Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ORLANDO GONÇALVES | ||
Descritores: | HABEAS CORPUS MEDIDA DE COAÇÃO PRISÃO PREVENTIVA ACUSAÇÃO PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA IMPROCEDÊNCIA | ||
Data do Acordão: | 06/29/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | HABEAS CORPUS | ||
Decisão: | IMPROCEDÊNCIA/NÃO DECRETAMENTO | ||
Sumário : | I - É jurisprudência constante do STJ, o entendimento de que o prazo máximo de duração da prisão preventiva a que se reporta o art. 215.º, n.os 1, al. a) e 2 do CPP, conta-se desde a data do início daquela medida coativa, caducando na data da dedução da acusação – que não da data em que a acusação foi notificada ao arguido ou ao respetivo mandatário. II - A medida coativa de prisão preventiva aplicada à ora peticionante/arguida ter-se-ia extinguido se até ao dia 22 de junho de 2023, não tivesse sido deduzida acusação. III - Estando provado que em 20 de junho de 2023, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida, imputando-lhe a prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos arts. 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, als. a), e) e j), do CP, o prazo extintivo da prisão preventiva contido no art. 215.º, n.os 1, al. a) e 2 do CPP, não ocorreu, passando esse prazo a ser o da condenação em 1.ª instância ou, sendo requerida a instrução, o da decisão instrutória, o que no caso, está longe de se verificar. | ||
Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 787/22.0PBMTA-B.S1 Habeas Corpus *
Acordam, em Audiência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça.
I- Relatório
1. AA, em prisão preventiva, decretada pelo Juízo de Instrução Criminal ... - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no âmbito dos autos de inquérito n.º787/22.0PBMTA, veio requerer ao Ex.mo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, através de Advogada constituída, a providência de habeas corpus, “em virtude de prisão ilegal, e a sua consequente libertação imediata, nos termos dos art.º 222 e art.º 223 do Código de Processo Penal, com os seguintes fundamentos”, que se transcrevem: “1. A Requerente foi detida a 22 de Dezembro de 2022, para aplicação de medida de coação, por indiciar a prática, em autoria material de, na forma consumada de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelo art.º131.º e art.º132 n.º 1 e n.º 2, alíneas a), e) e j) do Código Penal; Porquanto, consideram-se fortemente indiciados os seguintes factos: “(…) 1. BB, nasceu em .../.../2002 e é filho da arguida AA. 2. No início de 2021, BB foi residir com a sua mãe na residência desta, sita na Praceta ..., no .... 3. BB não trabalhava nem estudava vivendo a expensas da arguida. 4. O relacionamento entre BB e a arguida foi sempre pautado por conflitos, tendo a arguida apresentado queixa contra o mesmo pela prática de um crime de violência doméstica, que deu origem ao inquérito n.º 633/22.... que corre termos no Núcleo de Ação Penal desta SEIVD. 5. Juntamente com a arguida e com BB residia CC, namorada de BB e DD, nascida a .../.../2007, filha da arguida e irmã do BB. 6. Há cerca de duas semanas, a arguida dirigiu-se a EE, sua vizinha, e disse-lhe que estava farta do filho, que não o queria lá em casa, que o tiro que BB levou há um tempo atrás devia de ser na cabeça e que qualquer dia se passava e que quem o matava era ela. 7. No dia 20 de dezembro de 2022, cerca das 23h00, ao chegar à sua residência, a arguida dirigiu-se à cozinha, local onde arremessou pratos contra o chão, partindo-os. 8. Após, a arguida agarrou em vários pratos e dirigiu-se à porta do quarto de BB, local onde este se encontrava com a namorada CC,. 9. Naquele local, a arguida arremessou os pratos contra o chão, partindo-os. 10. Confrontada por BB acerca dos motivos de tal comportamento, a arguida disse-lhe que estava farta do aturar e que tinha que sair de casa. 11. BB solicitou à arguida que se acalmasse e que se não o fizesse iria chamar a polícia. 