Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
40/23.1JELSB.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CORREIO DE DROGA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - O STJ vem desde há muito valorizando a importância dos “correios de droga”, como peça fundamental na execução do ilícito e na cadeia delitiva do tráfico de estupefacientes concorrendo, de modo direto, para a sua disseminação, pelo que não merecem um tratamento penal de favor.
II - Perante as fortes exigências de prevenção geral e especial e a elevada culpa da arguida, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-B anexa ao citado diploma, traduzida no transporte de 3.729,500 gramas de cocaína, a pena de 5 anos e 4 meses de prisão fixada pelo Tribunal a quo, respeita as finalidades da punição, sem ultrapassar a medida da culpa, em integral obediência ao disposto nos arts. 18.º, n.º 2, da CRP e 40.º e 71.º do CP.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 40/23.1JELSB.L1.S1


Recurso Penal


*


Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório


1. Nos presentes autos de processo comum coletivo n.º40/23.1JELSB, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de ... - J... .., foi submetido a julgamento, sob acusação do Ministério Público, a arguida AA, devidamente identificada nos autos, imputando-se-lhes a prática, em coautoria material, de um crime tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-B anexa a este diploma, mais requerendo o Ministério Público que fosse imposta à arguida a pena acessória de expulsão do território nacional nos termos do art.34.º, n.º 1, do mesmo citado diploma, e do art.151.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho.


2. Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Coletivo, por acórdão proferido a 9 de junho de 2023, julgou a acusação pública totalmente procedente, por provada, e, em consequência, decidiu condenar a arguida AA pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na sua atual redação, com referência à Tabela I-B, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão e, ainda, na sanção acessória de expulsão do território nacional pelo período de 6 (seis) anos, nos termos constantes do art.34.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e dos artigos 134.º, n.º 1, alíneas e) e f), 140.º, n.º 3 e 151.º, n.º 1, todos da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho.


3. Inconformada com o acórdão dele interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa a arguida AA, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):


1- No presente recurso, não se coloca em causa os factos ilícitos praticados, nem quaisquer questões relacionadas com a matéria de facto dada como provada, mas sim, e apenas no que toca à pena aplicada à Recorrente que se considera desproporcional;


2- A Arguida foi condenada pela prática em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos artigos 21º, n.º 1, e 34º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22-01, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão e ainda na pena acessória de expulsão de território nacional;


3- Foram dados como provados todos os factos constantes da acusação; até porque,


4- A Recorrente, confessou integralmente e sem reservas a autoria do crime e terá necessariamente de ser punida, contudo não pode conformar-se com a medida da pena de prisão que lhe foi aplicada, por ser manifestamente desadequada e desproporcionada;


5- Até porque não deve ser a mesma ponderada em função da quantidade, pois sendo correio de droga, normalmente aceita fazer o transporte, sem, contudo saber qual a quantia exata de droga que transporta, muito menos para quantas doses dá para completar.


6- A recorrente agiu em pleno desespero.


7- A Recorrente está perfeitamente integrado socialmente e familiarmente no Brasil; não teve qualquer contacto com o consumo de estupefacientes, além de que não possui quaisquer antecedentes criminais;


8- Mostrou sincero arrependimento


9- A Recorrente apela que lhe seja dada uma merecida e justa oportunidade de iniciar um correcto caminho, sendo ainda bastante jovem e encontrando-se a tempo de enveredar por uma vida viável, longe dos meandros da marginalidade;


10- Ainda que o Tribunal a quo valorize a quantidade de produto estupefaciente que a mesma transportava para fundamentar a escolha da pena 5 anos e 4 meses, com referencia à quantidade de produto de estupefaciente, determinando o grau de ilicitude e medida da culpa, o certo é que tal circunstância não é suficiente para, tão-só, optar por uma pena de prisão efectiva tão pesada. Aliás, muitos acórdãos para diferentes quantidades do mesmo produto estupefaciente, aplicam a mesma medida de pena;


11- A atuação da arguida traduz-se num vulgar “correio de droga”, sem que tivesse o domínio do facto, ou seja no sentido de ser ele, em concreto, o dono da droga que lhe foi apreendida, nem sabia a quem se destinava tal produto para posterior venda ao público, com manifesta intenção de obter daí um avultado lucro económico.


12- É consabido que os denominados “correios de droga”, que aceitam transportar produto estupefaciente a troco de dinheiro, o fazem, porque atravessam um forte desespero financeiro, que em nada pode ser comparado com a actuação dos que se dedicam à venda direta de produto estupefaciente.


