Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
241/21.7T8TND.C1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
TRABALHO DOMÉSTICO
OBRIGAÇÃO NATURAL
CESSAÇÃO
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - A prestação do trabalho doméstico exclusivamente ou essencialmente por um dos membros da união de facto, sem contrapartida, pode resultar num verdadeiro empobrecimento deste caso se verifique um manifesto desequilíbrio na repartição dessas tarefas.

II - Existe manifesto desequilíbrio na repartição das tarefas a prova revelar que a contribuição através do trabalho doméstico no quadro concreto da organização do casal atenta as características deste, é consideravelmente superior e desproporcional à participação do outro e reveladora de uma renúncia de forma excessiva à satisfação dos interesses próprios e pessoais.

III - Não existe desequilíbrio na repartição das tarefas quando está provado que a ré durante todo o tempo em que durou a união de facto executou, em exclusivo, as tarefas domésticas e que ao autor cabia prover a todas as despesas domésticas em exclusivo, desde logo as decorrentes do alojamento, o que decorreu durante os 15 anos de vida em comum, provando-se também que, por proposta da ré aceite pelo autor que depois de cessada a união de facto a ré continuasse a viver na casa a tratar daquele que tinha tido dois avcs, com todas as despesas a serem pagas por ele, como dantes, mas com o pagamento de determinada quantia.

IV - Reforça a ideia de não desequilíbrio das participações a prova de a ré durante todo o tempo em que durou a união de facto ter tido trabalho e ou rendimentos próprios e conta, bancária só sua e ter adquirido com o produto das suas poupanças, um apartamento na ....

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Relatório

AA, interpôs ação declarativa com processo comum, contra BB, pedindo a sua condenação no reconhecimento dele, Autor, como dono e legítimo possuidor do prédio descrito no ponto 1º da Petição Inicial, e na sua desocupação, bem como no pagamento de uma indemnização diária não inferior a 50,00€, por cada dia de atraso, após trânsito em julgado da sentença condenatória, na entrega do prédio livre e devoluto.

Para tanto alegou ser dono de um determinado prédio urbano, por ele mandado construir no ano de 1999, erigindo-o em dois prédios rústicos que adquiriu em 1992.

Entre 1991 e 1993, ele e a R., ele divorciado, ela viúva, iniciaram um relacionamento amoroso, principiando a viver juntos em ..., país onde os dois trabalhavam, tendo regressado a Portugal em 2000, aquando da reforma dele, e passado a viver como um casal na acima referida casa. Cada um ganhava o seu dinheiro, fazia as suas economias, com contas e patrimónios separados, nunca tendo a R. contribuído com qualquer dinheiro fosse para o que fosse, designadamente para a aquisição e construção da acima referida casa, sendo que ela, com as suas economias, adquiriu habitação própria em ..., de que é única proprietária.

Porém, em 2008, vítima de AVC, limitado nos seus movimentos, a fim de poder mexer na conta bancária para o seu dia a dia, adicionou a R., como autorizada, na sua conta à ordem. Em 2015 resolveram ambos dissolver a união de facto que tinham mantido. Algum tempo depois, a R. convenceu-o a voltar, propondo-lhe ficar como sua empregada doméstica, mediante o pagamento mensal de 400,00€, continuando ambos a viver na casa acima referida. Sucede que, valendo-se do frágil estado de saúde do autor e da diferença de idades, ele com 86 anos, ela com 67, privou-o de autoridade dentro de sua própria casa, tendo saído ele de casa, passando a viver em casa dum seu sobrinho. Não obstante tê-la intimado a abandonar a casa e levar os seus pertences, recusa-se a mesma a sair, obrigando-o a intentar a presente ação.

