Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
204/22.5YUSTR.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
CONTRAORDENAÇÃO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
DILAÇÃO DO PRAZO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: VERIFICADA A OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Sumário :
I. O recurso de fixação de jurisprudência é um recurso extraordinário que tem por finalidade o estabelecimento de interpretação uniforme de normas jurídicas aplicadas de forma divergente e contraditória em acórdãos dos tribunais da Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça, com a eficácia prevista no artigo 445.º do CPP, contribuindo para a realização de objetivos de segurança jurídica e de igualdade perante a lei, que constituem exigências do princípio de Estado de direito (artigo 2.º da Constituição).

II. Por aplicação subsidiária das normas do processo penal ao processo contraordenacional, determinada pelo artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, é admissível a fixação de jurisprudência em matéria de contraordenações pelo Supremo Tribunal de Justiça, para resolução de conflitos entre acórdãos dos tribunais da relação, os quais, atento o disposto no artigo 75.º, n.º 1, do mesmo diploma, não admitem recurso ordinário. Irrecorribilidade que, como requisito específico relativo aos acórdãos da relação, é imposta pelo artigo 437.º, n.º 2, do CPP.

III. Em jurisprudência uniforme e reiterada, o Supremo Tribunal de Justiça, vem afirmando que a admissibilidade do recurso depende da verificação de um conjunto de pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial., que se mostram preenchidos.

IV. O que estava em causa, quer no acórdão recorrido quer no acórdão fundamento, era saber se, tendo a arguida a sua sede no estrangeiro, o prazo de 20 dias estabelecido no artigo 59.º, n.º 3, do RGCO, para apresentação do recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que lhe aplica a coima só se inicia depois de decorridos 15 dias após a notificação da decisão, nos termos do artigo 88.º, n.º 1, al. b), do novo CPA, de 2015, e do artigo 73.º, n.º 1, al. b), do anterior CPA, de 1991.

V. A situação de facto em apreciação era idêntica em ambos os acórdãos. Quer neste caso quer no outro as arguidas tinham a sua sede no estrangeiro, ambas as arguidas foram notificadas das decisões das autoridades administrativas que lhes aplicaram coimas – a ANAC, no caso do acórdão recorrido, e o INAC, no caso do acórdão fundamento – e ambas as arguidas usaram da faculdade de impugnação judicial dessas decisões, nos termos do artigo 59.º do RGCO.

VI. Conhecendo dos recursos, os acórdãos concluíram, porém, em contradição um com o outro, na base de proposições de direito antagónicas. O acórdão recorrido concluiu que não é aplicável a dilação de 15 dias prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 88.º do (novo) CPA (que corresponde à al. b) do n.º 1 do artigo 73.º do anterior CPA); o acórdão fundamento concluiu que era aplicável dilação da al. b) do n.º 1 do artigo 73.º do (anterior) CPA então vigente.

VII. A sucessão de diplomas legais (CPAs), contendo normas de conteúdo coincidente, em nada afeta a exigência de as decisões em confronto deverem ser proferidas «no âmbito da mesma legislação».

VIII. Verifica-se, assim, uma oposição de julgados, devendo o processo prosseguir, em conformidade com o disposto no artigo 441.º. n.º 1, do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I.  Relatório

1. DEUTSCHE LUFTHANSA AKTIENGESELLSCHAFT («Lufthansa»), arguida da prática de uma contraordenação por violação da norma da alínea i) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 28-B/2020, de 28 de junho, que estabelece o regime contraordenacional no âmbito da situação de calamidade, contingência e alerta, originada pela doença COVID-19, interpõe recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.12.2022, que negou provimento ao recurso que interpôs da decisão de 21.09.2022, do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, que não admitiu, por extemporâneo, o recurso de impugnação judicial da decisão condenatória da AUTORIDADE NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL («ANAC»), interposto pela recorrente.

Alega que nele se apreciou e decidiu uma questão de direito em oposição com o decidido no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 06.11.2013 no âmbito no Processo n.º 826/13.5TBMAI.P1, «no domínio dos mesmos factos, da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito», que indica como acórdão fundamento.

2. Na tese da recorrente, «apesar de o acórdão recorrido reconhecer que o prazo previsto no artigo 59.º do RGCO [Regime Geral das Contraordenações – Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro] é um prazo administrativo, concluiu pela não aplicação das dilações previstas no artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo», «em oposição frontal» com o acórdão fundamento, o qual «considerou que “se o recurso de impugnação judicial integra a fase administrativa do processo contraordenacional e se o prazo aplicável regulado nos artigos 59.º e 60.º do RGCO tem natureza administrativa, não se vislumbram motivos atendíveis para recusar a aplicação da norma do artigo 73.º do CPA [atual artigo 88.º], que está inserida no regime geral dos prazos administrativos, à semelhança do que sucede com as regras previstas no artigo 72.º do mesmo diploma legal, e que só parcialmente foram transpostas para o artigo 60.º do RGCO”».

3. Apresenta motivação com conclusões do seguinte teor:

«a. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o Acórdão de que ora se recorre, julgando improcedente o recurso apresentado pela Recorrente e mantendo a decisão de não admissão da impugnação judicial, por intempestiva.

b. Apesar de o Acórdão Recorrido reconhecer que o prazo previsto no artigo 59.º RGCO é um prazo administrativo, concluiu pela não aplicação das dilações previstas no artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo – que, na perspetiva e interpretação da Recorrente, não corresponde a uma correta interpretação e aplicação da Lei e que, no caso em apreço, culminou na não aceitação da impugnação judicial.

c. A decisão em apreço não é passível de recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos previstos nos artigos 432.º e 400.º do Código de Processo Penal.

d. É, porém, admissível recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 437.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO, por o Acórdão Recorrido estar em contradição frontal e expressa com outro Acórdão, já transitado em julgado, do domínio da mesma legislação, mesmos factos e sobre a mesma questão fundamental de direito.

e. A este respeito, esclareça-se que não existe qualquer norma no RGCO (aplicável ex vi artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 29-B/2020 de 28 de junho) que proíba o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, nem resulta do RGCO a inadmissibilidade desse recurso, pelo que haverá de recorrer-se às normas do Código de Processo Penal, para onde o RGCO remete.

f.     No que diz respeito a este recurso extraordinário, os factos em apreço quer no Acórdão Recorrido, quer no Acórdão Fundamento são em tudo semelhantes e comparáveis: uma companhia aérea foi notificada de uma decisão de aplicação de coima pelo INAC/ANAC na sua sede, em país Europeu; por ser residente e ter sido notificada no estrangeiro, a Recorrente entendeu que o prazo para apresentação do recurso dessa decisão administrativa seria de 35 dias, em virtude da aplicação da dilação de 15 dias, prevista no artigo 88.º, n.º 1, alínea b) do Código de Procedimento Administrativo; a Recorrente apresentou a impugnação judicial após os 20 dias previstos no artigo 59.º do RGCO, mas dentro do prazo total de 35 dias que considerou ser aplicável; a impugnação foi julgada intempestiva, por se considerar que a suprarreferida dilação não era aplicável.

g. O que diferencia os Acórdãos em apreço é o facto de, perante a questão jurídica acerca da aplicabilidade da dilação prevista no Código de Procedimento Administrativo ao prazo de impugnação judicial da decisão de aplicação de coima previsto no artigo 59.º do RGCO, o Acórdão Recorrido ter concluído pela não aplicação da figura da dilação no processo contraordenacional enquanto, no Acórdão Fundamento, se reconheceu que essa dilação é aplicável.

h. A Recorrente depara-se, assim, com a existência de duas decisões opostas perante factos em tudo idênticos, sendo que o resultado prático de uma e outra decisão também não podia ser mais díspar: enquanto no Acórdão Recorrido se conclui pela manutenção da decisão recorrida e não admissão da impugnação judicial, o Acórdão Fundamento determinou que a decisão fosse substituída por outra, que considere tempestivo o requerimento de impugnação judicial e aprecie o recurso.

