Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1751/15.0T8CTB.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANOS REFLEXOS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PROGENITOR
VÍTIMA
MENOR
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
DANO BIOLÓGICO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
JUROS DE MORA
CONTAGEM DOS PRAZOS
Data do Acordão: 04/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA DOS AA E NEGADA A REVISTA DA R
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Face à orientação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.° 6/2014, é de entender, por maioria de razão (ou, no limite, por igualdade de razão), que gozam do direito a indemnização por danos não patrimoniais os pais de uma criança sobrevivente atingida de modo particularmente grave, que sofre danos não patrimoniais particularmente graves.

II. Havendo condenação em indemnização a apurar em liquidação, os juros de mora contam-se desde a citação na acção declarativa, quando peticionados, e não da sentença condenatória ou da citação na acção de liquidação.

III. Na fixação da indemnização por dano biológico em que se toma em consideração o défice funcional e a sua repercussão na actividade profissional futura está a atender-se ao dano patrimonial, mesmo que o dano biológico possa gerar dano não patrimonial.

IV. Quando o tribunal a quo fixa um valor indemnizatório com recurso à equidade o STJ não deve alterar o valor fixado senão em caso de não utilização dos critérios habituais da jurisprudência para a fixação deste tipo de danos ou de manifesta desrazoabilidade

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório


1. AA, solteira, menor, representada pelos seus pais, BB e CC, e BB e mulher CC, por si próprios, residentes em .............., propuseram acção declarativa contra, Lusitânia Companhia de Seguros, SA, com sede em Lisboa, pedindo a sua condenação no pagamento de:

- a quantia de 83.911,22 €, a título de danos morais e patrimoniais, quantificados até à presente data, e os que se vierem a apurar, após a realização do exame médico pericial a reclamar em sede de ampliação de pedido;

- condená-la a pagar os danos que se vierem a fixar a liquidar em execução de sentença, ainda, não apurados, tais como tratamentos médicos, medicamentosos, agravamento das sequelas, entre outras;

- pagar todas as despesas e tratamentos necessários derivados de, eventuais, sequelas do acidente, bem como indexar-se o pedido segundo as taxas de inflação;

- condenada a liquidar, em execução de sentença todos os danos morais e patrimoniais que se venham a apurar e que estejam alegados ou não, tais como intervenção de cirurgia plástica para eliminar as cicatrizes da 1ª A.

- todos os montantes acrescidos de juros, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento.

- condenar a R. a pagar aos 2º e 3 AA, pais da menor, a quantia de 40. 000€, a título de danos morais, quantia acrescida de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Alegaram, em apertada síntese, a ocorrência de um acidente de viação de que foi vítima a AA, por atropelamento, causado por inteira responsabilidade de terceiro, segurado na R.

 A AA, em consequência do mesmo sofreu diversas lesões bem como sequelas permanentes e danos físicos, patrimoniais e não patrimoniais. Os pais da AA, 2º e 3º AA, vieram a sofrer, e sofrem, directa e reflexamente graves danos quer de natureza patrimonial quer não patrimoniais.


2. A ré contestou, alegando, em suma, que aceitou a responsabilidade na produção do acidente, mas não aceita todos os danos alegados pelos AA, os quais impugna e considera exagerados.

Mais requereu a intervenção do seu segurado, o que foi admitido.


3. O chamado apresentou articulado, impugnando a dinâmica do acidente descrita pelos AA.


4. Entretanto os AA requereram a ampliação do pedido, no que se reporta ao seu 1º parágrafo, para 583.911,22 €, o qual foi admitido.


5. A final foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, consequentemente, decidiu:

a) Condenar a R. a pagar à AA a quantia de 11.386,22 €, a título de danos patrimoniais, que vence juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento;

b) Condenar a R. a pagar à AA a quantia 60.000 €, a título de danos não patrimoniais, a qual vence juros, à taxa legal, desde a notificação da presente sentença até efectivo e integral pagamento;

c) Condenar R. a pagar à AA a quantia de 120.000 €, a título de danos patrimoniais futuros decorrentes da repercussão do acidente na perda de capacidade de ganho, a qual vence juros, à taxa legal, desde a notificação da presente sentença até efectivo e integral pagamento;

d) Condenar a R. a pagar à AA os encargos e despesas com tratamentos e/ou intervenções cirúrgicas que venham a ser necessárias para a sua total recuperação.

e) Condenar a R. a pagar aos pais da menor, BB e mulher CC, a quantia de 20.000 €, a título de danos não patrimoniais, a qual vence juros, à taxa legal, desde a notificação da presente sentença até efectivo e integral pagamento.

f) Absolver a R. do demais peticionado.


6. Os AA e a R. recorreram e o recurso foi conhecido, culminando com a seguinte decisão:

“Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso da R. e o dos AA, assim se revogando, parcialmente, a decisão recorrida, e, em consequência

- a a) do segmento decisório vai modificada, passando a condenação da R. para o valor de 9.338,33 €;

- a c) do segmento decisório vai modificada, passando a condenação da R. para a quantia de 150.000 €;

- absolve-se a R. relativamente ao decidido na e) do segmento decisório;

- no demais se mantendo o sentenciado.”


7. Inconformados recorreram de revista:

- os AA. BB e CC, recurso admitido;

-  a Lusitânia, recurso admitido e

- a A. AA, recurso não admitido.


8. Nas conclusões do recurso de BB e CC diz-se (transcrição, com eliminação das reportadas ao recurso da AA, não admitido):

(…) 4ª Veio o tribunal “a quo” revogar a douta decisão de 1ª instância que havia condenado a R. a pagar aos pais uma quantia de 20.000€ a título de danos morais, absolvendo a R.

O tribunal “a quo” fundamentou a sua decisão após a análise do AUJ nº 06/2014 do STJ de 09/01/2014.

Considera que o caso em apreço é claramente distinto do analisado no sábio acórdão de fixação de jurisprudência referido, uma vez que no caso dos autos os reclamantes da indemnização são os pais da menor sobrevivente de acidente de viação, ao passo que no AUJ a reclamante de indemnização é a esposa de um acidentado. Pelo que, se consideram que não está o tribunal vinculado a este AUJ.

5ª Os pais enquanto titulares do poder paternal têm não só o dever de garantir a segurança e a saúde do filho como, também o direito de ver crescer e desenvolver-se em saúde, por força do nº 1 do artigo 68.o da Constituição da República Portuguesa.

Assim, é com base neste direito absoluto, “a maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes”, que ao ser violado, dando origem a danos pessoais para o filho, pode implicar, ao abrigo do artigo 496º, nº 1 do CC, indemnização por danos não patrimoniais, dos pais da vítima, sem haver necessidade de recurso ao argumento de analogia defendido pelo tribunal da 1ª instância.

6ª A manter-se o entendimento do tribunal “a quo”, estar-se-ia a violar o preceituado na nossa lei fundamental no art.68º, nº 1 da CRP;

7ª Consideram os recorrentes que para além dos factos provados elencados pelo tribunal de 1ª instância que valorou e arbitrou a indemnização devida aos pais da menor, devem também ser tidos em consideração os factos constantes nº 15, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 29, 30, 32 dos factos provados

Assim, face ao exposto, parece aos recorrentes adequado o montante de 35.000 euros a fixar em sede de danos não patrimoniais sofridos pelos progenitores da AA.

Verificando-se no caso em apreço uma elevada gravidade dupla, ou seja, quanto às lesões da vítima sobrevivente e quanto ao sofrimento dos pais.

8ª Assim, mesmo que V.Exas considerem que os requisitos do AUJ são de aplicar ao caso concreto, terá de se concluir que a menor foi atingida de modo particularmente grave e ser vista como “boa aluna”, tendo, nesta data, o seu futuro comprometido no ensino secundário e superior (cf. 38 a 43 dos factos provados e documento vídeo)

A gravidade das lesões não pode ser só apreciada do ponto de vista físico, sendo cada vez mais relevante o ponto de vista psíquico.

Por outro lado, o sofrimento dos pais após o acidente e na actualidade é inqualificável, não tendo nem valor nem, expressão qualquer indemnização que lhes seja arbitrada. Na verdade, o que os pais pretendiam é que nunca tivesse ocorrido o acidente, numa passadeira, por um indivíduo alcoolizado, que naquele fatídico dia lhes podia ter levado permanentemente a sua “menina”

Nestes termos requerem a V.Exªs se dignem considerar procedente o presente recurso, e em consequência, revogar-se o douto acórdão recorrido, (…); condenar a R, quanto à al E da sentença, a pagar aos pais da menor a quantia de 35.000,00€ a título de danos não patrimoniais.


7.  Nas conclusões do recurso da Lusitânia diz-se (transcrição, com eliminação das conclusões relativas à revista excepcional):

“( …) 7 - O presente recurso vem do Acórdão proferido nos Autos que alterou parcialmente a Decisão proferida em 1ª Instância, julgando parcialmente procedente o Recurso interposto pela Ré/Apelante Lusitania Companhia de Seguros, S.A. e, em consequência, condenou a Recorrente a pagar à Recorrida a quantia de 150.000,00 € a título de Dano Patrimonial Futuro, acrescida do pagamento dos encargos e despesas com tratamentos e / ou intervenções cirúrgicas que venham a ser necessárias para a sua total recuperação.

8 - Houve erro de interpretação e de aplicação dos arts. 562º, 563º, 564º e 566º do Cód. Civil.

9 - Houve erro de interpretação e de aplicação dos arts. 496º e 494º do Cód. Civil;

10 - Há que questionar a autonomização entre “Dano Biológico” e “Danos Não Patrimoniais” porque, nos casos como o dos Autos, em função da idade da sinistrada, da inexistência de perdas salariais e da possibilidade de continuar os estudos e a normal escolaridade, a dupla indemnização nestas diferentes categorias leva à duplicação de pagamentos pelas mesmas razões.

11 - Nos factos considerados assentes com os números 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56 e 57, são enumerados factos que não relevam para apurar danos patrimoniais futuros porque só poderão servir para moldar eventuais danos não patrimoniais.

12 - A indemnização a título de Danos Não Patrimoniais, incluiu a indemnização por eventual perda de capacidade de ganho. Nem sempre o Dano Biológico é ressarcível isoladamente, porque importa enquadrar nas categorias normativas do dano patrimonial ou não patrimonial.