A R. contestou e deduziu reconvenção pedindo que se reconheça que Autor e Ré viveram em condições análogas às dos cônjuges, desde, pelo menos, 1991 a 2021, e se reconheça o direito de propriedade comum sobre o prédio acima identificado e respetivo recheio/ mobiliário. Caso assim não se entenda, que se reconheça que o A. a e Ré viveram em união de facto desde o ano 1991 a 2021 e que a Ré contribuiu de igual modo (em 50%) para a obtenção do património (comum) do casal, constante do prédio acima referido e no seu recheio, condenando-se o A. a pagar á Ré metade desse património, que computa em pelo menos 90.000€, ou pelo que se vier a liquidar em execução de sentença. Caso ainda assim não se entenda, se condene o A. a pagar à Ré uma compensação a título de enriquecimento sem causa, pelo seu trabalho (essencialmente doméstico), e na prestação de cuidados de saúde ao A, sem contrapartida, consubstanciada em, pelo menos metade do valor do imóvel acima referido e respetivo recheio/mobiliário, que se apura desde já em, pelo menos, € 90.000,00.

Para tanto alegou que no início do relacionamento (1990/91) e até à construção da acima referida casa (ano 2000), estiveram a viver no Carvalhal de ..., numa casa da Ré, e que durante todo o seu relacionamento foi sempre ela que fez todas as despesas domésticas, alimentação, água, gaz, luz da casa, compra de roupa, calçado, medicamentos, tendo sido ela quem confecionava as refeições, quem lavava e limpava a casa, as camas, e demais lide doméstica, acrescendo que nos últimos anos, com o agravar da doença do Autor, dificuldade de andar, de ouvir e demência, era ela quem tinha que sair com ele, de o amparar, de o vestir, calçar, dar banho. Refere ainda que o Autor aforrava toda a sua reforma, tendo sido muitas as discussões por causa disso durante a constância da união de facto, ao passo que a R. gastava toda a sua pensão, tendo sido criada do Autor, para todo o serviço.

Os terrenos onde a casa foi edificada, esta, e o respetivo recheio, decorreram de dinheiro dos dois, pelo que o património que hoje têm, não obstante a casa ter sido inscrita somente em nome do A., - o que sucedeu por uma questão formal, uma vez que o terreno onde o mesmo foi implantado se encontrava em nome dele - adveio de contribuições iguais de um e de outro.

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Por sentença a ação foi julgada procedente; declarado o Autor titular do direito de propriedade do prédio urbano constituído por casa de habitação com 3 pisos, anexos e logradouro, sito no lugar de ..., freguesia de ..., ..., a confrontar de norte e nascente com herdeiros de CC, do sul com DD e do poente com estrada, inscrito na matriz sob o art.º 1433.º, e descrito na Cód.Reg. Predial a seu favor, com o número 2569/20210625 e condenado a Ré no reconhecimento desse direito de propriedade, bem como na entrega ao Autor, no prazo de 15 (quinze) dias a contar do trânsito em julgado da sentença, do referido imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens, com exceção dos que sejam da propriedade deste, bem como a condená-la no ao Autor da quantia de € 50,00 (cinquenta euros) por cada dia de atraso na ordenada entrega do imóvel descrito em A. E julgou improcedente o pedido reconvencional deduzido pela R., absolvendo o Autor desse pedido.

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Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a ré tendo a apelação sido julgada improcedente e confirmada a sentença nos seus precisos termos.

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Vem agora de novo a ré recorrer através de revista excecional concluindo que:

“ I - Cuidamos ser premente uma nova apreciação de direito, de molde a propiciar-se uma justa e adequada aplicação do mesmo, ao abrigo e nos precisos termos do exigido pela alínea a) e b), o artigo 672.º do C.P.C.

II - Por provado que, desde o ano de 1991 até 2016, foi a recorrente quem tratou de todas as lides domésticas do casal, sem qualquer compensação económica por parte do recorrido.