Mas mais,

i.    Independentemente da obtenção de justiça no caso em concreto, a fixação de jurisprudência que ora se procura é motivada não (apenas) pelo interesse pessoal da Recorrente, mas pela necessidadede oferecer segurança jurídica a uma questão absolutamente crucial para o exercício do direito de defesa em âmbito de processo contraordenacional: a determinação do prazo aplicável.

j.     Considerando a matéria em apreço, está, também, preenchida a ratio deste recurso, uma vez que se pretende “…fixar critérios para a interpretação e aplicação uniformes do direito pelos tribunais com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei” (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 24 de março de 2021, no processo n.º 64/15.2IDFUN.L1-A.S1, Relator Nuno Gonçalves, disponível em dgsi.pt).

k. Por tudo quanto foi exposto, estão preenchidos todos os pressupostos legais para a admissibilidade do presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, i.e., estão em causa duas decisões opostas, proferidas sobre a mesma questão de direito e identidade de lei reguladora, com total identidade de factos contemplados nas duas decisões.

l.    No que diz respeito à fundamentação apresentada em um e outro Acórdão, verifica-se que o Acórdão Recorrido se socorre de jurisprudência (alegadamente) relacionada para concluir que:

(i) a impossibilidade de aplicação de uma dilação ao prazo previsto no artigo 59.º do RGCO não implica uma violação aos princípios constitucionais da tutela jurisdicional efetiva, da confiança, da boa fé ou da segurança jurídica; (ii) apesar de o prazo previsto no artigo 59.º do RGCO ser administrativo, daí “não resulta que deva aplicar-se o artigo 88.º do CPA, o que resulta é que o prazo de impugnação judicial aqui em causa não deve ser contínuo como os prazos judiciais (…)”; e (iii) na medida em que a disciplina autónoma do processo penal em matéria de prazos prescinde da figura da dilação, “(…) idênticos fundamentos valem para o prazo de impugnação judicial aqui em questão, previsto nos artigos 59.º e 60.º do RGCO, seja porque a dilação não se encontra especificamente prevista nesses artigos, seja porque, como defende o digno magistrado do Ministério Público, tanto na primeira como na segunda instância, o regime subsidiário aplicável, incluindo na fase organicamente administrativa do processo de contraordenação, é o do CPP e não o do CPA (…)”.

m. Em sentido diametralmente oposto, o Acórdão Recorrido conclui que “(…) se o recurso de impugnação judicial integra a fase administrativa do processo contraordenacional e se o prazo aplicável regulado nos artigos 59.º e 60.º do RGCO tem natureza administrativa, não se vislumbram motivos atendíveis para recusar a aplicação da norma do artigo 73.º do CPA [atual artigo 88.º], que está inserida no regime geral dos prazos administrativos, à semelhança do que sucede com as regras previstas no artigo 72.º do mesmo diploma legal, e que só parcialmente foram transpostas para o artigo 60.º do RGCO”.

n. Neste sentido, continuou o Tribunal que “(…) quando se refere que o prazo é administrativo por contraposição ao prazo judicial pretende-se significar que se rege pelas regras atinentes aos prazos de natureza administrativa, onde se incluem as normas referentes aos prazos de defesa dos interessados relativamente às decisões administrativas, afastando-se concomitantemente as regras aplicáveis à prática de actos processuais em juízo”.

o. Assim, enquanto o Acórdão Recorrido, embora reconheça que o prazo em apreço tem natureza administrativa, exclui as regras de dilação previstas no Código de Procedimento Administrativo, o Acórdão Fundamento vem suportar a tese da Recorrente de que sendo o prazo administrativo, não se deve estabelecer qualquer restrição na aplicação do regime geral de contagem dos prazos administrativos.

p. Além de injusto e prejudicial à Recorrente – por limitar o seu direito de defesa e impossibilitando-a de sujeitar a apreciação uma decisão de aplicação de coima proferida por entidade administrativa –, o Acórdão Recorrido erra na interpretação do Direito.

q. Se é unânime que o processo contraordenacional (e prazo previsto no artigo 59.º do RGCO) tem natureza administrativa, então a contagem do prazo de interposição de recurso da decisão de aplicação de coima – decisão administrativa – deve ser efetuada nos termos do RGCO e do Código de Procedimento Administrativo.

r.     Esta solução em nada constitui uma aplicação subsidiária do RGCO, ab-rogante do artigo 41º, n.º 1 do RGCO, sendo ao invés a única solução que é compatível com a reconhecida natureza administrativa do prazo de recurso previsto no artigo 59.º do RGCO – assim como é a única compatível com os princípios de justiça e segurança jurídica.

s. Qualquer solução contrária seria desprovida de sentido, sendo ilógico afirmar a natureza administrativa do prazo, com a consequência prática de o privar da extensão no tempo de que só os prazos judiciais gozam – artigos. 107.º, n.º 5 e 107.º-A do Código de Processo Penal –, sem ao mesmo tempo lhe reconhecer, também, o modo de contar o termo inicial em certas situações espaciais, termo a quo ante que lhe está implícito e que no caso da Recorrente, com sede na Alemanha, é fornecido pela norma do artigo 88º, n.º 1, b) do Código de Procedimento Administrativo, a qual deve ser aplicada a título principal.

t.     O artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo é uma norma geral aplicável à contagem dos prazos administrativos, que encontra justificação na previsível maior dificuldade de acesso a elementos e preparação da defesa por parte dos interessados residentes no estrangeiro, resultante da distância a que se encontram do local onde decorre o procedimento.

u. Não atender a essa circunstância significaria legitimar uma atuação administrativa lesiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, aqui incluídas as empresas (artigo 4.º, 2ª parte do Código de Procedimento Administrativo), nacionais ou não, com o inerente risco de criação de situações de desigualdade ditadas, justamente, pelo lugar da sede da empresa; sendo certo que “A Administração Pública deve tratar de forma justa todos aqueles que com ela entrem em relação, e rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das normas jurídicas e das valorações próprias do exercício da função administrativa”, conforme exige o artigo 8.º do Código de Procedimento Administrativo, pelo que é este sentido de justiça que deve prevalecer na jurisdição e que se espera que as válvulas de segurança do sistema jurídico sejam capazes de garantir.

v. Face à natureza administrativa do prazo de recurso previsto no artigo 59.º do RGCO não restam quaisquer dúvidas que a aplicação do artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo se deverá fazer a título principal, como resulta, desde logo, da interpretação assente no uso das regras gerais de interpretação consagradas no artigo 9.º do Código Civil.

w. Pelo que o entendimento perfilhado pelo Acórdão Recorrido viola de forma intolerável os princípios da confiança, boa fé e da segurança jurídica, consagrados nos artigos 2.º e 226.º da CRP, impedindo a Recorrente de reagir judicialmente contra uma decisão sancionatória e, assim, violando o seu direito à tutela jurisdicional efetiva.

Nestes termos, e nos demais de Direito aplicáveis, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão recorrido e fixando-se jurisprudência no sentido de que são aplicáveis, à contagem do prazo previsto no artigo 59.º do RGCO, as dilações previstas no artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo.»

4. Vem junta certidão do acórdão recorrido, com indicação da notificação aos sujeitos processuais com a data de 22.12.2022, e indicação do local de publicação do acórdão fundamento, na base de dados de acórdãos do Tribunal da Relação do Porto (em www.dgsi.pt).

5. Notificados os sujeitos processuais, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 439.º, n.º 2, do CPP, respondeu a ANAC defendendo, na parte que agora interessa, que a «torrente jurisprudencial [posterior ao acórdão fundamento] é indiciadora da desnecessidade de fixação de jurisprudência», pois que «ao rejeitar liminarmente a aplicação da figura da dilação em processo contraordenacional, traduz de forma clara e inequívoca a evolução do pensamento jurídico desde 2012 até ao presente ano de 2023».

