Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1823/19.2T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: EMPREITADA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
PRAZO ADMONITÓRIO
RECUSA DE CUMPRIMENTO
ABANDONO DA OBRA
DONO DA OBRA
RESOLUÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
JUSTA CAUSA DE RESOLUÇÃO
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. O empreiteiro (relativamente ao dono da obra) ou o subempreiteiro (relativamente ao empreiteiro) só entram automaticamente em incumprimento definitivo se foi estabelecido um termo certo para a entrega da obra. Caso contrário, tal situação apenas surge após a interpelação admonitória que o comitente faça, tendo em conta o prazo razoável para a execução da obra (ut art. 777.º, do Cód. Civil).

II. A interpelação admonitória é uma declaração receptícia que contém três elementos: intimação para o cumprimento; fixação de um termo peremptório para o cumprimento; admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida, se não ocorrer o adimplemento dentro desse prazo.

III. Porém, se o empreiteiro (ou o subempreiteiro) tiver uma conduta reveladora de uma intenção firme e definitiva de não cumprir a obrigação contratual de concluir a respectiva obra, está‑se perante uma situação de incumprimento definitivo a si imputável, podendo, então, o dono a obra (ou o empreiteiro, na subempreitada) resolver o contrato e exigir uma indemnização, sem necessidade de recorrer a prévia interpelação admonitória.

IV. Uma atitude susceptível de revelar aquela intenção firme e definitiva de não cumprir a obrigação contratual de concluir a obra é o abandono da obra; sendo, porém, que o abandono da obra, só por si, não só não significa impossibilidade de prestação, como, também, suspender ou parar uma obra não é o mesmo que abandoná‑la, correspondendo às diversas situações efeitos jurídicos diferentes.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível



I – RELATÓRIO

AA e BB intentaram no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira (Juízo Central Cível do Funchal) acção declarativa contra a sociedade J. A. Pinto Arquitetura e Engenharia - Unipessoal Lda., peticionando:

- Seja confirmada a resolução por si extrajudicialmente efetuada do contrato de empreitada com este celebrado, por incumprimento definitivo da sua parte, condenando-se a Ré a pagar-lhes a quantia de € 48.889,11 (repartidos da seguinte forma: € 37.000,00, relativos aos valores por si pagos, no âmbito do contrato de empreitada; c 300,00, respeitantes a honorários pagos a CC e relativos ao termo de autenticação do contrato de empreitada; € 13.743,62 relativos à demolição do muro e reconstrução do mu­ro de contenção da estrada; € 730,84 por si despendidos com o parecer do LREC; € 188,62 referentes a taxas de justiça e despesas com agente de execu­ção com a notificação judicial avulsa; € 306,00, a título de taxa de justiça com Arresto; c 5.000,00 com Honorários de advogado, € 199,03 relativos a taxa de substituição de Empreiteiro; € 357,00, despendidos com taxa de justi­ça recurso nos autos de arresto; € 714,00, a título de taxa de justiça da acção e € 1350,00 relativos à Prorrogação Licença).

Invocou, para tanto, em súmula, ter celebrado com a Ré um con­trato de empreitada, que esta não cumpriu, tendo efectuado trabalhos que, pelas circunstâncias como foram desenvolvidos e pelo aspecto que apresen­taram, lhes fez perder a confiança no seu trabalho e o interesse em manter a relação contratual consigo estabelecida.

A Ré contestou:

Negou a existência de qualquer defeito de sua responsabilidade, defendendo, pelo contrário, terem sido os Autores quem determinou que a obra se desenvolvesse como se desenvolveu, tendo sido eles quem deu ori­gem às anomalias que se fizeram sentir no construído.

Deduziu pedido reconvencional, pugnando pelo pagamento de trabalhos por si efectuados e não pagos, que liquidou, face ao montante de € 27.000,00 que os Autores já lhe haviam pago, no montante de €9.715,53.

Mais peticionou a condenação dos Autores como litigantes de má-fé.