13- As dificuldades financeiras e o desespero que a arguida atravessava, não podendo assim prover ao seu sustento e ao do seu filho, levaram a arguida a aceitar transportar produto estupefaciente, a troco de dinheiro.


14- Aliás, a Arguida nem sabia que quantidade trazia, nem que efeitos ou valor poderia ter.


15- Considerando todas as envolventes do comportamento da Arguido, tendo em conta as exigências de reprovação e prevenção da prática de futuros crimes e os demais fatores estabelecidos no art.º 71.º do Código Penal, face ao quadro punitivo aplicável, entende-se adequada a aplicação à Arguida de uma pena inferior à aplicada, a qual não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas (art.18.º, n.º 2 C.R.P.), nem as regras da experiência, antes é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa da Arguida, mostrando-se proporcional e adequada;


16- Assim, a pena encontrada pela primeira instância, pela defesa entende-se que não foi devidamente observado o disposto no art.71ºe 40º todos do C.P..


17- Nestes termos e nos melhores de direito, deverá ser alterada a Douta Decisão recorrida, considerando-se o recurso interposto procedente, e condenar a Arguida, pela prática em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos artigos 21º, n.º 1, e 34º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22-01, numa pena abaixo daquela em que foi condenada, próximo do limite mínimo legal previsto.


18- Até porque a arguida mostrou arrependimento após vários meses de reclusão onde pode refletir sobre a sua conduta, e sobre o que pretende para o seu futuro.


19- A arguida entende portanto que a pena a lhe ser aplicada seja inferior a cinco anos, situando-se pelos 4 anos e 6 meses.


20- Pois acima dos 5 anos, as regras da liberdade condicional, e da expulsão do arguido, como se sabe, são diferentes.


21- A situação atual da arguida demandava solução diversa


Face á matéria ora alegada e verificada ausência de crimes averbados no registo criminal da arguida, assim como não tendo sido observados em rigor os elementos favoráveis à arguida no que toca à escolha da medida da pena, deverá o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, proceder como alegado infra , e assim e sem prescindir do douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência deve a pena de prisão ser reduzida para outra próxima do mínimo previsto, nomeadamente situando-se perto dos 4 anos e 6 meses, tendo essencialmente em conta a confissão integral dos factos e colaboração com a justiça por parte da arguida, assim como o sincero arrependimento;


só assim certamente se fará a tão acostumada JUSTIÇA!


3. O Ministério Público no Juízo Central Criminal de ... respondeu ao recurso interposto pela arguida, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção integral da sentença recorrida.


4. Por despacho de 12 de setembro de 2023, a Ex.ma Juíza Desembargadora relatora no Tribunal da Relação de Lisboa, determinou a remessa dos presentes autos ao Supremo Tribunal de Justiça, porquanto da motivação do recurso e respetivas conclusões resulta que a discordância da recorrente é limitada à medida da pena imposta pelo tribunal a quo - cinco anos e quatro meses de prisão -, pelo que o recurso deveria ter sido interposto para o Supremo Tribunal de Justiça não sendo competente o Tribunal da Relação de Lisboa (alínea c) do n.º 1 do art.432.º do Código de Processo Penal).


5. O Ministério Público no Juízo Central Criminal de ..., respondeu ao recurso interposto pela arguida, concluindo pela improcedência do mesmo e manutenção do acórdão recorrido nos seus precisos termos.


6. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto junto do Supremo Tribunal de Justiça, emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá ser julgado improcedente.


7. Dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., a arguida, na resposta ao douto parecer, veio renovar o entendimento de que o recurso por si apresentado deve ser julgado procedente.


8. Colhidos os vistos, foram os autos presentes à Conferência.


II - Fundamentação


9. Com relevo para a decisão do recurso, consigna-se no acórdão recorrido (transcrição):


Factos provados


1. No dia 20 de Janeiro de 2023, pelas 06h24, a arguida AA desembarcou no Aeroporto Humberto Delgado, em ..., procedente de... – ... (Brasil), no voo ....46.


2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida foi encaminhada para os postos de controlo de fronteiras do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), com vista à verificação das condições de entrada no “Espaço Schengen”.


3. Submetida a esse controlo aduaneiro, verificou-se que a arguida trazia consigo, dissimuladas no interior de duas malas de viagem, ambas da marca “American Tourister” (uma delas de cor verde e a outra preta):


- 3 (três) embalagens/placas, contendo cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 3.729,500 gramas.