6. Recebido, foi o processo com vista ao Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 440.º do CPP.

O Senhor Procurador-Geral-Adjunto considera que estão verificados todos os pressupostos de natureza formal e substancial de que depende a fixação de jurisprudência, pronunciando-se no sentido de que deve ser reconhecida a oposição e determinado o prosseguimento do processo nos termos do artigo 441.º, n.º 1, parte final, do CPP.

O que faz nos seguintes termos (transcrição parcial):

«(…)

Como decorre do disposto nos artigos 440.º, n.ºs 1 e 3, 441.º, nº 1, e 442.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, nesta fase preliminar apenas importa indagar se estão preenchidos os assinalados pressupostos de admissibilidade, formais e substanciais, próprios deste recurso extraordinário.

5.1. Quanto aos pressupostos formais não se suscitam dúvidas quanto à sua verificação porquanto a LUFTHANSA, arguida e acoimada no processo de contraordenação no qual foi proferido o acórdão recorrido, tem legitimidade e interesse em recorrer, identifica e localiza o acórdão do Tribunal da Relação do Porto com o qual aquele se encontra em oposição (sendo de crer que o mesmo, em atenção à sua data e ao facto de se encontrar publicado no portal oficial de base de dados jurídicas do IGFEJ, haja transitado em julgado), expõe as razões que, na sua perspetiva, demonstram a contradição de julgados relativamente à questão de direito que indica e interpôs o recurso no prazo de 30 dias contado do trânsito, ocorrido em 13 de janeiro de 2023, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.

5.2. Passando aos pressupostos substanciais.

5.2.1. Extrai-se do acórdão recorrido que a LUFTHANSA recorreu da decisão do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão de Santarém que não admitiu, por intempestiva, a impugnação judicial da decisão administrativa da ANAC que a condenou numa coima.

Alegou a recorrente, além do mais, que tendo sido notificada na sua sede, na Alemanha, beneficiava da dilação de 15 dias prevista no artigo 88.º, n.º 1, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo em virtude de o prazo de impugnação da decisão da autoridade administrativa (artigo 59.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações), segundo o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 2/94, ser um prazo administrativo.

Debruçando-se sobre a questão, o acórdão recorrido decidiu que (transcrição dos trechos pertinentes):

«33. A contagem do prazo de impugnação aqui em crise está especificamente regulada pelo artigo 60.º do RGCO (…).

34. Dito isto, o Tribunal levará em conta a jurisprudência a seguir mencionada, para resolver a questão de saber se deve ser aplicada a dilação prevista no artigo 88.º do CPA (…).

35. Assim, o acórdão do Tribunal Constitucional TC-378/2021, julgou que não é inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 228.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, quando interpretada no sentido de que é de quinze dias úteis, a contar do conhecimento do arguido, sem possibilidade de prorrogação, o prazo para a interposição do recurso da decisão administrativa que tenha aplicado uma sanção. Pelo que, as mesmas razões indicadas nesse acórdão, valem para a norma análoga aqui em crise, prevista no artigo 59.º do RGCO, sem que, contrariamente ao que defende a arguida, a impossibilidade de aplicação de uma dilação tenha violado os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efetiva, da confiança, da boa-fé ou da segurança jurídica.

36. Quanto à interpretação constante do acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, STJ - 2/94, que afasta a aplicação, ao prazo previsto no artigo 59.º do RGCO, da regra da continuidade dos prazos prevista no artigo 144.º do CPC de 1961 (atual artigo 138.º do CPC de 2013), essa interpretação foi entretanto consagrada na lei, como resulta da redação atual do artigo 60.º do RGCO, que prevê a suspensão do prazo aqui em crise aos Sábados, Domingos e feriados. Com efeito, o acórdão STJ 2/94 julga que o prazo previsto no artigo 59.º do RGCO não é judicial, porém, desse acórdão não resulta que deva aplicar-se o artigo 88.º do CPA, o que resulta é que o prazo de impugnação judicial aqui em causa não deve ser contínuo como os prazos judiciais, por se tratar de um prazo administrativo. Isto, na medida em que o acto a praticar – apresentação do recurso de impugnação judicial – não pode ser praticado aos Sábados, Domingos e feriados, junto das autoridades administrativas. Foi esta a interpretação jurisprudencial que acabou por vir a ser consagrada no artigo 60.º do RGCO, através da alteração introduzida pelo DL 244/95 de 14 de Setembro.

37. No que diz respeito ao acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça STJ-2/96, o mesmo julga que a disciplina autónoma do processo penal em matéria de prazos prescinde da figura da dilação. Afigura-se que idênticos fundamentos valem para o prazo de impugnação judicial aqui em questão, previsto nos artigos 59.º e 60.º do RGCO, seja porque a dilação não se encontra especificamente prevista nesses artigos, seja porque (…), tanto na primeira como na segunda instância, o regime subsidiário aplicável, incluindo na fase organicamente administrativa do processo de contraordenação, é o do CPP e não o do CPA, como resulta do artigo 41.º n.º 1 do RGCO.

38. Em consequência, afigura-se que, à luz dos acórdãos TC-378/2021 e STJ-2/96, na presente contraordenação, não acresce ao prazo de impugnação previsto nos artigos 59.º e 60.º do RGCO, a dilação prevista no artigo 88.º do CPA.»

5.2.2. No acórdão fundamento, a recorrente «B», com sede na Irlanda, interpôs recurso da decisão do tribunal da primeira instância que rejeitou, também em razão da sua extemporaneidade, a impugnação judicial da decisão administrativa do Instituto Nacional de Aviação Civil que lhe aplicou uma coima.

Defendeu a recorrente «B», além do mais, que «o Meritíssimo Juiz deveria ter admitido o recurso (…), considerando aplicável ao caso o mecanismo de dilação, fosse o do art.º 73.º do Código do Procedimento Administrativo, ou o do art.º 252.º, nº 2, do Código de Processo Civil».

O Tribunal da Relação do Porto veio a decidir que:

«(…) se o recurso de impugnação judicial integra a fase administrativa do processo contraordenacional e se o prazo aplicável regulado nos artigos 59.º e 60.º do RGCO tem natureza administrativa, não se vislumbram motivos atendíveis para recusar a aplicação da norma do artigo 73.º do CPA, que está inserida no regime geral dos prazos administrativos, à semelhança do que sucede com as regras previstas no artigo 72.º do mesmo diploma legal, e que só parcialmente foram transpostas para o artigo 60.º do RGCO. Na verdade, quando se refere que o prazo é administrativo por contraposição ao prazo judicial pretende-se significar que se rege pelas regras atinentes aos prazos de natureza administrativa, onde se incluem as normas referentes aos prazos de defesa dos interessados relativamente às decisões administrativas, afastando-se concomitantemente as regras aplicáveis à prática de actos processuais em juízo.

Por conseguinte, a contagem do prazo de recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa previsto no artigo 59.º do RGCO deve ser efectivada de acordo com as regras estabelecidas não só no artigo 72.º do CPA, como também no subsequente artigo 73.º do mesmo diploma legal, dado se tratar de norma geral aplicável à contagem dos prazos administrativos, que encontra justificação na previsível maior dificuldade de acesso a elementos e preparação da defesa por parte dos interessados residentes no estrangeiro, dificuldade essa resultante da distância a que se encontram do local onde decorre o procedimento, garantindo-se, deste modo, a efectividade do direito de defesa, mediante processo equitativo (cf. artigos 20.º, n.º 4 e 32.º n.º 10 da CRP).

