Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
21095/20.5T8LSB.L1-A.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: RECLAMAÇÃO
VALOR DA CAUSA
COLIGAÇÃO ATIVA
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Sumário :

I- Nas situações de coligação ativa em que há cumulação de ações conexas que poderiam ter sido propostas individualmente por cada um dos trabalhadores, para efeito de aferição de alçada de recurso o que conta é o valor de cada uma das ações, caso tivessem sido intentadas separadamente.

II- A coligação ativa voluntária não pode atribuir às partes mais possibilidades de recurso do que aquelas de que as mesmas beneficiariam se as ações tivessem sido interpostas separadamente, uma vez que as referidas ações conservam a sua autonomia e não se vê em que medida é que tal seja inconstitucional ou viole o princípio da confiança, tanto mais que tal tem sido o entendimento reiterado da jurisprudência.

III- Uma vez fixado o valor global da causa, e tendo este transitado em julgado, não pode o mesmo ser alterado por este Supremo Tribunal de Justiça.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 21095/20.5T8LSB.L1-A.S1


Acordam em Conferência na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,


Transportes Aéreos Portugueses, S.A., Ré nos presentes autos em que são Autores AA, BB, CC e DD, veio reclamar para a Conferência da decisão singular do Relator neste Supremo Tribunal de Justiça proferida a 13-07-2023 que não admitiu o recurso de revista por si interposto, reclamação ao abrigo dos artigos 643.º, n.º 4, e 652.º, n.º 3 do Código do Processo Civil, aplicáveis ex vi art.º 1.º, n.º 2.º, al. a) do Código de Processo do Trabalho.


Na referida decisão, objeto da presente Reclamação, fundamentou-se a decisão de não admissão do recurso e confirmou-se o despacho do Exmo. Relator no Tribunal da Relação porquanto embora o valor da ação tenha sido fixado pela sentença em € 78.856,14, trata-se de uma coligação ativa em que “o valor da causa a atender para efeitos de alçada é o de cada uma das ações coligadas e não a soma do valor de todas elas” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/07/2022, proferido no processo n.0 130/19.5T8BRR.L1.SI, Relator Conselheiro Ramalho Pinto). Acrescentou-se, ainda, que o Supremo Tribunal de Justiça “não tem competência para alterar o valor da causa, mormente para efeitos de alçada, valendo para efeitos gerais, incluindo os da admissibilidade do recurso, o valor definitivamente fixado pela l.a instância" (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/04/2022, proferido no processo n.0 22702/19.8T8LSB.L1.S1, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado). E também se negou a aplicabilidade aos salários de tramitação do artigo 300.º, n.º 2 do CPC, questão sobre a qual também já se pronunciou esta Secção, invocando, a respeito, o Acórdão de 25.09.2014, proferido no processo n.º 3648/09.4TTLSB.L1.S1 (Relator Conselheiro Melo Lima): "(. . .) nas ações, como a presente, em que, como acessório ao pedido principal - consistente no pedido de declaração de ilicitude do despedimento - se peticionam rendimentos já vencidos e vincendos, não tem lugar a aplicação do disposto no reclamado artigo 309.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, atual artigo 300.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, antes são aplicáveis as regras gerais constantes do 306.º, e que, na sua essência, correspondem ao atual artigo 297.º, números 1 e 2".


Inconformada a Recorrente vem reclamar para a Conferência com os seguintes argumentos:


Em primeiro lugar, “o (único!) valor da causa fixado pelo Tribunal nos autos” é de € 78.856,14 (n.º 7 da Reclamação) e esse valor teria transitado em julgado (n.º 12). Acresce que o valor de € 78.856,14 foi objeto de atualização na sentença (n.º 10 da Reclamação) “sem que qualquer referência circunstanciada tenha sido feita aos valores individuais concretamente fixados a cada ação coligada (n.º 11 da Reclamação).


Como não houve essa discriminação dos valores individuais das ações coligadas, a Reclamante considera que a não admissão do seu recurso viola a segurança jurídica (n.º 20 da Reclamação: “grave e insustentável obliteração da segurança jurídica”) e a sua convicção que adjetiva de convicção “natural e expectável” (n.º 20 da Reclamação) e legitimamente constituída ( n.º 22 da Reclamação) de que disporia de um terceiro grau de jurisdição.