4. Na ocasião, a arguida trazia ainda na sua posse 1 (um) telemóvel da marca Samsung, modelo S20+;


5. A arguida conhecia a natureza e característica estupefaciente do produto que trazia consigo e que lhe foi apreendido.


6. Produto esse que aceitou deter e transportar do Brasil para Portugal, aderindo a um plano que lhe foi proposto por indivíduos de identidades não concretamente apuradas, mediante uma contrapartida pecuniária de R$20.000 (vinte mil reais).


7. A arguida agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, com o intuito, concretizado, de deter e transportar o produto estupefaciente apreendido, bem sabendo que essa sua conduta era proibida e punida por lei penal.


8. À arguida não são conhecidas quaisquer condenações criminais.


9. Não tem quaisquer familiares a viver em Portugal, nem possui residência ou actividade profissional em território nacional.


10. A sua viagem para Portugal teve como única finalidade o transporte de cocaína, com vista à sua ulterior venda a terceiros.


Provou-se ainda relativamente às condições sócio-económicas da arguida:


11. A arguida cresceu com os progenitores até aos 4 anos de idade, altura em que aqueles se separaram, ficando a residir com a mãe e com os três irmãos mais velhos.


12. As condições económicas do agregado foram sempre precárias, sendo que o único rendimento obtido provinha do trabalho da progenitora como funcionária numa escola.


13. Em termos escolares, a arguida logrou completar o equivalente ao 9.º de escolaridade, após algumas reprovações, não tendo prosseguido os estudos devido às referidas dificuldades económicas e à impossibilidade de a progenitora continuar a trabalhar por motivos de saúde.


14. Começou a trabalhar com 19 anos de idade, desempenhando tarefas indiferenciadas, nomeadamente como funcionária de uma pizzaria, como caixa de supermercado e vendedora numa loja de sapatos.


15. Em virtude da instabilidade social e económica no seu país natal, não logrou obter uma colocação laboral estável e regular nos últimos anos, vindo a dedicar-se à prostituição, desde há cerca de meio ano, num estabelecimento de diversão nocturna.


16. A arguida esteve casada durante 6 anos, tendo nascido um filho desse mesmo relacionamento, actualmente com 9 anos de idade.


17. À data dos factos acima referidos, vivia com a progenitora e com o seu filho menor, não recebendo qualquer tipo de auxílio (material ou económico) por parte do seu ex-marido.


Factos não provados.


Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:


1. O telemóvel apreendido (identificado no ponto 4., dos factos provados) foi utilizado pela arguida nos contactos com os referidos indivíduos, para concretizar o transporte e ulterior entrega do produto estupefaciente.


Motivação da decisão de facto.


A prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), liberdade que não pode nem deve significar o arbítrio ou a decisão irracional “puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação” (Castanheira Neves, citado por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 43).


Pelo contrário, a livre apreciação da prova exige uma apreciação crítica e racional, fundada, é certo, nas regras da experiência, mas também nas da lógica e da ciência, e tudo para que dela resulte uma convicção do julgador objectivável e motivável, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.


Quanto à intenção criminosa do arguido, voluntariedade da respectiva conduta e sua consciência da ilicitude, uma vez que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção, socorrendo-nos de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência. Neste caso é legítimo o recurso à prova por presunção judicial, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei – artigo 125.°, do Código de Processo Penal (neste sentido, entre outros, o acórdão da Relação de Évora, de 27.09.11, in www.dgsi.pt).


Considerando o acabado de referir quanto aos princípios fundamentais que devem nortear a apreciação da prova, serviram para formar a convicção do Tribunal, quanto à factualidade assinalada, os seguintes meios de prova:


i. Declarações da arguida AA, que, em audiência, se dispôs a falar sobre a factualidade imputada, bem como das suas condições de vida, bem como aquelas que prestou na fase de inquérito, perante autoridade judiciária, declarações essas que são susceptíveis de valoração pelo Tribunal, nos termos previstos no artigo 357.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do Código de Processo Penal, porquanto, prestadas com observância das formalidades legais, designadamente a prevista no artigo 141.º, n.º 4, alínea b), do mesmo diploma [sendo certo que tais declarações apenas não foram reproduzidas em audiência por a respectiva defesa (e demais intervenientes processuais) terem expressamente prescindido dessa diligência].


ii. Documental:


- auto de notícia, de fls. 2 a 4, e 6 a 9;


- auto de entrega, de fls. 5;


- autos de apreensão, de fls. 15 e 35;


- reportagem fotográfica, de fls. 10, e 16 a 19; e


- certificado de registo criminal da arguida, a fls. 126.


iii. Pericial:


- relatório de exame pericial (toxicológico) de fls. 78.


Concretamente, e numa apreciação crítica mais detalhada sobre os referidos elementos probatórios, começando por analisar as declarações da arguida AA, as mesmas devem ser cindidas em função do objecto sobre que recaíram – por um lado, condições pessoais e, por outro, factos de que vinha acusada.