Assim, no caso concreto, o prazo de 20 dias para apresentar o recurso apenas se iniciou depois de finda a dilação de 15 dias (cf. artigo 73.º n.º 1 alínea b) do CPA)».

5.2.3. Como se constata, as realidades factuais subjacentes aos dois acórdãos são idênticas.

Em ambas as arguidas foram condenadas numa coima.

Em ambas as arguidas foram notificadas da decisão da autoridade administrativa na sua sede sita em país estrangeiro europeu.

Em ambas as arguidas impugnaram judicialmente a decisão administrativa aproveitando a dilação prevista nos artigos 88.º, n.º 1, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro (acórdão recorrido), e 73.º, n.º 1, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de novembro (em vigor na data em que foi proferido o acórdão fundamento).

Em ambas as impugnações foram rejeitadas, por extemporâneas, pelo tribunal da primeira instância.

Confrontados com esta realidade quando foram chamados a apreciar a questão da aplicabilidade da dilação prevista nos citados normativos do Código do Procedimento Administrativo, o acórdão fundamento e o acórdão recorrido decidiram de forma oposta, entendendo o primeiro que a contagem do prazo de 20 dias do artigo 59.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações apenas se iniciava depois de finda a dilação estabelecida no Código do Procedimento Administrativo e o último que a dilação prevista neste Código não acrescia ao prazo de impugnação judicial instituído no Regime Geral das Contraordenações.

Pese embora a sucessão legislativa, não houve alteração da redação dos normativos que preveem a dilação (o artigo 88.º, n.º 1, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, corresponde ipsis verbis ao artigo 73.º, n.º 1, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de novembro).

Reunidos, assim, que estão todos os pressupostos de admissibilidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, incluindo o da oposição de julgados, emite-se parecer no sentido do seu prosseguimento nos termos do artigo 441.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal.»

7. Efetuado o exame preliminar, o processo foi à conferência, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 440.º do CPP.

II. Fundamentação

8. Sobre o fundamento do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência dispõe o artigo 437.º nos seguintes termos:

«1 – Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 – É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 – O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público».

O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, devendo o recorrente, no requerimento de interposição do recurso, identificar o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, bem como justificar a oposição que origina o conflito de jurisprudência (n.ºs 1 e 2 do artigo 438.º do CPP).

9. Por aplicação subsidiária das normas do processo penal ao processo contraordenacional, determinada pelo artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, é admissível a fixação de jurisprudência em matéria de contraordenações pelo Supremo Tribunal de Justiça, para resolução de conflitos entre acórdãos dos tribunais da relação, os quais, atento o disposto no artigo 75.º, n.º 1, do mesmo diploma, não admitem recurso ordinário. Irrecorribilidade que, como requisito específico relativo aos acórdãos da relação, é imposta, como se vê, pelo artigo 437.º, n.º 2, do CPP.

Com efeito, não obstante o anteriormente decidido em sentido contrário nos acórdãos de 28.01.2015, Proc. 44/14.5TBORQ.E1-A.S1, e de 08.03.2028, Proc. 41/12.5YUSTR.L1-D.S1 (do mesmo relator, em www.dgsi.pt), e não havendo norma que constitua obstáculo ao recurso, justifica-se que, ao dispor que não cabe recurso das decisões da 2.ª instância, o artigo 75.º, n.º 1, do RGCO se limita aos recursos ordinários, a isso não se opondo o artigo 73.º, n.º 2, com âmbito de previsão diverso, admitindo o recurso para a relação «para melhoria da aplicação do direito» ou «promoção da uniformidade de jurisprudência» (neste sentido, entre outros, o acórdão de 08.03.2018, Proc. 102/15.9YUSTR.L1-A.S1, e Leones Dantas, Direito Processual das Contraordenações, Almedina, 2022, p. 283-284, e Damião da Cunha, “Fixação de Jurisprudência e Ilícito de Mera Ordenação Social”, Revista do Ministério Público, n.º 146, pp. 179ss., notando-se que são vários os acórdãos em que o Supremo Tribunal de Justiça assumiu esta competência, podendo referir-se os acórdãos 1/2001, 11/2005, 1/2009, 4/2011, 5/2013 e 2/2014).

10. O recurso de fixação de jurisprudência é um recurso de natureza extraordinária que tem por finalidade o estabelecimento de interpretação uniforme de normas jurídicas aplicadas de forma divergente e contraditória em acórdãos dos tribunais da Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça, com a eficácia prevista no artigo 445.º do CPP, contribuindo para a realização de objetivos de segurança jurídica e de igualdade perante a lei, que constituem exigências do princípio de Estado de direito (artigo 2.º da Constituição).

Como se consignou no acórdão de 29.06.2023, 107/19.0GAOBR.P1-A.S1, citando jurisprudência anterior, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência não visa a apreciação de decisões em matéria de facto, mas sim de decisões em matéria de direito, requerendo, como seu pressuposto e fundamento (artigo 437.º do CPP), que as mesmas normas, na aplicação a factos idênticos, tenham sido interpretados diversamente, com base em soluções opostas ou inconciliáveis, obtidas em resultado de interpretações diferentes quanto à mesma questão de direito, no acórdão recorrido e no acórdão fundamento

Citando Alberto dos Reis, “Dá-se oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas”. O que interessa saber “é se, para a resolução do caso concreto, os tribunais, em dois acórdãos diferentes, chegaram a soluções antagónicas” quanto ao sentido da mesma norma aplicada nesses dois acórdãos (apud Simas Santos / Leal Henriques, Recursos Penais, 9.ª ed., 2020, pp. 213-214). A questão de direito a resolver por via do recurso há de corresponder a uma idêntica “situação de facto” colocada perante uma idêntica “hipótese normativa”, na consideração dos seus diversos elementos relevantes, requerendo uma “decisão por um critério de interpretação” de entre “hipóteses interpretativas” divergentes (como se considerou no acórdão de 28.9.2022, Proc. n.º 503/18.0T9STR.E1-A.S1, em www.dgsi.pt, citando ainda Ulrich  Schroth, Hermenêutica Filosófica e Jurídica, em «Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas», A. Kaufmann e W. Hassemer, Fundação Calouste Gulbenkian, 3.ª ed., Lisboa, 2015, p. 398).

11. Estando em causa a força do caso julgado, que prossegue idênticos objetivos de segurança jurídica, impõe a lei exigentes requisitos, prevenindo a sua utilização como mais uma forma de recurso ordinário destinado à reapreciação da decisão de um caso concreto em divergência com outras decisões de outros tribunais, os quais se evidenciam, desde logo, na sua específica regulamentação (assim, por todos, o acórdão de 3.11.2021, proc. 36/21.8GJBJA-A.E1-A.S, em www.dgsi.pt).

Em jurisprudência uniforme e reiterada, vem o Supremo Tribunal de Justiça requerendo a verificação de um conjunto de pressupostos de admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência, uns de natureza formal e outros de natureza substancial (cfr., entre outros, os acórdãos de 29.06.2023, Proc.107/19.0GAOBR.P1-A.S1, e de 28.09.2022, Proc. n.º 503/18.0T9STR.E1-A.S1, e jurisprudência nele citada, bem como o acórdão do pleno das secções criminais de 8.7.2021, Proc. 3/16.PBGMR-A.G1.S1, todos em www.dgsi.pt).

12. Verificam-se os pressupostos de natureza formal quando: (a) a interposição do recurso tenha lugar no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (acórdão recorrido); (b) o recorrente identifique o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição (acórdão fundamento), bem como, no caso de estar publicado, o lugar da publicação; (c) se verifique o trânsito em julgado dos dois acórdãos em conflito, e (d) o recorrente apresente justificação da oposição entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido que motiva o conflito de jurisprudência.

