Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15947/20.0T8SNT.L1.S2
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICAL
INTERESSES DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: NÃO ADMITIDA A REVISTA EXCECIONAL.
Sumário :

I- A alínea a) do art. 672.º, nº 1, do CPC, pressupõe uma questão que apresente manifesta complexidade ou novidade, evidenciada nomeadamente em debates na doutrina e na jurisprudência, e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça – assumindo uma dimensão paradigmática para casos futuros – se mostre necessária para contribuir para a segurança e certeza do direito.

II- Neste âmbito, é irrelevante, só por si, o eventual desacerto do juízo subsuntivo/valorativo operado pela decisão recorrida.

III- Os interesses de particular relevância social respeitam a aspetos fulcrais para a vida em sociedade e exigem um interesse comunitário significativo, que transcenda a dimensão inter partes, não bastando o mero interesse subjetivo do recorrente.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 15947/20.0T8SNT.L1.S1 (revista excecional)


MBM/JG/RP


Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. AA (doravante designado apenas por autor ou A.) e outro intentaram a ação declarativa, com processo comum, contra V.......... ........., S. A.


2. Na 1ª instância, a ação foi julgada parcialmente procedente, decidindo-se, na parte que ora releva:


– Declarar que o A. aufere como vencimento base a quantia de 1751,20 €, valor no qual está incluída a verba auferia a título de gratificação de balanço;


– Condenar a ré a pagar ao A. a quantia de 7.749,18 €, relativa a retribuição não paga, desde março de 2020 outubro de 2020;


– Condenar a R. a pagar ao A. o rebate da atualização do valor do salário base nos valores devidos a título de retribuição até a cessação do contrato, nos subsídios de férias e Natal, e na compensação devida pela extinção do posto de trabalho, a liquidar em execução de sentença.


3. Interposto recurso de apelação pela R., foi o mesmo julgado improcedente e confirmada a decisão recorrida.


4. Novamente inconformada, veio esta interpor recurso de revista excecional, com base no art. 672º, nº 1, alíneas a) e b), do CPC, invocando, nas suas conclusões (que não primam pela clareza, nem pela elegância, como em especial decorre da conclusão “M”), o seguinte:


A. O presente recurso versa sobre Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que decidiu manter a decisão proferida na 1ª Instância.


B. Concretamente está em causa pagamentos que a empresa efetuou com a classificação de gratificação de balanço


C. Está em causa a similitude de factos e interpretação com o que se defende no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.05.2020.


D. Nomeadamente, a situação em concreto em causa nos autos não cumpre o facto de o pagamento estar antecipadamente garantido por força de contrato ou normas que o regem.


E. Porque as condições da presunção legal referida no Acórdão do STJ são cumulativas.


F. Aliás a similitude é muito mais com o que se decide no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.01.2001 que as entende como liberalidades da entidade empregadora.


G. A questão radica na interpretação a fazer das alíneas b) e d) do nº 1 do artigo 260º do Código do Trabalho.


H. Na decisão preferida subverte-se a vontade e espírito do legislador.


I. E nem sequer é a leitura que a Segurança Social faz destas remunerações por conta dos lucros.


J. Pois, compete à empresa classificar as remunerações/ valores que paga aos seus trabalhadores, até porque a legislação aponta sempre para essa flexibilidade.


K. A interpretação de que existe uma presunção legal a ilidir é que alterou todo o sentido das normas.


L. Com a decisão proferida aniquilou-se um instrumento de gestão e de integração nas empresas.


M. É uma visão profundamente interventiva do Estado mais social do que aquele que se espera nos dias de hoje, uma politização da legislação numa proteção dos trabalhadores atada à perna de um socialismo que nos foi imposto em 1975 e que parece ainda hoje “carimbar” a legislação laboral e de que nos temos que libertar.


N. E, nos parece, que o legislador quis implementar no sentido de uma flexibilidade de gestão para as empresas.


O. As referidas alíneas b) e d) cumprem uma função social e económica.


P. Existe um erro na decisão proferida no Acórdão “a quo” ao referir como b) o facto não provado.1


5. Não foi apresentada contra-alegação.


6. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, apenas no tocante ao A. AA, pelo que foi determinada a distribuição do processo à formação de apreciação preliminar.