Assim, e no que concerne às suas condições pessoais, as mesmas revelaram verosimilhança, para além de não terem sido infirmadas ou postas em causa por qualquer outro elemento probatório.


Já no que respeita aos factos de que vinha acusada, apesar de reconhecer a detenção e transporte das referidas malas de viagem, alegou desconhecer que transportava droga, nomeadamente cocaína, dissimulada na estrutura das mesmas. Referiu, a esse propósito, e tal como já havia declarado em sede de primeiro interrogatório judicial, que se encontrava a passar por grandes dificuldades económicas (acumulando muitas dívidas, tendo de sustentar o agregado familiar e forçada a dedicar-se à prostituição), sendo que, numa situação de desespero, decidiu aceitar uma proposta de dois indivíduos (um deles chamado “BB”) para fazer o referido transporte pelo montante de R$20.000. Mais referiu que apenas teve contacto com as malas no dia do embarque no Brasil, sendo que, apesar de se aperceber que as mesmas continham algo de ilegal nas respectivas estruturas/fundos falsos, nunca pensou que pudesse ser droga. Referiu, finalmente, que o telemóvel apreendido é sua propriedade, não tendo chegado a utilizá-lo nos contactos com os referidos indivíduos, sendo que, uma vez em Portugal, o indivíduo responsável pela recolha do conteúdo das malas iria ter directamente consigo ao hotel.


Porém, tais declarações da arguida, na parte em pretendeu convencer o Tribunal do seu desconhecimento sobre aquilo que transportava nas malas, não mereceram qualquer credibilidade, em face da sua inverosimilhança e incoerência, e, também, por terem sido validamente infirmadas pela restante prova produzida no decurso da audiência de julgamento.


Com efeito, não se afigura minimamente crível que a arguida, embora estivesse convencida de que estaria a transportar algo de ilegal, não soubesse que se tratava de produto estupefaciente.


É que, ainda que se possa admitir que não tivesse a exacta noção do tipo de droga em causa, é por demais evidente que todo o circunstancialismo que antecedeu e rodeou a referida viagem do Brasil para Portugal – após ter sido abordada por dois estranhos; mediante o pagamento de uma quantia avultada para o seu padrão de vida; com vista ao transporte de uma substância dissimulada na estrutura das malas e com a recolha da mesma por outro indivíduo num hotel da capital – era mais do que suficiente para saber que se tratava de um transporte internacional de produto(s) estupefaciente(s). De resto, conforme se alcança da análise dos aludidos elementos probatórios (com especial enfoque para o exame pericial, constante de fls. 78, e para os autos de apreensão de fls. 15 e 35, e fotogramas de fls. 16 a 19), um pouco menos de metade do peso (bruto) das ditas malas resultava das três embalagens apreendidas, o que, associado à forma como as mesmas se encontravam escondidas/dissimuladas, nenhuma dúvida poderia suscitar quanto ao facto de se tratar de substancia(s) estupefaciente(s).


Assim, perante este panorama ficou claro para o Tribunal que a arguida AA era efectivamente a pessoa que detinha o domínio sobre as referidas malas, sabendo, necessariamente, que aí se encontrava dissimulado o referido produto estupefaciente, tendo aceitado fazer o seu transporte do Brasil para Portugal, a troco da mencionada quantia monetária.


No que concerne à factualidade dada como não provada, respeitante ao uso/utilização do telemóvel, tal resultou, por um lado, das declarações da arguida, tendo asseverado a propriedade do mesmo, e, por outro, da ausência de prova bastante sobre a ligação (exclusiva ou preponderante) de tal aparelho ao empreendimento criminoso.


10. Âmbito do recurso


O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art.412.º, n.º1 do Código de Processo Penal). São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.1


Face às conclusões da motivação da recorrente arguida AA a questão a decidir é a seguinte: se a medida da pena de 5 anos e 4 meses de prisão que lhe foi aplicada é excessiva, devendo ser reduzida para outra próxima do mínimo legal previsto, nomeadamente, para perto dos 4 anos e 6 meses de prisão.


11. Apreciando.


11.1. Previamente ao conhecimento do objeto do recurso, impõe-se fazer uma breve consideração sobre a competência do Supremo Tribunal de Justiça para o conhecimento do recurso, na medida em que a arguida dirigiu o recurso ao Tribunal da Relação de Lisboa, mas a Ex.ma Juíza Desembargadora, por despacho de 12 de setembro de 2023, determinou a sua remessa ao Supremo Tribunal de Justiça por o considerar competente para o conhecimento do recurso interposto pela arguida, nos termos do art.432.º, n.º1, al. c) do Código de Processo Penal, uma vez que a pena única aplicada foi em medida superior a cinco anos de prisão, visando o recurso exclusivamente o reexame da matéria de direito.


O direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal, tendo passado a constar expressamente, na 4.ª revisão constitucional (1997), do art.32.º, n.º 1, da Constituição da República, com o aditamento do inciso «incluindo o recurso».


O que esta norma constitucional não consagra é a garantia de um duplo grau de recurso ou de um triplo grau de jurisdição, em relação a quaisquer decisões condenatórias.


O atual Código de Processo Penal, na sua versão originária, estabelecendo como pedra de toque para a determinação da competência do tribunal de recurso a natureza do tribunal recorrido, atribuía a competência ao Tribunal da Relação para conhecer das decisões de tribunais singulares e a competência ao Supremo Tribunal de Justiça para conhecer das decisões de conhecer das decisões dos tribunais coletivos e do júri.


Perante as críticas desta solução legislativa, no que respeita ao recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça para conhecer das decisões de conhecer das decisões dos tribunais coletivos e do júri, na medida em que eliminaria a garantia de recurso relativamente à reapreciação da matéria de facto por um tribunal de recurso, foram introduzidas alterações no regime dos recursos pela Lei n.º 59/98 de 25 de agosto e pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, estabeleceram-se novas vias de recurso para a Relação e para o STJ.


A Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, alterou o texto da alínea c), n.º1, do art.432.º do C.P.P. e aditou-lhe n.º2.


O art.432.º do Código de Processo Penal, que estabelece taxativamente os casos em que tem lugar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, passou a estabelecer, designadamente:


«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:


(…)


c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito;


(…)


2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º.».


A revisão do Código Penal de 2007, em função do estabelecido no n.º 2 do artigo 432.º do CPP, evidencia claramente a obrigatoriedade do recurso per saltum, desde que o recorrente tenha em vista a reapreciação de pena aplicada em medida superior a 5 anos de prisão e vise exclusivamente a reapreciação da matéria de direito.


A Relação passou a só ter competência para o conhecimento do recurso de pena aplicada em medida superior a 5 anos de prisão se o recorrente, ao provocar a reapreciação do caso penal, quiser abranger a própria matéria de facto.


A Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, aditou, entretanto, no final da alínea c), n.º1, do art.432.º do C.P.P., a redação «…ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», ampliando os fundamentos do recurso per saltum, dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo de 1.ª instância com a alegação de existência de erro-vícios e/ou nulidade insanável da decisão.


No caso em apreciação, o objeto do recurso é um acórdão condenatório, proferido por um tribunal coletivo, em que foi aplicada ao recorrente uma pena de 5 anos e 4 meses de prisão – e a essa dimensão se deve atender para definir a competência material –, pelo que, estando em equação uma deliberação final de um tribunal coletivo, visando o recurso apenas o reexame de matéria de direito (circunscrita à redução da medida da pena de prisão aplicada), cabe efetivamente ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer do recurso.


Conclui-se assim que, neste caso, o recurso interposto pelo arguido é direto, per saltum, sendo o Supremo Tribunal de Justiça o competente para o conhecer, nos termos do art.432.º, n.ºs 1, alínea c) e 2, do Código de Processo Penal.


11.2. Para redução da pena concreta de 5 anos e 4 meses de prisão que lhe foi aplicada pelo Tribunal a quo, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.21.º, n.º1 do DL nº 15/93, de 22.01, com referência à Tabela I-B anexa a este diploma, apela a arguida AA, em síntese, às seguintes circunstâncias: (i) confessou integralmente e sem reservas a autoria do crime, colaborou com a justiça e mostrou sincero arrependimento, tendo agido em pleno desespero; (ii) a sua atuação integra-se no vulgar “correio de droga”, pelo que não deve ser ponderada na pena a quantidade do estupefaciente que aceita transportar, por não saber qual a quantia exata de droga que transporta; (iii) encontra-se inserida social e familiarmente no Brasil, é ainda bastante jovem e não tendo antecedentes criminais; (iv) a pena de 5 anos e 4 anos de prisão que lhe foi aplicada viola o disposto nos artigos 18.º, n.º 2 da C.R.P. e 71.º e 40.º do C.P..


Vejamos se assim é.


A recorrente não questiona que com a sua conduta, descrita nos factos dados como provados, praticou, em coautoria material, o crime de tráfico de estupefacientes previsto no art.21.º, n.º1 do DL nº 15/93, de 22.01, com referência à Tabela I-B anexa ao citado diploma, e punido com pena de 4 a 12 de prisão.