Mostram-se, neste caso, reunidos tais pressupostos, nomeadamente os relativos ao prazo de 30 dias de interposição do recurso (que teve lugar em 02.02.2023), a contar da data do trânsito em julgado do acórdão recorrido (ocorrido em 13.01.2023, tendo em conta a data presumida da notificação eletrónica e o decurso do prazo de 10 dias para arguição de nulidades após a notificação, por o acórdão não admitir recurso ordinário – artigo 105.º, n.º 1, e 113.º, n.º 12, do CPP e 628.º do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP, todos por aplicação subsidiária das normas do processo criminal ao processo contraordenacional determinada pelo artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro) –, e à identificação do acórdão fundamento e respetiva publicação na base de dados dos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, em www.dgsi.pt (http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/b7ff3a5ee6907cba80257c6e00533b50?OpenDocument).

A recorrente, com a qualidade de arguida, tem legitimidade para o recurso e os acórdãos foram proferidos no âmbito da mesma legislação em cuja aplicação, alegadamente contraditória, se funda a invocada questão de direito.

13. Verificam-se os pressupostos de natureza substancial quando: (a) os acórdãos sejam proferidos no âmbito da mesma legislação, isto é, quando, durante o intervalo de tempo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida; (b) as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, isto é, quando entre os dois acórdãos haja “soluções opostas” na interpretação e aplicação das mesmas normas; (c) a questão (de direito) decidida em termos contraditórios tenha sido objeto de decisões expressas, e (d) haja identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos, pois que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas (assim, por todos, os acórdãos anteriormente citados).

14. A questão de direito, que vem identificada no recurso, traduz-se em saber se o prazo de 20 dias para apresentação do recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima, estabelecido no artigo 59.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que institui o ilícito de mera ordenação social e respetivo processo («Regime Geral das Contraordenações» – «RGCO»), apenas se começa a contar, ou não, após a dilação de 15 dias prevista no artigo 88.º, n.º 1, alínea b), do (novo) Código de Procedimento Administrativo («CPA»), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07 de janeiro, que corresponde ao artigo 73.º, n.º 1, al. b), do (anterior) Código de Procedimento Administrativo («CPA»), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de novembro, revogado por aquele decreto-lei.

15. Como nota o Senhor Procurador-Geral Adjunto, «não houve alteração da redação dos normativos que preveem a dilação».

Dispõe o artigo 88.º (Dilação) do novo CPA, reproduzindo disposição idêntica do anterior CPA, com irrelevantes diferenças textuais (resultantes da substituição da subordinativa condicional «se» pela subordinativa temporal «quando», com valor condicional): «1 - Quando os interessados residam ou se encontrem fora do continente e neste se localize o serviço por onde o procedimento corra, os prazos fixados na lei, se não atenderem já a essa circunstância, só se iniciam depois de decorridos: (…) b) 15 dias, se os interessados residirem ou se encontrarem em país estrangeiro europeu; (…)». Estabelecia o artigo 73.º (Dilação) do anterior CPA: «1 - Se os interessados residirem ou se encontrarem fora do continente e neste se localizar o serviço por onde o procedimento corra, os prazos fixados na lei, se não atenderem já a essa circunstância, só se iniciam depois de decorridos: (…) b) 15 dias, se os interessados residirem ou se encontrarem em país estrangeiro europeu; (…)».

Esta sucessão de diplomas legais, contendo normas de conteúdo coincidente, em nada afeta a exigência de as decisões em confronto deverem ser proferidas «no âmbito da mesma legislação». Seguindo o pensamento de Alberto dos Reis (apud Simas Santos / Leal-Henriques, Recursos Penais, cit., p. 215), «Parece-nos, pois, que a frase “no domínio da mesma legislação” não deverá ser entendida em termos rígidos e absolutos, de modo a excluir peremptoriamente o conflito sobre regras de direito que pertençam a diplomas legislativos diferentes. Há que atender a todas as condições e circunstâncias do caso. Se os elementos de que dispomos conduzem a que a regra, posto que incorporada em ordenamentos jurídicos distintos, deve ter, num e noutro, a mesma significação e o mesmo alcance, estamos no domínio da mesma legislação, no caso contrário estremos em domínios legislativos diferentes (Código de Processo Civil Anotado, Vol. VI, 275)

Há, pois, que determinar se se verifica a oposição de julgados.

16. Examinado o processo, mostra-se o seguinte:

16.1. Quanto aos factos e à questão decidida no acórdão recorrido

16.1.1. Neste processo, em que foi proferido o acórdão recorrido, a arguida LUFTHANSA, com sede na Alemanha, em …, …, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa da decisão judicial proferida em 21.9.2022, pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, que não admitiu o recurso de impugnação judicial da decisão condenatória da ANAC, interposto pela recorrente, nos termos do artigo 59.º do RGCO, por tê-lo julgado intempestivo.

16.1.2. Para decidir o recurso a Relação levou em conta os seguintes factos (transcrição):

«[…]

12. Por decisão administrativa de 16.12.2021 […], a ANAC condenou a arguida pela prática negligente de onze contraordenações previstas no artigo 2.º - i) do DL 28-B/2020 de 28 de Junho na redacção aplicável à data dos factos, respectivamente, em onze coimas de 500 euros cada uma e, em cumulo jurídico, na coima única de 5 600 euros, por factos praticados em 13, 14 e 15 de Março de 2021[…].

13. A decisão da ANAC […] acompanhada da tradução em inglês […], foi notificada à arguida, na sua sede na Alemanha, via postal, por carta registada com aviso de recepção, expedida em 21 de Julho de 2022, tendo o aviso de recepção sido assinado em 25 de Julho de 2022 […].

14. Por registo de 26 de Agosto de 2022, a arguida enviou à ANAC o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa […] recebido na ANAC em 29 de Agosto de 2022 […].

15. Por despacho proferido em 21 de Setembro de 2022 […] o Tribunal recorrido não admitiu o recurso de impugnação judicial interposto pela arguida, referido no parágrafo anterior, por julgá-lo intempestivo […].

16.1.3. Para decidir o recurso, o Tribunal da Relação convocou as seguintes disposições legais:

Os artigos 3.º («Processos em que também é concedido auxílio judiciário mútuo») e 5.º («Envio e notificação de peças processuais»), da Convenção relativa ao auxílio judiciário mútuo em matéria penal entre os Estados Membros da União Europeia de 29.5.2000, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República 63/2001 de 16.10 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República 53/2001, de 16.10, em vigor em Portugal desde 23.8.2005 e que vincula igualmente a Alemanha;

Os artigos 1.º («Objecto e âmbito de aplicação»), 3.º («Direito à tradução dos documentos essenciais») e 4.º («Custos de interpretação e de tradução») da Diretiva 2010/64/UE relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal;

Os artigos 2.º («Âmbito de aplicação») e 6.º («Direito à informação sobre a acusação») da Diretiva 2012/13/EU relativa ao direito à informação em processo penal;

Os artigos 4.º («Integração de lacunas»), 104.º («Contagem dos prazos de actos processuais»), 107.º-A («Sanção pela prática extemporânea de actos processuais»), 113.º («Regras gerais sobre notificações»), 118.º («Princípio da legalidade») e 123.º («Irregularidades») do Código de Processo Penal;

Os artigos 139.º («Modalidades do prazo»), 223.º («Citação ou notificação de incapazes e pessoas coletivas») e 246.º («Citação de pessoas colectivas») do Código de Processo Civil;

Os artigos 41.º («Direito subsidiário»), 46.º («Comunicação de decisões»), 47.º («Da notificação»), 59.º («Forma e prazo» da decisão e do recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa), 60.º («Contagem do prazo para impugnação»), 63.º («Não aceitação do recurso»), 70.º («Participação das autoridades administrativas») e 87.º («Processo relativo a pessoas colectivas ou equiparadas») do Regime Geral das Contraordenações (RGCO); e

O artigo 88.º («Dilação») do Código do Procedimento Administrativo.