III - Que a Recorrente deixou a sua atividade profissional e a casa onde vivia para ir viver com o Recorrido, dedicando-se a tempo inteiro à vida doméstica e que durante o período em que Recorrente e Recorrido viveram juntos, cuidou das lides domésticas, confecionou as refeições, tratou da roupa, limpou a habitação, fez compras para a casa, tendo ainda Recorrente e Recorrido, adquirido mobiliário e artigos para o lar que em conjunto escolheram,

IV- Que o exercício da atividade doméstica, exclusivamente pela Recorrente durante a união de facto, sem contrapartida, resultou num verdadeiro empobrecimento desta, e a correspetiva libertação do Recorrido da realização dessas tarefas e consequentemente o enriquecimento deste, uma vez que lhe permitiu beneficiar do resultado da realização dessas atividades sem contrapartida, durante mais de 20 anos, resultando para a Recorrente num verdadeiro empobrecimento.

V- A cessação da união de facto determinou o desaparecimento posterior da causa da deslocação patrimonial verificada, e originou o nascimento do direito da Recorrente a exigir a restituição em função do regime do enriquecimento sem causa, nos termos do art.º 473º e seguintes do Código Civil.” (Cf. Ac. T. R. Guimarães. De 29.09.2004. Verificou-se o a contribuição da recorrente na aquisição do património pelo Recorrido durante a união em benfeitorias de grande envergadura, traduzidas no valor de € 180.000,00 (cento e oitenta mil euros),

VI- Firmou a Recorrente o seu pedido reconvencional, numa união de facto com o autor que durou mais de vinte anos, onde a Recorrente foi uma “criada” para todo o serviço do Recorrido.

VII - Que a aferição do quantum do enriquecimento do recorrido, face ao empobrecimento da recorrente, seja feita segundo critérios de equidade, fixando um valor global para as contribuições com a realização das diversas tarefas que se entender terem enriquecido o recorrido, adotando-se como critério o valor do salário mínimo nacional, multiplicado por doze meses, desde 1991 a 2016, vinte e cinco anos de vivência em comum, ao qual se poderá retirar 1/3 do mesmo, por se considerar a necessidade de afetação de parte desse valor às despesas da recorrente .

Razões pelas quais se impõe uma melhor aplicação do direito, fazendo- o coincidir com a justiça própria dos tria praecepta iuris. Não se permitindo que sob a capa do direito escrito se abriguem soluções de desprezo evidente pela justiça evidente, aquela que até o direito natural nos impõe.”

Não houve contra alegações.

A revista excecional foi admitida

Cumpre decidir.

… …

Fundamentação

Está provada a segui9nte matéria de facto:

“ 1 AA é o titular de direito de propriedade do prédio urbano constituído por casa de habitação com 3 pisos, anexos e logradouro, sito no lugar de ..., freguesia de Mouraz, ..., a confrontar de norte e nascente com herdeiros de CC, do sul com DD e do poente com estrada, inscrito na matriz sob o art.º 1433.º, e descrito na Cód.Reg.Predial a seu favor, com o número 2569/20210625;

2 - O imóvel descrito em 1- foi construído no ano de 1999 por ordem de AA em dois prédios rústicos que adquiriu, por escritura pública de compra e venda, no dia ... .11.1992, a DD e mulher EE e a FF e marido, GG;

3 - Desde a data descrita em 2- (... .11.1992) AA detém a posse pública, pacífica, de boa-fé, ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de quem que seja, dos prédios rústicos supra descritos, na parte não ocupada pelo urbano referido em 1-, usufruindo de todas as suas utilidades, cultivando-os, agricultando-os, colhendo os seus frutos e pagando as respetivas contribuições;

4- No ano de 1991 AA, no estado de divorciado, e BB, no estado de viúva, passaram a partilhar cama, mesa e habitação, assim se mantendo até ao ano de 2016;

5 - AA e BB viveram em ... até ao ano de 2000, numa habitação propriedade daquele;

6 - AA exerceu a profissão de ... por conta de outrem em ... até ao ano de 2000, ano em que se reformou e regressou a Portugal, juntamente com BB;

