Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14/07.0TRLSB.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: JULGAMENTO
PRIMEIRO GRAU DE RECURSO
RECURSO INTERLOCUTÓRIO
BUSCA DOMICILIÁRIA
NULIDADE
PROVA PROIBIDA
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
AUTO
FALSIDADE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES COGNITIVOS DA RELAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA POR PRESUNÇÃO
PROCESSO PENAL
PRESUNÇÕES
PROVA INDICIÁRIA
ERRADA VALORAÇÃO
IN DUBIO PRO REO
VÍCIOS DECISÓRIOS
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
IMPUGNAÇÃO
CRIMINALIDADE ORGANIZADA
BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
DIREITO COMPARADO
EVOLUÇÃO LEGISLATIVA
APLICAÇÃO DA LEI NO ESPAÇO
BEM JURÍDICO TUTELADO
INTEGRAÇÃO
ELEMENTOS
FACTO PRECEDENTE
FACTO ILÍCITO TÍPICO
ATENUAÇÃO ESPECIAL
MEDIDA DA PENA
RENOVAÇÃO DA PROVA
Apenso:
Data do Acordão: 06/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Área Temática:
DIREITO PENAL – APLICAÇÃO DA LEI NO ESPAÇO - CRIMES CONTRA O ESTADO / CRIMES CONTRA A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA / BRANQUEAMENTO.
DIREITO PROCESSUAL PENAL – APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO - ACTOS PROCESSUAIS / NULIDADES - PROVA / MEIOS DE PROVA / MEIOS DE OBTENÇÃO DE PROVA - SENTENÇA - RECURSOS.

Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 351.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 5.º, N.º1, 120.º, 126.º, N.º3, 170.º, 177.º, N.º 3, 374.º, N.º2, 410.º, N.º2, ALS. B) E C), 412.º, N.ºS 3 E 4, 425.º, N.º4, 426.º, 428.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 368.º - A, N.ºS 1, 5, 7, 9 E 10.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º, N.º2.
DECRETO-LEI N.º 15/93, DE 22 DE JANEIRO.
DECRETO-LEI N.º 48/95, DE 15 DE MARÇO.
ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS (EMJ): - ARTIGO 16.º, N.º4.
LEI N.º 36/94, DE 29 DE SETEMBRO.
Referências Internacionais:
- RELATÓRIO DE OUTUBRO DE 1984 DA PRESIDENT´S COMMISSION ON ORGANIZED CRIME, ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA DO NORTE.
5.º CONGRESSO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CRIMINALIDADE DO BRANQUEAMENTO EM 1975.
- CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA O TRÁFICO ILÍCITO DE ESTUPEFACIENTES E SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS DE 1988 (CONVENÇÃO DE VIENA), ADOPTADA EM VIENA NA 6.ª SESSÃO PLENÁRIA DA CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS, EM 20 DE DEZEMBRO DE 1988.
- RECOMENDAÇÃO DO CONSELHO DA EUROPA, N.º R (80) 10, DE 27 DE JUNHO DE 1980.
- CONSELHO DA EUROPA, NA SENDA DA RECOMENDAÇÃO DE 1980, PROMOVEU A ELABORAÇÃO DA CONVENÇÃO RELATIVA AO BRANQUEAMENTO, DETECÇÃO, APREENSÃO E PERDA DOS PRODUTOS DO CRIME (CONVENÇÃO DE ESTRASBURGO/CONVENÇÃO DE 1990/CONVENÇÃO N.º 141 DO CONSELHO DA EUROPA, COUNCIL OF EUROPE TREATY SERIES, STE N.º 141), ABERTA À ASSINATURA, EM ESTRASBURGO, EM 8 DE NOVEMBRO DE 1990, DATA EM QUE FOI ASSINADA POR PORTUGAL.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 18 DE DEZEMBRO DE 1997, PROCESSO N.º 930/97, BMJ N.º 472, PÁG. 185
Sumário :

Busca domiciliária - Nulidade ou  Proibição de prova

       As normas processuais penais pelas quais se há-de aferir da legalidade de meios de obtenção de prova são as que se encontravam em vigor à data em que os mesmos foram autorizados, concretizados e validados, tendo-se em conta em sede de aplicação de direito intertemporal processual, o princípio geral constante do artigo 5.º, n.º 1, do CPP.