13 - No caso concreto, os Peritos Médicos do INML salientaram que não existem elementos que permitam afirmar que a situação clínica da sinistrada tenderá para o agravamento; as sequelas não afectam a menor Recorrida em termos de autonomia e independência, embora confiram limitação em termos funcionais.

14 - Não foi quantificado Dano Futuro.

15 - Na data dos factos, a sinistrada era estudante e, como é óbvio, não exercia qualquer actividade profissional remunerada. Impugna a Recorrente a indicada esperança média de vida de 84 anos, bem como o inaudito e irreal salário de 911,50 €, porque, além da idade legal da reforma (66 anos), o critério que a Decisão recorrida devia ter usado era o critério do valor da remuneração mínima mensal garantida para 2013, no montante de 485,00 .

16 - O Acórdão a quo nem sequer atendeu à necessidade futura de pagar impostos decorrentes dos rendimentos que irá auferir. Todavia, haverá que deduzir os encargos fiscais devidos, pelo menos em sede de IRS.

17 - Para arbitrar indemnização, o Tribunal a quo devia ter levado em conta que a Recorrida não auferia rendimentos, era estudante e (sem prejuízo dos transtornos causados pelo acidente) está confirmado que o sinistro não afectou a sua capacidade estudantil, prosseguiu os seus estudos, o seu organismo dispõe de enorme capacidade de regeneração, o dano biológico não implicou perda de rendimentos e o Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica estava consolidado na data do Julgamento.

18 - O valor atribuído pelo Tribunal é excessivo, não procedeu ao necessário desconto de 1/3 de modo a evitar vantagem patrimonial da sinistrada decorrente do imediato recebimento e não respeitou a equidade.

19 - Por violar o disposto nos arts. 496º nº 4, 494º, 562º, 563º, 564º e 566º do Cód. Civil vai impugnada a condenação no pagamento da quantia de 150.000,00 € atribuída a título de Dano Patrimonial Futuro / Dano Biológico, que deve ser revogada porque os pressupostos usados no Acórdão a quo estão errados e substituída por outra fixando o montante de 80.000,00 €, que se apresenta mais adequado, justo, respeita a equidade e os danos que devem ser tutelados pelo Direito.

20 - Não consta do Relatório Pericial a necessidade da Recorrida AA ter que ser sujeita a intervenções cirúrgicas. Nem do Relatório Pericial, nem de qualquer outro documento clínico junto aos Autos.

21 - Perante estas circunstâncias, contesta a Recorrente a condenação formulada nestes termos, por não ter correspondência com a prova pericial produzida. Deverá por isso, ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente desse pagamento incerto de despesas com tratamentos e / ou intervenções cirúrgicas, porque não estão previstas.

22 - Em caso de entendimento diferente, mas subsidiariamente, deverá o Tribunal ad quem determinar, que o custo dos eventuais tratamentos que venham a ser necessários sejam apurados, em exclusivo, mediante utilização do incidente processual previsto nos arts. 358º a 361º do Cód. Processo Civil.

23 - Se forem devidos, os juros têm que ser contados a partir da data da prolação do Acórdão que vier a ser proferido pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, porque o cálculo dos montantes indemnizatórios parcelares está reportado ao momento da prolação, por força do disposto no art. 566º nº 2 do Código Civil: data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal.


8. contra-alegações….. cf. se existem, mas não as vi


Dispensados os vistos, cumpre analisar e decidir,


II. Fundamentação

9.  De facto

9.1. Das instâncias vieram provados os seguintes factos:

1. No dia 22 de Outubro de 2013, cerca das 18h16m, o condutor DD circulava pela Avª ……, em .............., sentido norte-sul em direcção à Praça ................, conduzindo o veículo automóvel, da marca “……”, modelo “…..”, com a matrícula ..-..-CC, de sua propriedade.

2. O condutor, ao aproximar-se da Praça ................, parou na faixa de rodagem do meio, por o sinal luminoso se encontrar vermelho, pretendendo seguir em direcção à E.N. ...

3. A E.N. ... é uma estrada com duas vias de trânsito em cada sentido, sem separador central.

4. No momento em que o sinal passou de vermelho a verde, o condutor DD, que era o primeiro veículo da via, arrancou, imprimindo grande velocidade ao veículo, atravessou a Praça ................ e seguiu em direcção à E.N. ..., circulando no seu sentido de trânsito na faixa de rodagem do lado esquerdo.

5. Naquele mesmo dia e à mesma hora, na EN ..., a menor AA, nascida a ../12/2002, iniciou a travessia da passadeira para peões e no sentido da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo DD.

6. Após ter percorrido o primeiro lanço da passadeira e no momento em que já tinha atravessado cerca de um terço do segundo lanço da passadeira, no sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, a menor AA foi embatida por este com a parte da frente do lado esquerdo na perna direita, fazendo-a cair sobre o capot, dar uma volta no ar e ser projectada para fora da passadeira cerca de dezanove metros, ficando caída junto à linha contínua separadora dos sentidos de trânsito e um sapato desta ficado caído na passadeira.

7. O veículo conduzido pelo condutor, desde que arrancou no semáforo e até ao local do atropelamento, percorreu mais de cem metros e, após este, imobilizou-se a cerca de cem metros, sem que tivesse travado ou efectuado qualquer manobra para evitar o acidente.

8. Submetido, na altura, ao teste de pesquisa de álcool no ar expirado, através do aparelho “Drager” modelo “7110 MKIII P”, devidamente aprovado pelas autoridades competentes, acusou o condutor uma taxa de álcool no sangue de 1,51 gramas/litro. 9. Informado do resultado obtido, o DD declarou não desejar contraprova. 10. A estrada, no local do embate tem dois sentidos, sem separador central e a faixa de rodagem em cada sentido tem a largura de 5,20 metros.

11. No dia acima referido, o tempo estava seco, inexistindo quaisquer condições climatéricas adversas ou obstáculos.

12. O condutor foi condenado no proc. n.º 58/13…… da secção local crime J-.., pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa a integridade física p.p. art.148º nº01 do CP em 12 meses de prisão; e num crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de cinco meses de prisão, operando o cúmulo jurídico foi o condutor condenado numa pena única de 14 meses de prisão cuja execução foi suspensa por igual período e na pena acessória de inibição de condução por 06 meses.

(danos)

13. Em consequência de tal embate e da gravidade do seu estado de saúde, AA recebeu tratamentos no serviço de urgência do Hospital .........

14. No mesmo dia foi helitransportada para o Hospital pediátrico…, onde foi sujeita a vários tratamentos e intervenções cirúrgicas, dos quais se destacam: ventilação mecânica, trepanação frontal direita e implantação de sensor PIC intracraniano, Hospital de onde teve alta no dia 03 de Janeiro de 2014, passando a frequentar em regime de ambulatório os serviços de medicina física e de reabilitação do hospital pediátrico de ......

15. Em consequência de tal atropelamento, sofreu a A., AA, as seguintes lesões: traumatismo crânio encefálico grave com lesão axonal difusa, traumatismo torácico com contusão pulmonar e traumatismo da bacia e perna direita com fractura do ramo isquiopúbico direito, fractura da bacia, da tíbia e perónio direito, escoriações tipo abrasão na face, tórax e abdómen, tendo resultado perigo para a vida da menor.

16. Durante o período anterior à alta clínica e após esta a A. efectuou, e continuou a efectuar, tratamentos de fisioterapia para a sua recuperação, particularmente dolorosos até ao fim do ano de 2014.

17. A A., actualmente, efectua, também, tratamentos de hidroterapia, natação, acupunctura, entre outras.

18. A A. carece de apoio ao estudo, uma vez que as suas capacidades cognitivas superiores se encontram comprometidas, sendo auxiliada por cinco explicadores, nas disciplinas de Português, Matemática, Inglês, física e química, ciências, geografia e história, não tendo obtido rendimento escolar, tendo tido cinco negativas logo no 1º período do ano lectivo de 2014-2015, altura em que regressou após o acidente, não tendo transitado de ano nesse ano lectivo.

19. A A., AA, careceu de auxílio para se vestir e para a sua higiene pessoal, pelo menos, até ao Outono de 2014.

20. A A. teve de reaprender a comer com talheres, a andar, a falar, a fazer a sua vida normal, ainda hoje tem algumas dificuldades em comer com talheres e em falar. 21. A A. após o acidente passou a ser seguida em consultas com Dr. EE no hospital pediátrico …. e nas consultas de fisiatria e psicologia do mesmo hospital, o que mantém na actualidade; e ainda, por três vezes, no ……. Hospital (a cargo da demandada).

22. O período que a AA passou internada no Hospital Pediátrico  …. foi particularmente doloroso e desgastante, para si e para os seus pais, dos quais carecia do seu acompanhamento para a sua recuperação, já que a sua presença e atenção davam forças à menor acidentada, tudo por ordem e sugestão da equipa médica que a acompanhava.

23. A menor após o acidente perdeu a capacidade de falar, a memória, a reacção a afectos, mordia-se a si própria e aos demais, entre outras.

24. O que provocava enorme dor e desgosto para si, seus pais e família.

25. Os pais da AA tomavam as refeições, dormiam, acompanhavam-na nos tratamentos, reabilitação e conviviam com as visitas, tudo sempre junto da menor, 24 horas sobre 24 horas.

26. A menor tem duas irmãs germanas, uma com 10 anos e outra com 21 anos, que se encontram a cargo dos pais, as quais só a visitavam aos fins-de-semana, devido a compromissos escolares, tendo o pai de a ir buscar a .............. e levar de volta, tudo com os inerentes custos de transporte, alimentação e estadia.

27. No estado em que se encontrava a menor o apoio da família próxima era essencial para a sua recuperação.

28. No dia 13 de Dezembro de 2013 a menor recuperou a fala, com dificuldades de articulação de palavras.

29. Cada dia na recuperação da menor, que esteve em perigo de vida, era uma vitória para esta, pais e irmãs.

30. O desgaste era enorme, à recuperação lenta seguiam-se momentos de desânimo, devido ao agravamento das sequelas ou aos tratamentos não darem os resultados esperados.