É pacífico que o tráfico de estupefacientes põe em causa uma plura­lidade de bens jurídicos, mas protege primordialmente a saúde pública e, em segundo plano, bens jurídicos pessoais, como a vida, a integridade física e a liber­dade dos virtuais consumidores; ademais, afeta a vida em so­ciedade, pelos comprovados efeitos criminógenos e dificulta a inserção social dos consumidores.2


Considerando essa ressonância ética e as modalidades de ação descritas no art.21.º, n.º1, do DL n.º 15/93, o crime de tráfico de estupefacientes tem sido classificado pela jurisprudência, quanto à forma como o bem jurídico é posto em causa pela atuação do agente, como um crime de perigo abstrato, pois que o legislador não exige, para a respetiva consumação, a efetiva lesão dos bens jurídicos tutelados e entende-se que das atividades ali descritas há já um perigo de lesão daquele bem jurídico múltiplo, que se reconduz à saúde pública.


Para determinação da medida concreta da pena deste crime, como dos restantes tipos penais, dispõe o art.71.º, n.º1 do Código Penal que ela é feita, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.


Não se esgotando o facto punível com a ação ilícita-típica, necessário se torna sempre que a conduta seja culposa, “isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sociocomunitário.”3


O juízo de censura, ou desaprovação, é suscetível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela atuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas.


O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete para a realização in casu das finalidades da pena, que de acordo com o art.40.º, n.º1, do Código Penal, são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.


O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.


Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).


A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico-penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito.


A reintegração do agente na sociedade está ligada, por sua vez, à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.


É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção geral positiva dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial.


Entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida de tutela dos bens jurídicos, podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo estes que vão determinar, em último termo a medida da pena.


Nesta tarefa, importa atender aos fatores de medida da pena, que na linguagem do art.71.º, n.º2 do Código Penal «…depuserem a favor do agente ou contra ele», considerando, designadamente, as suas várias alíneas.


As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente no n.º2 do art.71.º do Código Penal, são, no ensinamento de Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, “ por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art.72.º-1; são numa palavra, fatores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.”.


Para o mesmo autor, esses fatores podem dividir-se em “Fatores relativos à execução do facto”, “Fatores relativos à personalidade do agente” e “Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”.


Como expende Maria João Antunes, podem ser agrupados nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os “fatores relativos à execução do facto”; nas alíneas d) e f), os “fatores relativos à personalidade do agente”; e na alínea e), os “fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”. 4


Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.40.º, n.º 2 do C.P.), designadamente por razões de prevenção. A culpa tem, pois, aqui, uma função limitadora do intervencionismo estatal.


Por força do disposto no art.18.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, a pena criminal será constitucionalmente admissível se for necessária, adequada e proporcional em sentido estrito.


11.3. Feitas estas considerações jurídicas de âmbito genérico retomemos o caso concreto.


Na determinação da medida da pena principal, o Tribunal recorrido considerou particularmente o seguinte:


“… no que respeita à culpa da arguida, reputa-se a mesma de uma gravidade já acentuada, dada a envolvência que o transporte internacional de cocaína exige da mesma, sendo considerável o desvalor da sua conduta pelo elevado alarme social que causa.


A arguida logrou transportar, com recurso a um modus operandi recorrente na comarca, uma quantidade já muito significativa de cocaína – 3.729,500 gramas –, o que agrava a ilicitude do facto, sendo certo que, se considerarmos o valor a que usualmente é vendida uma grama desse tipo de droga (€ 40,00 a € 60,00, de acordo com a experiência adquirida na prática judiciária), estamos na presença de um transporte de valor pecuniário muito relevante.


Ademais, importa não olvidar que a arguida actuou com dolo directo, sendo evidente e significativa a sua vontade criminosa [als. a) e b), do n.º 2, do artigo 71.º, do Código Penal].


As exigências de prevenção geral são também elevadas, dada a proliferação deste tipo de crime e a pluralidade de bens jurídicos que a actuação típica faz perigar, a que acresce o elevado grau de danosidade social que decorre do mesmo.


Já no que tange às exigências de prevenção especial, estas mostram-se algo mitigadas, considerando, desde logo, a ausência de antecedentes criminais conhecidos à arguida e a sua integração familiar no país de origem (Brasil), tendo actuado num quadro vivencial difícil ao nível social e económico. De todas as formas, não podemos olvidar que a confissão não foi integral, pois, como vimos, procurou atenuar a sua responsabilidade (afirmando desconhecer que transportava droga), o que é revelador de que não interiorizou plenamente a censurabilidade da sua conduta.