       Por doutrina das proibições de prova compreende-se a doutrina das proibições de investigação de determinados factos relevantes para o objecto do processo, bem como das proibições de levar determinados factos ao objecto da sentença e, finalmente, das consequências processuais da violação daquelas proibições, sendo hoje generalizadamente aceite a distinção formal entre as proibições de produção de prova (limitação já ao nível dos próprios factos a investigar) e proibições de valoração de prova (impedindo que determinados factos sejam objecto da sentença).

       No domínio de violação de dispositivos processuais relativos à prova dos factos, distinguem-se três grandes grupos de proibições de prova: em primeiro lugar, na área da investigação relacionada com os atentados aos direitos fundamentais; em segundo lugar, as violações dos princípios fundamentais do processo, e por último, as infracções dos demais preceitos que regulamentam a produção da prova. Em todos estes grupos é fundamentalmente a ponderação entre os interesses comunitários da perseguição penal e os interesses do arguido que decide da revisibilidade das violações das normas atinentes à prova e, por vias disso, da existência das proibições de valoração.

       Nesta matéria releva o critério da ponderação de interesses, entre os interesses da perseguição penal e os direitos fundamentais do arguido, a tutela dos bens jurídicos individuais co-envolvidos.

         Havendo necessidade de busca no domicílio pessoal ou profissional de qualquer magistrado judicial é a mesma, sob pena de nulidade, presidida pelo juiz competente, o qual avisa previamente o CSM, para que um membro delegado por este Conselho possa estar presente.

       Normas similares encontram-se no artigo 91.º, n.º 4, do Estatuto do Ministério Público, no artigo 105.º, n.º 1, do DL n.º 88/2003, de 26-04, quando os visados com a busca domiciliária sejam solicitadores, ou no artigo 11.º, n.º 6, do Estatuto dos Jornalistas, quando os visados com a busca domiciliária sejam órgãos de comunicação social.

       O não cumprimento na realização da busca de todas as formalidades impostas pelo artigo 177.º, n.º 3, do CPP e pelo artigo 16.º, n.º 4, do EMJ (no caso a presidência da busca por juiz desembargador e a comunicação da realização da mesma ao CSM, para que este órgão se pudesse fazer representar), não se reconduz a uma compressão grave do direito à inviolabilidade do domicílio por parte da arguida, por forma a merecer a tutela do artigo 126.º, n.º 3, do CPP, preceito intrinsecamente ligado ao correspondente normativo constitucional.

       As normas jurídicas violadas no caso concreto são normas que apenas disciplinam as formalidades especiais que devem ser cumpridas nas particulares situações em que possa estar em causa a garantia do sigilo profissional. E a violação de normas desta natureza é sancionada com o regime geral das nulidades.

      No caso dos autos, como em todos aqueles em que apenas são preteridas normas que constituem meras regras de produção de prova ou de disciplina de procedimentos de realização de prova, não podemos falar, pois, em qualquer proibição de prova.

      A nulidade a que se reporta o artigo 177.º, n.º 3, do CPP (aplicável também ao artigo 16.º, n.º 4, do EMJ) cai no regime das nulidades gerais dos artigos 118.º e ss. do CPP, e por não se tratar de nenhuma das situações expressamente referidas no artigo 119.º do mesmo Código - nulidades insanáveis -, estamos perante uma nulidade sanável ou dependente de arguição, cujo regime vem consagrado no artigo 120.º do CPP.

      É o conteúdo do próprio despacho de autorização que actua como garante dos direitos fundamentais das partes e não a mera e necessária intervenção do juiz, pelo que aquele deve respeitar certos requisitos para que possa ser assegurada a legalidade de prova obtida por este meio.

       Os casos paralelos de exigência de presidência pessoal da busca por juiz e aviso prévio ao presidente do conselho local da Ordem dos Advogados ou da Ordem dos Médicos, ou ao presidente regional competente no caso dos solicitadores, ou ainda ao presidente da organização sindical dos jornalistas com maior representatividade, para que os mesmos ou um seu delegado possa estar presente, verificam-se em locais que não são a habitação dos visados, antes em escritório de advogado, ou em consultório médico, no geral em locais de trabalho de profissionais que estão sujeitos a segredo profissional.      