12. Ao que, a arguida se dirigiu a BB e disse “podes chamar, chama que é isso que eu quero”. 13. E, em ato continuo dirigiu-se à cozinha da residência, local onde se muniu de uma faca de cozinha com o cabo em madeira com 12 cm de cabo e 15 cm de lâmina. 14. Ao ver a arguida agarrar na faca, BB dirigiu-se à mesma dizendo “tem calma, estás a fazer o quê”. 15.Seguidamente, a arguida, empunhando a aludida faca, correu na direção de BB. 16. Receando o comportamento da arguida, BB fugiu na direção da sala da residência, tendo sido perseguido pela arguida. 17. Em ato contínuo, a arguida, empunhando a faca supra descrita, dirigiu-se a BB e desferiu-lhe quatro golpes na zona frontal de transição do tórax para o pescoço e um golpe na zona frontal abdominal. 18. Ao ouvirem os gritos de BB e na sequência do pedido de ajuda de CC, FF e EE, vizinhas da arguida, dirigiram-se à residência da arguida. 19.Ao presenciar a conduta da arguida, FF dirigiu-se-lhe e disse “que fizeste AA, para que ele já não está a resistir”. 20. Nesse momento, a arguida agarrou numa das pernas de BB, que aparentava encontrar-se inconsciente, e puxou-o arrastando-o até ao corredor da residência ao mesmo tempo que, por várias vezes, disse “ele está a fingir” e “fiz o que tinha de ser feito, ele tem de morrer, ele merece”. 21. De seguida, a arguida colocou-se sobre o corpo de BB e, ao mesmo tempo que disse “ele vai morrer, ele tem de morrer”, empunhando a aludida faca, desferiu-lhe um golpe no pescoço e pontapés na cabeça. 22. Enquanto a arguida levava a cabo a conduta supra descrita, FF gritava para que a mesma parasse e fez menção de a agarrar, apenas não o logrando fazer porquanto a arguida apontou a faca na sua direção. 23. Ao que, FF, receando o comportamento da arguida, fugiu do local. 24. Seguidamente, a arguida voltou a desferir golpes em zonas do corpo de BB ainda não concretamente determinadas. 25. De seguida, GG, vizinho do ..., de modo a fazer com que a arguida cessasse com a sua conduta, agarrou-a e retirou-lhe a faca das mãos. 26.Enquanto era agarrada pelo vizinho, a arguida, com as pernas, agarrou BB pelo pescoço e, por várias vezes, disse “ele ainda não morreu, mas eu vou matá-lo, vou matá-lo”. 27. Em certo momento, a arguida conseguiu soltar-se do vizinho e dirigiu-se a BB e desferiu-lhe um pontapé na cabeça. 28. Após ser detida pelos agentes da PSP que se deslocaram ao local a arguida dirigiu-se a EE e disse “vês eu disse que o ia fazer e fiz”. 29. Em consequência da conduta da arguida, BB sofreu um ferimento corto perfurante na zona carotidiana, quatro ferimentos na zona frontal de transição do tórax para o pescoço com profundidade e um ferimento corto perfurante no terço superior da zona frontal abdominal. 30.Tais lesões foram causa direta e adequada da sua morte. 31. Ao agir da forma supra descrita a arguida atuou com o propósito de tirar a vida a BB, seu filho, o que efetivamente fez, utilizando uma faca, cujas características bem conhecia, desferindo vários golpes em zonas corporais que sabia alojarem órgãos e estruturas vitais à vida. 32. Agiu a arguida com forte determinação em causar a morte a morte da vítima, seu filho, golpeando-o com uma faca em zonas corporais que sabia alojarem órgãos vitais, perseguindo na sua conduta mesmo após verificar que a vítima se encontrava inconsciente, bem sabendo que tal conduta era apta a causar a morte, o que previu e quis. 33. Com a sua conduta, a arguida agiu com frieza de ânimo, com desconsideração total da vida humana da vítima, causando-lhe sofrimento e agonia, e consequentemente, a sua morte. 34. A arguida conhecia as características da faca que detinha, bem sabendo que a mesma potencia gravemente a lesão da integridade física de outras pessoas, sendo apta para ferir e para matar, tendo-a utilizado na concretização da sua conduta, conforme previu e quis. 35. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. 