31. A menor após terminar as sessões de fisioterapia no serviço de MFR  …, em fins de Fevereiro de 2014, passou a efectuar fisioterapia na área da sua residência; tratamentos de reiki, nanotecnologia, quirioprática, acupunctura, fisiatria, hidroterapia, natação, terapia da fala, terapia ocupacional.

32. Em consequência do acidente a menor ficou muito ansiosa e com irritabilidade para com os pais e profissionais, chamando-os de “cabrões, filhos da puta, puta que os pariu, és um merdas, faz tu”.

33. A menor continua sem fazer uma vida aproximada do normal, pois está muito dependente dos pais, não se sentindo confiante para enfrentar o exterior sozinha, com receios constantes, sente-se inferiorizada face aos colegas, nem se consegue auto determinar e organizar no mundo exterior.

34. A AA mantém estes tratamentos e de hidroterapia, massagens, natação, entre outros, tudo em vista da sua recuperação motora e psíquica.

35. A A. frequentava à data do acidente o 6º ano escolaridade, sendo que actualmente frequenta o 7º ano, pois não obteve aproveitamento escolar no ano lectivo de 2014/2015, pelo que está a repetir o 7º ano.

36. Tendo mudado de escola por ter vergonha dos antigos colegas, uma vez que todos transitaram de ano.

37. Desde muito cedo que a relação entre ela e os pais se pautava por uma grande afectividade, o que actualmente não acontece quando a ofendida se irrita e perde o controlo tal como supra descrito.

38. Desde a entrada para o 1.º ciclo do ensino básico (……) a A. foi sempre uma aluna assídua, pontual, com bom comportamento, interessado e com bom nível de conhecimentos e bom aproveitamento em todas as áreas.

39. No 2.º ciclo do ensino básico (escola ……), manteve-se como boa aluna obtendo em média a classificação de 04 valores em quase todas as disciplinas.

40. Nesta data, face aos problemas de que padece a menor passou a ter o seu futuro comprometido no ensino secundário e superior.

41. Na verdade, a menor iniciou o ano lectivo de 2015/2016 no 7º ano, na vertente de artes tendo de mudar para música devido aos problemas de movimento do braço esquerdo.

42. O que é, também, patente na disciplina de matemática carecendo de auxílio de terceira pessoa para lhe segurar o compasso, a régua, etc.

43. A A. era uma criança com muita alegria e com uma assinalável maturidade para a sua idade.

44. A A. não teve aproveitamento nas áreas leccionadas no ano lectivo de 2013-2014, apesar de ter transitado de ano em conselho de turma, o que lhe causa enorme desgosto.

45. A A. no momento do acidente sofreu enorme susto, passando por momentos de aflição, terror, dor e pânico, uma vez que a sua vida esteve em sério perigo. (sequelas)

46. Presentemente e em consequência das lesões sofridas no acidente descrito, a menor AA apresenta as seguintes sequelas: a) na cabeça: cicatriz linear nacarada na região frontal, à direita da linha média, algo deprimida, medindo 2 cm de comprimento por 0,5cm de largura; ténue vertígio cicatricial nacarado na região zigomática esquerda, medindo 1 cm de diâmetro; área da alopecia na região occipital, paramediana direita, medindo 1,5 cm de maior eixo por 1 cm de menor eixo, sobre a qual assenta vestígio cicatricial nacarado, ligeiramente endurecido e indolor à palpação, medindo 1 cm de diâmetro; área de alopecia na região occipital, paramediana esquerda, medindo 3cm de maior eixo por 2 cm de menor eixo, sobre a qual assenta cicatriz nacarada, ligeiramente deprimida, medindo 1,5cm de comprimento por 1 cm de largura; b) Bacia: dor referida à parte direita da bacia aquando da compressão ântero posterior e láteo-lateral da mesma; c) Membro superior esquerdo: tremor de acção; d) Membro inferior direito: vestígio cicatricial punctiforme, nacarado, na face lateral do terço proximal da coxa; cicatriz acastanhada no terço distal da face ântero medial da perna, ligeiramente deprimida, medindo 1 cm de diâmetro; mobilidades do mebro conservadas e indolores, à excepção dos últimos graus de rotação interna da anca; e) Membro inferior esquerdo: mobilidades do membro conservadas.

47. Ao nível neurológico: a menor AA revela compromisso cognitivo e mnésico a que se associa disfunção cerebelosa esquerda e distonia, não permanente da mão esquerda em relação provável com atingimento multifocal ou difuso do parênquima cerebral (de tipo lesão axonal difusa) consequente ao traumatismo sofrido. Existência de declínio cognitivo, com capacidade cognitiva muito inferior à normalidade, alterações da percepção visual, relações espaciais assim como da coordenação visuomotora.

48. A data da consolidação médico-legal foi fixada em 22.04.2015.

49.  As ditas lesões determinaram à menor AA um   período de internamento/repouso (défice funcional temporário total) de 129 dias.

50. E um período de défice funcional temporário parcial de 161 dias.

51. As descritas sequelas determinam uma repercussão temporária na actividade escolar total de 387 dias.

52. Foi atribuído à menor um “quantum doloris” de grau 7, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

53. As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na actividade escolar, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicando esforços suplementares.

54. E foi atribuído à menor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 31 pontos percentuais, sendo de admitir a existência de Dano futuro.

55. E um dano estético permanente fixável em grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

56. Com repercussão permanente nas actividades desportivos e de lazer de 4 pontos percentuais, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

57. A menor necessita permanentemente de ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares.

58. A menor tinha à data do acidente 10 anos de idade (nasceu em ../12/2002).

59. Gozava de boa saúde, não apresentado qualquer deficiência física e tinha uma grande alegria de viver e constante boa disposição, o que se inverteu após o acidente.

60. A A. sofreu e sofre dores, apesar dos tratamentos realizados.

61. O que lhe causa grande angústia, inibição e sensação de diminuição física.

62. A A. sofre enorme desgosto pelas cicatrizes de que é portadora, que são visíveis por se encontrarem na sua face e na cabeça, o que a diminui face aos demais.

63. A seguradora R. pagou à A., AA, por intermédio dos seus pais, a quantia de 3.971,93€, a título de parte das despesas de estadias, tratamentos e medicamentos, efectuadas por si e pelos seus pais durante o acompanhamento no hospital, períodos de fisioterapia em …. e após esta e despesas que continua a efectuar.

64. Em despesas com as estadias da menor AA e dos familiares, tratamentos, alimentação, transportes, medicamentos, explicações, recuperação física e psíquica da menor os AA despenderam a quantia de 15.358,15€. (seguro)

65. O veículo conduzido pelo condutor é da sua propriedade e estava seguro pela R. à data do acidente, pelo que tinha para esta transferida a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação através da apólice de seguro nº….05 válida e eficaz. (danos dos pais)

66. A mãe à data do acidente encontrava-se no local de trabalho, na direcção da empresa ……… com negócios em Portugal, Brasil e Angola, quando foi informada telefonicamente do sucedido.

67. De imediato, entrou em choque e descontrolo emocional, sendo levada ao hospital por uma funcionária.

68. Desde aí desenvolveu enorme ansiedade e instabilidade emocional, causando-lhe uma sintomatologia de nervosismo persistente que levou ao aparecimento de psioríase.

69. A mãe da menor é absorvida pelas necessidades da AA, o que frustra aquela por não se poder dedicar às outras filhas de igual modo, com o que por vezes é confrontada pela mais nova.

70. Toda a sintomatologia se agrava quando os tratamentos e recuperação não produzem resultados na menor.

71. O pai encontrava-se à data do acidente em ..., local onde tem uma empresa de projectos.

72. Porque se preparava para no dia 26 de Outubro de 2013 assinar um contrato com um cliente em valor superior a meio milhão de dolares americanos.

73. O pai de imediato largou tudo o que fazia e “apanhou” o primeiro avião com destino a Portugal.

74. Durante a viagem que durou sete horas, o estado de ânimo do pai foi de horror, pânico, sofrimento, ansiedade e impotência, pois desconhecia o estado de saúde da sua filha, dado que esta corria perigo de vida.

75. O que lhe causou nervosismo e ansiedade, a qual se mantém na actualidade. 76. Os pais da menor continuam a padecer de insónias e quando em descanso acordam em pânico com pesadelos, devido ao acidente da filha, pensando que esta morreu.

77. Cada vez que recebem um telefonema e as filhas não estejam presentes ficam em sobressalto e ansiosos até saber se está tudo bem com elas.

78. O pai só regressou a ... em Maio de 2014, pelo que perdeu o negócio acima referido e outros até à presente data, pois o pai e a mãe continuam a apoiar a criança diariamente, uma vez que esta tal como supra alegado precisa de auxílio dos pais para a sua vida normal, dado não ter iniciativa, motivação e auto determinação.

79. Neste momento, o pai tenta vender a empresa em ... por falta de tempo, pois pretende acompanhar a menor na sua evolução.

80. Os pais sentem enorme frustração e desgosto por não saberem, por vezes, lidar com os ataques de ansiedade, descontrolo, irritabilidade e violência da menor, pois não tiveram até à data qualquer acompanhamento nesse sentido nem auxílio da demandada.

81. Os pais sentem-se derrotados com a incerteza do futuro da filha, e o receio permanente no caso de eles por algum faltarem qual o futuro e quem tomará conta da filha.


De Direito

10. O objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.


10.1. Questões do recurso dos pais:

1. Possível aplicação do AUJ nº 06/2014 do STJ de 09/01/2014;

2. Interpretação do art.º 496.º do CC – possível inconstitucionalidade por violação do art.º 68.º da CRP se não se admitir que os pais sejam indemnizados por este dano não patrimonial;


10.2. Questões do recurso da Ré:

 Dano biológico e dano não patrimonial (duplicação de indemnização, por este já conter a perda de capacidade de ganho!);

Critérios da fixação que questionam – esperança média de vida (84 anos); valor do salário considerado (911,50); falta de consideração dos encargos fiscais; facto de ser estudante e não ter profissão; não perdeu rendimentos; Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica estava consolidado na data do Julgamento; não houve desconto por pagamento de uma só vez; não respeitou a equidade;

Necessidade de intervenções cirúrgicas futuras? – relatórios periciais? Doc. Clínicos? Como se fixa valor – pede aplicação 358º a 361.º CPC

Como se calculam os juros - a partir da data da prolação do Acórdão que vier a ser proferido pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça?


