Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1603/19.5T8EVR.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
ERRO MATERIAL
ERRO DE JULGAMENTO
AMBIGUIDADE
OBSCURIDADE
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
INEFICÁCIA DO NEGÓCIO
MEDIDAS DE GARANTIA PATRIMONIAL
REQUISITOS
MÁ FÉ
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 06/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. A nulidade da sentença consubstanciada na oposição entre os fundamentos e a decisão (que nada tem a ver com um simples erro material, nem é confundível com o chamado erro de julgamento) traduz um vício lógico da sentença/decisão que a compromete: se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença:

II. A ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respectivos fundamentos; já a obscuridade traduz os casos de ininteligibilidade da sentença.

III. A acção pauliana é uma acção de declaração de ineficácia dos actos em relação ao credor: não se visa declarar nulos os actos praticados em detrimento do devedor (que o não são), mas, apenas, atacá-los de forma a se tornarem ineficazes em relação ao credor e na medida do seu crédito (isto é, na medida em que diminuem a garantia patrimonial do crédito).

IV. A má fé prevista no art. 612.°, n.° 2, do Cód. Civil, abrange tanto os casos de dolo como de negligência consciente em relação à verificação do prejuízo. Já os casos de negligência inconsciente não poderão integrar aquele conceito de má fé.

V. Sendo que quer a má fé do alienante, quer a do adquirente, terão que ser provadas pelo credor, para que a impugnação pauliana possa ser julgada procedente.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível



I – RELATÓRIO


Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Moravis, CRL, com sede na Praça Conselheiro Fernando de Sousa, em Mora, veio instaurar acção comum contra Sociedade Agrícola de Vale de Joana, LDA., com sede na Rua 9 de Abril, n.º 4, Cabeção, AA, casado, residente na Avenida ..., ..., BB, casado, residente na Avenida ..., ... e CC, divorciada, residente na Rua ..., ....

Alega, em síntese que:

No exercício da sua actividade bancária, a Autora celebrou com os Réus Sociedade Agrícola do Vale de Joana, Lda., BB e AA, estes dois últimos na qualidade de fiadores, um Contrato de Mútuo com Hipoteca e Fiança, outorgado em 17/12/2009, mediante o qual a A. concedeu à sociedade, ora Ré, o montante de 1.500.000,00 € (um milhão e quinhentos mil euros).

Para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes do empréstimo, a Mutuária, ora 1ª Ré, por escritura pública outorgada no mesmo dia, constituiu hipoteca a favor da A. sobre o direito de superfície do prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 1331 da freguesia ..., inscrito na matriz sob os artigos 1909 e 1910;

Os 2.º e 3.º Réus afiançaram todas as obrigações que a sociedade mutuária assumiu a título do empréstimo em causa e, na qualidade de fiadores e como principais pagadores, renunciaram expressamente ao benefício da excussão prévia bem como ao benefício do prazo.

A mutuária deixou de pagar as prestações devidas à Caixa Agrícola mutuante em 17/12/2018. Em consequência, a A. intentou ação executiva contra os 1.º, 2.º e 3.º Réus, para ressarcimento dos valores em dívida que, à data de 12/03/2019, perfaziam o montante de € 633.539,74 (acção que corre termos no Juízo de Execução ..., desta Comarca, sob o n.º 345/19....).

No âmbito de um outro processo, o P.7985/11...., ocorreu a venda do referido direito de superfície, mas a Autora não recebeu qualquer montante pelo produto da venda do mesmo, considerando a sentença de graduação de créditos proferida naquele processo.

No âmbito da referida ação executiva n.º 345/19...., intentada pela ora A., foi igualmente penhorado todo o equipamento que compõe a adega e antigo lagar, nomeadamente, material de receção de uva, depósitos de armazenamento de vinho (cubas), linhas de engarrafamento, barricas do antigo lagar (cf. consta da Verba 1 do Auto de Penhora datado de 04/06/2019).

Sucede que esses bens, por escritura outorgada em de 27/02/2019, no Cartório Notarial em ..., foram objeto de dação em cumprimento pela 1.ª Ré à 4.ª Ré.

Tal transmissão teve como única intenção impedir a A. de satisfazer coercivamente o seu crédito, tanto assim que os três primeiros RR. nunca entregaram os referidos bens móveis à 4.ª Ré, que sempre continuaram, até à presente data, a ser utilizados na actividade da 1.ª Ré e das empresas do mesmo grupo económico, subordinadas à direcção económica unitária e comum dos 2.º e 3.º Réus que, por sua vez, são filhos da 4.ª Ré.