Procedeu-se a julgamento tendo sido proferida senten­ça que culminou com a seguinte

Decisão:

Em face de todo o exposto julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:

a. Declara-se resolvido o contrato de empreitada celebrado entre Autores e Ré, por incumprimento contratual da Ré;

b. Em consequência do decidido em a., condena-se a Ré a devolver aos Autores a quantia de € 24.161,00;

c. Em consequência do decidido em a. condena-se a Ré a pagar, a título de indemnização compensatória pelos danos patrimoniais causados aos Autores, a quantia de € 12.415,46;

d. Julga-se improcedente o demais peticionado pelos Autores e dele se absolve a Ré;

e. Julga-se o pedido reconvencional totalmente improcedente, por não provados, e, em consequência, deles se absolvem os Autores.”.

Recorreu a Ré, sociedade J. A. Pinto Arquitectura e Engenharia - Unipessoal Lda., vindo a Relação de Lisboa, em decisão singular do Relator, a “Julgar procedente a apelação da sociedade J. A. Pinto Arquite-tura e Engenharia - Unipessoal Lda. e absolver a mesma do pedido formulado AA e BB.”.

Sobre essa decisão singular incidiu acórdão da conferência, confirmando integralmente o seu teor.


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Por sua vez inconformados, vêm os Autores/Recorridos AA e BB, interpor recurso de revista, apresentando alegações que rematam com as seguintes

CONCLUSÕES1

Salvo melhor entendimento é nosso entender que este acórdão não pode ser aceite, porque:

Tendo em conta a posição relativa aos factos fixados - aceitando-os,

Considera provada toda a factualidade (tal como a 1º instância),

Reduz a questão do recurso à questão de saber se a intenção do abandono da obra pela Ré é suficientemente expressa para comprovar o incumprimento definitivo do contrato de empreitada e se haveria assim necessidade de interpretação admonitória por parte do credor.

Parece-nos que pela factualidade considerada provada pela 1º instância aceite pelo acórdão da Relação não pode haver dúvidas de que os factos provados são prova capaz e suficiente da intenção do abandono da obra pela R para comprovar o incumprimento definitivo do contrato de empreitada.

Com o devido respeito parece-nos que os factos elencados e aceites como provados pela decisão singular consubstanciam um verdadeiro incumprimento definitivo por parte da Ré, cabendo assim ao dono da obra resolver o contrato e exigir uma indemnização.

Nestes termos deve ser dado provimento ao presente recurso que deve ser julgado procedente sendo assim confirmada a decisão da 1º instância.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), temos como (única) questão a decidir, tal como a define a Recorrente:

• Aferir “se a intenção do abandono da obra pela Ré é suficientemente expressa para comprovar o incumprimento definitivo do contrato de empreitada” e se, como tal, não havia necessidade de interpretação admonitória por parte do credor”.

III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (na 1ª instância, após impugnação em recurso):

A. No dia 27 de Março de 2018, os Autores, na qualidade de Donos da Obra, e a Ré, na qualidade de Empreiteira, assinaram documento escrito denominado “Contrato de Empreitada Obra de uma moradia unifamiliar localizada na Urbanização ...”, através do qual a segunda se comprometia a realizar a obra, conforme descrição e descritivos em anexo, pelo valor de € 195.000,00, que os primeiros se comprometiam a pagar;

B. Sob a Cláusula Quarta do acordo referido em A., estabeleceram as partes que opagamento do valor acordado para a realização dos trabalhos acordados seria efectuado da seguinte forma: € 10.000,00 com assinatura do contrato; o remanescente do valor da adjudicação, correspondente a 20% do valor da obra, no prazo de 60 dias, data a partir da qual se considera consignada a obra; o remanescente do pagamento em tranches, em conformidade com o proposto pela entidade bancária que financiará a obra, mas nunca em número inferior a quatro prestações; a última prestação até oito dias após a entrega da licença de habitabilidade por parte da Câmara Municipal ...;

C. Sob a cláusula Quarta, ficou estabelecido que a eventualidade de os primeiros outorgantes incumprirem com o pagamento acima referido, acarreta a resolução imediata do contrato, devendo o segundo outorgante proceder à devolução em singelo do sinal recebido;

D. As partes acordaram num prazo de execução não superior a dez meses, a contar da data de adjudicação da obra;

E. Por conta do valor total acordado para a realização dos trabalhos referidos em A., os Autores entregaram à Ré o montante global de € 27.000,00, sendo € 10.000,00, no dia 27 de Março de 2018 e € 17 000,00, no dia 24 de Maio de 2018, que a Ré aceitou;