2. Na sequência do primeiro Interrogatório Judicial, por Despacho proferido pela Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, foi aplicada à aqui Requerente, a medida de coação, prevista no art.º 202° do Código de Processo Penal (C.P.P.), ou seja, a Prisão Preventiva. 3. Considerando a presente fase processual (Inquérito, sem acusação proferida), bem como a natureza do crime pelo qual vem a arguida (aqui, Requerente), se encontra indiciada (o qual integra o conceito de criminalidade violenta, nos termos do art.º 1 alínea j) do Código de Processo Penal), o prazo atual de duração máxima de prisão preventiva (6 meses) já decorreu, pois foi atingido no dia 22-06-2023, sem que tivesse sido deduzida acusação - conf. art.º 215 n.º 2 do Código de Processo Penal Em conclusão: a) A Requerente encontra-se ilegalmente presa, tendo sido violado o art.º 27 n.º 1 e n.º 3 e art.º 28 n.º 2, da Constituição da República Portuguesa; b) Nos termos do art.º31 n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e art.º222 e art.º223 do Código de Processo Penal, deve a prisão ser declarada ilegal e ordenada a sua imediata restituição à liberdade.”.
2. Pela Exma. Juíza do Juízo de Instrução Criminal ..., foi prestada a seguinte informação, nos termos do art.223.º, n.º1 do Código de Processo Penal (transcrição): “Como fundamento da petição apresentada (e da ilegalidade da prisão imposta), alega a arguida requerente da providência de habeas corpus que o prazo de duração máxima da prisão preventiva decorreu e sem que tivesse sido deduzida acusação, tendo o seu prazo máximo sido atingido a 22.06.2023. A arguida AA encontra-se sujeita à medida de coação de prisão preventiva à ordem destes autos, aplicada em sede de 1º interrogatório judicial de arguido detido, desde 22.12.2022, por se mostrar fortemente indiciada da prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º1 e n.º 2, alíneas a), e) e j), do Código Penal, o que saiu reforçado com a dedução de acusação pelo Ministério Público, que veio a ser proferida a 20.06.2023 – (fls. 109 e ss. e fls. 336 e ss.). Considerando a natureza do crime pelo qual a arguida se encontrava (e encontra) fortemente indiciada (homicídio, que integra o conceito de criminalidade violenta – artigo 1º, al. j) do Código de Processo Penal), o prazo de duração máxima da prisão preventiva, sem dedução de acusação, correspondia a 6 meses – cfr. artigo 215º, nº 2, por referência ao seu nº 1, al. a), do Código de Processo Penal. Assim, os aludidos 6 meses seriam atingidos a 22.06.2023, caso a acusação não tivesse sido proferida, mas, o que foi e em data anterior àquela, in casu, a 20.06.2023 - pelo que o prazo legal de duração máxima da prisão preventiva não foi, nem se mostra, ultrapassado, atento o disposto no artigo 215º, nº 1, als. a) a c) com a elevação dos prazos consagrada no nº 2 deste normativo, do Código de Processo Penal. Como é pacificamente defendido na nossa jurisprudência, o que é relevante para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva consagrado no artigo 215º do Código de Processo Penal, é a data da prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia ou da condenação - em função da respetiva fase processual) e não da notificação ao arguido dessa peça processual - veja-se, a título exemplificativo, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.05.2023, processo 3233/21.2T9VNF-J.S1, 10.02.2022, processo 44/21.9GBCVD-B.S1, 01.09.2022, processo 8/19.2GAGDL-K.S1, e de 21.08.2018, processo 85/15.5GEBRG-N.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt[1]. Tendo por base o supra exposto, e salvo melhor entendimento, a petição revela-se manifestamente infundada, porquanto o prazo máximo de prisão preventiva não foi ultrapassado, na fase de inquérito, nem o mesmo se encontra esgotado, pelo que não poderemos concluir pela ilegalidade da prisão a que a arguida se mostra sujeita, nos termos do artigo 222º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal.”.
3. Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e a Defensora da requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP):
II - Fundamentação
4. Das peças processuais juntas aos autos e do teor da informação prestada nos termos do art.223.º do Código de Processo Penal, emergem apurados os seguintes factos relevantes para a decisão da providência requerida: Factos 1. A arguida AA foi submetida a 1.º interrogatório de arguido detido, no Juízo de Instrução Criminal ..., Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, e no final do mesmo, por despacho de 22 de dezembro de 2022, proferido pela Juíza de Instrução Criminal, a medida coativa de prisão preventiva prevista no art.202.º do Código de Processo Penal, por se encontrar fortemente indiciada da prática de factos, pelo quais teria cometido, em autoria material e na forma consumada, um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2, alíneas a), e) e j) do Código Penal; 2. A decisão que aplicou à arguida a prisão preventiva foi objeto de recurso, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 26 de abril de 2023, mantido a medida de coação aplicada. 3. Os pressupostos de que depende a aplicação e manutenção da prisão preventiva foram objeto de reexame por despachos judiciais de 17 de março de 2023 e 15 de junho de 2023; 4. No dia 20 de junho de 2023, foi deduzida acusação pública, imputando o Ministério Público à arguida a prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º1 e n.º2, alíneas a), e) e j), do Código Penal. 4. No dia 21-06-2023, os Serviços do Ministério Público, solicitaram ao Estabelecimento Prisional ... a notificação do despacho de acusação à arguida AA e, na mesma data, foi notificada, via citius a Ex.ma Advogada da arguida, de que foi proferido despacho de acusação, remetendo-se-lhe cópia do mesmo.
5. Questão objeto do habeas corpus Saber se a peticionante AA se encontra ilegalmente em prisão preventiva, nos termos do art.222.º, n.ºs 1 e 2 al. c), do Código de Processo Penal, por a prisão preventiva se manter para além dos prazos fixados no art.215.º, n.º1, alínea a) e 2, do C.P.P., devendo, consequentemente, ser imediatamente restituída à liberdade.
6. Direito Delimitado o objeto da providência requerida pela arguida, importa tecer breves considerações sobre este instituto jurídico e as normas que invoca como fundamento do pedido visando a sua imediata restituição à liberdade (artigos 27.º, 28.º, n.º 4, 31.º, n.º1, 32.º, n.º1 da C.R.P. e artigos 215.º, 217.º, 218.º e 222.º, n.ºs 1 e 2 , al. c), do C.P.P.). 6.1. A liberdade física, liberdade de movimentos, expressão da dignidade da pessoa humana é, desde tempos longínquos, objeto de ilegalidades e violações por abuso de poder. Como garantia do direito à liberdade física das pessoas e à segurança, o art.27.º, da Constituição da República Portuguesa, formula o princípio de que «todos têm direito à liberdade e à segurança» (n.º1), «e ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão» (n.º2). Excetua-se deste princípio, a privação da liberdade pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nomeadamente, no caso de «prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.» (art.27.º, n.º 3, al. b) da C.R.P.). Em reforço do mesmo princípio, o art.28.º da C.R.P. estatui, designadamente, que «A prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.» (n.º2) e que « A prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei.» (n.º4). A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos nestes preceitos constitucionais. Para pôr termo à situação de ilegalidade da prisão, o art.31.º da Constituição da República Portuguesa, prevê, como providência específica, o «habeas corpus», dispondo o seguinte: «1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente. 2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos. 3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.». O abuso de poder, referido nesta norma constitucional, traduz uma atuação especialmente gravosa no âmbito dessa ilegalidade, referindo o deputado Barbosa de Melo, em sede de Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, no âmbito da IV Revisão Constitucional, que a ideia por trás da fórmula consagrada no art.31.º, n.º1, “…é que não basta que a prisão viole um aspeto menor, é necessário a violação de um princípio essencial da lei. Uma ilegalidade que é uma mera irregularidade não justifica o habeas corpus que é uma providência excecional.”