Sustenta, ainda, que tal resultaria em uma violação do contraditório e do seu direito de defesa, já que “só agora, em sede recursória, [veio] a levantar-se a questão do valor individual das ações coligadas”. (n.º 21 da Reclamação).


Acresce que, em todo o caso, e em seu entender, “a utilidade económica dos pedidos formulados pelos Autores não se encontra minimamente refletida nos valores que os mesmos individualmente lhes atribuíram” (n.º 24 da Reclamação), porquanto não teriam sido adequadamente atendidos interesses imateriais já que haveria “vantagens imateriais correspondentes à requalificação da relação laboral e às implicações financeiras e económicas daí decorrentes” (n.º 26 da Reclamação). Defende, por conseguinte, que se deveria aplicar aqui o disposto no artigo 49.º n.º 2 do CPT ou o disposto no artigo 303.º n.º 1 do CPC.


Invoca, ainda, que o valor da reintegração, para efeitos do cálculo do valor da ação, deveria ser equivalente ao da indemnização substitutiva da reintegração.


Cumpre apreciar.


No nosso sistema legal existem alçadas, as quais não foram até ao presente momento declaradas inconstitucionais, designadamente pelo Tribunal Constitucional.


Em conformidade, a possibilidade de interposição de um recurso, no caso vertente, o de revista, depende, em regra, do valor da causa e da sucumbência do recorrente, O Tribunal Constitucional tem decidido, a respeito, que a nossa Constituição não garante em todos os casos a existência de um recurso e nem tão-pouco a existência de um duplo grau de recurso.


Em um sistema legal como o nosso não pode, assim, permitir-se que as partes contornem a existência de alçadas através da interposição em coligação ativa de ações que poderiam ter sido interpostas separadamente, obtendo, assim, a possibilidade de um recurso que não existiria se as referidas ações tivessem sido efetivamente interpostas em separado. Assim, “nas situações de coligação ativa em que há cumulação de ações conexas que poderiam ter sido propostas individualmente por cada um dos trabalhadores, para efeito de aferição de alçada de recurso o que conta é o valor de cada uma das ações, caso tivessem sido intentadas separadamente”, como se pode ler no Acórdão desta Secção proferido a 13-10-2021 no processo n.º 12122/19.0T8LSB.L1.S1 (Chambel Mourisco). A coligação ativa prevista no artigo 36.º do CPC supõe, por conseguinte, uma cumulação de várias ações conexas, que mantêm a sua autonomia mormente para efeitos do respetivo valor.


Essa tem sido, por conseguinte, a jurisprudência reiterada dos tribunais superiores portugueses, pelo que não se vislumbra qual a expetativa legítima a que alude a Recorrente de que tal regra não lhe seria aplicada. Como, aliás, se afirmou no Acórdão proferido a 07-07-2023 no âmbito do processo n.º 4267/21.2T8MAI.P1-A.S1 (Júlio Gomes), “a coligação ativa voluntária não pode atribuir às partes mais possibilidades de recurso do que aquelas de que as mesmas beneficiariam se as ações tivessem sido interpostas separadamente, tanto mais que as referidas ações conservam a sua autonomia e não se vê em que medida é que tal seja inconstitucional ou viole o princípio da confiança, tanto mais que tal tem sido o entendimento reiterado da jurisprudência”. Refira-se, ainda, que não há qualquer violação dos direitos de defesa ou do princípio do contraditório – o qual, de resto, é observado com a possibilidade a que a Recorrente lançou mão de reclamação do despacho de não admissão do recurso para a Conferência.