A 4.ª Ré conhecia as responsabilidades assumidas pelos três primeiros RR. perante a A.;

Da alienação dos referidos bens resulta a impossibilidade para a Autora de obter a satisfação integral do seu crédito ou, pelo menos, o agravamento dessa impossibilidade.

Termina pedindo se reconheça a nulidade da escritura de dação em cumprimento celebrada entre os RR., declarando-se a mesma sem nenhum efeito.

Subsidiariamente, pede ainda que seja declarada ineficaz em relação à A. a referida

escritura de dação em cumprimento e os RR. condenados a não se oporem a que a A. execute no seu património os bens móveis objceto da aludida escritura de dação em cumprimento, na medida do necessário à satisfação do crédito da A., acrescido de juros vencidos e vincendos e a praticar os actos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, conforme o disposto no artigo 616.º do C.C..


Citados os Réus, apenas a 4.ª Ré deduziu contestação, alegando, em síntese, que:

DD, avó dos 2.º e 3.º Réus e mãe da 4ª Ré, realizou múltiplos financiamentos à 1.ª Ré, sendo que no final de 2004 era titular de um crédito de €751.900,00, razão pela qual os Réus por documento particular autenticado subscreveram uma declaração de reconhecimento da dívida;

Em abril de 2013 a referida credora intentou acção executiva que corre termos sob o n.º 90/13.... com vista à cobrança coerciva do valor em dívida e onde presentemente a 4.ª Ré figura como exequente, por ser a única herdeira de DD, falecida em .../.../2017;

No âmbito da referida execução, em 26 de abril de 2013 foram penhorados os bens móveis em causa nos autos, subsequentemente esses bens foram colocados à venda por leilão eletrónico, porém, face à ausência de licitações razoáveis e porque uma terceira empresa  se encontrava a laborar com esse equipamento, a 4.ª Ré com vista a retirar alguma rentabilidade celebrou uma dação em cumprimento com os demais réus, por escritura outorgada em 27 de fevereiro de 2019, e após celebrou um contrato de aluguer daqueles equipamentos com a dita empresa;

Toda esta situação tem degradado as relações familiares entre os 1º, 2º e 3ª Réus e a 4.ª Ré, que nada sabe sobre a vida profissional e empresarial dos demais Réus e não pode ser privada dos bens que legitimamente adquiriu no âmbito de um processo executivo, pelo que conclui pedindo a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.


*


Realizou-se a audiência final após o que foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus dos pedidos.

**


Inconformada com tal decisão veio a Autora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Moravis, CRL, interpor recurso de apelação, vindo a Relação de Évora, em acórdão, a proferir a seguinte

Decisão:

“Termos em que, acorda-se em julgar parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto e julgar procedente o recurso de direito relativamente ao pedido subsidiário e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida que se substitui por outra que:

- declara ineficaz em relação à Autora a dação em cumprimento aludida nos autos;

- condena os Réus a não se oporem a que a Autora execute no património da 4ª Ré os bens móveis objeto da aludida dação em cumprimento, na medida do necessário à satisfação do crédito da A., acrescido de juros vencidos e vincendos e a praticar os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, conforme o disposto no artigo 616º do Código Civil”.


**


Por sua vez inconformados, vem a Ré CC interpor recurso de revista, apresentando alegações que remata com as seguintes


CONCLUSÕES

1.

O acórdão recorrido é nulo atento o art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC que dispõe que é nula a sentença [Acórdão] quando: (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

2.

No caso concreto, o Tribunal a quo, alterou a resposta de “não provado” que o Tribunal de 1ª Instância ofereceu ao quesito a) A 4ª Ré conhecia as responsabilidades assumidas pelos três primeiros RR. perante a A..

3.

O Tribunal a quo considerou o quesito provado, todavia, salvo melhor opinião, a fundamentação lógica que escreveu, objetivamente, não é apta a alcançar o dispositivo em apreço.

4.

Do facto da 4ª Ré ser mãe dos executados, BB e AA, não é objetivamente possível extraira conclusãode que aquela sabia das responsabilidades assumidas pela Sociedade Agrícola Vale de Joana Lda e pelos seus filhos.