.[2] Anotando este art.31.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira: “Na sua versão atual, o habeas corpus consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos arts. 27º e 28.º (...). A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art.27º, quando efetuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc.. Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”. Ainda na doutrina constitucional, Jorge Miranda e Rui Medeiros, em anotação ao art.31.º, n.º1, da Lei Fundamental, defendem, sobre a qualificação de «providência extraordinária», atribuída ao habeas corpus, que esta “…não significa e não equivale á excecionalidade. Juridicamente excecional é a privação da liberdade (pelo menos, fora dos termos e casos de cumprimento de pena ou medida de segurança) e nunca a sua tutela constitucional. A qualificação como providência extraordinária será de assumir no seu descomprometido significado literal de providência para além (e, nesse sentido, fora – extra) da ordem de garantias constituída pela validação judicial das detenções e pelo direito ao recurso de decisões sobre a liberdade pessoal.”. [3] Na conformação constitucional e no seu desenho normativo, o habeas corpos é uma providência judicial urgente. “Visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal” decretada ou mantida com violação “patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação”.[4] A natureza que a providência assume na jurisprudência tradicional do STJ, tem sido perfilhada, no essencial, pelo Tribunal Constitucional.[5] Na concretização do art.32.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa - que estabelece a cláusula geral de que « O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» - o legislador manteve, no atual Código de Processo Penal de 1987, o regime diferenciado de habeas corpus, por detenção ilegal (art.220.º) e, por prisão ilegal (art.222.º), que advém do Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de outubro de 1945. 6.2. Dando expressão ao art.31.º da Constituição da República Portuguesa, o art.222.º, n.º2, do Código de Processo Penal, estabelece como pressupostos de habeas corpus, em virtude de prisão ilegal: «a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.». No seguimento do entendimento do habeas corpus, como uma providência extraordinária, a jurisprudência deste Supremo Tribunal vem considerando que os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão.[6] Em matéria de prazos da prisão preventiva, os prazos a considerar são os vertidos do art.215º do CPP, sob a epígrafe «prazos de duração máxima da prisão preventiva», onde se dispõe, nomeadamente, e com interesse para o presente caso: «1- A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido: a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação; b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória; c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância; 2- Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime: (…).». Os prazos de prisão preventiva aqui previstos são válidos para as diversas fases processuais nele consideradas. Como consigna o acórdão do STJ de 16/03/2011, na jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, são estes os prazos a que o art.222.º, n.º2 alínea c) do C.P.P. se refere para alegar excesso de prazo de prisão preventiva e não quaisquer outros prazos que corram durante o decurso da prisão preventiva, como os de reexame dessa medida a que alude o art.213.º do mesmo Código.[7] É também jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que o prazo máximo de duração da prisão preventiva a que se reporta o art.215.º, n.º1 alínea a) e 2 do Código de Processo Penal, conta-se desde a data do início daquela medida coativa, caducando na data da dedução da acusação – que não da data em que a acusação foi notificada ao arguido ou ao respetivo mandatário. Sintetizando o sentido desta jurisprudência, consigna-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 14 de janeiro de 2021, que: “Tanto resulta, desde logo, do elemento literal que pode extrair-se da referência, na alínea a) do n.º 1 do artigo 215.º, do CPP, à dedução da acusação – ademais replicado nas restantes alíneas (proferida decisão instrutória, tenha havido condenação) do mesmo segmento normativo. 14. Todos aqueles casos se reportam à data da prática do acto processual ou da prolacção da decisão (acusação, decisão instrutória, condenação), que não ao momento em que aquela chega ao conhecimento do arguido ou do respectivo mandatário. 