11. Começando pelo recurso dos AA.

11.1. O Acórdão do de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2014, de 9 de Janeiro de 2014, publicado no Diário da República, I Série, n.º 98, de 22 de Maio de 2014, págs. 2926 e segs decidiu:

 “Os artigos 483.º, n.º 1, e 496.º, n.º 1, do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”;

Quer isto dizer que, directamente, a jurisprudência uniformizada não tem aplicação ao caso dos autos: não estamos perante o direito do “cônjuge de vítima sobrevivente”, mas perante os ascendentes da vítima sobrevivente.

Mas como tem sido dito por este STJ – cf. Ac. STJ 9/1/2018, proc. 212/14.OT8LH-AB-E1.S1, in www.dgsi.pt - , posição a que se adere, deve entender-se que:

Importa referir [3- Seguindo neste ponto o Acórdão do STJ de 02.07.2015 (Proc. nº 19994/10), também relatado pelo ora relator] que, apesar de não ter força obrigatória geral, como tinham os anteriores assentos (com a revogação do art. 2º do CC), nem natureza vinculativa para os outros tribunais, o acórdão de uniformização constitui um precedente qualificado, de carácter persuasivo, a merecer especial ponderação, que se julgou suficiente para assegurar a desejável unidade da jurisprudência [4- Sem produzir o enquistamento ou cristalização das posições tomadas pelo Supremo – preâmbulo do DL 329-A/95, de 12/12.].

Daí que os tribunais só devam afastar-se da jurisprudência uniformizada em "decisões fundamentadas que ponham convincentemente em causa a doutrina fixada"[5 - Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil – Reforma de 2007, 171].

Como refere Abrantes Geraldes, "só razões muito ponderosas poderão justificar desvios de interpretação das normas jurídicas em causa (…). Ademais, a discordância deve ser antecedida de fundamentação convincente, baseada em critérios rigorosos, em alguma diferença relevante entre as situações de facto, em contributos da doutrina, em novos argumentos trazidos pelas partes e numa profunda e serena reflexão interior (…). Em suma, para contrariar a doutrina uniformizada pelo Supremo devem valer fortes razões ou outras especiais circunstâncias que porventura ainda não tenham sido suficientemente ponderadas".

Como se diz no Acórdão deste Tribunal de 14.05.2009[6 - Acessível em www.dgsi.pt, como todos os Acórdãos adiante citados], "a decisão uniformizada, não sendo estrita e rigorosamente vinculativa, cria uma jurisprudência qualificada, mais persuasiva e, portanto, a merecer uma maior ponderação".

Não basta, pois, não concordar com o entendimento adoptado no acórdão uniformizador, sob pena de a uniformização se revelar um instituto sem utilidade, por subsistir, nos mesmos termos, a controvérsia jurisprudencial. A desconsideração desse acórdão tem de resultar de fundadas razões ou de argumentos jurídicos novos ou que não foram aí "convincentemente rebatidos"[7 - Cfr. a enumeração feita por Abrantes Geraldes, Ob. Cit., 381; no mesmo sentido, o Acórdão deste Tribunal de 11.09.2014. Será aqui de referir que, como é evidente, não se pretende, por esta via, impor aos outros tribunais as condições em que se podem afastar da jurisprudência uniformizada; tal não seria conciliável com a natureza meramente persuasiva e não vinculativa desta. Do que se trata é, tão só, estabelecer critérios que permitam ao Supremo aferir se é aceitável e justificada a divergência em relação a tal jurisprudência.].

11.2. A questão suscitada pelos recorrentes já tem sido objecto de análise por este STJ, nomeadamente nos seguintes arestos (sem intenção de análise exaustiva): Acórdão relativo ao proc. 1519/11.3TBVRL.S1, de 09-07-2015; Ac. 2733/06.9TBBCL.S1, de 2009 e Ac. de 10/9/2019, proc. 5699/11.OTBMAI.P1.S1.

No proc. 1519/11.3TBVRL.S1, de 09-07-2015 disse este STJ:

“O Código Civil Português trata também a problemática dos “danos não patrimoniais” no artigo 496º na redacção aplicável, onde se pode ler:

“1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3. (…) ”.

A norma por último apontada é aquela cuja interpretação têm registado maior controvérsia face a casos semelhantes ao que analisamos, não congregando também uma resposta unânime a questão fundamental versada nesta revista e que se traduz em indagar, se face à lei vigente, terá cabimento a indemnização de terceiros pelos “danos não patrimoniais” decorrentes das lesões graves da vítima não culpada no acidente.

No Direito comparado europeu não há unanimidade no que concerne à indemnização iure proprio, ou seja a reparação do dano moral que sofrem os familiares e (ou amigos) da vítima, aqui se podendo encontrar:

a) Uma primeira corrente que rejeita a indemnização pelos danos morais sofrido por familiares e amigos da vítima, a saber a Alemanha, a Áustria e a Holanda;

b) E a corrente que aceita tal indemnização, representada pela Bélgica, França, Espanha. Reino Unido e Itália;

“No respeitante à relação existente entre a vítima e o beneficiário da indemnização pode ir desde a exigência de um vínculo legal mais ou menos amplo (cônjuge… filho) independentemente de vínculo afectivo (como sucede nos casos inglês e italiano) até ao puro vínculo de afecto, como sucede no caso espanhol), passando pela possibilidade de admitir a prova em contrário da existência desse vínculo de afecto (como no caso francês). As quantias indemnizatórias são muito variáveis de país para país[8- Apud Armando Braga “A Responsabilidade pelo dano corporal na responsabilidade civil Extracontratual”, págs. 314 e ss.].

Exaradas estas considerações, detenhamo-nos maxime sobre o que a nível interno se passa a este propósito com interesse para o caso vertente.

Com respeito aos danos não patrimoniais o Projecto de Vaz Serra incluída no artigo 759º o § 5 que tinha a seguinte redacção “No caso de dano que atinja uma pessoa de modo diferente do previsto no § 2, têm os familiares dela direito de satisfação pelo dano a eles pessoalmente causado. Aplica-se a estes familiares o disposto nos parágrafos anteriores. Mas o aludido direito não pode prejudicar o da vítima imediata”.

Todavia este texto acabou por não ser consagrado nos artigos 483º nº 1 e 496º do Código Civil, lendo-se no nº 2 do último preceito legal citado que “Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”. Tal deixava a porta aberta para o entendimento que a lei teria querido afastar a indemnização por “danos não patrimoniais” a outras pessoas além do lesado directo se este se tiver mantido com vida.

Só que, tal como já deixámos entrever, não pode esquecer-se que a interpretação da lei não se esgota na simples literalidade e expedientes lógicos próximos, para a realização do escopo que está vocacionada a perseguir, sob pena de não alcançar a justiça material adequada aos casos concretos. E isto é tanto mais pertinente quanto é certo que a norma supracitada tem mais de 40 anos de vigência, período durante o qual se assistiu a profundas alterações sociais e consequentemente a um alargar da abrangência das hipóteses indemnizatórias e o número dos respectivos titulares, entendido que foi merecerem a tutela do direito; o crescendo progressivo da complexidade das relações laborais e sociais evidenciou facetas que antes não suscitavam dúvidas ao nível do direito e nomeadamente no que concerne à responsabilidade civil[9 -Para maiores desenvolvimentos cfr. Carlo Castronovo “La Nuova Responsabilità Civile Giufrè 2ª Edizione v.g. 3 ss e 457 ss.]; mas nem por isso se torna necessária e por vezes tão pouco conveniente a excessiva intervenção do Legislador. O ordenamento jurídico dispõe, como não podia deixar de ser, de expedientes para ultrapassar este tipo de situações, desde logo a consideração da occasio legis e a interpretação actualista e que encontram aliás guarida no artigo 9º do Código Civil: “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

No normativo em análise cabem pois todos os requisitos da interpretação actualista, sendo certo que “uma lei só tem sentido quando inserida num ordenamento vivo e muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na “unidade do sistema jurídico”[10 - Cfr. Baptista Machado “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador” Coimbra 1983, pags. 191]. A norma por último citada rejeita à partida a interpretação puramente historicista relegada para a posição de simples elemento auxiliar, ao mandar ter em linha de conta as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. É este o caminho também apontado por Karl Larenz reportando-se ao desenvolvimento judicial do direito como continuação da interpretação. Efectivamente a moderna metodologia da interpretação jurídica coloca o seu acento tónico na realização da justiça material do caso concreto, “acentuando assim, ao arrepio de um positivismo legalista estreito, a actividade criadora da jurisprudência, a sua permanente conformação e desenvolvimento do direito que se vai por si continuamente realizando, a law em acção[11 - Cfr. A. citado, “Metodologia da Ciência do Direito” Calouste Gulbenkian, 3ª edição 1997 pags. 190 ss e 519 ss. Miguel Teixeira da Sousa “Introdução ao Direito”, Almedina, Coimbra 2012, pags. 368 ss. Chaïm Perelman “Etica e Direito” Piaget, 1990, pags. 557 ss.]”. Esta é a função da jurisprudência e particularmente a dos Supremos Tribunais. É que, na verdade, mais do que o Legislador, os Tribunais sentem, pelo seu quotidiano, o primeiro embate com a realidade, o pulsar da vida em concreto e assim a reacção que aplicação da lei vai suscitando ao longo da sua vigência, atenta a natural evolução das estruturas e conjunturas sócio-económicas que se vão sucedendo no tempo. Numa vigência longa, são as instâncias judiciais as primeiras a contribuir para a conformação da lei às novas realidades que se sucedem, com vista à realização da justiça material dentro dos princípios basilares norteadores da aplicação da lei[12 - Neste sentido vai também Castanheira Neves, desde logo em “o actual problema metodológico da realização do direito”, pags. 277, quando refere a dada altura “a norma texto será apenas um elemento – um elemento necessário mas insuficiente para a concreta realização jurídica – já que essa realização exigirá que para além da norma e em função agora do caso concreto (do problema específico do quadro concreto se elabore já “a normativa concretização”, já a específica norma do caso (…). No mesmo sentido e dentro da mesma orientação poderemos encontrar Arthur Kaufmann “Filosofia do Direito” Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004, pags. 82 ss;]. As orientações jurisprudenciais no tocante a matérias controversas constituem o melhor método de testar a bondade da lei que as regula, alertando ainda o legislador para proceder à respectiva alteração quando a mesma se torna obsoleta ou incapaz de dar resposta à realidade que a ultrapassou, esgotados que sejam todos os expedientes interpretativos que é lícito ao Juiz lançar mão[13 - Cfr. Aludindo ao carácter indicativo da Jurisprudência dominante, Abrantes Geraldes, “O valor da Jurisprudência Cível” in CJ Ano VII, Tomo II, 1999, pag. 6.].

