quadro clínico existente, como se a vontade da seguradora funcione como verdadeira potestas sobre a realidade.

Diferentemente de outros casos julgados pelos tribunais, no presente, a ré não tratou da saúde do autor de forma completa ou, pelo menos, não comprometendo o quadro quantitativo ou qualitativo de recuperação, relegando para segundo plano o apurar das circunstâncias em que o mesmo ocorreu, de modo a averiguar se estava, ou não, bem caracterizado pelo participante e se enquadrava dentro da apólice do respetivo contrato. A ré interrompeu um processo clínico de internamento e tratamento e sem que houvesse sido decretada alta clínica, ordenando em 22 de outubro de 2015 que o autor deixasse de imediato o hospital e comunicando apenas em 12 de novembro de 20915 que declinava a sua responsabilidade relativamente ao acidente de trabalho ocorrido. Se no âmbito dos acidentes de trabalho são inúmeras as situações, como a dos presentes autos, em que se discute a existência e caracterização do acidente de trabalho, tal ocorre, no entanto, num exercício regular da boa-fé , após a cessação dos tratamentos aos sinistrados, bem como a concessão de alta, tendo em vista o arbitramento de indemnização quer por ITP, quer por ITA, chegando-se à conclusão, após julgamento, que não é de responsabilizar a seguradora por o sinistro não poder ser caracterizado como acidente de trabalho, não se impondo a obrigação de suportar o pagamento de qualquer indemnização ou a prestação de qualquer tipo assistencial – vd. nessa recensão de julgados o ac.RE de 26-06-2008 no proc. 1330/08-3, num caso em que foi recusada a existência de abuso de direito num caso em que realizados todos os tratamentos pela seguradora durante um período de seis meses , só apos esses tratamentos decorridos a seguradora declinou a qualificação do acidente como de trabalho (o que veio a ter conformação posterior no tribunal).

O modelo de compreensão que acolhemos é aquele que pode encontrar-se na decisão de 12-2-2009 deste Supremo Tribunal no proc. 09A073, citado na decisão recorrida e no qual se entendeu agir em abuso do direito – por trair a confiança incutida – a seguradora que, durante cerca de seis meses, trata um sinistro como se fosse acidente de trabalho e, abruptamente, em fase crucial do estado de saúde do acidentado faz cessar a sua prestação, recusando-lhe assistência médica, por considerar que, afinal, o evento não tinha aquela natureza, sem sequer o ter prevenido de que assim poderia considerar em função do inquérito a que procedera, agravando com tal omissão o estado de saúde do lesado.”

No essencial, esta decisão faz incidir a essencialidade da confirmação do abuso de direito na circunstância de a seguradora durante um determinado período de tempo ter tratado o acidente como acidente de trabalho; ter interrompido abruptamente a sua prestação recusando assistência médica necessária; não ter prevenido o sinistrado de que embora estivesse a prestar assistência poderia vir a considerar que não teria de responder pelos danos por se encontrar a averiguar a qualificação do acidente. E estes mesmos elementos encontram-se presentes no caso em decisão com o acréscimo de, quando a ré decide retirar o autor dos serviços públicos para assumir a sua assistência em hospital privado, já haviam passado 5 dias após o acidente e do internamento no hospital público, o que duplica de contraditório a atuação da ré. Ainda que a participação lhe tenha chegado ao conhecimento apenas no dia 6 de outubro, perante a realidade em presença e a clareza da participação que dispensava investigação para assumir ou declinar a qualificação do acidente como de trabalho, em vez de aguardar algum (pouco tempo) tempo que reputasse necessário para se pronunciar sobre essa qualificação (o sinistrado autor estava já a receber tratamento), a autora toma a iniciativa de supervisionar os tratamentos com uma transferência hospitalar para mais tarde, de forma abruta e avulsa, sem qualquer informação sobre a razão da sua decisão, devolver o autor à sua casa. Como se diz na decisão recorrida com inteira propriedade e também já antes enunciado nesta decisão “na verdade, a Ré nunca pôs em causa que o sinistro que vitimou o Autor tenha ocorrido no local e no tempo de trabalho. Assim sendo, por força da presunção, enquanto não houvesse decisão sobre a qualificação do sinistro, tinha de contar estar perante um acidente de trabalho (art.º 8º e 10º nº 1 LAT) pois o nexo de causalidade trabalho-danos estava a seu desfavor.”