5.

O raciocínio empregue pelo Tribunal a quo não merece enquadramento numa presunção judicial, quando muito seria uma mera possibilidade e, mesmo sob esta perspetiva, ao abrigo das regras da experiência comum e da racionalidade, seria uma probabilidade reduzida.

6.

A conclusão supra é ainda mais evidente quando nos debruçamos sobre o raciocínio do Tribunal a quo quando fundamenta que “todo o património familiar estava envolvido na atividade económica da empresa, as negociações de reestruturação eram feitas tendo por base o retorno do património à família “, pois a decisão não contém qualquer elemento factual ou racional que seja suscetível de o alicerçar.

7.

No caso dos autos, é patente da decisão de facto e da respetiva motivação, que o raciocínio presuntivo desenvolvido pelo Tribunal da Relação com base no apelo às regras da experiência padece de manifesta ilogicidade no que concerne à resposta dada ao quesito em crise.

8.

In casu, aplica-se o art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, sendo nulo o Acórdão pois os seus fundamentos não sustentam a sua parte decisória tornando a decisão ininteligível.

9.

Um outro fundamento acresce para a reversão da decisão recorrida, pois o único facto que se alterou, em sede de impugnação da matéria de facto, dando-o como provado foi este: - “a 4.ª Ré conhecia as responsabilidades assumidas pelos três primeiros RR. perante a A.”- porém, o assentamento desse fato naturalístico (ainda que o fosse verdadeiro, o que não acontece) não tem a potencialidade para alterar a decisão de direito.

10.

São pressupostos da impugnação pauliana, nos termos do art 610º CC e ss, a realização pelo devedor de um acto que diminua a garantia patrimonial do crédito e não seja de natureza pessoal; que o crédito seja anterior ao acto, ou sendo posterior, tenha sido dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; que o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, ocorra má fé quer do alienante, quer do adquirente; que resulte do acto a impossibilidade do credor obter a satisfação integral do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade.

1.

Estando em causa a situação dos autos, importa que tal acto tivesse diminuído a garantia patrimonial desse crédito, resultando dele a impossibilidade do credor obter a satisfação integral desse crédito ou o agravamento dessa impossibilidade, e que tivesse ocorrido má fé tanto da 1ª R. (alienante) como também da 4º R (adquirente).

12.

A acção procedeu na apelação exclusivamente porque se entendeu, ao contrário da sentença, ter resultado dos factos provados a existência de má fé por parte do 4º R. adquirente.

13.

A lei considera como má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor – art 612º/2 CC, sendo de aceitar a existência da má fé perante a negligência, mas exigir que esta seja consciente.

14.

Assim sendo, quando o terceiro adquirente haja celebrado o negócio oneroso sem ter consciência da possibilidade de lesar o credor, sendo que poderia, se tivesse actuado diligentemente, ter adquirido essa consciência, não há má fé, e não poderá proceder a acção de impugnação pauliana.

15.

O facto que foi considerado provado pelo Tribunal a quo em concorrência com os restantes não permite de forma alguma preencher o conceito de má fé exigido pela lei.

16.

O facto assente “a 4ª Ré conhecia as responsabilidades assumidas pelos três primeiros RR. perante a A..”, não permite inculcar que a 4ª R. teria consciência de que o acto que celebrou estaria a prejudicar a A.

17.

Sempre seria necessário ter sido alegado e considerado assente que a a 4ª R. sabia não só da existência das responsabilidades contraídas pelos três primeiros RR. mas também que estes não têm possibilidade de as cumprir integralmente.

18.

Ou no mínimo dos mínimos que a 4ª R., no momento da celebração do acto impugnado, sabia que os três primeiros RR. teriam incorrido em incumprimento com a responsabilidades assumidas perante a A.

19.

Por fim importa invocar que o deferimento dos presentes autos implica a subversão das regras do processo executivo, pois, na realidade, o crédito da A. é posterior ao crédito da 4ª R., como também a própria exigibilidade do seu alegado crédito é posterior à penhora realizada a favor da 4ª R.

20.

Através da presente ação a A. tenta “ultrapassar” a 4ª R. enquanto credora na execução dos bens em apreço.

21.