É nesta linha que entendemos que o mencionado no nº 2 do artigo 496º e, bem assim os preceitos com ele relacionados, devem ser interpretados em ordem a incorporarem, pelo menos nos casos mais graves, a compensabilidade dos “danos não patrimoniais” sofridos por pessoa diferente da vítima quando esta se mantém viva.

Tem vindo a entender-se que para que tenha lugar indemnização de outrem exige-se que o dano psíquico por este sofrido seja grave, que seja compreensível face ao seu motivo e que exista entre ele e o lesado uma relação pessoal especial[14 - Cfr. Ac. deste SJT de 20-3-2012 in Bases da DGSI.].

Verificados estes pressupostos não resta para nós qualquer dúvida que os danos em causa assumem a natureza de danos directos e não meramente reflexos considerando nomeadamente desde logo a ligação estreita que existe com as pessoas a que alude o artigo 496º nº 2.

No Ac. de 10/9/2019, proc. 5699/11.OTBMAI.P1.S1. reiterou-se o indicado entendimento, dizendo:

(….) Subscreve-se este ponto de vista, que se filia na orientação traçada pelo supra citado acórdão uniformizador.

E assim, pelo que fica exposto, cremos que nada impedirá legalmente que se reconheça à Autora o direito a ser indemnizada pelo excruciante dano não patrimonial que sofreu, sofre e sofrerá pessoalmente em virtude da situação que atingiu o filho e do estado de sofrimento e dependência para que este está definitivamente atirado.

E, dentro do critério do mencionado acórdão uniformizador, não pode haver dúvidas de que a vítima sobrevivente (o filho da Autora) foi atingida de modo particularmente grave e que os danos não patrimoniais da Autora se apresentam também como particularmente graves. Quanto à gravidade dos danos da vítima, já acima se disse o que havia a dizer. Quanto à natureza grave dos danos não patrimoniais sofridos pela Autora, está a mesma espelhada nos factos dos pontos 52, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 61, 62, 63 e 64 dos factos provados, e que aqui se dão por reproduzidos.”

Adere-se à orientação indicada no sentido de não haver obstáculos legais à possibilidade de indemnizar os danos não patrimoniais dos pais em caso de acidente do qual resultaram danos para o filho menor, que sobreviveu, havendo agora de apurar se os danos invocados reúnem as características de que depende a atribuição de indemnização.

11.3. Na sentença a questão foi assim abordada:

“Por fim, pedem os AA que a Ré seja condenada a pagar aos 2.º e 3.º AA, pais da menor AA, uma indemnização na quantia de € 40.000,00 a título de danos não patrimoniais.

Neste conspecto, resulta do acervo factual dado como provado que:

- A mãe à data do acidente encontrava-se no local de trabalho, na direcção da empresa …… com negócios em Portugal, Brasil e Angola, quando foi informada telefonicamente do sucedido.

- De imediato, entrou em choque e descontrolo emocional, sendo levada ao hospital por uma funcionária.

- Desde aí desenvolveu enorme ansiedade e instabilidade emocional, causando- lhe uma sintomatologia de nervosismo persistente que levou ao aparecimento de psoríase.

- A mãe da menor é absorvida pelas necessidades da AA, o que frustra aquela por não se poder dedicar às outras filhas de igual modo, com o que por vezes é confrontada pela mais nova.

- Toda a sintomatologia se agrava quando os tratamentos e recuperação não produzem resultados na menor.

 - O pai encontrava-se à data do acidente em ..., local onde tem uma empresa de projectos.

- Porque se preparava para no dia 26 de Outubro de 2013 assinar um contrato com um cliente em valor superior a meio milhão de dolares americanos.

- O pai de imediato largou tudo o que fazia e “apanhou” o primeiro avião com destino a Portugal.

- Durante a viagem que durou sete horas, o estado de ânimo do pai foi de horror, pânico, sofrimento, ansiedade e impotência, pois desconhecia o estado de saúde da sua filha, dado que esta corria perigo de vida.

- O que lhe causou nervosismo e ansiedade, a qual se mantém na actualidade.

- Os pais da menor continuam a padecer de insónias e quando em descanso acordam em pânico com pesadelos, devido ao acidente da filha, pensando que esta morreu.

- Cada vez que recebem um telefonema e as filhas não estejam presentes ficam em sobressalto e ansiosos até saber se está tudo bem com elas.

- O pai só regressou a ... em Maio de 2014, pelo que perdeu o negócio acima referido e outros até à presente data, pois o pai e a mãe continuam a apoiar a criança diariamente, uma vez que esta tal como supra alegado precisa de auxílio dos pais para a sua vida normal, dado não ter iniciativa, motivação e auto determinação.

- Neste momento, o pai tenta vender a empresa em ... por falta de tempo, pois pretende acompanhar a menor na sua evolução.

- Os pais sentem enorme frustração e desgosto por não saberem, por vezes, lidar com os ataques de ansiedade, descontrolo, irritabilidade e violência da menor, pois não tiveram até à data qualquer acompanhamento nesse sentido nem auxílio da demandada.

- Os pais sentem-se derrotados com a incerteza do futuro da filha, e o receio permanente no caso de eles por algum faltarem qual o futuro e quem tomará conta da filha.

No seguimento das considerações acima tecidas sobre a temática dos danos não patrimoniais sofridos pela menor AA, importa agora averiguar se os danos não patrimoniais sofridos pelos pais da menor AA, vítima do acidente discutido nos autos, são também – autonomamente – merecedores de tutela jurídica. Antecipando a conclusão a que rapidamente chegaremos, consideramos que os danos acima elencados são merecedores de uma justa compensação monetária.

Para tanto, basta seguir o trilho calcorreado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n.º 6/2014, do Plenário das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/2014, (publicado no DR n.º 98 1.ª série, de 22/05/2014), o qual veio pôr termo a longínqua divisão de respeitante entendimento/ajuizamento jurisprudencial, fixando disciplina interpretativa dos artigos 483.º, n.º 1, e 496.º, n.º 1, do Código Civil, no sentido de dever em abranger os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave, cujo rigor, não obstante a conclusiva e específica alusão a cônjuge de vítima sobrevivente (em causa no respectivo processo), sempre, como, ademais, na respectiva fundamentação considerado – e no ora avaliando recurso pertinentemente significado –, por inevitável analogia, (cfr. art.º 10.º, ns. 1 e 2, do C. Civil), e sob pena de incursão em vício de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, prevenido sob o art.º 13.º da Constituição Nacional, deverá aproveitar às demais individualidades jurídicas elencadas sob o n.º 2do citado art.º 496.º do Código Civil: aos filhos ou outros descendentes de vítima sobrevivente; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem, e, no caso concreto, aos pais da menor AA. E no confronto com tais danos provados, dúvidas não temos de que se verificam todos os pressupostos de indemnização a que vimos aludindo. Com efeito, não fosse o atropelamento da menor AA, os seus pais não teriam sofrido tais danos, verificando-se, assim, o respectivo nexo de causalidade com tal evento lesivo, (cfr. arts. 562.º e 563.º do Código Civil). Tais angústias, sofrimentos e incómodos são marginais aos comummente associados aos deveres legais da relação paternal-filial, postulados pelo art.º 1878.º, n. 1, do Código Civil. Pelo que, em nosso entendimento deverão merecer a tutela do direito e serem objecto de uma compensação pecuniária. E recorrendo de novo à caracterizada equidade, em conformidade com a enunciada dimensão normativa – resultante da integrada interpretação dos arts.º 383.º, n.º 1, e 496.º, ns. 1 e 4, 1.ª parte, do C. Civil –, reputamos justo, adequado, proporcional e ajustado fixar tal indemnização em 20.000,00, a qual é objecto de cálculo actualizado.”

Por sua vez no acórdão recorrido a questão veio assim equacionada:

“Os AA e a R. divergem, aqueles pretendendo o aumento para 40.000 € e esta a sua absolvição (cfr., respectivamente, as conclusões de recurso 9ª e 10ª e 28- a 30-). Aqueles sustentam que, além dos factos provados 66. a 81. considerados especificamente na sentença recorrida, também devem ser considerados os factos 15., 22., 23., 24., 25., 26., 27., 29., 30. e 32., que reforçam os graves danos não patrimoniais sofridos pelos pais da menor, e que, por isso, também implicam um aumento do montante indemnizatório. Por sua vez, a R. defende que a aplicação da analogia não tem cabimento, por estar em causa um Acórdão de Uniformização. Desde já avançamos que cremos que se decidiu menos bem. Expliquemos porquê. Lida a fundamentação de tal AUJ, sobretudo os pontos 24. a 27., constatamos que no mesmo se efectuou uma interpretação actualista dos referidos arts. 483º, nº 1 e 496º, nº 1, do CC, em relação ao cônjuge da vítima sobrevivente, salientando-se, porém, que tal interpretação e o resultado dela imanente só deve verificar-se quando a referida vítima sobrevivente tenha sido atingida de modo particularmente grave e o dito cônjuge tenha sofrido danos não patrimoniais, também, de modo particularmente grave, o que deve ser aferido casuisticamente.