7- Em Portugal, AA e BB passaram a viver no imóvel descrito em 1-, tendo aquele continuado neste país a exercer atividade profissional de ...;

8- Quando em ..., BB exerceu as funções de ... por conta de outrem;

9- Desde o ano de 2016 até ao ano de 2020, AA e BB partilharam apenas a mesa e a habitação;

10- Devido a desentendimentos com BB, AA saiu da residência do casal, referida em 1-, no ano de 2020, passando a viver em casa de um seu sobrinho e afilhado, na localidade de ..., ...;

11- Desde o ano de 1991 até ao ano de 2016 foi BB quem tratou de todas as lides domésticas da residência do casal, assim como das roupas de AA, sem qualquer compensação económica por parte deste;

12- Desde o ano de 1991 até ao ano de 2016 foi AA quem suportou exclusivamente todas despesas inerentes à vida doméstica, pagando, dos proventos do seu trabalho, os consumos de água, luz e de gás, os géneros alimentícios que consumia juntamente com BB, o combustível da viatura automóvel e todas as demais despesas comuns ao casal;

13- No ano de 2016, após a saída de AA da residência do casal, BB procurou o mesmo e propôs-lhe pagar a quantia de € 400,00 (quatrocentos euros) mensais para continuar a tratar das lides domésticas, assim como das roupas daquele, o que pelo mesmo foi aceite, regressando à residência do casal e procedendo ao pagamento da referida quantia àquela, mantendo, contudo, o pagamento de todas as despesas do casal, como descrito em 12-;

14- AA tem 86 (oitenta e seis) anos de idade, sofreu dois AVC, apresentando dificuldade de locomoção;

15- BB tem 67 (sessenta e sete) anos de idade, mantendo a sua residência no imóvel descrito em 1-;

16- Durante os anos de vida em comum com AA, BB auferiu uma pensão de viuvez no montante de € 800,00 (oitocentos euros), além do vencimento pelo exercício da sua profissão de ..., que recebeu até ao ano de 2000;

17- Durante os anos de vida em comum AA e BB foram titulares em exclusivo de contas bancarias para onde foram canalizando respetivamente as suas poupanças;

18- Porém, no ano de 2008, devido ao estado de saúde de AA, este autorizou BB a movimentar a conta bancária .º 1- ...........01 do “Banco BPI, SA”, de que era único titular e cujos saldos provieram exclusivamente de poupanças suas;

19- Durante os anos de vida em comum AA, BB adquiriu, com o produto das suas poupanças, um apartamento na ...;

20- No ano de 2018, BB doou o apartamento referido em 19- a uma sua filha;

21- Em momento posterior à doação referida em 20-, BB propôs a AA a celebração de testamento, onde reciprocamente nomeavam o outro seu herdeiro, o que foi recusado por este;

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635 n.º 4 e 639 n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver, delimitadas pelas conclusões, importa em saber se a ré, em razão da união de facto com o autor e do trabalho doméstico que desenvolveu tem direito a um montante a título de enriquecimento sem causa segundo critérios de equidade.

… …

A questão suscitada na presente revista foi já objeto de decisões neste Supremo Tribunal de Justiça, que a própria decisão recorrida visita com qualidade de critério e é esse percurso de observação e análise que acompanharemos, advertindo, não desnecessariamente porque a situação em conflito o torna ainda mais premente, que é a realidade concreta fornecida pela prova que esclarece e conforma o entendimento normativo a adotar.

Estamos perante uma situação de cessação de uma relação de união de facto entre o Autor e a Ré, com uma duração de 15 anos e em que as partes questionam se, através do instituto do enriquecimento sem causa, a Ré tem direito a receber o valor equivalente às suas contribuições para a aquisição de diversos bens móveis e imóveis que integram o património do Réu.