A 4ª R., com o ato ora impugnado, apenas e só tentou salvaguardar os seus interesses enquanto credora, sem qualquer intuito de prejudicar quaisquer outros credores, tendo para o efeito usado de boa fé os mecanismos que o processo executivo tinha a seu favor, nomeadamente a anterioridade do seu crédito, do  seu processo executivo e da sua penhora, pelo que é por demais natural que os bens em apreço sirvam em primeira instancia para o ressarcimento do crédito da 4ª Ré e não para o ressarcimento do crédito de um outro credor, nomeadamente da Autora que, relativamente a estes bens, apresenta uma posição desfavorecida, dada posterioridade do seu alegado crédito, do seu processo executivo e da sua tentativa de penhora.


Atento o exposto, roga-se a admissão e o deferimento do presente recurso, revogando-se a decisão do Tribunal a quo, a qual deverá ser substituída por outra que indeferia a ação proposta pela SA. , pois só assim se fará Justiça.


**



Contra-alegou a recorrida Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Moravis, CRL, pugnando pela improcedência do recurso.  


*


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

**

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO


Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


**


Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir são:

    • Da nulidade do acórdão, porque “os seus fundamentos não sustentam a sua parte decisória tornando a decisão ininteligível” (artº 615º, nº1, al. c) do CPC);
    • Impugnação da decisão da matéria de facto: se a Relação fez uso incorrecto das presunções judiciais para lograr a alteração do facto ínsito na al. a) dos factos considerados na sentença como não provados[1].
    • Se, a manter-se a alteração da matéria de facto operada pela Relação, tal é bastante para alterar a decisão de direito proferida na sentença.

**


III – FUNDAMENTAÇÃO


III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (após impugnação em recurso):

1.     A A. é uma cooperativa que se integra no ramo do crédito do sector cooperativo,

cujo objeto consiste no exercício de funções de crédito agrícola a favor dos seus associados

e a prática dos demais actos inerentes à atividade bancária nos termos da legislação aplicável.

2.    No exercício da sua actividade bancária, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Moravis, CRL, celebrou com a Sociedade Agrícola do Vale de Joana, Lda., BB e AA, estes dois últimos na qualidade de fiadores, o contrato número ...63, denominado “Contrato de Mútuo com Hipoteca e Fiança”, outorgado em 17 de Dezembro de 2009, mediante o qual a A. concedeu à sociedade, ora Ré, o montante de 1.500.000,00 € (um milhão e quinhentos mil euros), pelo prazo de 15 anos, com início na data da assinatura do contrato, montante a ser reembolsado em prestações anuais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira dois anos a contar da data do referido contrato e as restantes no correspondente dia de cada ano subsequente, tudo conforme decorre do teor de fls. 13 a 15, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.

3.    Para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes do referido contrato, a Mutuária, ora Ré, por escritura pública outorgada no dia 17 de Dezembro de 2009 no Cartório Notarial ..., de fls. 136 a 139 verso, do livro 29-C, constituiu hipoteca a favor da A. sobre o direito de superfície do prédio urbano sito na freguesia ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 1331 da freguesia ..., inscrito na matriz sob os artigos 1909 e 1910.

4.     Hipoteca que se encontra registada na Conservatória do Registo Predial ... através da inscrição com a Ap. 1378 de 2009/12/17.

5.    Os 2.º e 3.º Réus afiançaram todas as obrigações que a sociedade mutuária assumiu a título do empréstimo em causa e, na qualidade de fiadores e como principais pagadores, obrigaram-se perante a ora Autora ao cumprimento das mesmas, renunciando expressamente ao benefício da excussão prévia bem como ao benefício do prazo.

6.     Autora entregou à sociedade Ré, de acordo com o convencionado, a primeira tranche do empréstimo, no valor de 1.355.000,00 €.

7.     Os restantes 145.000,00 € foram creditados em várias tranches, mediante solicitação da sociedade mutuária.

8.    Apesar de instada para os respetivos pagamentos, a mutuária deixou de pagar as prestações devidas à Caixa Agrícola mutuante em 17/12/2018.

9.   A A. intentou ação executiva contra os 1.º, 2.º e 3.º Réus, para ressarcimento dos valores em dívida que, à data de 12 de março de 2019, perfaziam o montante de € 633.539,74, a qual corre termos no Juízo de Execução ..., desta Comarca, sob o n.º 345/19.....