E, na parte relevante, apreciou e decidiu o recurso nos seguintes termos:

«30. O segundo motivo de discórdia invocado pela arguida prende-se com o regime aplicável à contagem do prazo de recurso. O que é controverso, segundo este Tribunal julga perceber, é saber se deve aplicar-se uma dilação como prevê o artigo 88.º do CPA e/ou se deve admitir-se a prática do acto nos três dias úteis seguintes ao termo do prazo, mediante o pagamento de multa, como prevê o artigo 107.º A do CPP. A este propósito a arguida defende a aplicação das regras de interpretação previstas no artigo 9.º do CC. Porém, existindo jurisprudência nacional sobre a questão, este Tribunal levará em conta os critérios de interpretação ai fixados, como será explicado a seguir.

31. Antes de mais, para resolver esta questão convém recordar que a notificação foi enviada em 21.7.2022, considerando-se feita no terceiro dia posterior ao do envio, ou seja 24.7.2022 mas, como este dia foi Domingo, considera-se feita no primeiro dia útil seguinte, ou seja, em 25.7.2022 (cf. artigo 113.º n.º 2 do CPP aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO). Importa também sublinhar que 25.7.2022 foi efectivamente a data em que foi recebida tal notificação na sede da arguida conforme consta do aviso de recepção junto aos autos […].

32. Quanto ao recurso da arguida, o mesmo foi expedido por registo postal de 26.8.2022, segundo informou a ANAC, sendo esta a data a levar em conta para a sua interposição, ou seja, foi interposto no terceiro dia posterior ao termo do prazo de vinte dias previsto no artigo 59.º do RGCO […].

33. A contagem do prazo de impugnação aqui em crise está especificamente regulada pelo artigo 60.º do RGCO, suspendendo-se apenas aos Sábados, Domingos e feriados e, caso não seja possível praticá-lo no último dia, o mesmo transfere-se para o dia útil seguinte.

34. Dito isto, o Tribunal levará em conta a jurisprudência a seguir mencionada, para resolver a questão de saber se deve ser aplicada a dilação prevista no artigo 88.º do CPA e/ou, se a prática do acto deve ser admitida no tereciro dia posterior ao do termo do prazo, nos termos do artigo 107.º n.º 5 do CPP.

35. Assim, o acórdão do Tribunal Constitucional TC-378/2021, julgou que não é inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 228.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, quando interpretada no sentido de que é de quinze dias úteis, a contar do conhecimento do arguido, sem possibilidade de prorrogação, o prazo para a interposição do recurso da decisão administrativa que tenha aplicado uma sanção. Pelo que, as mesmas razões indicadas nesse acórdão, valem para a norma análoga aqui em crise, prevista no artigo 59.º do RGCO, sem que, contrariamente ao que defende a arguida, a impossibilidade de aplicação de uma dilação tenha violado os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efetiva, da confiança, da boa fé ou da segurança jurídica.

36. Quanto à interpretação constante do acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, STJ - 2/94, que afasta a aplicação, ao prazo previsto no artigo 59.º do RGCO, da regra da continuidade dos prazos prevista no artigo 144.º do CPC de 1961 (actual artigo 138.º do CPC de 2013), essa interpretação foi entretanto consagrada na lei, como resulta da redacção actual do artigo 60.º do RGCO, que prevê a suspensão do prazo aqui em crise aos Sábados, Domingos e feriados. Com efeito, o acórdão STJ 2/94 julga que o prazo previsto no artigo 59.º do RGCO não é judicial, porém, desse acórdão não resulta que deva aplicar-se o artigo 88.º do CPA, o que resulta é que o prazo de impugnação judicial aqui em causa não deve ser contínuo como os prazos judiciais, por se tratar de um prazo administrativo. Isto, na medida em que o acto a praticar – apresentação do recurso de impugnação judicial – não pode ser praticado aos Sábados, Domingos e feriados, junto das autoridades administrativas. Foi esta a interpretação jurisprudencial que acabou por vir a ser consagrada no artigo 60.º do RGCO, através da alteração introduzida pelo DL 244/95 de 14 de Setembro.

37. No que diz respeito ao acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça STJ-2/96, o mesmo julga que a disciplina autónoma do processo penal em matéria de prazos prescinde da figura da dilação. Afigura-se que idênticos fundamentos valem para o prazo de impugnação judicial aqui em questão, previsto nos artigos 59.º e 60.º do RGCO, seja porque a dilação não se encontra especificamente prevista nesses artigos, seja porque, como defende o digno magistrado do Ministério Público, tanto na primeira como na segunda instância, o regime subsidiário aplicável, incluindo na fase organicamente administrativa do processo de contraordenação, é o do CPP e não o do CPA, como resulta do artigo 41.º n.º 1 do RGCO.

38. Em consequência, afigura-se que, à luz dos acórdãos TC-378/2021 e STJ-2/96, na presente contraordenação, não acresce ao prazo de impugnação previsto nos artigos 59.º e 60.º do RGCO, a dilação prevista no artigo 88.º do CPA.

39. Quanto ao problema suscitado pela contagem do prazo administrativo para dedução de impugnação judicial, em processo de contraordenação laboral, que foi objecto do acórdão STJ-3/2022, o mesmo é diverso do que aqui importa resolver. Tal problema resulta de o prazo de impugnação judicial, nas contraordenações laborais, não ser contado nos termos gerais em dias úteis, mas sim de forma contínua e, simultaneamente, não beneficiar da suspensão das férias judiciais, nem da possibilidade de praticar tal acto nos três dias úteis subsequentes. Perante um tal problema, o Supremo Tribunal de Justiça julgou que uma interpretação restritiva da remissão prevista no artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 107/2009 de 14 de Setembo, para a contagem dos prazos em processo penal, implicaria que as contraordenações laborais não se inserissem em nenhum dos subgrupos a seguir referidos no parágrafo 42, constituindo um regime sui generis e criando uma incoerência no sistema, uma vez que o artigo 6.º n.º 2 da Lei 107/2009 estabelece que a contagem desses prazos não se suspende durante as férias judiciais.

40. Porém, atento o disposto no artigo 60.º do RGCO, que prevê expressamente a suspensão do prazo aqui em crise, aos Sábados, Domingos e feriados, esse problema não se coloca presentes autos.

41. Com efeito, o acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça STJ-3/2022, proferido em matéria de contraordenações laborais, fixou jurisprudência unicamente quanto à interpretação do artigo 6.º da Lei 107/2009, como dele consta. No que releva para a decisão do presente recurso, esse acórdão veio fazer uma interpretação actualista e clarificar a seguinte distinção, que aqui será levada em conta. Em matéria contraordenacional os prazos consagrados pelo legislador nos vários regimes – geral e sectoriais – podem dividir-se em dois grupos:

▪ “Um grupo em que se aplicam as normas dos prazos administrativos, contabilizando-se em dias úteis e sem aplicação das regras processuais penais;”

▪ “Outro grupo em que se aplicam as regras dos prazos judiciais com a remissão para as regras do processo penal e, consequentemente, com a aplicação da possibilidade de praticar os actos nos três dias úteis subsequentes.”

42. Assim sendo, resulta de ambos os acórdãos, STJ-2/94 e STJ-3/2022, que o prazo de impugnação judicial previsto nos artigos 59.º e 60.º do RGCO pertence ao primeiro grupo acima mencionado no parágrafo 42, na medida em que se suspende aos Sábados, Domingos e feriados mas, em contrapartida, não permite que a arguida possa praticar o acto ai previsto nos três dias úteis posteriores. Afigura-se ser esta coerência do sistema que o Supremo Tribunal de Justiça visou assegurar através da fixação da jurisprudência acima citada. Adicionalmente, estando especificamente previstos, no artigo 60.º do RGCO, os motivos de suspensão do prazo aplicáveis aos prazos administrativos (suspensão aos Sábados, Domingos e feriados), sem que daí conste qualquer dilação, não se afigura ser de aplicar subsidiariamente a dilação prevista no artigo 88.º do CPA, pelos motivos já acima indicados no parágrafo 36.