A oposição inicial de entendimento quanto à natureza do trabalho doméstico no âmbito de uma união de facto, no sentido de determinar se configura uma obrigação natural ou uma contribuição ressarcível a título de enriquecimento sem causa, foi (vai) sendo debatida quer na doutrina quer na jurisprudência havendo uma crescente aceitação no sentido de, por regra, o exercício da atividade doméstica, por apenas, ou essencialmente um dos membros da união de facto, sem contrapartida, poder resultar num verdadeiro empobrecimento deste se se verificar um manifesto desequilíbrio na repartição dessas tarefas– vd. Júlio Gomes in O Conceito de Enriquecimento, o Enriquecimento Forçado e os Vários Paradigmas do Enriquecimento sem Causa, Universidade Católica Portuguesa, 1998, pág. 235, e Rossana Martingo Cruz in União de Facto versus Casamento, Gestlegal, 2019, pág. 569 – por libertar o outro membro da união da realização dessas atividades permitindo-lhe beneficiar destas sem custos ou contributos – vd. Rossana Martingo Cruz op. cit. pág. 569, e, a propósito de igual situação na relação conjugal, Maria João Tomé in Código Civil Anotado. Livro IV. Direito da Família, Coord. por Clara Sottomayor, Almedina, 2020, pág. 223-227. Todavia, é na análise global da economia do casal revelada nos factos provados que tem de se apurar a existência ou não de recíprocos enriquecimentos que se possam considerar compensados - como se sinaliza nos acs. deste STJ 13.04.2010 no proc. 6025.05, de 20.03.20014 no proc. 2152.09, de 11.04.2019 no proc. 219/14; de 27.06.2019 no proc. 944/16 todos in dgsi.pt. – e ainda no mesmo sentido Francisco Manuel Pinto Pereira Coelho in Dissolução da União de Facto e Enriquecimento sem Causa, R.L.J. n.º 145, pág. 117, e Júlio Gomes, O Enriquecimento sem Causa e a União de Facto, Cadernos de Direito Privado n.º 58, pág. 18. Em verdade, uma vida em comum, atendendo à sua natureza e significado, não constitui uma matemática do quotidiano registável num livro de razão com colunas de débito e crédito mesmo que observada em termos estritamente normativos. Bastará pensar nas competência e aptidões próprias com que cada membro concorre para a vida em comum, bem como o modo como se acorda, mesmo tacitamente, a divisão de desempenhos para se concluir que a resposta a dar sobre o trabalho doméstico desenvolvido não ter uma resposta absoluta decorrente de ser trabalho doméstico. A observação da organização do casal em vida comum deve ser presidida por uma ideia de equilíbrio, sensatez e justiça, de forma a descobrir em cada caso a harmonia/desarmonia dos interesses diferentes e até por vezes conflituantes, percebendo não só o tempo histórico e a geografia do casal, mas também o que a lei pretende como critério decisor.

Sendo a igualdade inerente à ideia de justiça, e estando afastada a possibilidade de ser considerada, em absoluto, como obrigação natural a realização da totalidade ou de grande parte do trabalho doméstico de uma casa, onde vive um casal em união de facto, por apenas um dos membros, cremos que a realização dessas tarefas em exclusivo por um deles pode por vezes ser justificada. Quando pela sua extensão, modo constante como se desenvolveram ao longo do tempo e aceitação como se (não) distribuíram e consolidaram, se deva entender que correspondem ao modo de vida que os membros acordaram de livre vontade. O diálogo, como expressão de igualdade e pressuposto de uma relação, no concreto que os factos provados permitam caracterizar essa relação, é o que fará concluir se o trabalho doméstico em exclusivo resultou de uma aceitação e entendimento comum (sempre retratável) ou se de um estado de coisas ou de um desequilíbrio de perceção de rendimentos que o atavismo tenha tornado tácito. Neste sentido, o tipo de agregado, com filhos (e por vezes até com mais familiares residentes), com uma carga de refeições diárias plúrima e constante e com a inerente exigência de limpezas, consoante seja a ocupação diária da casa, são também indicadores importantes para se perceber e decidir o quadro de organização e vida doméstica e a existência, ou não, de um manifesto desequilíbrio na repartição dessas tarefas e injustiça na sua realização.