Auto de constituição de arguida - Falsidade

      O actual CPP não permite o incidente de falsidade, pelo que não é lícito recorrer às disposições do CPC para pretender utilizá-lo.

      O auto de constituição de arguida é um documento autêntico, sendo a arguida falsidade objecto de um procedimento de via reduzida, que tem lugar no próprio processo, como decorre do artigo 170.º do CPP.

Impugnação de matéria de facto - Reexame pelo STJ

      Estando em causa a apreciação de recurso tendo por objecto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em primeira instância, pode/deve o Supremo Tribunal conhecer de matéria de facto.

      Em tal situação, o Supremo Tribunal de Justiça funcionará como última instância no reexame, na reapreciação da matéria de facto, fechando-se aqui o ciclo de cognição da matéria de facto, conforme o comando do artigo 428.º do CPP.

      A intervenção do tribunal de recurso em sede de matéria de facto não constitui um segundo julgamento.

      Aplicada aos tribunais de recurso, a norma do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, não tem aplicação em toda a sua extensão, estando-se perante uma fundamentação derivada, nos termos do artigo 425.º, n.º 4, do CPP.

      A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.

Presunções

            O juiz, alicerçando-se em factos certos, pode fazer apelo às presunções materiais, ligadas à normalidade da vida e às regras da experiência comum, para alcançar a afirmação de um facto desconhecido.

     As presunções naturais-de facto (praesumptiones facti ou hominis), judiciais, simples ou de experiência são as que resultam da experiência (das máximas de experiência), do curso ou andamento natural das coisas, da normalidade dos factos (as regras da vida; quod plerumque accidit), sendo livremente apreciadas pelo juiz (artigo 351.º C.C.).

    

As presunções em processo penal

          As presunções constituem, em processo penal, excepções ao princípio in dubio pro reo e, como excepções, devem ser interpretadas nos precisos termos textuais da lei, não podendo ser aplicadas analogicamente.

     As presunções de culpa são imprestáveis no domínio do processo penal, pois entrariam em nítida rota de colisão com o princípio da presunção de inocência e o disposto no artigo 32.º, n.º 2, da CRP, e daqui as disfunções e muitas dificuldades de interpenetração de regras de avaliação da culpa em casos de enxerto cível, de exercício da acção cível em conjunto com a acção penal.

Vícios decisórios

     Os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto - implicam erro de facto - que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Enquanto subsistirem, a causa não pode ser decidida, determinando o reenvio do processo para novo julgamento (art. 426 do CPP).

     Trata-se de vícios da decisão, não do julgamento, umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374.º, n.º 2, do CPP.   

     Perante a verificação de algum vício decisório, o julgador pode fazer uma de duas coisas: ou não tem elementos disponíveis, como será a regra, e reenvia o processo para julgamento, ou resolve logo, se for possível decidir da causa, se na concreta circunstância, estiver de posse dos elementos necessários e imprescindíveis à nova solução, mas aqui há que agir em conformidade com a opção e na sequência dar, em resultado dessa verificação, uma nova versão/composição ao conjunto dos factos provados e não provados, se for caso disso.

     Ocorrendo um dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, o tribunal ad quem só deverá reenviar os autos para novo julgamento se não lhe for possível proferir decisão sobre a causa, o que afasta o reenvio automático.
    O vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, supõe oposições factuais ou a existência de factos contraditórios na factualidade apurada, e a partir de 1 de Janeiro de 1999, oposição entre a matéria de facto e/ou a fundamentação desta e a decisão.

     O vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do C.P.P., é aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores; não se pode confundir este erro com a opinião que o recorrente formulou sobre a prova produzida, divergente da que veio a vingar.
     Sendo desenvolvido um grande esforço argumentativo no sentido de dar como verificado o vício, demonstrado fica que o eventual erro não é notório, no sentido de evidente, patente, ostensivo, transparente, insofismável.

     O erro-vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.

     Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.

Impugnação de matéria de facto – Artigo 412.º-3, CPP

    A impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do CPP, constitui a área por excelência, a hipótese única, em que se verifica o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

    A consagração desta garantia das partes no processo civil e penal implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.

    O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão/imporiam uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.