15. E assim, sob pena de, em caso de pluralidade de arguidos, o prazo se reportar a datas diversas, consoante os diferentes momentos de recepção da decisão, de, eximindo-se o destinatário ao recebimento da notificação, aquele prazo se prolongar indevida e indefinidamente, e mesmo de se fazer recair sobre os Serviços o cumprimento de um ónus que apenas pode imputar-se ao magistrado. 16. Neste sentido se pronunciaram, designadamente, os acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Dezembro de 2008 (processo P3971, disponível, como os mais citandos sem menção de origem, na base de dados do IGFEJ), bem como os (ali citados) acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Outubro de 2005 (Coletânea de Jurisprudência - STJ, 2005-3-186), de 13 de Fevereiro de 2008 (processo 522/08), e, por mais recente, o acórdão de 29 de Outubro de 2020 (processo 96/20.9PHOER-B.S1), vindo ademais tal interpretação a passar o teste da constitucionalidade – cf. acórdãos, do Tribunal Constitucional, n.ºs 404/2005, 208/2006, 2/2008 e 280/2008 (disponíveis na base de dados do TC) –, designadamente por referência aos preceitos constitucionais invocados pelo requerente.”.[8] Por fim, importa anotar que o arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir, salvo se a prisão dever manter-se por outro processo (art.217.º, n.º1, do C.P.P). 7. Retomando o caso concreto. É pacifico que a arguida AA ficou sujeita à medida coativa de prisão preventiva, no dia 22 de dezembro de 2022, por despacho judicial, na sequência de 1.º interrogatório judicial, considerando que existiam forte indícios da prática, por parte da mesma, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º1 e n.º 2, alíneas a), e) e j), do Código Penal. O crime de homicídio qualificado, imputado naquele despacho à arguida, tem uma moldura penal de 12 a 25 anos de prisão e integra o conceito de criminalidade violenta a que alude o art.1.º, al. j), do Código de Processo Penal. Assim, considerando o disposto no art.215.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, do Código de Processo Penal, o prazo de duração máxima da prisão preventiva a que a arguida estava sujeita, até à dedução da acusação, era de 6 meses. Do exposto, conclui-se que a medida coativa de prisão preventiva aplicada à ora peticionante/arguida ter-se-ia extinguido se até ao dia 22 de junho de 2023, não tivesse sido deduzida acusação. Estando provado que em 20 de junho de 2023, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida AA, imputando-lhe a prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º1 e n.º 2, alíneas a), e) e j), do Código Penal, o prazo extintivo da prisão preventiva contido no art.215.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu. Com a dedução da acusação o prazo de duração máxima da prisão preventiva passou a ser o da condenação em 1.ª instância ou, sendo requerida a instrução, o da decisão instrutória, o que no caso, está longe de se verificar. Em suma, a medida coativa de prisão preventiva do peticionante mostra-se ordenada por entidade competente; é motivada por facto pelo qual a lei o permite; e não se mantém para além dos prazos fixados na lei, pelo que não se verificam os pressupostos para deferir o habeas corpus fixados nos artigos 31.º da Constituição da República Portuguesa e 222.º do Código de Processo Penal. Inexistindo um quadro de abuso de poder, por virtude dos fundamentos de habeas corpus invocados pela peticionante/arguida, mais não resta que indeferir a sua petição.
III - Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decidem os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em: a) Indeferir o pedido de habeas corpus peticionado pela arguida AA, nos termos do art.223.º, n.º4, alínea a), do C.P.P., por falta de fundamento bastante; b) Condenar a peticionante, nos termos do art.223.º, n.º 6, do C.P.P., no pagamento de uma soma de 6 UCs; e b) Condenar a mesma peticionante nas custas do processo, fixando em 2 (duas) UCs a taxa de justiça. * (Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).
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Lisboa, 29 de junho de 2023
Orlando Gonçalves (Relator) António Latas (Juiz Conselheiro Adjunto) Agostinho Torres (Juiz Conselheiro Adjunto) Helena Moniz (Presidente da Secção)
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