O equilíbrio e igualdade que reclama uma repartição de tarefas, tendo de ser o mais paritária, não cremos que tenha de significar uma distribuição de atividades da mesma natureza, permitindo aos sujeitos da relação acordarem livremente (mesmo quem de forma tácita) que um deles não contribua com a prestação de trabalho doméstico – vd. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, 5.ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, pág. 83-84; Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, Estatuto Patrimonial da União de Facto, Revista julgar, n.º 40, pág. 111-112, e Os Factos no Casamento e o Direito na União de Facto: Breves Observações, “Textos de Direito da Família para Francisco Pereira Coelho”, pág. 94-96, Júlio Gomes, O Enriquecimento sem Causa e a União de Facto, Cadernos de Direito Privado n.º 58, pág. 6-11 e Rossana Martingo Cruz, União de Facto versus Casamento, pág. 453 e seg., na lógica de uma especialização dos contributos de cada um.

A expressão da ideia de justiça em equilíbrio simultâneo com o respeito pelas particularidades da vida de (cada) casal ficou expressa na reforma do regime do divórcio, operada pela Lei n.º 61/2008, ao estabelecer mecanismos compensatórios das contribuições desproporcionadas para os encargos da vida familiar durante o casamento (artigo 1676 n.º 2, do CCivil), compreendendo-se neles a realização das tarefas domésticas - neste sentido o ac. do STJ de 14-1-2021 no proc. 1142/11.2TBBCL.1.G1.S1, especialmente as suas notas 13 e 14. Neste preceito, que consideramos indicador para a problemática do enriquecimento em sede de união de facto, sublinhamos o princípio de o dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbir a ambos os membros do casal de acordo com as possibilidades de cada um e a advertência para a circunstância de a compensação estar dependente da circunstância de a contribuição de um deles ser consideravelmente superior e consistir numa renúncia de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum. Sem se poder replicar por decalque coincidente o mecanismo compensatório do art. 1676 nº2 do CCivil às situações de rutura de uma união de facto, por não se poder impor um regime a quem optou por a ele não se subordinar, encontrando-se as relações entre os membros de uma união de facto sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais, atendendo à natureza do trabalho doméstico num quadro de união de facto, entendemos não se poder desconsiderar o critério, pelo menos qualitativo e axiomático, daquele preceito - vd. João Cura Mariano, O Direito de Família na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Julgar, n.º 21, pág. 31, Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, Estatuto Patrimonial da União de Facto, Julgar, n.º 40, pág. 99 e seg., Os Factos no Casamento e o Direito na União de Facto: Breves Observações, em “Textos de Direito da família para Francisco Pereira Coelho”, pág. 83 e seg -

Partindo então da possibilidade de o convivente em união de facto, quando se considere empobrecido relativamente aos bens em cuja aquisição participou, seja diretamente, seja através da apropriação de poupanças significativas ao adquirente, poder pedir que o outro convivente seja condenado a reembolsá-lo com fundamento no enriquecimento sem causa – ou apresentar esse crédito como exceção ao pedido de reivindicação do outro, como no caso - caber-lhe-á o ónus da prova relativamente à falta de causa justificativa da atribuição patrimonial, como é regra no âmbito do enriquecimento sem causa enquanto fonte autónoma, que é, da obrigação de restituir, bem como dos seus demais requisitos - que o mesmo tenha sido obtido imediatamente à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição (isto é, que não haja de permeio, entre o ato gerador de prejuízo e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro qualquer ato jurídico) e que a lei não permita ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.