In dubio pro reo

     A violação do princípio in dubio pro reo tem sido entendida sob diversas perspectivas, como a de respeitar a matéria de prova e, pois, tratar-se de matéria de facto e como tal insindicável pelo STJ (por todos, acórdão de 18 de Dezembro de 1997, processo n.º 930/97, BMJ n.º 472, pág. 185), ou enquanto princípio estruturante do processo penal, podendo ser suscitada perante o Tribunal de revista, mas o Supremo vem afirmando que isso só é possível se a violação resultar do próprio texto da decisão recorrida, designadamente, da fundamentação da decisão de facto.

     A divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal é irrelevante, de acordo com jurisprudência há muito firmada.

Branqueamento - Criminalidade organizada - Globalização    

      O branqueamento de dinheiro é um problema que resulta em larga medida da abertura das economias ao exterior e da tendência para a mundialização da economia, tratando-se de uma consequência negativa dessa abertura e, simultaneamente, de um fenómeno que pode corromper e pôr em causa essa mesma abertura, se não for objecto de uma resposta adequada um fenómeno que ganhou especial vigor com a internacionalização da economia

     O crime organizado, universal e cientificamente organizado, enquadra-se no fenómeno da globalização, sendo organizado verticalmente, e com todas as vantagens de uma sociedade secreta. O grande patrão do crime pode ser um cidadão respeitável, de peito medalhado, amigo do rei. Manda meter cheques na conta bancária e sereias na cama de nababos e poderosos. Chantageia e corrompe o mais Catão.

     Tratando-se de um fenómeno novo, o branqueamento é fora de dúvida um produto da internacionalização da economia, sendo o mundo globalizado, desregularizado, campo propício à expansão do fenómeno, ao exercício do nomadismo que o caracteriza, podendo escolher os tabuleiros onde pode assentar as diversas fases de tratamento, as etapas que conduzam à extirpação da sujidade, à dissimulação da ilícita origem, à almejada limpidez do dinheiro que se pretende “reinvestir” no mercado das regras.

     O branqueamento é como que o lado negro do processo de globalização, da liberalização das trocas internacionais e dos movimentos de capitais, da abertura dos mercados financeiros, da maciça informatização e do comércio electrónico.

     O branqueamento de capitais (dinheiro ou outros bens) consiste no procedimento através do qual o produto de operações criminosas ilícitas é investido em actividades aparentemente lícitas, mediante dissimulação da origem dessas operações; traduz-se no desenvolvimento de actividades, em resultado das quais um aumento de valores, que não é comunicado às autoridades legítimas, adquire uma aparência de origem legal, sendo, no fundo, um processo de transformação.

     Segundo o Relatório de Outubro de 1984 da President´s Commission on Organized Crime, Estados Unidos da América do Norte, por branqueamento “designam-se os meios através dos quais se escondem a existência, a origem ilegal ou a utilização ilegal de rendimentos, encobrindo esses rendimentos de forma a que pareçam provir de origem lícita” ou, segundo outra tradução é “o processo através do qual se esconde a existência, a fonte ilegal ou a utilização ilegal de proveitos, e depois se disfarçam esses proveitos de forma a dar-lhes a aparência de legítimos”.

     O branqueamento é algo diferente de um Kavaliersdelikt, pois a luta contra ele coenvolve sempre, também, o combate à acção prévia, da qual nasceu a vantagem que carece de ser branqueada.

     Daí, o afirmar-se o carácter subsidiário ou acessório do branqueamento, pois a respectiva actuação pressupõe necessariamente, um facto ilícito prévio.

     A privação dos lucros e das fortunas ilicitamente adquiridas por meio de actividades criminosas constitui uma das finalidades pragmáticas do branqueamento.

     A criminalização do branqueamento de capitais faz parte de um claro ímpeto actual com vista a atacar o lado patrimonial da criminalidade. Este movimento inclui designadamente um renovado interesse no fenómeno da corrupção e a sugestão de que se deveria criminalizar o facto de se ter património cuja origem lícita se não consegue demonstrar («sinais exteriores de riqueza não justificados»).

     O branqueamento de capitais e outros produtos do crime corresponde a um fenómeno recente, relacionado com o crime internacionalmente organizado, à criminalidade organizada, que se não confunde com o tipo legal de associação criminosa.