F. Na sequência do referido em E., a obra iniciou-se a 28 de Maio de 2018;

G. Fizeram-se os desaterros e foi construído o muro de suporte frontal da moradia;

H. O muro referido em G. constitui muro de contenção da estrada que se situa a norte do terreno e do passeio e é fundamental para garantir a estabilidade e segurança da moradia e da estrada;

I. No dia 04 de Junho de 2018, os Autores constataram que o muro referido em G. apresentava uma fenda;

J. No dia 05 de Junho de 2018, o muro referido em G. apresentava-se partido em duas partes;

K. Os Autores, durante o mês de Junho confrontaram a Ré com a situação de o muro se encontrar como referido em I. e J.;

L. A Ré, na sequência do mencionado em K., comprometeu-se a refazer o muro;

M. Apesar do referido em L., durante três semanas, nada foi feito pela Ré;

N. A 27 de Junho de 2018, os Autores, através do seu mandatário, enviaram comunicação escrita à Ré em que lhe propunham, face ao ocorrido, a rescisão amigável do contrato celebrado entre ambos;

O. A Ré não respondeu à comunicação referida em N.;

P. Em 13 de Julho de 2018, os Autores apresentaram notificação judicial avulsa, através da qual comunicavam à Ré que consideravam o contrato de empreitada resolvido, devendo esta devolver a totalidade dos montantes recebidos (27.000,00 Euros) acrescido de todas a despesas judiciais e extrajudiciais que os requerentes haviam tido até à data, que ascendiam ao montante total de 3.000,00 Euros;

Q. A Ré, na pessoa do seu gerente, foi contactada pessoalmente a 18 de Julho de 2018, mas recusou-se a assinar a notificação;

R. Na data referida em Q., a Ré havia efectuado:

- Limpeza do local da obra, incluindo vegetação e terras, no valor de 459,00;

- Escavação geral para implantação da moradia, no valor de € 2.380,00;

S. Na sequência do referido em I. e J., os Autores solicitaram parecer técnico ao Laboratório Regional de Engenharia Civil;

T. Em 13 de Agosto de 2018, o Laboratório Regional de Engenharia Civil emitiu parecer em que concluiu que o muro deverá ser demolido, uma vez que na sua cota de arranque de terreno não apresenta boas características para a sua fundação;

U. A demolição do muro foi orçamentada, em Julho de 2018, em € 10.748,20;

V. A reconstrução do muro referido em G. incluindo demolição, custou € 12.415,46;

W. Os Autores sustentaram as seguintes despesas:

- € 730,84 com o parecer do Laboratório Regional de Engenharia Civil;

- € 188,62 referentes a taxas de justiça e despesas com agente de execução com a notificação judicial avulsa referida em Q.;

- € 306,00, a título de taxa de justiça com Arresto;

- € 357,00, despendidos com taxa de justiça recurso nos autos de arresto;

- €714,00, a título de taxa de justiça da acção;

X. A Ré não providenciou contrato de fornecimento de água com a Câmara ...;

Y. Os Autores instauraram, em 18 de Setembro de 2018, procedimento cautelar de arresto contra a Ré, o qual correu termos sob o número 4704/18.3..., no Juízo Local Cível ...;

Z. No âmbito do arresto, os Réus tiverem conhecimento que a Ré tinha incumprido contrato de empreitada com o Instituto da Segurança Social da ..., que informou não dispor de qualquer montante para ser arrestado uma vez, que as obras da empreitada cujo valor se pretendia arrestar, foram interrompidas por razoes imputáveis e da exclusiva responsabilidade do empreiteiro – “J. A. Pinto Arquitectura e Engenharia – Unipessoal, Lda.”;

AA. Os Autores tiveram conhecimento, no decorrer do ano de 2019, de situações de incumprimento da Ré.