O enriquecimento carece de causa justificativa sempre que o direito não o aprove ou consinta, por não existir uma relação ou um facto que de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico justifique a deslocação patrimonial ocorrida, isto é, que legitime o enriquecimento. O direito ao enriquecimento sem causa no âmbito da dissolução da união de facto coloca-se nas situações em que tenham sido adquiridos bens com a participação de ambos os seus membros, sobretudo, quando tais bens apenas estejam titulados em nome apenas de um desses membros - como é o caso , na situação dos autos, do imóvel a que se reporta o facto 1 da matéria de facto - cabendo saber se essa participação, para além de monetária, se pode traduzir, como acima se referiu, na apropriação de poupanças significativas ao adquirente. Por outro lado, apreciando naturalisticamente se a contribuição em causa se pode considerar consideravelmente superior e reveladora de uma renúncia de forma excessiva à satisfação de interesses próprios e pessoais, o resultado dessa indagação permitirá concluir se existe realização desproporcionada das tarefas domésticas por um dos elementos da união de facto para que esse encargo seja contabilizado nas contribuições que permitiram ao outro membro adquirir património no decurso da relação de união de facto.

Com esta exposição acompanha-se a decisão recorrida quando nela se adverte que a medida relevante do trabalho doméstico por apenas um membro da união de facto, tem de ser vista da forma como, por um lado, os encargos económicos implicados na vivência dessa união, e por outro, esse trabalho e os adjacentes de cuidados aos filhos, tenham sido concretamente distribuídos entre os membros da mesma, tudo relativamente aos proventos de cada um dos seus membros. Fora das “transferências excecionais” (como a aquisição de um imóvel, a construção de uma casa … ), e desde que não se verifique, no contexto da globalidade dos factos, que a realização do trabalho doméstico ou adjacente, apenas por um dos membros da união, se mostra desproporcional, não haverá lugar a falar de enriquecimento sem causa do membro do casal não participante desse trabalho, antes se devendo entender que o enriquecimento deste membro da união tem como causa justificativa a subsistência da união de facto, «para a qual cada um dos membros contribuiu em termos materiais pela forma tacitamente acordada pelo casal enquanto a relação se manteve.

Na análise dos factos provados, sabe-se que desde 1991 o autor e a ré, ele no estado de divorciado e ela no de viúva, passaram a viver em união de facto até ao ano de 2016, primeiro em ... até ao ano de 2000 numa habitação propriedade daquele e, depois, em Portugal no imóvel discutido nos autos. O autor exerceu a profissão de ... por conta de outrem em ... até ao ano de 2000, ano em que se reformou e regressou a Portugal, juntamente com a ré tendo aquele continuado a exercer atividade profissional de .... Por sua vez, em ..., a ré exerceu as funções de ... por conta de outrem e durante os anos de vida em comum com o autor auferiu uma pensão de viuvez no montante de € 800,00 (oitocentos euros), além do vencimento pelo exercício da sua profissão de ..., que recebeu até 2000. E é neste contexto de rendimentos e atividades profissionais que durante todo o tempo de convivência foi a ré quem tratou de todas as lides domésticas da residência do casal, assim como das roupas do autor, sem qualquer compensação económica por parte deste, em contraponto com a circunstância de ter sido ele quem suportou exclusivamente durante todo esse tempo todas despesas inerentes à vida doméstica, pagando, dos proventos do seu trabalho, os consumos de água, luz e de gás, os géneros alimentícios que consumiam, o combustível da viatura automóvel e todas as demais despesas comuns ao casal.