10.     No âmbito da referida execução, foi registada penhora sobre o direito de superfície, tendo a mesma sido sustada, em virtude de penhora anteriormente registada no processo n.º 7985/11.... e que corre termos no Juízo de Execução ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.

11.    A Caixa Agrícola, ora Autora, reclamou créditos no referido processo n.º 7985/11...., tendo o seu crédito sido graduado conforme resulta da sentença proferida em 02/03/2015, que se encontra junta a fls. 32 a 34, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

12.    No âmbito do proc. 7985/11...., ocorreu a venda do referido direito de superfície, mediante leilão eletrónico que terminou na data de 11/09/2019, tendo sido aceite a proposta de aquisição apresentada pelo credor B..., S.A., pelo valor de 736.100,00 €.

13.    No âmbito da ação executiva n.º 345/19...., intentada pela Caixa Agrícola, no dia 4 de junho de 2019 foi ainda penhorado todo o equipamento que compõe a adega e antigo lagar, nomeadamente, material de recepção de uva, depósitos de armazenamento de vinho (cubas), linhas de engarrafamento, barricas do antigo lagar, conforme decorre do documento junto a fls. 36 verso a 38 e que aqui se dá por reproduzido.

14.     Em 26/06/2019 a Autora foi notificada do protesto do acto de penhora apresentado pelos 2.º e 3.º Réus, em virtude da alienação dos bens constantes do Auto de Penhora, nomeadamente os bens constantes da Verba 1 desse auto.

15.     Por escritura intitulada “Dação em Cumprimento, outorgada em 27 de fevereiro de 2019, no Cartório Notarial em ..., a cargo da Dra. EE

..., a 1.ª Ré declarou entregar à 4.ª Ré, pelo preço de 391.274,00 €, dos bens móveis ali discriminados, tudo como decorre do documento junto a fls. 69, cujo teor aqui se dá por  inteiramente reproduzido.

16.  Através de carta registada datada de 15/01/2019, a Autora comunicou à 1.ª Ré a existência de responsabilidades vencidas nos termos que decorre do teor de fls. 87 e que aqui se dá por integralmente reproduzido.

17.    A A. intentou procedimento cautelar de arresto dos bens pertencentes à 1.ª Ré, que veio a ser julgado improcedente por não provado, conforme documento junto a fls. 89 a 93,

cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

18.   Os 2.º e 3.º Réus, únicos sócios e gerentes da sociedade Ré, são filhos da 4.ª Ré.

19. A 4.ª Ré conhecia as responsabilidades assumidas pelos três primeiros RR. perante a A.  (aditado pela Relação).


*


Factos Não Provados:

a) ()[2].

b) - Os bens descritos na escritura de dação em cumprimento nunca foram entregues à 4.ª Ré sendo que os três primeiros RR. sempre continuaram, até à presente data, a utilizá-los na atividade da 1.ª Ré e das empresas do mesmo grupo económico, subordinadas à direção económica unitária e comum dos 2.º e 3.º Réus.

c) A celebração pelos Réus da dação em cumprimento teve como única intenção impedir a A. de realizar coercivamente o seu crédito sobre os bens móveis objeto da mesma.


**



III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO


Analisemos as questões suscitadas na revista.

    • DA NULIDADE DO ACÓRDÃO (porque (segundo a recorrente) “os seus fundamentos não sustentam a sua parte decisória tornando a decisão ininteligível” - artº 615º, nº1, al. c) do CPC);


Não tem razão.


 A nulidade do acórdão, ora em questão, prevista no artº 615º, nº1, al c) do CPC – aplicável ao STJ ex vi dos artsº 666º e 668º do mesmo Código – ocorre quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obstáculo que torne a decisão ininteligível”.

Ora:

    • Quanto à oposição entre os fundamentos e a decisão
Nesta nulidade está-se perante um vício lógico da sentença/decisão que a compromete; «se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença»[3]. Não se trata de um simples erro material (em que o juiz, por lapso, escreveu coisa diversa da que pretendia escrever - contradição ou oposição meramente aparente), mas de um erro lógico-discursivo, em que os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, direção diferente (contradição ou oposição real)[4]. O que não é, também, confundível com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção dos factos concretos à correspondente previsão normativa abstrata, nem, tão pouco, a uma errada interpretação desta, vícios estes só sindicáveis em sede de recurso jurisdicional[5]. Na verdade, quando, embora indevidamente, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, está-se perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já se o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja juridicamente correta, verifica-se a apontada nulidade.