     O branqueamento de capitais é uma categoria criminal nova, recente, moderna, situando-se numa zona de confluência com o da criminalidade organizada, no nosso caso, introduzida a partir de lei avulsa de Janeiro de 1993, em ligação estreita e então única com o crime de tráfico de estupefacientes, com recidiva, com previsão de maior amplitude, através de nova lei avulsa em Dezembro de 1995, e posteriormente, inserida nos catálogos das infracções codificadas,

     O branqueamento de dinheiro ou de capitais é um fenómeno de amplitude mundial, que surgiu pela primeira vez, a nível mundial, associado ao tráfico de estupefacientes transnacional, que tem determinado que organizações internacionais e supranacionais tenham desenvolvido e continuem a desenvolver variadíssimos esforços, com o objectivo de, em última análise, generalizar e tornar mais eficaz o combate a tal tipo de criminalidade organizada.

     O início da reacção das Nações Unidas contra a criminalidade do branqueamento pode localizar-se em 1975 com o 5.º Congresso das Nações Unidas para a prevenção do crime e o tratamento dos delinquentes, realizado em Genève, onde foi abordada a temática do crime como empresa lucrativa.      

     A primeira iniciativa da comunidade internacional, em termos de elaboração de instrumentos sobre a questão de lavagem de dinheiro, consistiu na Recomendação do Conselho da Europa, n.º R (80) 10, de 27 de Junho de 1980, relativa às disposições contra a transferência e a dissimulação de fundos com origem ilícita.

     O branqueamento de capitais e de outros bens provenientes de actividades criminosas, nomeadamente os derivados de tráfico de estupefacientes, substâncias psicotrópicas e precursores, passou a ser objecto de combate específico a partir da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena), adoptada em Viena na 6.ª Sessão Plenária da Conferência das Nações Unidas, em 20 de Dezembro de 1988.

    Esta mesma Convenção pode ser considerada como um dos instrumentos mais detalhados e de maior alcance no domínio do direito penal internacional, tendo-se operado a sua incorporação no direito interno com o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

     Manifestando as mesmas preocupações, o Conselho da Europa, na senda da Recomendação de 1980, promoveu a elaboração da Convenção Relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime (Convenção de Estrasburgo/Convenção de 1990/Convenção n.º 141 do Conselho da Europa, Council of Europe Treaty Series, STE n.º 141), aberta à assinatura, em Estrasburgo, em 8 de Novembro de 1990, data em que foi assinada por Portugal

     A partir de Janeiro de 1993, com o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, opera-se uma verdadeira neocriminalização, com a tipificação da actividade de branqueamento de capitais obtidos com o tráfico de droga. 

      

Fases do branqueamento

   A designação mais comum para significar as fases, etapas, ou possíveis operações de branqueamento de capitais, é a adoptada pelo GAFI, que distingue três etapas, designadas na terminologia inglesa habitualmente usada por placemen, layering e integration(fases de colocação, circulação e de integração), tendo inspirado a Convenção de Viena e em consequência o legislador português, que seguiu aquela muito de perto.

     A primeira fase – placement – consiste na colocação dos capitais no sistema financeiro, seja em instituições financeiras tradicionais ou noutras.

    A segunda fase — layering — consiste na realização de várias transacções, com vista a criar várias «camadas» (layers) entre a origem real e a que se pretende visível, para assim dissimular a origem dos fundos. O objectivo é o de interromper o chamado paper trail, ou seja, o conjunto de elementos documentais que permitem a reconstrução dos movimentos financeiros efectuados.

     A terceira fase — integration — é o investimento (ou, na terminologia dos autores italianos, o «emprego» dos fundos), já «lavados», nas mais variadas operações económicas (p. ex., a compra de imóveis ou metais preciosos), numa perspectiva designadamente de longo prazo.

Aplicação da lei no espaço

     A punição pelo crime de branqueamento tem lugar ainda que os factos que integram a infracção subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, ou ainda que se ignore o local da prática do facto.

     Ultrapassada a definição do locus commissi delicti tradicional, é irrelevante o local do cometimento do crime precedente; a punição pelos crimes de branqueamento abrange expressamente os casos em que os factos que integram a infracção principal tenham sido praticados fora do território nacional ou se desconheça o local do seu cometimento.

Bem jurídico protegido

    Pela inserção sistemática, o bem jurídico protegido pela incriminação é a realização da justiça, na sua particular vertente da perseguição e do confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa. Para alguns Autores, trata-se de um crime pluriofensivo.