Sem se poder configurar a existência de qualquer acordo expresso de divisão de desempenhos julgamos estar presente na realidade de autor e ré, tacitamente, uma aceitação de divisão de encargos que os mesmos terão entendido como proporcional. Num casal formado apenas por ambos e em que os dois têm atividade profissional (a ré pelo menos até 2000) e rendimentos próprios, o trabalho doméstico prestado em exclusivo pela ré apresenta-se como a sua participação por oposição ao pagamento, também ele exclusivo, de todas despesas inerentes à vida doméstica. E este entendimento que considerámos tacitamente aceite podemos vê-lo afirmado quando a prova revela que entre o ano de 2016 até ao ano de 2020, o autor e a ré ainda partilharam a mesa e a habitação mas num quadro diferente de relacionamento, sendo esta diferença a que se encontra expressa quando, depois de cessada a união de facto a ré propôs ao autor que este lhe pagasse €400,00 (quatrocentos euros) mensais para continuar a tratar das lides domésticas, assim como das roupas daquele, o que foi aceite, regressando à residência do casal e procedendo ele a esse pagamento com o de todas as despesas da casa. E se quiser pretender-se que o pagamento dessa quantia pelo autor constitui o reconhecimento do valor que ele mesmo aceitava como contrapartida ao trabalho doméstico da ré, temos por mais equilibrado entender que esse facto revela que a própria ré ( e até o autor) considerou que a partir da cessação da união de facto, a natureza desse trabalho era diferente, até porque correspondia a tratar do autor com maior exigência de ocupação e pluralidade de tarefas por ele ter sofrido dois AVC, apresentando dificuldade de locomoção.

Também por durante os anos de vida em comum autor e ré terem sido titulares em exclusivo de contas bancárias diferentes, para onde foram canalizando as respetivas poupanças, é um indicador de uma autonomia organizativa que mais conforma que o contributo exclusivo para o trabalho doméstico em confronto com o das despesas da casa (em que se inclui o alojamento) revela um equilíbrio proporcional (ou pelos menos não desproporcional) de responsabilidades, autonomia que tem expressão no facto que a ré ter adquirido com o produto das suas poupanças, um apartamento na ... que em 2018 veio a doar a uma sua filha.

Pelo exposto, por se entender que não ficou demonstrado que a contribuição da ré através do seu trabalho doméstico no quadro concreto da organização do casal atenta as suas características, seja consideravelmente superior e desproporcional à participação do autor para a vida doméstica ou reveladora de uma renúncia de forma excessiva à satisfação dos interesses próprios e pessoais, deve improceder a presente revista.

… …

Síntese conclusiva

- A prestação do trabalho doméstico exclusivamente ou essencialmente por um dos membros da união de facto, sem contrapartida, pode resultar num verdadeiro empobrecimento deste caso se verifique um manifesto desequilíbrio na repartição dessas tarefas.

- Existe manifesto desequilíbrio na repartição das tarefas a prova revelar que a contribuição através do trabalho doméstico no quadro concreto da organização do casal atenta as características deste, é consideravelmente superior e desproporcional à participação do outro e reveladora de uma renúncia de forma excessiva à satisfação dos interesses próprios e pessoais.

- Não existe desequilíbrio na repartição das tarefas quando está provado que a ré durante todo o tempo em que durou a união de facto executou, em exclusivo, as tarefas domésticas e que ao autor cabia prover a todas as despesas domésticas em exclusivo, desde logo as decorrentes do alojamento, o que decorreu durante os 15 anos de vida em comum, provando-se também que, por proposta da ré aceite pelo autor que depois de cessada a união de facto a ré continuasse a viver na casa a tratar daquele que tinha tido dois avcs, com todas as despesas a serem pagas por ele, como dantes, mas com o pagamento de determinada quantia.

- Reforça a ideia de não desequilíbrio das participações a prova de a ré durante todo o tempo em que durou a união de facto ter tido trabalho e ou rendimentos próprios e conta, bancária só sua e ter adquirido com o produto das suas poupanças, um apartamento na ....

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Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar improcedente a presente revista e , em consequência, conformar a decisão recorrida.

Custas pela ré.

Lisboa, 12 de outubro de 2023


Relator: Cons. Manuel Capelo

1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Sousa Lameira

2º adjunto: Srª. Juíza Conselheira Fátima Gomes