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Factos Não Provados:

Com relevo para a decisão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente não resultou provado que:

1. Os trabalhos iniciaram-se três semanas depois da data em que a Ré se comprometeu a iniciar a obra;

2. O referido em 1. criou um clima de falta de confiança em relação à Ré, pois esta, dia após dia, ia protelando o início da obra;

3. Na sequência do comportamento da Ré, os Autores sustentaram o pagamento de € 300,00, respeitantes a honorários pagos ao Dr. CC e relativos ao termo de autenticação do contrato de empreitada;

4. Na sequência do comportamento da Ré, os Autores sustentaram o pagamento de € 5.000,00 com Honorários de advogado;

5. Na sequência do comportamento da Ré, os Autores sustentaram o pagamento de €199,03 relativos a taxa de substituição de Empreiteiro;

6. Na sequência do comportamento da Ré, os Autores sustentaram o pagamento de € 1.350,00 relativos à Prorrogação Licença;

7. O referido em AA. relaciona-se com 5 moradias no Caminho do ... e um hotel na Rua da ..., todas no Funchal, situações que se vêm repetindo com várias pessoas - receber dinheiro e nada fazer;

8. À data da propositura desta acção, já vários lesados intentaram acções judiciais com intuito de recuperar o seu dinheiro;

9. Depois de iniciados os trabalhos de desaterro do terreno, o gerente da Ré (também responsável técnico da obra), ao visitar a obra verificou que a empresa que se encontrava a efectuar o desaterro do terreno havia escavado o mesmo até encostar ao limite do passeio da estrada por ordem directa e expressa dos Autores, ignorando e contrariando as instruções da Ré e o que estava estipulado no projecto aprovado pela Câmara Municipal ..., uma vez que os Autores alegadamente pretendiam aproveitar aquela parcela do terreno para ampliar a área de construção em desobediência a tal projecto;

10. Conhecendo a morfologia e a composição do terreno (pois sabia que os vizinhos o lote de terreno ao lado já tinham tentado fazer uma escavação semelhante encostada ao limite do passeio, e este acabou por ruir juntamente com parte da estrada, causando-lhes avultados prejuízos), o sócio-gerente da Ré, com o único intuito de evitar também avultados prejuízos para os Autores e constrangimentos na via pública, ordenou imediatamente aos funcionários desta e ao subempreiteiro responsável pelas estruturas que, com a máxima urgência, fosse erguido um muro de contenção em betão ciclópico resistente o suficiente para, pelo menos, suportar de forma permanente, suficiente e rápida o passeio e a estrada para, entretanto, se efectuar o muro de suporte que estava já previsto no projecto aprovado pela Câmara Municipal ... (o qual deveria situar-se a uma distância de 2,25 metros do passeio, na sua parte mais próxima) e aterrar novamente o terreno entre estes dois muros, repondo a situação projectada, e corrigindo a situação criada exclusivamente pelos Autores, de forma a evitar o desabamento do passeio e da estrada a qualquer momento;

11. Os Autores ordenaram à empresa que efectuou o desaterro, sem qualquer conhecimento da Ré e contrariando as instruções desta e o estipulado no projecto aprovado pela Câmara Municipal ..., e que era do perfeito conhecimento de todas as partes, que efectuasse um desaterro exagerado;

12. Foi a rápida intervenção da Ré que preveniu que o passeio e a estrada pudessem desmoronar a qualquer momento, evitando assim avultados incómodos e prejuízos a suportar pelos Autores;

13.A Ré explicou aos Autores a razão da necessidade e a urgência em efectuar e concluir aquele muro “provisório” e os passos subsequentes a efectuar, de modo a corrigir a situação e retomar o projecto de acordo com o que estava aprovado pela Câmara Municipal ..., bem como lhes explicou porque não poderia ser efectuada a escavação tal como haviam ordenado os Autores à empresa que efectuou o desaterro, o que estes, então, disseram compreender e aceitaram;

14. Só quando o sócio-gerente da Ré lhes comunicou que o valor da construção deste muro “extra” teria de acrescer ao valor total da obra (tal como o aterro da parcela de terreno desaterrada em excesso), uma vez que não estava previsto no plano de trabalhos e no preço estipulado no contrato de empreitada - e só teve de ser efectuado como solução de recurso para evitar prejuízos maiores para aqueles, e em consequência de uma decisão da exclusiva responsabilidade dos Autores, e que estes decidiram imediatamente resolver unilateralmente o contrato de empreitada celebrado com esta e expulsaram-na da obra;