43. Enfim, não foi alegado o justo impedimento nos termos previstos no artigo 107.º n.º 2 do CPP, cuja aplicação poderia eventualmente ser ponderada por força do artigo 41.º do RGCO, caso se verificassem os respectivos pressupostos.

44. Pelos motivos acima mencionados, uma vez que o artigo 63.º do RGCO prevê que o recurso de impugnação judicial deve ser rejeitado por despacho quando é interposto fora de prazo, não merece censura o despacho recorrido, que rejeitou, por intempestivo, o recurso de impugnação em primeira instância.

45. Em consequência, improcede o presente recurso.»

16.2. Quanto aos factos e à questão decidida no acórdão fundamento

16.2.1. No processo em que foi proferido o acórdão fundamento, a arguida “B”, com sede na Irlanda, impugnou judicialmente, nos termos do artigo 59.º do RGCO, a decisão do “Instituto Nacional de Aviação Civil, IP (INAC)” – anterior designação da ANAC (artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 40/2015, de 16 de março) – que lhe aplicou a coima única de 6.000,00 euros, pela prática reiterada da contraordenação prevista no artigo 9.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de junho, e punida pelo artigo 9.º, n.º 3, alínea e), do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de janeiro.

No despacho que procedeu ao exame preliminar, o tribunal a quo rejeitou o recurso de impugnação judicial por extemporaneidade.

O tribunal a quo apreciou a «questão de saber se ao prazo acima mencionado se aplicam as normas de dilação estatuídas no artigo 252º-A do Código do Processo Civil e as regras que, nos termos do previsto no artigo 145º do Código do Processo Civil, autorizam que o acto processual possa ainda ser praticado num dos três dias úteis imediatamente seguintes ao do final do prazo».

16.2.2. E, concluindo pela negativa, decidiu, com a seguinte fundamentação:

«Desde já se diga que não, pois, conforme se pode ler Acórdão da Relação de Évora de 10 de Janeiro de 2006, (acessível em www.dgsi.pt), "O recurso de impugnação faz parte da fase administrativa do processo, não da fase judicial, pelo que nunca a interposição de um tal recurso pode ser considerado, seja para que efeito for, como acto praticado em juízo (…) Com efeito, tal recurso é deduzido num processo contra-ordenacional e nem sequer dá origem imediatamente à fase judicial, que até pode nem vir a ter lugar se a autoridade administrativa revogar a decisão, até ao envio do processo ao tribunal (cf. art. 62, n.º 2 do RGCO)”. Assim, estando-se perante um prazo que não tem natureza judicial, entende-se que não se aplica ao mesmo as específicas regras dos artigos 145º e 252º-A do Código do Processo Civil (cfr. neste sentido, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 8 de Novembro de 2005, in CJ XXX, Tomo V, pg. 129 a 132).

Acrescente-se ainda que se entende que o facto de o prazo previsto no art. 59.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas não ter natureza judicial não significa nem determina que o processo contra-ordenacional seja ou deva ser considerado um procedimento administrativo. Com efeito, os procedimentos administrativos são aqueles que se encontram dispersos pela legislação administrativa, nomeadamente, os licenciamentos, os loteamentos urbanos, os procedimentos concursais e outros, não cabendo em tal âmbito os procedimentos sancionatórios que têm como direito subsidiário o direito processual penal. O Código do Procedimento Administrativo não pode ser, por isso, encarado como direito subsidiário do processo das contra-ordenações, o que só poderia acontecer “se se desse como revogado o disposto no nº 1 do artigo 41º do regime geral das contra-ordenações, o que dada a especialidade desta norma, não seria possível sem uma referência expressa”. Consequentemente, tal como se perfilha no Acórdão da Relação de Coimbra de 29/02/2012 (acessível em www.dgsi.pt) do qual foi retirada a citação que antecede, a dilação prevista no artigo 73º do Código do Procedimento Administrativo não deve ser aplicada em sede de recurso de contra-ordenação.

Por tudo o explanado, impõe-se indeferir o requerimento de fls. 163 a 165 (no qual a sociedade arguida veio sustentar ser tempestivo o recurso que apresentou e, subsidiariamente, peticionar o pagamento da multa prevista no artigo 145º do Código do Processo Civil) e, ao abrigo no preceituado nos artº 59º, nº 3, 60º e 63º, nº 1, do D.L. nº 433/82, de 27/10, rejeitar, por extemporaneidade, o recurso interposto pela arguida.

3. Nos termos e pelos motivos expostos, DECIDO:

a) indeferir o requerimento de fls. 163 a 165;

b) rejeitar, por extemporaneidade, o recurso de impugnação judicial apresentado por B…; (…)»

16.2.3. No recurso que interpôs para o Tribunal da relação do Porto a arguida defendeu que «deveria ter admitido o recurso da recorrente, considerando aplicável ao caso o mecanismo de dilação, fosse o do art.º 73 do Código do Procedimento Administrativo, ou o do art.º 252º, nº 2 do Código de Processo Civil».

16.2.4. O Tribunal da Relação concedeu provimento ao recurso, apreciando e decidindo nos seguintes termos:

«No presente recurso a única questão colocada consiste em saber se ao prazo para interposição do recurso de impugnação judicial da decisão que aplicou uma coima é ou não aplicável a dilação prevista no Código Processo Civil e/ou no Código Procedimento Administrativo. […]

Segundo a decisão recorrida está em causa uma situação em que é aplicável o disposto no artigo 72.º do Código de Procedimento Administrativo, por se tratar de prazo que não tem natureza judicial, conforme jurisprudência fixada no Acórdão do STJ, n.º 2/94, de 10-3-94, decorrendo desta natureza a inaplicabilidade das normas de dilação estatuídas no artigo 252º-A do Código do Processo Civil e das regras que, nos termos do previsto no artigo 145º do Código do Processo Civil, autorizam que o acto processual possa ainda ser praticado num dos três dias úteis imediatamente seguintes ao do final do prazo.

Neste aspecto o despacho recorrido acolhe a orientação unânime da jurisprudência, que igualmente sufragamos, de acordo com a qual a impugnação da decisão administrativa que aplicou uma coima insere-se ainda no âmbito do processo administrativo e só passa a obedecer a tramitação judicial o recurso depois de apresentado em juízo pelo Ministério Público. Neste seguimento, o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido de que o prazo de recurso previsto no artigo 59.º do RGCO não tem natureza judicial mas antes administrativa. E, pese embora as alterações legislativas entretanto operadas pelo DL 244/95, de 14 de Setembro, a orientação da jurisprudência decorrente do citado Acórdão de Fixação de Jurisprudência mantém-se em vigor, como também decidiu já o Supremo Tribunal de Justiça «Ao fixar o entendimento de que o prazo do art.º 59.º, n.º 3, do RGCO não era um prazo judicial, o Acórdão nº 2/94 veio estabelecer que a tal prazo não se aplicava o disposto no n.º 3 do art.º 144º do CPC, na redacção que então vigorava, e que, consequentemente, o prazo corria continuamente. É este o sentido do Acórdão nº 2/94.

Da mesma forma, e decorrendo da natureza não judicial do prazo, não seriam aplicáveis ao mesmo prazo as restantes regras atinentes aos prazos judiciais, como os arts. 104.º, n.º 1, e 107.º, n.º 5, do CPP.

O DL nº 244/95, como já vimos, veio modificar supervenientemente o quadro legislativo. Mas fê-lo apenas em dois aspectos: ampliando o prazo de 8 para 20 dias; e determinando a suspensão do prazo nos sábados, domingos e feriados, mas já não nas férias judiciais.