Decidindo.


II.


7. Com interesse para a decisão, é a seguinte a matéria de facto considerada pelo acórdão recorrido:


1. […]


2. O Autor AA cuja categoria profissional é Supervisor, tem como funções ajudar a formar colaboradores em vários âmbitos, supervisionar e avaliar o desempenho de cada elemento, verificar se as lojas estão de acordo com as diretrizes dadas pela empresa, o que executa segundo um plano de trabalho pré-estalecido por si e aprovado pela empresa, consistindo em fazer visitas a duas lojas por dia, exceto ... em que são feitas 4 lojas num dia só.


[…]


4. Até Março do corrente ano de 2020, o Autor AA recebia mensalmente a título de retribuição pelo trabalho prestado a quantia de fixa de € 890,00 (vencimento), uma quantia entre € 703,96 e € 1.326,14 (gratificação de balanço), € 115,28 (subsídio de alimentação) e 99,76 (a título de isenção de horário).


[…]


6. Os Autores desde que foram contratados pela Ré sempre receberam os subsídios de Natal e de Férias com o valor resultante da soma dos itens 'vencimento 'e 'gratificação de balanço'.


7. Em Março do corrente ano de 2020, e devido à pandemia provocada pelo vírus Covid 19, os Autores foram colocados em Lei Off simplificado.


8. Após cessar a aplicação da Lei Off, A Ré não voltou a repor o vencimento aos AA na sua totalidade deixando de lhes pagar o item 'gratificação de balanço'.


9. A responsável pelos recursos humanos da Empresa enviou aos Autores email no qual refere que:


'(….) Deixamos claro que é nossa intenção repor os valores que acordámos com cada trabalhador para além da sua retribuição base quando conseguirmos regressar à atividade comercial (…)'


[…]


12. Entre 2015 e 2020 foram feitas inúmeras insistências pelo Autor AA junto da chefia e dos representantes da administração para que o gratificado de balanço passasse a integrar o vencimento base.


13. É com base no valor resultantes do somatório das duas parcelas que os AA. sempre contaram para fazer face às suas despesas mensais designadamente renda de casa, despesas de consumo de água, eletricidade, gás, comunicações, vestuário, calçado, alimentação, saúde e outras.


14. O A. AA tem isenção de horário.


15. A R. dedica-se à atividade de comércio de pronto-a-vestir de homem comercializando uma marca própria a 'G....... .....'.


[…]


19. Em 02.11.2021, a Ré rescindiu o Contrato de Trabalho que a ligava ao A. AA […]


20. […] a Ré pagou os créditos salariais emergentes da cessação do Contrato de Trabalho e a compensação legalmente prevista.


21. O Autor AA recebeu a quantia de 1.914,15€ a título de créditos salariais (proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal, férias não gozadas) e 11.644,17 € a título de compensação pela cessação do Contrato.


[…]


III.


8. Está em causa a questão de saber se as quantias pagas ao A. com a designação gratificação de balanço constituem uma participação nos lucros (como sustenta a recorrente) ou têm natureza retributiva, matéria relativamente à qual o acórdão recorrido entendeu, resumida e fundamentalmente, o seguinte:


«[…] [P]ese embora essas gratificações sejam em regra pagas anualmente (desde logo porque só no final do exercício pode a empresa saber qual o resultado obtido) […] e nem por isso deixarem de ser consideradas como retribuição desde que pagas regular e periodicamente (na dita cadência) se verificadas ou presumidas as condições de que dependem (em regra a prestação do trabalhador e/ou da própria empresa), no caso sub iudicio nem sequer isso se verificou uma vez que a apelante as pagou a uma cadência mensal aos apelados, […] cessando apenas, note-se bem, com o fim da situação de Lay-off simplificado […] - ou seja, mesmo numa situação em que os apelados não terão realizado a prestação a que se encontravam obrigados para com a apelante ou a realizaram apenas parcialmente (em consonância com o disposto no art.° 6.° do Decreto-Lei n.° 10-G/2020, de 26 de Março) e em que ainda assim aquela evidenciou a vontade de repor as gratificações ("os valores que acordamos com cada trabalhador para além da retribuição base") logo que retomasse a atividade comercial. […] Ao que acresce a circunstância de "os Autores desde que foram contratados pela Ré sempre receberam os subsídios de Natal c de Ferias com o valor resultante da soma dos itens “vencimento” e “gratificação de balanço”, […] o que sem dúvida inculca a ideia de que também para a apelante as gratificações que pagava aos apelados eram efetivamente retribuição (não retribuição base, com certeza, mas em todo o caso retribuição).