Em rigor, a semelhança da situação presente com a do acórdão deste STJ antes referido não é afetada por num caso o tratamento se encontrar em curso há seis meses e no outro há apenas 15 dias, ou num se ter provado que o comportamento da seguradora tenha agravado o estado de saúde do sinistrado e no caso em decisão que o tempo de recuperação tenha provocado atraso na reabilitação do Autor. Ter o estado de saúde sofrido agravação ou tendo a recuperação passado a ser mais demorada por causa da conduta da autora, em ambas as situações, existe um prejuízo que foi sofrido pelo autor e a seguradora deve indemnizar no contexto de responsabilidade civil com fundamento na sua conduta abusiva do direito.

A decisão recorrida entendeu igualmente que para lá do abuso de direito se verificava a violação dos direitos de personalidade do Autor prevista no art. 70 do CCivil que no seu nº1 estabelece que a lei protege os indivíduos contra qualquer conduta ilícita ou ameaça de ofensa á sua personalidade física ou moral. As ofensas aos direitos de personalidade inserem-se no âmbito da responsabilidade aquiliana, não reportando ao incumprimento de obrigações, mas sim à violação de direitos subjetivos, ainda que residualmente exista a possibilidade da responsabilidade civil por violação de direitos de personalidade ser contratual como ocorre no âmbito das relações laborais – vd. os arts. 15 e ss do C.Trabalho prevendo, no âmbito de relações contratuais, diversas obrigações impostas às partes e relacionadas com os direitos personalidade, quer relativamente ao empregador, quer relativamente ao trabalhador.

Consagrando o nosso ordenamento jurídico alargada tutela da personalidade humana e sendo uma destas dimensões a saúde, porque a verificação da violação dos direitos de personalidade remete para a responsabilidade civil (no caso extracontratual) no caso a prova não certifica uma ofensa praticada pela ré. É verdade, como o deixámos apreciado, que a decisão da seguradora ao ter decidido que não assegurava mais a assistência médica do autor inscreveu um abuso de direito, mas esse abuso não tipifica de forma direta (e é essa que importa averiguar) uma ofensa aos direitos de personalidade do autor , nomeadamente ao seu direito à saúde. Efetivamente a ordem de deixar o hospital e a colocação de um táxi à disposição não causou lesão na integridade física do réu, mas sim na sua esfera não patrimonial com tristeza, angústia e incómodos e transtornos. Como a decisão recorrida reconhece quando aborda o dano biológico, não se fazendo prova de que a conduta da ré tenha agravado ou estado de saúde do autor ou, dizemos nós, criado alguma lesão nova, não se encontra preenchido, quer o requisito da ilicitude quer o dos danos.

Protesta a recorrente que mesmo a ser decidida a sua responsabilidade a ação deve improceder por os danos que se dizem sofridos pelo autor não serem suscetíveis de reparação, como meros transtornos e incómodos. Neste particular, tendo ficado provado que autor se encontra triste, angustiado e ansioso com o que lhe ocorreu, esta expressão é explicada quando a matéria provada esclarece que essa tristeza, angústia e ansiedade reporta á circunstância de o autor ter sido abalado e sobressaltado pela imposição de ter de sair do hospital onde de se encontrava acamado, sem que o fundamento tivesse sido o de a sua situação médica permitir já a sua alta clínica, mas simplesmente o de ter de ir embora, tendo apenas mais tarde recebido a comunicação de que a ordem de saída do hospital, mais de 15 dias antes, afinal, tinha por fundamento na decisão da ré de não validar o acidente como de trabalho.