Conexão entre branqueamento e ilícito típico precedente (autoria)

     A punição do branqueamento de vantagens, prescindindo do território nacional como lugar único da prática dos factos que integram a infracção subjacente, prescinde igualmente da punição do autor do facto precedente ou mesmo do conhecimento da sua identidade.

     A punição do branqueamento não pressupõe que tenha de existir agente determinado ou condenação pelo crime subjacente.

     A lei exige apenas o conhecimento da prática da infracção principal, e não a sua punição.

     O crime de branqueamento e a respectiva reacção penal são autónomos em relação ao facto ilícito típico subjacente. Assim, não importa que este último não tenha sido efectivamente punido, por exemplo por inimputabilidade penal do agente, morte deste, prescrição, ou simplesmente, impossibilidade de determinar quem o praticou e em que circunstâncias.

     O tipo do branqueamento exige apenas que as vantagens provenham de um facto ilícito-típico, não de um crime, donde a punição do branqueamento não depende de efectiva punição pelo facto precedente.

Pressuposto: o crime/facto precedente

        O “Branqueamento”, sem mais, (nomem assumido com a codificação em 2004, presente na epígrafe do artigo 368.º-A, do Código Penal) pressupõe, actualmente, um facto ilícito típico (dantes, um crime em sentido técnico) anterior, que tenha produzido vantagens (com a definição do texto explicativo do n.º 1, com a inclusão dos producta sceleris e ainda dos bens que com eles - factos ilícitos típicos - se venham a obter).

     A declaração de perda de bens a favor do Estado, ou o confisco, na via alargada ou não, e a punição do branqueamento, servem, por vias diversas, o mesmo desiderato: a pretensão estadual de atacar as vantagens do crime.       

     A juzante, o branqueamento das vantagens. A montante, o crime prévio, de onde aquelas provêm.

     O branqueamento de dinheiro, para utilizar uma fórmula simplificada, supõe uma infracção principal (predicated offence), com outras, variadas designações, ao nível do direito europeu e internacional, como crime prévio, crime originário, delito pressuposto, crime-base, crime primário, crime antecedente, crime precedente, facto referencial, crime designado, infracção subjacente, facto ilícito típico (designação presente nos n.º 1, 5, 7, 9 e 10 do artigo 368.º-A do Código Penal, embora com simultânea referência, no n.º 1, a “infracções” referidas no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, estando o termo “infracções” igualmente presente no n.º 2, e ainda a expressão “infracção subjacente” no n.º 4), todas a significar a actividade criminosa (ou ilícita típica) de origem dos bens, a infracção cuja receita está na origem do branqueamento, e a juzante, uma infracção criminal secundária, um pós delito, propriamente, o branqueamento.

     O critério actual de definição do facto ilícito e típico de que decorre a vantagem é misto, conjugando um catálogo de crimes, uma cláusula geral reportada à gravidade da infracção principal, valorada pela pena aplicável (puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a 6 meses ou de duração máxima superior a 5 anos) e ainda uma remissão (já presente desde 1995 – artigo 2.º, corpo, do DL n.º 325/95) para um elenco de infracções constante de lei avulsa (Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro).

     Actualmente o facto precedente não tem que constituir um crime em sentido técnico (um ilícito - típico culposo e punível), mas um simples ilícito - típico, prescindindo, pois, do carácter culposo e punível.

     A actividade de branqueamento é uma criminalidade derivada, de 2.º grau ou induzida de outras actividades, pois só há necessidade de “branquear” dinheiro se ele provier de actividades primitivamente ilícitas.

     O branqueamento de capitais constitui uma criminalidade derivada ou de segundo grau, no sentido de que tem como pressuposto a prévia concretização de um ilícito.

     Esta relação do branqueamento com o facto precedente, a relação genética entre a lavagem e o crime gerador das receitas, lucros necessitados de branquear, não impede a afirmação da autonomia do branqueamento.

     O branqueamento de capitais pode ser caracterizado como um tipo derivativo, secundário, acessório ou «de conexão», sendo, neste ponto, em tudo análogo ao favorecimento pessoal, à receptação e ao auxílio material ao criminoso, visto que todos estes tipos legais fazem em parte derivar o seu conteúdo de ilicitude, embora nem sempre da mesma forma, do facto principal, podendo denominar-se todos estes tipos que pressupõem um ilícito-típico anterior de «adesões posteriores» ou «pós factos».