Com efeito, a nulidade da decisão, invocada (alínea c), 1ª parte, do n.º1, do art.º 615.º do C. P. Civil) remete-nos, portanto, para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica.

Ora, a decisão recorrida (concorde-se ou não – certa ou errada, já lá chegaremos) está em sintonia com a fundamentação nela vertida.

O que se passa é que a Recorrente, nas suas alegações, vem discordar da decisão havida, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável. Mas já não quanto à estrutura lógica da sentença.

Como tal, estamos perante invocação de erro de julgamento e não em face da apontada nulidade. O raciocínio lógico seguido na fundamentação do acórdão está em sintonia com a decisão a final nele proferida.

§ Quanto à obscuridade ou ambiguidade da decisão que a torne ininteligível

Não há obscuridade ou ambiguidade alguma – nem, aliás, tal vem fundamentado ou explicado pela Recorrente – , muito menos a decisão recorrida é ininteligível. Antes é perfeitamente clara, independentemente de com ela se concordar ou não.

Como refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-01-2019[6],A nulidade ancorada na ambiguidade ou obscuridade da decisão proferida, remete-nos para a questão dos casos de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando a decisão, em qualquer dos respectivos segmentos, permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade).”.


Assim também REMÉDIO MARQUES[7]: “a ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos”, e “a obscuridade, de acordo com a jurisprudência e doutrinas dominantes, traduz os casos de ininteligibilidade da sentença”.


Ora, o sentido da decisão (e dos seus fundamentos) é perfeitamente claro, sem qualquer ambiguidade ou obscuridade, pois o pensamento decisório da Relação é facilmente lógico e compreensível através da leitura dos fundamentos utilizados.


Improcede esta questão.


§ IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO – DO USO INDEVIDO, PELA RELAÇÃO, DAS PRESUNÇÕES JUDICIAIS


Sustenta a Recorrente que a Relação, no que tange à modificação de facto operada, relativamente à al. a) do facto não provado – passando-o para o elenco dos factos provados – , fez um uso indevido das presunções judiciais[8].


Como é sabido, este S.T.J. apenas pode sindicar o uso de presunções judiciais pelas instâncias para averiguar se tal uso ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados[9].

A presunção judicial é uma ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, em resultado da livre apreciação da prova.


O CPC de 2013 ampliou substancialmente os poderes da Relação na apreciação e modificação da matéria de facto, como emerge do artº 662º do CPC.

Ou seja, face à nova redação deste normativo, a Relação passou a ter autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis[10].

Assim, portanto, a Relação pode formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância. Ou seja, a Relação pode – e deve – analisar criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a formar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada.

Nessa senda, “em caso de recurso com impugnação da decisão relativa à matéria de facto (Artigo 640º), pode e deve a Relação socorrer-se de presunções judiciais para (i) alterar os factos tidos como provados e/ou não provados na primeira instância (sem prejuízo das limitações à admissibilidade das presunções,…,) bem como (ii) para desenvolver a matéria de facto provada na primeira instância, declarando provado um novo facto (presunção de segunda geração) com base nos factos provados na primeira instância (que operam aqui como factos-indiciários), desde que o novo facto seja congruente e não colidente com os demais factos já provados.”[11].

O critério essencial para a criação de determinada presunção não pode deixar de assentar nas regras lógicas, maxime naquela que preconiza uma causa adequada para determinado efeito e vice-versa e bem assim num raciocínio de probabilidade racional.


A Relação partindo do facto de a 4ª Ré ser mãe dos executados BB e AA concluiu que aquela era conhecedora das responsabilidades assumidas pela Sociedade Agrícola Vale de Joana Lda e pelos seus filhos. Não cremos, porém, que, assim raciocinando, esteja a Relação a incorrer em manifesta ilogicidade, ao ponto de ora se alterar a modificação de facto operada pela Relação.


Assim sendo, nada a alterar na matéria de facto fixada pela Relação.


§ A ALTERAÇÃO, PELA RELAÇÃO, DA MATÉRIA DE FACTO (al. a) dos factos não provados) É BASTANTE PARA ALTERAR A DECISÃO DE DIREITO?

DOS PRESSUPOSTOS DA IMPUGNAÇÃO PAULIANA


Parece-nos evidente que a alteração da matéria de facto levada a cabo pela Relação não é bastante para justificar a alteração da sentença.