Ora, no nosso caso, a matéria que está provada demonstrando que a A. menor, com as lesões sofridas e respectivas consequências, foi atingida gravemente, não permite, porém, dar o passo seguinte para a expressão enfática “particularmente”, usada no AUJ, sugerindo, pois, uma situação concreta sinónima de excepcional, muito elevada, anormal, especial ou singular gravidade (o que no caso concreto do AUJ, ocorria com a vítima, pois foi amputado da perna esquerda pelo terço médio da coxa, pé direito pendente, alteração da memória e atenção, depressão prolongada/stress pós traumático, diminuição das relações pessoais, profissionais, sociais e familiares e afectivo-conjugal e da auto-estima, tendência para o isolamento, incapacidade total para a sua profissão e outras que envolvam locomoção ou esforço, incapacidade permanente parcial de 80%, incapacidade de sair de casa, ajuda permanente de terceira pessoa para se vestir, tomar banho, barbear e acompanhar a um café, e outras lesões e consequências constantes da factualidade aí apurada).

No nosso caso, felizmente para a menor A., o quadro factual apurado não aponta para essa particular gravidade. Cai, assim, o primeiro dos pressupostos fixados no referido AUJ, ainda que o mesmo fosse eventualmente de ponderar, para resolução do caso específico em apreço, visto que a sua aplicabilidade directa estaria afastada, pois na nossa hipótese está em jogo a figura dos pais e não do cônjuge. De outra parte, não se acompanha o argumento da decisão recorrida de aplicação do dito AUJ, por analogia, porquanto tal instituto jurídico é aplicável apenas a lacunas de regulamentação legal com aplicação de outras normas que regulam caso aparentado (arts. 10º, nº 1 e 2, do CC), e não a decisão judicial, embora do STJ, que interpreta a lei e fixa doutrina vinculativo/persuasivamente para os tribunais de grau inferior.

De sorte que procede esta parte do recurso da R. e não procede o dos AA, devendo, portanto aquela ser absolvida do peticionado.”

Atendendo ao exposto, e estando já respondida a questão sobre a possibilidade de não se afastar de todo a orientação do AUJ, o problema principal reside em saber se os danos sofridos pelos pais – de carácter não patrimonial – têm a gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito, já que as decisões em confronto apontam em sentido diverso.

11.4. Para o efeito relevam os factos provados e ainda a visão humanista que o direito deve ter perante o sofrimento dos cidadãos, no contexto concreto dos recorrentes-pais e que, na visão deste tribunal, não devem ser completamente desvalorizados ao ponto de se lhes negar a compensação pelo sofrimento em que passaram a viver diariamente.

Dos factos, salientam-se os apontados pela sentença (que aqui se dão por reproduzidos), alguns dos indicados pelos AA. (22[1]., 23., 24., 25., 26., 27., 29., 30. e 32) e ainda o 33[2] e 37,  dos quais resulta uma suficiente gravidade para merecerem a tutela do Direito, ainda que comparativamente com a situação analisada pelo acórdão recorrido noutro caso judicialmente decidido, se possa concluir que, in casu, é grave, mas não tão grave como na situação comparada.

Por este motivo é de deferir a pretensão dos pais, no sentido de lhes ser atribuída a indemnização pelo dano não patrimonial.

11.5. No que respeita ao quantum indemnizatório: na sentença fixou-se o valor de 20.000 euros; os AA. na apelação recorreram e pediram 40.000 euros e no recurso de revista admitem que seria justo fixar a indemnização em 35.000 euros.

Na sentença o valor foi fixado com recurso à equidade – 20.000 euros – nos termos indicados, sem que na revista os AA. indiquem que a equidade se afastou dos padrões habituais da jurisprudência e dos casos paralelos, por força a que este tribunal se tenha de pronunciar sobre se o tribunal seguiu os critérios habituais. Ora, porque o recurso à equidade é uma decisão que não envolve a estrita aplicação do direito, mas a consideração do caso concreto, o STJ tem entendido que não deve alterar o juízo equitativo senão em situações gritantes ou desproporcionadas ou se tiver havido decisão que não se pauta pelos critérios habituais das situações paralelas. In casu, nada permite suspeitar que exista desproporção ou afastamento dos critérios usuais, pelo que é de manter o valor arbitrado na sentença – 20.000 euros.

Segue-se, assim, a orientação que se acolhe no Ac. STJ n.º 317/12.1TBCPV.P1.S1, de12-11-2020, in www.dgsi.pt:

“Independentemente de estarem em causa danos patrimoniais ou não patrimoniais, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que o controlo, designadamente em sede de recurso de revista, da fixação equitativa da indemnização deve concentrar-se em quatro coisas: Em primeiro lugar, deve averiguar-se se estavam preenchidos os pressupostos normativos do recurso à equidade. Em segundo lugar, se foram considerados as categorias ou os tipos de danos cuja relevância é admitida e reconhecida. Em terceiro lugar, se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram considerados os critérios que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, deveriam ser considerados — se, p. ex., no caso da indemnização por danos não patrimoniais, foram considerados o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do lesante e a situação económica do lesado. Em quarto lugar, se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram respeitados os limites que, de acordo com a legislação e com a jurisprudência, deveriam ser respeitados. Está em causa fazer com que o juízo equitativo se conforme com os princípios da igualdade e da proporcionalidade — e que, conformando-se com os princípios da igualdade e da proporcionalidade, conduza a uma decisão razoável.”

Em face do exposto, repristina-se o segmento decisório da sentença relativo à alínea e), confirmando-se o valor da compensação de 20.000 euros.

11.6. Fica prejudicada a questão da inconstitucionalidade invocada pelos AA. recorrentes.

12. Vejamos agora o recurso da Ré

12.1.  Quanto à questão de saber se houve duplicação arbitrada por se considerarem autonomamente o dano biológico e o dano não patrimonial.

Na posição a Ré a duplicação da indemnização existe porque na condenação por dano biológico já se contém a indemnização por perda de capacidade de ganho.

A ré também questiona a legalidade dos critérios utilizados pelo tribunal recorrido para fixar o quantum indemnizatório pelo dano biológico, nomeadamente quando:

a) de admite a esperança média de vida e de considera que são de considerar 84 anos;

b) de utilizada como referencial o valor do salário de 911,50 euros, em vez do salário mínimo nacional;

c) ocorre falta de consideração dos encargos fiscais;

d) não se releva o facto de a sinistrada ser estudante e não ter profissão, não perder rendimentos e o Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica estar consolidado na data do Julgamento;

e) não se realiza um desconto na indemnização fixada pelo facto de o seu pagamento dever se feito de uma só vez;

f) não se respeitar a equidade.


A este propósito disse o tribunal a quo, perante equivalentes objecções que haviam sido colocadas à sentença:

“Começando a nossa apreciação, diremos, que a fundamentação jurídica apresentada merece a nossa concordância quase na íntegra, independentemente de se saber em concreto se o dano biológico sofrido pela A. deve ser qualificado como dano não patrimonial ou dano patrimonial ou dano autónomo, como defendem as três correntes jurisprudenciais que por elas pugnam (vide a esse propósito o Ac. do STJ de 5.12.2017, Proc.505/15.9T8AVR, em www.dgsi.pt, opção jurídico-qualificativa que não se impõe tomar, pois não é necessária para resolver o litígio, que, nesta parte, se resume à quantificação do dano biológico).

E, assim, as ideias chave a reter são as seguintes: é um dado da experiência que, com a evolução do ensino obrigatório e da formação escolar, profissional e académica, um jovem, quando adulto, tende a obter uma remuneração capaz de assegurar adequadas condições, e não apenas as condições mínimas de dignidade; porque de uma jovem de tenra idade se trata, todas as portas e possibilidades da vida estão abertas, não havendo razões para se não admitir que não pudesse vir ter uma evolução positiva e de sucesso no seu trajecto pessoal, de formação académica e de inserção profissional; na falta de elementos que permitam prever o exercício futuro de uma profissão determinada ou uma actividade dentro de um grupo ou tipo mais ou menor alargado de profissões, deve atender-se ao salário médio acessível a um jovem saudável dotado de formação profissional média, o que no caso é mais premente, pois a A., menor, era/é uma estudante do ensino secundário; a incapacidade permanente para o trabalho, mesmo quando não tenha reflexos económicos directos, traduzidos em diminuição ou limitação salarial, assume, em regra, influência nas opções de trabalho e nas condições de emprego do lesado, bem como na progressão na carreira e na antecipação da reforma, ou ainda na possibilidade de se dedicar complementarmente a outras actividades susceptíveis de aumentar os rendimentos, o que será muito provavelmente o caso da A., com as limitações físicas, neurológicas e psíquicas de que padece; que, por outro lado, a incapacidade permanente parcial da A. vai prolongar-se para além da

idade da reforma; que é expectável, a médio e longo prazo, uma melhoria nas condições de vida no país, e portanto um aumento do rendimento, sendo que é normal, também, que a progressão na carreira e aumento de antiguidade trazem acréscimo de rendimento.

Ora, neste aspecto, na respectiva fundamentação, atrás transcrita, o tribunal a quo atendeu, para o cálculo da indemnização, a todos os factores legais relevantes, pois considerou: as lesões sofridas e sequelas físicas, de média-alta gravidade; o défice funcional permanente de 31% - com perspectiva de dano futuro -; os esforços suplementares de que carecerá; que no cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equidade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso normal das coisas, é razoável; os métodos matemáticos e/ou as tabelas financeiras utilizados para apurar a indemnização são apenas um instrumento de auxílio, meramente indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação que se impõe fundada na dita equidade; deve ter-se em conta, mais do que a esperança média de vida activa da vítima, a esperança média de vida da lesada, como mulher; a idade da lesada à data do sinistro, 10 anos; uso da bitola do salário médio nacional e não do salário mínimo nacional (critério, também, referido no Ac. desta Relação de 4.6.2013, Proc.2092/11.8T2AVR, publicado no indicado sítio).

Importa, antes de prosseguir, introduzir por correcção e acrescento, outros elementos a ponderar.

Assim, o tribunal socorreu-se do valor de 1.000 €, como salário médio, mas da consulta ao site da Pordata, em www.pordata.pt, o que verificámos foi que no ano do acidente (2013) o valor do salário médio mensal era de 911,50 €, por isso, um pouco menos do que o considerado. Concordando que a idade da reforma será de 70 anos, quando a A. lá chegar (agora está na casa dos 66 anos e alguns meses), visto que a esperança média de vida tende a fazer avançar tal idade de reforma, discorda-se que a esperança de vida tida em conta seja de 77 anos, porque é de um homem, quando a A. é mulher, e para esta a esperança média de vida ronda a casa dos 84 anos.