Como se pode concluir no caso, a tristeza, ansiedade e angústia fixada como provada não é apenas uma expressão desprovida de significado e consequências uteis, contendo os factos provados, na sua globalidade, a real densidade da mesma e a relevância e extensão dos danos em termos não patrimoniais.

Quanto ao valor indemnizatório fixado, a recorrente defende (subsidiariamente) que o mesmo não deve ser o fixado (em 20.000,00€) mas sim o de 5.000,00 €.

No âmbito dos danos não patrimoniais, o que está em causa são os sofridos pelo autor e decorrentes do abuso de direito praticado pela ré com a frustração da expetativa daquele em ter uma recuperação/consolidação das lesões mais rápida e ter tido de suportar prejuízos referentes à tristeza, transtorno, incómodos e preocupações que a conduta da seguradora causou ao interromper os tratamentos a que estava a ser sujeito e ao enviá-lo para casa de forma abruta, sem explicação/alta clínica ou possibilidade prévia de se poder preparar para a alteração. Configurando os danos morais aqueles que não atingindo o património material do lesado, reportam ao seu bem-estar psíquico e equilíbrio (como as dores físicas, os desgostos, morais, os vexames, os transtornos e incómodos) a compensação a arbitrar em indemnização visa através da atribuição de um valor reparar em termos de justiça equitativa os sofrimentos e incómodos sofridos, reprovando a conduta do agente. Na contabilização intervém a gravidade do dano, o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias, tudo numa ponderação de acordo com as regras do senso prático, da justa medida das coisas, em criteriosa ponderação das realidades da vida: arts. 495º, 496º, nº 3 e 497º, todos do CCivil.

Como se refere na decisão recorrida, a conduta de ordenar o regresso do autor a sua casa interrompeu os tratamentos e teve como consequência maior atraso na reabilitação do Autor; esse atraso contribuiu para o sofrimento do Autor (o atraso nas sessões de fisioterapia, tornam as sessões seguintes mais dolorosas) e um período de convalescença e dores mais prolongado; as dores e transtornos da viagem de táxi de regresso a casa; a interrupção aconteceu quando o Autor se encontrava acamado e sem autonomia para a realização das atividades básicas da sua vida diária, mormente para se alimentar, medicar e realizar a higiene pessoal; o maior lapso de tempo que esteve impossibilitado de cuidar e acompanhar o seu filho menor, a frustração das suas legítimas expetativas. No que toca a estes danos, concorda-se que a interrupção dos tratamentos constituiu a sua causa adequada, fazendo a Ré incorrer na respetiva indemnização. Nestes casos, a indemnização apurar-se-á por recurso à equidade, nos termos do art.º 496º nº 3 (ex vi do art.º 499º) e 566º nº 3 do CC: “se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”. Na procura duma aplicação mais ou menos uniforme do direito (art.º 8º nº 3 do CC), e como forma de reduzir a margem subjetividade do julgador há que atender à jurisprudência.

Assim, concordando com os pressupostos da indemnização, julgamos que os factos que os inscrevem apenas admitem fixá-la no valor de 10.00,00 €. Perante o sobressalto de ser atingido por uma ordem inesperada de sair do hospital sem que tivesse tido possibilidade de se preparar minimamente para essa alteração; os transtornos objetivos de a própria deslocação para casa se ter realizado sem o adequado de uma ambulância, mas sim num táxi, ou a circunstância de a sua recuperação ter demorado mais tempo, a verdade é que não foi apurado quanto mais tempo em concreto durou essa recuperação e se houve ou não acréscimo de dores nesse tempo. Deste modo, o núcleo essencial da matéria que serve a fixação da indemnização incide nos resultados imediatos da ordem de sair do hospital, com a surpresa que gerou, perplexidades e preocupações de organização futura, dificuldades logísticas, físicas e anímicas de saída do hospital e regresso a casa com as respetivas dores e limitações e, também, a evidência não quantificada de a recuperação ter demorado mais tempo. Porque em causa se encontram apenas os danos não patrimoniais provocados pela ré seguradora com a sua conduta de ordenar o regresso a casa do autor, em critério equitativo que contemple a duração temporal e a gravidade, relevância e intensidade dos prejuízos, entendemos como adequada e justa a indemnização de 10.000,00 € (dez mil euros).