     O crime de branqueamento de capitais é estruturalmente autónomo da criminalidade subjacente.

     Desde que se tenha verificado a prática do crime-base e sejam praticados actos subsumíveis ao tipo de branqueamento, este ganha autonomia, no sentido de que o respectivo agente será penalmente perseguido mesmo nos casos em que, por exemplo, o autor do crime-base seja penalmente inimputável, morra, ou o procedimento criminal por tal crime se encontre prescrito.

     Pode haver “crime de branqueamento”, mesmo que os factos subjacentes não sejam criminalmente puníveis.

    Acolhendo os ensinamentos de Figueiredo Dias, o conceito de facto ilícito típico é introduzido no Código Penal, aquando da terceira alteração, operada pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março, surgindo associado ao pós delito, na definição dos crimes de receptação e auxílio material (artigos 231.º e 232.º), e em consideração a juzante, ao aproveitamento dos resultados do crime, na declaração de perda a favor do Estado dos producta sceleris (artigos 109.º, 110.º e 111.º), ou numa outra perspectiva relacionada com medidas de segurança (artigo 91.º em conexão com artigo 20.º).

     Já antes a categoria estava presente no artigo 35.º, versando perda de objectos, do Decreto-Lei n.º 15/93.

     Com a codificação do branqueamento em Abril de 2004, o facto precedente passou a designar-se facto ilícito típico, designação presente nos n.º 1, 5, 7, 9 e 10 do artigo 368.º-A do Código Penal.          

Tipo subjectivo

      A determinação da intenção do agente consubstancia pronúncia sobre matéria de facto, encontrando-se, por isso, subtraída aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto instância de recurso.

     Na lei portuguesa o crime de branqueamento é um crime essencialmente doloso, não estando prevista nenhuma forma de negligência, não tendo acolhido a lei a possibilidade de punir a negligência grosseira quanto à proveniência dos bens, que chegou a ser proposta. (Na Alemanha, o StGB no § 261 (5) prevê a punição por negligência). 

    “A verdade concernente ao caso judiciário, assim como a verdade sobre qualquer acontecimento já ocorrido, não pode ser estabelecida senão por recurso aos sinais ou indícios que tudo o que acontece deixa nas coisas, nos objectos ou na memória das pessoas que foram testemunhas delas”. 

     A infracção, em qualquer dos seus graus ou modalidades, é essencialmente dolosa, exigindo sempre que o agente saiba que os produtos são provenientes de certo tipo de actividade criminosa.

    Exige-se que o agente, ao efectuar qualquer operação no procedimento mais ou menos complexo de conversão, transferência ou dissimulação, tenha conhecimento da natureza das actividades que originaram os bens ou produtos a converter, transferir ou dissimular. 

    Elemento subjectivo comum a todas as condutas previstas é a exigência do conhecimento da proveniência do objecto da acção num dos ilícitos-típicos precedentes, da origem dos bens (que faz parte do elemento intelectual do dolo).

     Quanto ao grau de conhecimento para que se possa afirmar o dolo, não é necessário que seja determinado precisamente quem tenha sido autor das actividades da infracção subjacente, ou quem tenha estado na origem dos fundos a converter, transferir, dissimular ou ocultar.

     Não é de exigir um conhecimento detalhado e pormenorizado do crime de onde derivam os bens – caso contrário, só poucas condutas seriam puníveis. Será dispensável o conhecimento do tempo, lugar, forma de cometimento, autor e vítima do crime precedente.     

     A exigência do conhecimento por parte do agente da proveniência criminosa dos bens ou produtos sobre os quais, ou em relação aos quais actua, deve ser entendida como abarcando o dolo típico em todas as suas formas, incluído o dolo eventual. (Assim, Jorge Duarte, Luís Silva Pereira, Vitalino Canas, Victor Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Miguez Garcia e Castela Rio. Contra, Faria Costa, Jorge Godinho).

Punição do auto branqueamento   

          O autor do facto precedente pode ser autor do crime de branqueamento, ou seja, o autor do crime base pode ser perseguido cumulativamente pelo de reciclagem dos produtos daquele.

     Face à lei actual, é possível a punição por branqueamento, em concurso real, do próprio autor do crime subjacente.

(R.B.)

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