Por outro lado, deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, permitindo ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros, pelo que há que considerar esses proveitos introduzindo um desconto de 1/3.

Importa, ainda, fazer uma pequena paragem, para sumariamente, rebater alguns dos argumentos utilizados pelas partes recorrentes, designadamente que devia ser considerada uma IPP de 33,5 %, que mais acima vimos ser de descartar, por não se tratar de um acidente de trabalho, que a A. não ficou impossibilitada de trabalhar e estudar, o que não aconteceu, como resulta da matéria apurada, que não é de seguir o critério do salário mínimo nacional, proposto pela R., pelos motivos expostos, nem se alcançando bem o argumento da R. da necessidade futura de pagamento de impostos, pois estes decorrerão, normalmente, dos rendimentos que a A. irá auferir.

Prosseguindo, há que reforçar dois aspectos.

Que a A., com as suas limitações físicas e sobretudo neurológicas, que as acompanharão ao longo da vida, vai ver influenciadas as suas opções de trabalho e condições de emprego, bem como a progressão na carreira e a antecipação da reforma, ou ainda a possibilidade de se dedicar complementarmente a outras actividades susceptíveis de aumentar os rendimentos, e, por conseguinte, vai ver coarctada, assinaladamente, a possibilidade de poder ascender a patamares de realização profissional e pessoal, mais ambiciosos, com a inevitável perda das suas oportunidades profissionais.

Que não deve esquecer-se, claro, os princípios da unidade do direito e da igualdade e o valor da previsibilidade da decisão judicial que devem vincular à padronização e à normalização do valor da indemnização, quando for caso semelhante ou aproximado, pois que a casuística das situações da vida é infindável.

Respigando alguns acórdãos recentes do STJ (todos disponíveis em www.dgsi.pt), deparamo-nos perante as seguintes situações: - no Ac. de 11.9.2014, Proc.3437/07.0TBVCT, foi fixada em 72.000 € a indemnização correspondente a danos patrimoniais futuros, decorrentes de uma incapacidade parcial permanente de 19 pontos, estando provado que “as sequelas com que ficou, em termos de rebate profissional, são compatíveis com a sua actividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares”, a uma lesada de 18 anos de idade, à data do acidente, quando era estudante, “tendo entretanto concluído o curso de educadora de infância e encontrando-se a trabalhar à data da sentença, auferindo cerca de € 800,00 líquidos mensais”; - no Ac. de 4.6.2015, Proc.1166/10.7TBVCD, foi fixado o montante de 55.000 €, para uma jovem de 17 anos de idade, com uma incapacidade permanente de 17 pontos e um salário ilíquido mensal de 800 €; - no Ac. de 10.3.2016, Proc. 1602/10.2TBVFR, fixou-se a indemnização por dano biológico a um homem com cerca de 50 anos, com incapacidade de 37 pontos, a quantia de 60.000 € (mas atribui-se mais 280.000 €, a titulo de indemnização pela perda de ganho proveniente da sua actividade profissional); no Ac. De 6.12.2017, Proc.1509/13.1TVLSB, para um homem com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 25,6 pontos, com quase 60 anos de idade, fixou-se a indemnização por dano biológico em 100.000 €; - no Ac. de 9.1.2018, Proc.275/13.5TBTVR, fixou-se o valor do dano biológico em 250.000 €, a homem de 41 anos, que auferia mensalmente 750 €, com incapacidade permanente de 30 pontos, impedido do exercício da sua actividade habitual; - no Ac. de 25.10.2018, Proc.2416/16.1T8BRA, fixou-se o montante de 120.000 €, por dano biológico, relativo a lesado com 49 anos, com 8% de incapacidade permanente, que auferia 888 €, mas com muita dificuldade de aceder a outra profissão; no Ac. de 30.5.2019, Proc.3710/12.6TJVNF, para um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14 pontos, salário médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem com formação média (na altura do acidente a lesada era estudante com 17 anos) e a actual esperança de vida das mulheres, fixou-se um montante, pelo dano biológico, de 80.000 €; - no Ac., de 19.9.2019, Proc.2706/17.6T8BRG, para um défice funcional permanente de 32 pontos, ficando o lesado definitivamente impedido de exercer a sua profissão habitual, bem como qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional, um homem com 45 anos, à data do acidente, que auferia mensalmente o valor de cerca de 866 €, foi fixado o montante de 200.000 €, por perda de capacidade de ganho e dano biológico.

Desta sorte, e todos os factores acima elencados devidamente ponderados, temos por adequado e justo, fixar o valor indemnizatório em 150.000 €, procedendo parcialmente o recurso dos AA nesta parte e improcedendo o da R.”

Respondendo às objecções do R., que já têm uma resposta em geral satisfatória do tribunal recorrido, sempre se diria:

1) O dano em causa atendido pelo tribunal  porque integrado na categoria de dano biológico foi-o na vertente de dano patrimonial futuro, sem duplicação de indemnização com o dano não patrimonial.

2) A tal não obsta o facto de o tribunal ter considerado sequelas e danos não patrimoniais, os quais relevam na medida em que influenciam a capacidade de ganho futuro da A., menor, porque envolvem esforços acrescidos no desenvolvimento da sua actividade profissional futura ou a própria escolha da mesma;

3) Os critérios utilizados na fixação da indemnização, com recurso à equidade, por não serem danos susceptíveis de outra quantificação, está dentro dos padrões habituais da jurisprudência, com uma única ressalva;

4) Assim, nada de estranho se identifica na utilização do critério da esperança média de vida da mulher, actual e segundo as projecções actuariais, fixada em 84 anos;

5) Nada de estranho se identifica na utilização do critério do salário médio nacional à data do acidente, mesmo que a vítima fosse estudante nessa altura, porque a sua situação altera-se com a idade e entrada no mercado de trabalho;

6) Nada de estranho de identifica na consideração dos elementos relativos às lesões sofridas e às sequelas físicas, qualificadas de média-alta gravidade, com ponderação do défice funcional permanente de 31%.

7) Considera-se ainda a orientação do STJ vertida nos seus aresto, nomeadamente no Ac. de 1/3/2018, proc. n.º 773/07.0TBALR.E1.S1. (www.dgsi.pt): “A afectação da integridade físico-psíquica (que tem vindo a ser denominada “dano biológico”) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial, compreendendo-se na primeira categoria a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais.”

Já não se concorda com o entendimento veiculado no sentido de ser forçoso efectuar um desconto ao valor apurado, por a indemnização ser paga de uma só vez.

É que este STJ tem estendido que, na conjectura económico-financeira actual, tal desconto não se justifica porque a aplicação financeira de tais montantes não é passível de gerar rendimentos significativos - nomeadamente por via de juros de depósito a prazo. Neste sentido, cf. acórdãos do STJ nomeadamente Ac. de 29-10-202, proc.  111/17.3T8MAC.G1.S1 ou ainda Ac. de 25-05-2017, proc. 868/10.2TBALR.E1.S1 (www.dgsi.pt).

No primeiro indica-se no sumário:

“A esta quantia não há que fazer qualquer dedução (a fim de, alegadamente, se evitar um enriquecimento injustificado resultante do recebimento antecipado de valores que a autora apenas receberia ao longo da vida), uma vez que se trata de indemnização fixada segundo a equidade (n.º 3 do art. 566.º do CC) e não de indemnização calculada de acordo com a fórmula da diferença (n.º 2 do art. 566.º do CC).”

O argumento indicado pela Ré sobre o pagamento de impostos foi igualmente abordado pelo tribunal recorrido, em termos que merecem apoio – não é perceptível a argumentação da Ré, nem este tem sido um critério habitualmente usado na fixação da indemnização.

Por outro lado, ainda que  a decisão recorrida mereça a ressalva indicada sobre o desconto de antecipação, com o qual não se concorda, não nos podemos esquecer que o valor fixado não resultou de uma soma aritmética de parcelas, mas de uma ponderação com recurso à equidade, na qual não se percebe se  houve efectividade prática da consideração do relevo do desconto por antecipação, o que nos leva a crer que o argumento foi analisado, mas ultrapassado pela via da equidade. E assim sendo não se evidencia a necessidade deste STJ se imiscuir no juízo equitativo formulado, conforme entendimento já exposto – o STJ é um tribunal de aplicação do direito estrito.

Em suma, a indemnização arbitrada por dano biológico é de confirmar, nos termos indicados, com o valor fixado pelo tribunal recorrido: 150.000 €

12.2. A Ré contesta ainda a condenação por dano patrimonial futuro, no que respeita a futuras intervenções cirúrgicas e cuidados médicos, já que na sua opinião essa necessidade não decorrem nem dos relatórios periciais, nem dos doc. Clínicos constantes dos autos. E a haver condenação, entende que a mesma deve obedecer ao regime dos art.ºs  358º  a 361.º CPC

No acórdão recorrido a questão veio assim colocada:

4.5. Disse-se, também, na sentença apelada que:

“Pede ainda menor AA que a Ré seja condenada a pagar todas as despesas e tratamentos necessários derivados de eventuais sequelas, tais como intervenção de cirurgia plástica para eliminar as cicatrizes.

Ora, dos autos não resulta neste momento que sejam necessários quaisquer tratamentos e intervenções cirúrgicas futuras. E de acordo com o disposto no art. 564.º, n.º 2 do Código Civil, o tribunal na fixação da indemnização pode atender aos danos futuros que sejam previsíveis, sendo que se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior.

Também o art. 609.º, n.º 2 do Código de Processo Civil permite a condenação no que vier a ser liquidado (nos termos do art. 358.º e 360.º do mesmo código), se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade.

Também o art.º 556.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil estabelece que é permitido formular pedidos genéricos nos casos em que não seja possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 569.º do Código Civil.