15. Os Autores entendiam que deveria ser a Ré quem devia suportar o custo do muro “extra” e do aterro que teria de ser feito, algo que esta deixou sempre bem claro que não aceitava;

16. O montante entregue pelos Autores à Ré não é suficiente para efectuar o pagamento da totalidade dos trabalhos efectuados e dos materiais colocados na obra;

17. Os Autores tentaram forçar e coagir a Ré a ceder às suas exigências, nomeadamente, ameaçando-a que esta podia perder o seu alvará e, assim, ficar impedida de poder exercer a sua actividade;

18. O referido em Q. ocorreu por o sócio gerente da Ré, no momento, não ter conseguido contactar com o seu então advogado (que estaria então impedido numa diligência), para se poder informar adequadamente sobre significado e os efeitos cominatórios de tal instrumento e da sua assinatura, sem nunca ter sido sua intenção furtar-se ao cumprimento de qualquer obrigação que incumbisse à sua representada;

19. Na data referida em Q. a Ré tinha efectuado os seguintes trabalhos:

- Vedação da obra, redes provisórias, sinalização, adopção das medidas de segurança preconizadas no Plano de Segurança e Saúde e demais legislação em vigor, no valor de €1.183,20;

- Levantamento e desactivamento de redes provisórias, sinalização e das medidas de segurança implementadas, no valor de € 256,60;

- Aterro até à cota do projecto, incluindo nivelamento e compactação, no valor de € 535,50;

- Carga, transporte, descarga a vazadouro público, no valor de € 3.967,50;

- Escavação entre o tardoz da moradia e passeio para a cota 52.60, no valor de € 531,23;

- Transporte de produtos a vazadouro, no valor de € 1.239,53;

- Escavação geral para ensoleiramento geral em substituição das sapatas isoladas da moradia à cota 52,60, no valor de € 1.137,50;

- Transporte de produtos de escavação sobrantes a vazadouro, no valor de € 1.837,50;

- Execução de enchimento com material inerte de granulometria extensa para a cota base do ensoleiramento, no valor de € 4.375,20;

- Escavação para muro de suporte incluindo fundação à cota 52.60, por troços de 4.2 m incluindo escoramento preventivo com embarrotamento e extensores perdidos, no valor de €2.047,99;

- Transporte de produtos de escavação sobrantes a vazadouro, no valor de 1€ 393,75;

20. A Ré suportou, com a desmobilização do estaleiro e meios afectos à obra, a quantia de € 9.750,00;

21. A Ré é uma pequena empresa que se debate num mercado difícil, mas mesmo assim esforça-se por se manter no mercado e continuar a dar trabalho a algumas dezenas de colaboradores;

22. A comunicação da sentença que decretou o arresto de créditos da Ré transmitiu aos seus clientes uma imagem de uma empresa incumpridora, sem qualidade e em graves dificuldades financeiras, provocando receios e prejudicando consideravelmente a sua reputação junta daquelas, e obrigando a Ré a justificar-se sem razões para tal, além de a ter obrigado a incumprimentos que não teriam tido lugar se não fosse o procedimento doloso dos Autores.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

Pode entender-se que a Ré abandonou definitivamente a obra, dessa forma incorrendo em incumprimento definitivo do contrato de empreitada? Como tal, era desnecessária a interpretação admonitória da Ré por parte do credor (os AA)?

Fundamentou assim o acórdão recorrido – que corroborou in integrum a decisão singular do relator:

“… Havendo cumprimento defeituoso, têm aplicação, além das normas especiais privativas do contrato de empreitada (artigos 1221°e segs.), as regras gerais da responsabilidade contratual. A responsabilidade do empreiteiro baseia-se na culpa, presumindo-se que o cumprimento defeituoso lhe é imputável, desde que provado o defeito e a sua gravidade pelo dono da obra (art. 799°, nº 1, do C. Civil), devendo entender-se, igualmente, o cumprimento defeituoso como um tipo de não cumprimento das obrigações. A circunstância de se estar perante um caso de incumprimento e, consequentemente, da possibilidade de resolução contratual, nada obsta ao exercício do direito potestativo de resolver o negócio incumprido, como resulta do disposto no art. 802° do C. Civil. Como, ut supra, referimos, o facto fundamental que consequenciou a resolução do contrato noticiado nos autos, foi a constatação de que o muro referido em «G» apresentava uma fenda e, mais tarde, partiu-se em duas partes, bem como, o facto de a apelante, não obstante ter-se comprometido, nada ter feito no sentido da reparação do mesmo. Este comportamento por parte da ape­lante «legitimaria» a resolução operada.