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Quanto ao recurso do autor, porque o mesmo incide sobre o valor da indemnização e nessa parte a sua finalidade coincide, com pretensões diversas é certo, com o recurso interposto pela ré, damos por aqui reproduzido tudo o que antes se escreveu no que se refere à fixação da indemnização por danos morais.

Quanto ao pedido de indemnização por dano biológico não sofre qualquer censura a decisão recorrida, quer em si mesma quer na sua fundamentação, sendo inteiramente correto afirmar-se que a autonomia do dano biológico assenta nas repercussões que o acidente/facto ilícito implica nas diversas funções/aptidões da vítima tendo várias manifestações e sendo a capacidade laboral uma das mais relevantes. Porque uma incapacidade implica um défice funcional e este uma evidência de que o que se fazia antes deixou de poder ser realizado ou passou a sê-lo com mais esforço e sacrifício, impõe-se como elementar que o direito à indemnização a fixar respeite o nexo de causalidade entre a conduta e os danos que se tenha provado.

Verificamos que o autor fundou o seu pedido de indemnização na circunstância de as sequelas do sinistro se terem agravaram por causa da interrupção dos tratamentos, mas esse nexo de causalidade não se provou. Como em respeito pelos factos provados conclui a decisão recorrida, a conduta da ré em ordenar a saída do autor do hospital não provocou qualquer “agravamento na consolidação/evolução das lesões”; a interrupção influiu apenas com um “atraso na recuperação/reabilitação”. O défice funcional de que o Autor ficou a padecer foi causado pelo sinistro que o vitimou e já foi avaliado segundo as regras do direito do trabalho. Em termos de direito civil, a Ré está apenas acionada pelos danos decorrentes da interrupção dos tratamentos e nesses não se conta qualquer agravamento das lesões, agravamento que tivesse tido causa, não no acidente, mas sim na conduta da ré, razão pela qual não pode proceder qualquer indemnização por dano biológico.

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Síntese conclusiva

- Constitui abuso de direito na configuração de comportamento contraditório, a conduta da seguradora que que depois de ter determinado o acompanhamento médico/internamento do trabalhador sinistrado em instituição hospitalar privada, transferindo-o do hospital público onde se encontrava, 15 dias mais tarde ordena que o trabalhador deixe de imediato o hospital por entender que o acidente sofrido não estava coberto pelo seguro.

- Os danos que são da responsabilidade da seguradora em razão desse seu comportamento abusivo são aqueles a que essa conduta tenha dado causa e não os do acidente sofrido e que o tribunal competente em ação própria veio a fixar, considerando ser o acidente de trabalho e responsável a seguradora.

- Tendo o lesado sofrido com a ordem de abandonar o hospital atraso na sua recuperação, que não foi quantificado e ainda choque, perplexidades e preocupações de organização futura, dificuldades logísticas, físicas e anímicas de saída do hospital e regresso a casa com as respetivas dores e limitações, em juízo de equidade é adequado fixar em 10.000,00 € a indemnização por danos não patrimoniais.

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Decisão

Pelo exposto acordam os juízes que compõem este Tribunal em

- Julgar parcialmente procedente o recurso da Ré e, em consequência, revogando a decisão recorrida, fixar a indemnização devida ao autor por danos não patrimoniais em 10.000,00 € (dez mil euros) acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos desde a data desta decisão até integral pagamento.

- Julgar improcedente o recurso autor.

Custas pela recorrente Ré e pelo recorrente Autor na proporção do respetivo decaimento.


Lisboa, 12 de outubro de 2023


Relator: Cons. Manuel Capelo

1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Sousa Lameira

2º adjunto: Srª. Juíza Conselheira Fátima Gomes