Considerando que é facto notório que as lesões que a menor AA apresenta, pela gravidade, dimensão e pelo tipo de lesão não desaparecerão por si, sem intervenções cirúrgicas e/ou tratamentos, relega-se para ulterior liquidação os eventuais encargos e despesas com tratamentos e/ou intervenções cirúrgicas que venham a ser necessárias para a total recuperação. Ou seja, caso a menor AA, futuramente, venha a realizar tratamentos e ou intervenções cirúrgicas para recuperação das lesões sofridas em consequência da conduta do segurado da Ré, terá direito a ser reparada dos encargos que daí advierem, pelo que se relega para ulterior incidente de liquidação o apuramento desse dano.”.

A R. discorda, pedindo a sua absolvição, pois isso não resulta do relatório pericial ou documento clínico (cfr. conclusões 31- a 33-). Mas não tem razão.

Quanto aos tratamentos isso mesmo emerge do relatório pericial (a fls. 272) na rubrica de “Dependências Permanentes de Ajudas” e dos factos provados 16., 17., 21., 34., e 57. E quanto a intervenções cirúrgicas, designadamente a de carácter estético ela é evidente, pois defronte os factos provados 46., 55. e 62. é perfeitamente previsível a necessidade de uma intervenção cirúrgica nessa área. Trata-se, por isso, de danos futuros previsíveis certos, ainda não determinados, em relação a tratamentos e intervenções cirúrgicas necessárias à melhor recuperação possível da A. menor, que tenham nexo de causalidade com as lesões e sequelas sofridas pela mesma por causa do acidente dos autos.

Diremos mesmo que mesmo que se não fossem encarados como danos futuros certos sempre seriam de qualificar como futuros eventuais num grau de muita probabilidade ou menor incerteza, para utilizar os conceitos usados e explicitados por Almeida Costa, em D. Obrigações, 6ª Ed., pág. 501, e no Ac. do STJ de 24.2.1999, em BMJ 484, pág. 359). E, por conseguinte, ainda aqui, susceptíveis de indemnização a liquidar em sentença.

Como se evidencia pela leitura do extracto do acórdão, há nos autos elementos suficientes para fundamentar a condenação da Ré, nos termos indicados, podendo o tribunal optar por fixar já um valor equitativo ou remeter para o processo de liquidação, onde o apuramento do dano se fará com recurso a elementos objectivos ou, na sua falta, com recurso à equidade.

Não procede assim a argumentação da Ré, confirmando-se, por adesão aos fundamentos do acórdão recorrido, o segmento decisório em causa. Quanto ao argumento de que se deve aplicar o regime dos art.ºs 358.º e ss, salvo melhor opinião, foi o mesmo acolhido no acórdão recorrido e não há possibilidade de ordenar que o mesmo seja exclusivamente seguido, pois isso já dele resulta. Questão distinta é a de saber se nesse processo de liquidação não haverá recurso à equidade, mas é questão que terá de ser decidida pelo tribunal que operar a liquidação.

Improcede a questão suscitada pelo recorrente.

12.3. Por outro lado, a Ré também questiona como se calculam os juros de mora sobre os valores indemnizatórios indicando que se deve atender à data da prolação do Acórdão que vier a ser proferido pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça.

Ao que se compreende da alegação da Ré a questão é exclusiva para dos danos a apurar em liquidação.

A ser correcto este entendimento, podemos fazer nossas as palavras usadas por este STJ no Ac. 5699/11.OTBMAI.P1.S1, onde a questão foi analisada e decidido:

“Nestas conclusões insurge-se a Recorrente contra o acórdão recorrido na parte em que manteve a sua condenação em juros de mora desde a citação relativamente aos danos cujo quantitativo foi relegado para liquidação ulterior.

Entende que esses juros serão devidos apenas desde a liquidação.

Cremos que carece de razão.

O n.° 3 do art 805.° do CCivil é claro: se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação (a menos que já haja então mora).

No caso vertente estamos perante responsabilidade pelo risco.

Logo, os juros de mora sobre o crédito que se apresenta ilíquido são devidos desde a citação para a ação onde o pedido de condenação foi formulado e obtido.

Na perspetiva da lei, as consequências moratórias devem correr em qualquer caso (crédito líquido ou por liquidar) contra o devedor que o seja com base no risco. É esse credor que cria o débito, pelo que, citado para a ação onde o crédito lhe é oposto, não pode querer prevalecer-se do facto de não se lograr liquidar imediatamente o correspetivo montante. Inocêncio Galvão Telles (Direito das Obrigações, 7a ed., reimpressão, pp. 304 e 305) explica melhor: "A norma acrescentada ao n.° 3 do artigo 805.° não pretende alterar o modo desse cálculo do valor da indemnização, mas apenas o regime estabelecido quanto ao momento da mora. Segundo este regime, a mora, em caso de obrigação ilíquida (como é a obrigação de indemnização pecuniária) só pode surgir com a liquidação, a não ser que a falta de liquidação seja imputável ao devedor ou responsável. Ora, por força da norma introduzida pelo Decreto-Lei n.° 262/83, o responsável, em caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, fica sujeito a solução mais desfavorável, porque a sua mora não depende de liquidação, mesmo que a falta desta não lhe seja imputável: surge com a citação para a acção tendente a condená-lo na indemnização a apurar."

No sumário do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 2008 (processo n.° 07B2978, relatora Maria dos Prazeres Beleza, disponível em www.dgsi.pt1 afirma-se (com reporte ao anterior Código de Processo Civil, mas com utilidade para o que aqui se discute), que "1. A liquidação em execução de sentença era um processo de estrutura declaratória, enxertado na acção executiva, destinado a preencher um requisito necessário para a execução, a liquidez da dívida exequenda. 2. Não ê da sentença proferida no processo de liquidação que resultava a condenação do executado no pagamento da indemnização que fosse devida. 3. Não era assim a citação para a liquidação, mas a citação na acção declarativa, o momento relevante para o início da contagem de juros de mora que tivessem sido pedidos com referência ao momento da citação. "

Observa-se no acórdão que:

"Não releva (...) a ignorância, por parte do devedor, do montante exacto apagar (...).

Não depõe contra esta interpretação o argumento da normalidade (...). Na verdade, não se pode afirmar que não seja normal numa acção de responsabilidade civil por acto ilícito a impossibilidade, no momento da condenação, de apurar o montante do dano; foi aliás exactamente isso que o legislador reconheceu no n.° 2 do artigo 564.° do Código Civil.

Nem releva tão pouco a possibilidade de a demora na fixação do montante se dever a facto do lesado (...), porque on° 3 do artigo 805º protege o devedor contra tal eventualidade."

... Mais se aduz no mesmo acórdão que "a resposta [á questão de saber desde quando são contados os juros] se encontra na função desempenhada pela liquidação em execução de sentença (...). Trata-se, como se sabe, de um processo de estrutura declaratória enxertado na acção executiva, e que se destina a preencher um dos requisitos necessários para a execução: a liquidez da dívida exequenda. Não é, pois, da sentença proferida no processo de liquidação que resulta a condenação do executado no pagamento, no caso, da indemnização; não tem, assim, cabimento pretender-se que seja a citação para a liquidação a marcar o início do momento a partir do qual o responsável está em falta, não devendo o n° 3 do artigo 805° do Código Civil ser interpretado nesse sentido (...) ".

Não pode deixar de ser subscrito este entendimento, que é o único compatível com a letra da lei. E tal entendimento depõe a favor da decisão recorrida e não a favor da tese da Recorrente,

Improcedem pois, as conclusões em destaque.”


Improcede a questão suscitada.


III. Decisão

Pelos fundamentos indicados é concedida a Revista dos AA, atribuindo-se-lhe a indemnização de 20.000 €, e negada a revistas da Ré, confirmando-se o acórdão recorrido nessa parte.

As custas do recurso da revista dos autores devem ser suportadas por eles e pela ré na proporção do respectivo decaimento.

As custas da revista da ré devem ser suportadas exclusivamente por ela, por ter decaído totalmente no recurso (cfr. art.ºs 527.º, n.º 1 e 2, do CPC).


Lisboa, 20 de Abril de 2021


Fátima Gomes (relatora), que assina digitalmente

Fernando Samões, que assina digitalmente

Maria João Vaz Tomé


Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exma. Senhora Conselheira, Maria João Vaz Tomé, que também compõe este Colectivo.

_________

[1] 22. O período que a AA passou internada no Hospital Pediátrico..... foi particularmente doloroso e desgastante, para si e para os seus pais, dos quais carecia do seu acompanhamento para a sua recuperação, já que a sua presença e atenção davam forças à menor acidentada, tudo por ordem e sugestão da equipa médica que a acompanhava.
23. A menor após o acidente perdeu a capacidade de falar, a memória, a reacção a afectos, mordia-se a si própria e aos demais, entre outras.
24. O que provocava enorme dor e desgosto para si, seus pais e família.
25. Os pais da AA tomavam as refeições, dormiam, acompanhavam-na nos tratamentos, reabilitação e conviviam com as visitas, tudo sempre junto da menor, 24 horas sobre 24 horas.
26. A menor tem duas irmãs germanas, uma com 10 anos e outra com 21 anos, que se encontram a cargo dos pais, as quais só a visitavam aos fins-de-semana, devido a compromissos escolares, tendo o pai de a ir buscar a ..... e levar de volta, tudo com os inerentes custos de transporte, alimentação e estadia.
27. No estado em que se encontrava a menor o apoio da família próxima era essencial para a sua recuperação.
29. Cada dia na recuperação da menor, que esteve em perigo de vida, era uma vitória para esta, pais e irmãs.
30. O desgaste era enorme, à recuperação lenta seguiam-se momentos de desânimo, devido ao agravamento das sequelas ou aos tratamentos não darem os resultados esperados.
32. Em consequência do acidente a menor ficou muito ansiosa e com irritabilidade para com os pais e profissionais, chamando-os de “cabrões, filhos da puta, puta que os pariu, és um merdas, faz tu”.
[2] 33. A menor continua sem fazer uma vida aproximada do normal, pois está muito dependente dos pais, não se sentindo confiante para enfrentar o exterior sozinha, com receios constantes, sente-se inferiorizada face aos colegas, nem se consegue auto determinar e organizar no mundo exterior.
37. Desde muito cedo que a relação entre ela e os pais se pautava por uma grande afectividade, o que actualmente não acontece quando a ofendida se irrita e perde o controlo tal como supra descrito.