Quanto à 6a e 7a Questões:

O abandono evidente e expresso da obra por parte do empreiteiro, se for revelador duma vontade inequívoca de não cumprir, pode constituir incumprimento definitivo do contrato de empreitada, não havendo, nesse caso, necessidade de interpela­ção admonitória por parte do credor.

Se, ao invés, o abandono da obra não for suficientemente revelador daquela intenção, impõe-se ao credor interpelar o devedor a cumprir em prazo razoável, por forma a transformara simples mora em incumprimento definitivo.

Ora:

Resulta da matéria de facto que a apelante se comprometeu a refazer o muro (I), apesar de durante três semanas nada ter feito (M). Isto quer significar que a intenção de abandono da obra não foi suficientemente expressa. Impunha-se, pois, a interpelação admonitória. Ora, dos autos nada se colhe neste sentido. Antes pelo contrário: houve uma rescisão amigá­vel que não o pareceu ser (N). Antes pelo contrário. Sendo a interpelação admonitória uma intimação formal dirigida à contraparte morosa para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento definitivo, não se tendo procedido a essa interpelação, não existirá incumprimento definitivo. É esta a situação dos autos.”.


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Como referido, o facto fundamental que determinou, por parte dos apelados, a resolução do contrato de empreitada dos autos, foi a constatação, pelos AA/Recorrentes, de que o muro referido em «G» (muro de suporte frontal da moradia) apresentava uma fenda e, mais tarde, se partiu em duas partes, bem como o facto de a Ré/Recorrida, não obstante se ter comprometido “a refazer o muro”, até à data da resolução do contrato referida em P) dos factos provados nada ter feito no sentido da reparação do mesmo.

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De relevante, está provado que:

I. No dia 04 de Junho de 2018, os Autores constataram que o muro referido em G. apresentava uma fenda;

J. No dia 05 de Junho de 2018, o muro referido em G. apresentava-se partido em duas partes;

K. Os Autores, durante o mês de Junho confrontaram a Ré com a situação de o muro se encontrar como referido em I. e J.;

L. A Ré, na sequência do mencionado em K., comprometeu-se a refazer o muro;

M. Apesar do referido em L., durante três semanas, nada foi feito pela Ré;

N. A 27 de Junho de 2018, os Autores, através do seu mandatário, enviaram comunicação escrita à Ré em que lhe propunham, face ao ocorrido, a rescisão amigável do contrato celebrado entre ambos;

O. A Ré não respondeu à comunicação referida em N.;

P. Em 13 de Julho de 2018, os Autores apresentaram notificação judicial avulsa, através da qual comunicavam à Ré que consideravam o contrato de empreitada resolvido2.

Pergunta-se, então, face a esta factualidade:

I. Se pode entender-se que a Ré manifestou uma intenção inequívoca de abandono da obra, dessa forma, expressando uma clara manifestação de incumprimento do acordado (refazer o muro), permitindo aos AA a sua imediata resolução?

II. Se, em caso negativo, era exigido aos Autores a prévia interpelação admonitória da Ré para, só depois, poderem levar a cabo a pretendida resolução contratual?

Parece-nos evidente que a resposta ao ponto 1. terá de ser negativa, com a consequente resposta positiva ao ponto 2..

Com efeito, o que se provou foi¸ apenas e só, que os Autores, durante o mês de Junho de 2018, confrontaram a Ré com a situação em que se encontrava o muro, tendo-se, então, a ré comprometido a refazer o mesmo; outrossim se provou que que “durante três semanas, nada foi feito pela Ré”.

Ora, é manifesto que o facto de a Ré durante três semanas não ter refeito o muro, de forma alguma significa (ou prova) que o não pretendesse refazer. Temos apenas assente que a Ré se comprometeu a refazê-lo. Nada mais. Não está provado que a Ré se tenha comprometido a refazer o muro durante determinado prazo, maxime durante as aludidas três semanas.