(…)


Pelo exposto, uma vez que a apelante não ilidiu a presunção legal de que as gratificações que pagava aos apelados tinham natureza retributiva, […] impõe-se concluir que nesta parte bem decidiu o Tribunal a quo. Razão por que nesta parte se não pode conceder a apelação da ré.».


9. Não se vê que os factos provados suscitem controvérsia ou dificuldade na aplicação do direito, nem qualquer necessidade de densificação dos conceitos e normas invocados pelo recorrente.


Com efeito:


O disposto no art. 258º, nº 3, do CT, segundo o qual se presume constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador, em nada contende com o preceituado no art. 260º, nº 1, b), do mesmo diploma, do qual emerge que “não se consideram retribuição […] as gratificações ou prestações extraordinárias concedidas pelo empregador como recompensa ou prémio dos bons resultados obtidos pela empresa”.


É ainda patente que no caso vertente nenhuma destas normas revela qualquer ponto que careça de clarificação jurídica.


Ao invés, o que os autos revelam é que nos encontramos perante uma mera divergência da recorrente relativamente ao enquadramento jurídico levado a cabo pelo Tribunal a quo, o qual, perante a factualidade assente, concluiu não ter sido ilidida a referida presunção e, ao mesmo tempo, não comprovado o condicionalismo previsto no nº 1, alínea b), do sobredito art. 260º.


Aliás, mais rigorosamente, sendo evidente que havia uma presunção a ilidir, o recorrente discorda é de lei expressa e com sentido que é inequívoco nas dimensões normativas que no caso vertente foram aplicadas, ao afirmar que “a interpretação de que existe uma presunção legal a ilidir é que alterou todo o sentido das normas”.


Lançando mão de quadros jurídicos que se encontram estabilizados, o acórdão recorrido procedeu à sua função subsuntiva/valorativa em termos que não evidenciam qualquer dimensão problemática.


Encontramo-nos, pois, fora da esfera do fundamento específico da revista excecional expresso na fórmula (especial/particular) “relevância jurídica”, em cujo âmbito não cabe, só por si, como se sabe, o eventual desacerto da decisão recorrida.


Com efeito, a alínea a) do art. 672.º, nº 1, do CPC, pressupõe uma questão que apresente manifesta complexidade ou novidade, evidenciada nomeadamente em debates na doutrina e na jurisprudência, e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça – assumindo uma dimensão paradigmática para casos futuros – se mostre necessária para contribuir para a segurança e certeza do direito.


10. Quanto aos invocados interesses de particular relevância social, que não se descortinam minimamente, não se vê que estejam em causa “aspetos fulcrais para a vida em sociedade” (Ac. do STJ de 13.04.2021, P. 1677/20.6T8PTM-A.E1.S2) ou que “exista um interesse comunitário significativo que transcenda a dimensão inter partes (Ac. do STJ de 29.09.2021, P. n.º 686/18.0T8PTG-A.E1.S2), sendo certo que nesta matéria “não basta o mero interesse subjetivo do recorrente” (Ac. do STJ de 11.05.2021, P. 3690/19.7T8VNG.P1.S2).


IV.


11. Nestes termos, acorda-se em não admitir o recurso de revista excecional em apreço.


Custas pela recorrente.


Lisboa, 11 de outubro de 2023


Mário Belo Morgado (Relator)


Júlio Manuel Vieira Gomes


Ramalho Pinto





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1. Efetivamente, por manifesto lapso material, estando em discussão o ponto d), o acórdão recorrido refere-se ao ponto b) dos factos dados como não provados.↩︎