Deste modo, tudo ponderado em função da culpa revelada e das necessidades de prevenção, julga-se adequado condenar a arguida na pena de 5 anos e 4 meses de prisão.”.


Nos «fatores relativos à execução do facto» para determinação da pena , o acórdão recorrido acentua, e bem, a elevada ilicitude dos factos, considerando o tipo e a quantidade do produto estupefaciente transportado pela arguida (cocaína, com o peso líquido de 3.729,500 gramas, dividida em três embalagens/placas) e o modus operandi, traduzido numa atuação conjunta com outros indivíduos não identificados para, numa operação de âmbito internacional, por via aérea, introduzirem, a partir do Brasil, uma razoável quantidade de cocaína em Portugal, “com valor pecuniário muito relevante”, considerando “o valor a que usualmente é vendida uma grama desse tipo de droga (€ 40,00 a € 60,00, de acordo com a experiência adquirida na prática judiciária)”.


A arguida AA agiu com dolo direto e intenso.


A motivação que presidiu à sua atuação foi a obtenção, para si, de um lucro económico (20.000 reais, ou seja, de cerca de € 3.800,00, como contrapartida pelo transporte), à custa da saúde pública e de todo um outro conjunto de bens jurídicos pessoais, dos virtuais consumidores e da vida em so­ciedade. Na verdade, sendo a cocaína um produto com elevado grau de perigosidade para a saúde, tem ainda muito elevado poder aditivo, induzindo, pela premência em angariar meios para a sua aquisição, à prática de variados tipos de crime, frequentemente de elevada gravidade.


Ao nível das consequências da conduta da arguida, se o estupefaciente fosse entregue e, posteriormente, comercializado, revestiria um impacto significativo no mercado onde viesse a ser consumido.


Como bem anota o acórdão recorrido, a arguida AA atuou “como transportadora de cocaína, vulgarmente designada de “correio de droga”.


Ainda que o “correio de droga” possa não ter um conhecimento exato da quantidade de produto estupefaciente – o que no caso não consta dos factos provados –, foge às regras da experiência comum que não tenha uma ideia da quantidade e qualidade do produto estupefaciente que transporta, pelo que a quantidade e a natureza do produto apreendido não pode deixar de ser considerado no desvalor da ação, no momento da determinação da medida da pena.


O Supremo Tribunal de Justiça vem desde há muito valorizando a importância dos “correios de droga”, como peça fundamental na execução do ilícito e na cadeia delitiva do tráfico de estupefacientes concorrendo, de modo direto, para a sua disseminação, pelo que não merecem um tratamento penal de favor.


Conforme realça o acórdão deste Supremo Tribunal de 11-4-2012: “(…) não é possível ignorar o papel essencial dos mesmos «correios» na conformação dos circuitos de tráfico, permitindo a disseminação de um produto que produz as consequências mais nocivas em termos sociais. Sendo pessoas fragilizadas em termos económicos, os mesmos «correios» têm, todavia, a consciência de serem os instrumentos de um mal.”.5


Embora os “correios de droga” não sejam os donos do produto estupefaciente e frequentemente realizem um só transporte, são um elo relevante entre a produção no país de origem e o consumo no país de chegada, pelo que, sob pena de se incentivar o tráfico internacional, a sua responsabilidade criminal não pode ser desvalorizada.


No que respeita aos «Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto», depõe a favor da arguida AA, a ausência de antecedentes criminais, tendo à data dos factos 30 anos de idade.


A confissão dos factos provados para além de não ter sido integral e sem reservas pouco ou nenhum relevo teve para a descoberta da verdade, uma vez que a arguida foi detida em flagrante delito, pelo que torna-se claro para ela aquando do julgamento que a prova estava praticamente feita por outros meios.6


Não consta dos factos provados que a arguida tenha agido em pleno desespero, que demonstrou sincero arrependimento, nem que colaborou com a justiça, como acontece quando o agente contribui decisivamente para a identificação dos elementos da organização dedicada ao tráfico internacional de produtos estupefacientes que lhe entregaram o estupefaciente para o transportar.


O acórdão recorrido considerou, pelo contrário, que a arguida ao procurar atenuar a sua responsabilidade, afirmando desconhecer que transportava droga, revelou não ter interiorizado plenamente a censurabilidade da sua conduta.


Nos “Fatores relativos à personalidade do agente”, a que aludem as alíneas d) e f), n.º2 do art.71.º do Código Penal, assumem preponderância a mediana escolaridade, e a humilde condição e económica da arguida, a que não é alheia a instabilidade a nível profissional e familiar no Brasil, onde tem um filho com 6 anos de idade.