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Temos por correcto o entendimento de que o abandono da obra pelo empreiteiro representa, em termos práticos, a extinção do contrato, independentemente de não ter sido declarada a sua resolução pela parte contrária; abandonando os trabalhos iniciados, o empreiteiro manifestou tacitamente, e em termos que a lei reputa eficazes (art. 217.°, n.° 1, do CC), a sua total indisponibilidade para reparar os defeitos, ou para, ainda que só em parte, construir de novo a obra, o que evidencia o seu propósito firme e definitivo de não cumprir, tornando dispensável a interpelação admonitória do art. 808.° do CC por parte do dono da obra para o efeito de conversão da mora em incumprimento definitivo; deste modo, provada que esteja a realidade dos prejuízos sofridos pelo dono da obra decorrentes desse abandono, torna-se clara a pertinência da aplicação das normas dos arts. 798.°, 799.° e 1223.° do CC, que lhe confere o direito a ser indemnizado em consequência do incumprimento do empreiteiro3.

Por outro lado, para além das normas especiais disciplinadoras do contrato aqui em causa, valem, para a mora ou incumprimento definitivo, as regras gerais.

Ora, a violação dos deveres emergentes do contrato de empreitada faz incorrer o empreiteiro (ou subempreiteiro – perante aquele) em responsabilidade contratual (art. 798.º do Cód. Civil).

Efectivamente, se o empreiteiro deixa de efectuar a sua prestação em termos adequados, dá‑se o inadimplemento da obrigação, com a consequente responsabilidade deste. E, a ser assim, o não cumprimento da sua prestação será definitivo se a obra, não tendo sido realizada, já o não puder ser, por o empreiteiro ter nela perdido o interesse (art. 808.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC), ou por não ter sido realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado (art. 808.º, n.º 1, 2.ª parte).

Perante o incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro (ou subempreiteiro), poderá, então, o dono da obra (ou o empreiteiro, na subempreitada) resolver o contrato que com ele celebrara e exigir uma indemnização (art. 801.º, n.º 2).

Tudo isto se nos afigura correcto.

Porém, há que distinguir a mora do incumprimento definitivo: na primeira, a obra não foi entregue na data acordada, mas ainda pode vir a sê‑lo e o dono da obra – ou o empreiteiro, relativamente ao subempreiteiro – mantiver o interesse nessa prestação. Pelo que, daqui se retira que o empreiteiro (relativamente ao dono da obra) ou o subempreiteiro (relativamente ao empreiteiro) só entram automaticamente em incumprimento definitivo se foi estabelecido um termo certo para a entrega da obra, caso contrário, tal situação apenas surge após a interpelação que o comitente faça (art. 777.º, n.º 1 do CC), tendo em conta o prazo razoável para a execução da obra (art. 777.º, n.º 2).

Do exposto resulta, portanto, que a simples mora na execução da obra (isto é, a não conclusão atempada da obra) não concede o direito de resolução imediata do contrato, salvo se houver perda do interesse na realização da obra. Não obstante, tem‑se entendido na nossa jurisprudência que se o empreiteiro ou o subempreiteiro tiver uma conduta reveladora de uma intenção firme e definitiva no sentido de não cumprir a obrigação contratual de concluir a respectiva obra, está‑se perante uma situação de incumprimento definitivo a si imputável, pelo que cabe ao dono a obra (ou ao empreiteiro, na subempreitada) resolver o contrato e exigir uma indemnização. Ora – segundo alguma jurisprudência —, uma dessas atitudes susceptível de revelar essa sua intenção firme e definitiva de não cumprir a sua obrigação contratual de concluir a obra é, precisamente, o abandono da obra. Todavia, como salientou o Ac. da Rel. do Porto de 7/12/1992 (relator Abílio de Vasconcelos)4“o abandono da obra, só por si, não significa impossibilidade de prestação”. Por outro lado, “suspender ou parar uma obra não é o mesmo que abandoná‑la, correspondendo às diversas situações efeitos jurídicos diferentes”.