Vejamos.


Muito se tem escrito sobre a impugnação pauliana, como pode ver-se em ADRIANO VAZ SERRA[12], ALMEIDA COSTA[13], PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[14], CABRAL DE MONCADA[15], CARLOS MOTA PINTO[16], ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO[17], PEDRO MANUEL MARTINEZ e PEDRO FUZETA DA PONTE[18], PAULO COSTA E SILVA[19], LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO[20], CARVALHO FERNANDES[21], JOSÉ CARLOS BRANDÃO PROENÇA[22], ARMANDO LEMOS TRIUNFANTE[23], ARMINDO RIBEIRO MENDES[24], JOÃO CURA MARIANO[25], MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO[26], CLARA SOTTOMAYOR[27], ROMEU MARTINS FILHO[28], JOSÉ ALBERTO GONZÁLEZ[29], RUI CORREIA DE SOUSA[30].


A impugnação pauliana tem origem na velha actio pauliana romana[31], criada, ao que parece, pelo pretor romano.

Reza o artº 610º do Código Civil: «os actos que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:

a) Ser o crédito anterior ao acto[32] ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do futuro credor;

b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade».


ALMEIDA COSTA[33] define a impugnação pauliana como a faculdade que a lei concede aos credores de rescindirem judicialmente os actos verdadeiros celebrados com os devedores em prejuízo daqueles - os credores.

Não cremos que seja a boa definição, na medida em que se não visa declarar nulos os actos praticados em detrimento do devedor (que o não são), mas, apenas atacá-los de forma a se tornarem ineficazes em relação ao credor e na medida do seu crédito (isto é, na medida em que diminuem a garantia patrimonial do crédito).

Enquanto na declaração de nulidade se visa atingir os actos feridos por aquela – e na sub-rogação se ataca a inactividade do devedor – , na impugnação pauliana vai-se já ao encontro de um outro expediente ou artifício através do qual o devedor pode atingir a garantia patrimonial do seu crédito.

Ataca-se, por esta via, actos verdadeiros praticados pelo devedor, conscientes ou não, válidos ou nulos, e que podem ser impugnados pelo presente instituto.


Temos, assim, como mais correcta, a definição de impugnação pauliana como a faculdade que a lei confere a cada credor de reagir contra os actos do devedor que diminuem a garantia patrimonial do crédito – o património do devedor – , em seu prejuízo. Essa reacção dos credores é admissível, quer em relação à primeira alienação realizada pelo devedor (arts. 610.° e ss.), quer em relação a alienações subsequentes efectuadas pelo adquirente dos bens (art. 613.°), constituindo uma acção específica, destinada à impugnação desses actos: a acção pauliana.


Da análise do quadro legal aplicável, a impugnação pauliana tem os seguintes pressupostos e requisitos:

a)    a realização pelo devedor de um acto que diminua a garantia patrimonial do crédito e não seja de natureza pessoal[34];

b)    que o crédito seja anterior ao acto, ou sendo posterior, ter sido ele dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

c)     que o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, ocorra má-fé tanto do alienante como do adquirente;

d)    que resulte do acto a impossibilidade de o credor obter a satisfação   integral do   crédito ou agravamento dessa impossibilidade.


Sendo, como é, controvertida a natureza da impugnação pauliana, sendo vários os argumentos teóricos aduzidos pelos vários autores, conducentes a qualificações tão divergentes, esta acção aparece na  doutrina   referenciada como uma   acção de responsabilidade delitual, uma pretensão justificada numa obligatio ex lege, um processo de natureza mista em que se cruzam os elementos da responsabilidade delitual com os da obligatio ex lege, um pleito escorado no instituto do enriquecimento sem causa ou um caso de responsabilidade sem dívida ou uma reclamação de nulidade.

Cremos tratar-se de uma acção de declaração de ineficácia dos actos em relação ao credor[35]

Diz MOTA PINTO que «a ineficácia relativa surge-nos em situações caracterizadas pela existência de uma expectativa, que seria prejudicada pelo negócio de disposição ou de vinculação em causa. O negócio é relativamente ineficaz, por força do impedimento, resultante daquela disposição legítima do terceiro acerca do conteúdo do acto. É necessário proteger o terceiro na medida apropriada à não frustração do seu direito, mas não se deve limitar o poder de disposição, do titular mais do que for necessário a essa protecção. Logo o negócio só é ineficaz em face do terceiro, mas não é entre as partes ou em face de outras pessoas»[36].