Com respeito às exigências de prevenção geral, reafirmamos aqui que o tráfico de estupefacientes, em especial de cocaína, é dos crimes que mais preocupa e alarma a nossa sociedade pelos seus nefastos efeitos e que mais repulsa causa quando praticado como meio de obtenção de proveitos à custa da saúde e liberdade dos consumidores, com fortes reflexos na coesão familiar e da comunidade em geral.


As elevadas penas previstas para o crime de tráfico de estupefacientes, próximas das aplicáveis ao crime de homicídio, evidenciam a intensa ressonância ética daquele tipo penal inscrita na consciência da comunidade. Como a integração do tipo fundamental de tráfico de estupefacientes na definição de criminalidade altamente organizada (art.1º al.ª m) do C.P.P.) mostra igualmente a necessidade de proceder a um combate acrescido a esta atividade criminosa.


Muito elevadas são, assim, as exigências de prevenção geral no crime de tráfico de estupefacientes, pela forte ressonância negativa na consciência social das atividades que os consubstanciam, em particular quando está em causa o tráfico de produtos estupefacientes com forte nocividade, como é o caso da cocaína, e em quantidade significativa, pelo que se justifica reforçar a ideia da validade dos bens jurídicos inerentes à norma violada.


Considerando, particularmente, a natureza e quantidade do produto estupefaciente que a arguida transportou e deteve no âmbito de tráfico internacional organizado, e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, temos como prementes as razões de prevenção especial, como forma de reinserção social, obstando a que no futuro volte a praticar crimes desta elevada gravidade.


Por fim, também a culpa da arguida é de reputar, como bem refere o acórdão recorrido, “de uma gravidade já acentuada” face às circunstâncias em que o tráfico foi executado, com total indiferença para os malefícios que do tráfico da cocaína adviriam para a vida e saúde dos futuros consumidores, suas famílias e da sociedade em geral.


Em suma, perante as fortes exigências de prevenção geral e especial e a elevada culpa da arguida AA, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do DL nº 15/93, de 22.01, com referência à Tabela I-B anexa ao citado diploma, o Supremo Tribunal de Justiça conclui que a pena de 5 anos e 4 meses de prisão fixada pelo Tribunal a quo, respeita as finalidades da punição, sem ultrapassar a medida da culpa, em integral obediência ao disposto nos artigos 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e 40.º e 71.º do Código Penal.


Esta medida da pena não se afasta, por excesso, de hipóteses similares respeitantes aos chamados “correios de droga”, de que são exemplo as decisões do Supremo Tribunal de Justiça indicadas no acórdão de 28-10-2020 (proc. n.º 475/19.4JELSB.S1), tomadas em consideração nos acórdãos de 24-3-2022 (proc. n.º 134/21.8JELSB.L1.S1) e de 6-7-2023 (proc. n.º 2332/22.8JAPRT.S1), todos publicados in www.dgsi.pt.


Não pecando por excesso a pena de 5 anos e 4 meses de prisão – bem abaixo do limite médio do tipo penal e bem longe dos 12 anos de prisão como limite máximo –, improcede a presente questão e, consequentemente, o recurso.


III - Decisão


Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA e confirmar o acórdão recorrido.


Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs (art.513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).


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(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).


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Lisboa, 11 de outubro de 2023


Orlando Gonçalves (Juiz Conselheiro Relator)


José Eduardo Sapateiro (Juiz Conselheiro Adjunto)


Agostinho Torres (Juiz Conselheiro Adjunto)

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1. Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 (BMJ n.º 458º, pág. 98) e de 24-3-1999 (CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.)↩︎

2. Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 10/10/2018, proc.º n.º 5/16.0GAAMT.S1 e de 7/7/2021, proc. n.º 57/20.8SWLSB.S1, in www.dgsi.pt↩︎

3. Cf. Fig. Dias, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230.↩︎

4. Cf. “Consequências Jurídicas do Crime”, Lições para os alunos da FDC, Coimbra, 2010-2011.↩︎

5. Cf. Proc. n.º 21/11.8JELSB.S1, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido ainda, entre outros, o acórdão de 24/3/2022, proc. n.º134/21.8JELSB.L1.S1, relatado pelo presente relator.↩︎

6. Na lição de Eduardo Correia, esta circunstância atenuante não tem relevância quando o arguido é detido em flagrante delito e, duma maneira geral, em todos os casos em que se torna claro que a prova está feita por outros meios - in “Direito Criminal”, Vol. II, Almedina, edição de 1971, pág. 387.↩︎