Assim, para que o abandono da obra por banda da Ré – que os Recorrentes vêm no facto de a Ré ter permanecido durante três semanas sem refazer o muro – possa e deva ser interpretado como manifestação inequívoca da sua intenção de lá não regressar para a continuar, é necessário que se não trate duma mera suspensão ou paragem dos trabalhos.

E nada, mesmo nada, há na factualidade provada que permita concluir que a intenção da Ré foi de abandonar ou incumprir definitivamente o anunciado compromisso de refazer o muro.

Assim sendo, querendo resolver o contrato, os Autores – em vez de avançarem logo com a notificação judicial avulsa, através da qual comunicaram à Ré que consideravam o contrato de empreitada resolvido – , tinham de, previamente, fazer uso da interpelação admonitória à Ré (visto que o que antes haviam feito foi somente propor à Ré a “rescisão amigável do contrato celebrado entre ambos”, a cuja comunicação “A Ré não respondeu”).

“A interpelação admonitória é uma declaração receptícia que contém três elementos: intimação para o cumprimento; fixação de um termo peremptório para o cumprimento; admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida, se não ocorrer o adimplemento dentro desse prazo” 5.

Sobre a interpelação admonitória, escreveu Baptista Machado6: «Trata‑se de um remédio concedido por lei ao credor para os casos em que não tenha sido estipulada uma cláusula resolutiva ou um termo essencial, nem ele possa alegar, de modo objectivamente fundado, perda do interesse na prestação por efeito a mora. Constitui, como já disse alguém, um meio especial e «autotutela privada» que faz do credor árbitro da sorte da relação. Por esta via, a lei legitima o credor para provocar unilateralmente uma modificação da relação, introduzindo nela um elemento novo, ou seja, um novo prazo de cumprimento (Nachfrist), que se caracteriza pela sua peremptoriedade. Prazo este que, aliás, nada impede possa ser logo estipulado no momento da constituição da obrigação.

A interpelação admonitória com fixação de prazo peremptório para o cumprimento a que se refere a segunda parte do n.º 1 do art. 808.º é, pois, uma intimação formal, dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo. Assim, através da fixação de um prazo peremptório, obtém‑se uma clarificação definitiva de posições.

A interpelação admonitória deve conter três elementos: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo. Trata‑se, pois, de uma declaração intimativa».

Acrescenta, mesmo, este Autor7 que «Uma intimação para cumprir que não contenha um termo preciso, mas se reporte apenas a um prazo «breve» ou «brevíssimo», ou a um prazo «razoável», não pode valer para o efeito. E muito menos vale para o efeito a interpelação em que o credor se limite a ameaçar o devedor com a compra de uma cobertura ou o convide a declarar‑se pronto a cumprir dentro do prazo fixado».

Por razões de economia processual, cremos que os Autores podiam, até, ter feito uso de uma única declaração para a interpelação admonitória e para a resolução, nada se vislumbrando que a tal obste8.

Mas nada fizeram, pois avançaram, sem mais, para a resolução, o que não pode aceitar-se.

Assim, não pode deixar de se dar razão ao acórdão recorrido.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.

Custas da revista a cargo dos Recorrentes.


Lisboa, 12 de Setembro de 2023


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Catarina Serra (Juíza Conselheira 1º adjunto)

Isabel Salgado (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

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1. Que, sem bem que devessem enumerá-las, para melhor se identificarem, não vemos necessidade de formular convite aos recorrentes para qualquer correcção, dado que a questão a apreciar é uma e só uma e está perfeitamente identificada nas conclusões apresentadas.

2. Os destaques são nossos.

3. Veja-se o acórdão do STJ de 09-12-2008, Proc. n.° 965/08, 2.° Secção, disponível em www.dgsi.pt.

4. Doc. RP199212079050802.

5. "Estudos de Direito Civil e Processo Civil", de Calvão da Silva, p. 159.

6. Pressupostos da resolução por incumprimento, pp. 164‑5, in Obra Dispersa, vol. I, pp. 125 e ss.

7. Loc. e ob cits.

8. Neste sentido, Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., pp. 456‑7.

  Ver, ainda, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 6.ª ed., II vol., pp. 122‑124, e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8.ª ed., pp. 971 e ss.