[…]

Deste modo, face à elucidativa exposição e escusando-nos de repetir a argumentação à qual aderimos, não subsistem dúvidas de que ao prazo para interposição do recurso previsto nos artigos 59.º e 60.º do RGCO não é aplicável o regime legal de contagem correspondente aos processos judiciais do foro civil ou penal, acompanhando-se, nesta parte, a decisão recorrida ao considerar inaplicáveis as normas dos artigos 145.º e 252.º-A do Código Processo Civil, o que a recorrente também admite, centrando a sua tese na aplicação das normas próprias do procedimento administrativo.

A questão que persiste e importa conhecer consiste em saber se a norma relativa à dilação prevista no Código Procedimento Administrativo deve ou não aplicar-se ao prazo de impugnação judicial.

O tribunal a quo respondeu negativamente à questão e decidiu em conformidade, com o fundamento de que o processo contraordenacional não pode ser considerado um procedimento administrativo e que tem como direito subsidiário o direito processual penal, nos termos do artigo 41.º n.º 1 do RGOC, apoiando-se no acórdão da Relação de Coimbra de 29-02-2012.

O recorrente insurge-se contra o entendimento do despacho recorrido, por o mesmo, apesar de considerar aplicável o artigo 72.º do CPA, ter afastado a aplicação da dilação prevista no artigo 73.º do mesmo diploma, com base na argumentação expendida pelo Tribunal da Relação de Coimbra para uma situação de facto inteiramente diversa da que ocorre nos autos.

Analisada a decisão recorrida constata-se que efectivamente incorre em aparente contradição ao recusar a aplicação da norma do artigo 73.º do CPA, depois de defender a natureza administrativa do prazo em curso e de expressamente aplicar a norma do artigo 72.º do CPA, com o fundamento de que o mencionado diploma não pode ser encarado como direito subsidiário do processo de contraordenacional, por não ter sido revogado o disposto no artigo 41.º n.º 1 do RGCO.

Na verdade, a questão colocada não se prende com a definição do regime legal subsidiário, pois, quanto a este aspecto existe total consenso face ao preceituado no citado artigo 41.º n.º 1 do RGCO, tampouco se trata de colmatar lacuna legislativa detectada neste mencionado diploma, assim como não se defende na jurisprudência que a aplicação do artigo 72.º do CPA deriva do recurso ao regime supletivo ou subsidiário, por isso, a objecção posta não tem qualquer eficácia.

Do que se trata, antes, é de determinar se, decorrente do entendimento supra exposto quanto à natureza do prazo, deve ou não estabelecer-se qualquer restrição na aplicação do regime geral de contagem dos prazos administrativos, e quanto a esta matéria o tribunal a quo não se pronunciou, tal como o citado acórdão da Relação de Coimbra não abordou o mesmo assunto, refira-se porém que a situação apreciada neste aresto assumia contornos diferentes daqueles que envolvem o presente caso (no aludido acórdão estava em causa uma empresa sediada em Portugal, encontrando-se o respectivo representante legal a residir ou ausente no estrangeiro aquando da notificação da decisão administrativa).

Ora, se o recurso de impugnação judicial integra a fase administrativa do processo contraordenacional e se o prazo aplicável regulado nos artigos 59.º e 60.º do RGCO tem natureza administrativa, não se vislumbram motivos atendíveis para recusar a aplicação da norma do artigo 73.º do CPA, que está inserida no regime geral dos prazos administrativos, à semelhança do que sucede com as regras previstas no artigo 72.º do mesmo diploma legal, e que só parcialmente foram transpostas para o artigo 60.º do RGCO. Na verdade, quando se refere que o prazo é administrativo por contraposição ao prazo judicial pretende-se significar que se rege pelas regras atinentes aos prazos de natureza administrativa, onde se incluem as normas referentes aos prazos de defesa dos interessados relativamente às decisões administrativas, afastando-se concomitantemente as regras aplicáveis à prática de actos processuais em juízo.

Por conseguinte, a contagem do prazo de recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa previsto no artigo 59.º do RGCO deve ser efectivada de acordo com as regras estabelecidas não só no artigo 72.º do CPA, como também no subsequente artigo 73.º do mesmo diploma legal, dado se tratar de norma geral aplicável à contagem dos prazos administrativos, que encontra justificação na previsível maior dificuldade de acesso a elementos e preparação da defesa por parte dos interessados residentes no estrangeiro, dificuldade essa resultante da distância a que se encontram do local onde decorre o procedimento, garantindo-se, deste modo, a efectividade do direito de defesa, mediante processo equitativo (cf. artigos 20.º, n.º 4 e 32.º n.º 10 da CRP).

Assim, no caso concreto, o prazo de 20 dias para apresentar o recurso apenas se iniciou depois de finda a dilação de 15 dias (cf. artigo 73.º n.º 1 alínea b) do CPA) e, por isso, o último dia do prazo ocorreu em 1 de Fevereiro de 2013, donde se conclui pela tempestividade do recurso.

Em conformidade com o explanado, não pode manter-se o despacho recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que proceda ao exame preliminar do recurso, quanto aos demais requisitos legais, e determine a devida tramitação legal, nos termos dos artigos 63.º, 64.º e seguintes do RGCO.

III. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, determinam que o despacho recorrido seja substituído por outro que considere tempestivo o requerimento de impugnação judicial e aprecie o recurso, nos termos supra enunciados.»

17. Em síntese, o que estava em causa, quer no acórdão recorrido quer no acórdão fundamento, era saber se, tendo a arguida a sua sede no estrangeiro, o prazo de 20 dias estabelecido no artigo 59.º, n.º 3, do RGCO, para apresentação do recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que lhe aplica a coima só se inicia depois de decorridos 15 dias após a notificação da decisão, nos termos do artigo 88.º, n.º 1, al. b), do novo CPA, de 2015, e do artigo 73.º, n.º 1, al. b), do anterior CPA, de 1991.

A situação de facto em apreciação era idêntica em ambos os acórdãos. Quer neste caso quer no outro as arguidas tinham a sua sede no estrangeiro – na Alemanha, no caso do acórdão recorrido, e na Irlanda, no caso do acórdão fundamento –, ambas as arguidas foram notificadas das decisões das autoridades administrativas que lhes aplicaram coimas – a ANAC, no caso do acórdão recorrido, e o INAC, no caso do acórdão fundamento – e ambas as arguidas usaram da faculdade de impugnação judicial dessas decisões, nos termos do artigo 59.º do RGCO.

Conhecendo dos recursos, os acórdãos concluíram, porém, em contradição um com o outro, na base de proposições de direito antagónicas.

No caso dos presentes autos, o acórdão recorrido concluiu que não é aplicável a dilação de 15 dias prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 88.º do (novo) CPA (que, como se viu, corresponde à al. b) do n.º 1 do artigo 73.º do anterior CPA), pelo que considerando que o despacho recorrido, que rejeitou, por intempestivo, o recurso de impugnação em primeira instância, não merece censura, julgou improcedente o recurso, não admitindo o recurso de impugnação.

No caso do processo em que foi proferido o acórdão fundamento, este concluiu que era aplicável dilação da al. b) do n.º 1 do artigo 73.º do (anterior) CPA então vigente, pelo que revogou o despacho que não admitiu o recurso, ordenando que fosse substituído por outro que o considerasse tempestivo e o admitisse.

18. Assim sendo, conclui-se que se verifica uma oposição de julgados, devendo o processo prosseguir, em conformidade com o disposto no artigo 441.º. n.º 1, do CPP.

III. Decisão

19. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar verificada a oposição de julgados, determinando-se o prosseguimento do processo nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.


Supremo Tribunal de Justiça, 8 de novembro de 2023.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria Teresa Féria de Almeida

Sénio Manuel dos Reis Alves