Este Tribunal teve também já ocasião de afirmar que “numa situação de coligação voluntária ativa, fixado ao conjunto das ações um valor global, sem respeito pela individualidade do litígio de cada um dos Autores, releva como valor processual de cada ação, para aferição da recorribilidade da decisão proferida, o valor dos pedidos formulados por cada um dos Autores” (Acórdão de 14-10-2020, processo n.º 2131/18.6T8PDL.L1.S1 (Leones Dantas)). Mas no caso presente e como bem destacou o despacho que não admitiu o recurso de revista no Tribunal da Relação é possível verificar como o valor global teve em conta os pedidos de cada um dos Autores. Assim, e como pode ler-se nesse despacho:

"Todos os Autores pediram valores a título de diferenças salariais verificadas em virtude da sua errada integração na categoria de CAB 0, ao invés de CAB I a contar da data do início do seus contratos de trabalho, bem como diferença salariais devidas a título de ajudas de custo complementar, que deixaram de usufruir pela sua errada integração nas categorias de CAB inicio e CAB 0, ao invés da categoria de CAB 1 a contar da data do início do seus contratos de trabalho e até ao fim da relação laboral.

Assim, a esses títulos e respetivamente (fl.s 27verso e 28):

• O Autor AA pediu €8.196,47 e €10.400,838.

• O Autor BB pediu, €8.196,47 e €8.196,47.

• A Autora CC pediu €7.824,74 e €6.824,26, bem como €1.20,10, a título de diferença relativa à garantia mínima.

• O Autor DD pediu € 4.237,14 e €5.714,29.

Peticionaram também cada um dos Autores €2.000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais e ainda as retribuições que deixaram de auferir desde o despedimento e a ajuda de custo complementar, até ao trânsito em julgado da decisão".

O valor inicialmente fixado no despacho saneador foi corrigido na sentença como permitem os artigos 299.º n.º 4 e 306.º n.º 2 do CPC nos seguintes termos:

“O valor fixado em sede de despacho saneador teve em consideração as quantias líquidas pedidas pelos AA. a título de diferenças salariais. Nenhum valor foi dado aos pedidos de declaração de nulidade do termo e de declaração da ilicitude do despedimento e reintegração dos AA. Assim, não sendo estes pedidos suscetíveis de uma avaliação pecuniária, fixo o seu valor em 2.000,00, nos termos do art. 12.º, do RCP, para cada um dos pedidos (pois quatro são os AA., quatro são os contratos com termo inválido e quatro são os despedimentos ilícitos.) Pelo exposto, àquele valor de 70.856,14 €, acrescem 8.000,00 €, pelo que o valor da ação será atualizado para 78.856,14 €, nos termos do disposto no art. 306.º, do CPC”.

Destarte, pode afirmar-se com segurança que nenhum dos pedidos formulados pelos diferentes Autores ultrapassou, individualmente considerado, os trinta mil euros que representam o valor da alçada.

Concorda-se, aliás, com a asserção feita na Reclamação de que existe caso julgado quanto ao valor global da causa. Sublinhe-se, de resto, que o recurso de revista cuja admissibilidade agora se discute não suscita a questão do valor, não podendo a Reclamação substituir-se ao recurso.

E por isso mesmo não há que discutir se o Tribunal de 1.ª instância cometeu um erro de julgamento ao atribuir o valor de dois mil euros a cada um dos pedidos de reintegração dos Autores.

É jurisprudência pacífica desta Secção que “as retribuições vincendas pedidas numa ação de impugnação de despedimento não têm qualquer influência na fixação do valor da causa que deve ser determinado atendendo aos interesses já vencidos no momento em que a ação é proposta” (Acórdão de 13-01-2021, processo n.º 1833/17.4T8LRA.C1.S1 (José Feteira)) e que “os interesses imateriais que possam estar associados aos litígios de trabalho não têm expressão no valor das ações, não sendo aplicável no âmbito do Código de Processo de Trabalho, a norma do artigo 303.º, n.º 1 do Código de Processo Civil” (Acórdão de 13-10-2021, processo n.º 12122/19.0T8LSB.L1.S1 (Chambel Mourisco)). Mas, como já se referiu, existe caso julgado quanto à questão do valor global da ação, não se podendo agora questionar este indiretamente, pondo em causa as suas componentes.

Decisão: Acorda-se em indeferir a presente reclamação.

Custas pelo Reclamante.

Lisboa, 11 de outubro de 2023

Júlio Gomes (Relator)

Mário Belo Morgado

Ramalho Pinto