In casu, está em causa uma dação em cumprimento – uma acto oneroso – , através da qual a 1.ª Ré transferiu para a 4.ª Ré a propriedade da coisa alienada (bens móveis discriminados na escritura impugnada), donde se poder extrair que esse negócio implicou, objectivamente, a diminuição de património da 1ª Ré que garante as obrigações por si assumidas, enquanto sociedade devedora.

Por outro lado, o crédito titulado pela Autora teve origem na relação jurídica estabelecida em Dezembro de 2009, donde ser anterior à prática do acto de disposição impugnado (dação em cumprimento), o qual teve lugar a 27 de Fevereiro de 2019.


*

Mas, pergunta-se, estará preenchido o requisito ou pressuposto da má fé?

Obviamente que não. E assim é, quer se mantivessem os factos provados tal como os elencou a sentença, quer com a alteração levada a cabo pela Relação, na al. a) dos factos não provados (que a levou aos factos provados).

Relativamente à alienação a título oneroso, dá conta LUÍS T. MENEZES LEITÃO[37] da ampla controvérsia que se tem gerado na doutrina sobre a forma como deve ser definida a má fé, para efeitos da impugnação pauliana[38].

Escreve o mesmo autor que «...este conceito deve abranger tanto os casos de dolo como de negligência consciente em relação à verificação do prejuízo. Já os casos de negligência inconsciente - as partes celebram o negócio sem ter consciência da possibilidade de lesar o credor, quando poderiam, se actuassem diligentemente, ter adquirido essa consciência - não poderão, a nosso ver, integrar o conceito de má fé, referido no art. 612.°, n.° 2. Relativamente ao tipo de prejuízo em questão, ele deve ser entendido como a impossibilidade prática de satisfação do crédito, admitindo-se assim a existência de má fé, sempre que haja intenção ou consciência dessa impossibilidade. Quer a má fé do alienante, quer a do adquirente, terão que ser provadas pelo credor, para a impugnação pauliana possa ser julgada procedente».

Ainda sobre o conceito de má fé, refere JOÃO CURA MARIANO que «consciência do prejuízo é um processo psicológico pertencente ao domínio da representação ou ideação, assumindo uma natureza intelectiva. Nesta operação intelectual, o devedor e o terceiro adquirente devem não só ter a percepção da situação patrimonial do primeiro e dos efeitos do acto que vão praticar, mas também aperceberem-se que estes podem impossibilitar os credores do devedor de obter a satisfação integral dos seus créditos. Não é necessário que essa consciência se traduza num juízo de certeza sobre a verificação futura desta consequência, bastando-se com um juízo de possibilidade. É suficiente para que os autores do acto tenham consciência das suas consequências danosas que as prevejam como possíveis, tendo-as presente no seu espírito. Também não é necessário que o raciocínio elaborado preveja especificamente o direito do credor impugnante, sendo suficiente que o mesmo abranja a generalidade dos credores, onde aquele se inclui»[39].


Daqui se extrai, portanto, que a má fé relevante para efeitos da impugnação pauliana dirigida a actos onerosos, posteriores à constituição do crédito, consistirá na consciência do prejuízo – por banda do devedor e do terceiro adquirente – que o acto impugnado causa ao credor.

Ou seja, não exige a lei o conluio ou a concertação do devedor e do terceiro, tendo em vista pôr em causa a garantia patrimonial do credor; o que a lei exige é que esteja presente a má-fé bilateral - do alienante e do adquirente - no sentido de exigir a ambos a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, o que requer, tão-só, a verificação do elemento intelectual, comum ao dolo eventual e à negligência consciente - a mera representação da possibilidade da produção do resultado danoso, em consequência da conduta do agente - e já não do elemento volitivo, isto é, o sentido, subjectivamente, atribuído pelo agente à sua conduta e, portanto, o facto de, ao realizá-la, ele confiar ou não que o resultado lesivo venha a produzir-se.[40].


*


Ora, os factos provados, mesmo com a alteração levada a cabo pela Relação, não são de molde a concluir pelo preenchimento deste pressuposto da má fé. Daí que a presente acção pauliana tivesse, fatalmente, de improceder.


Com efeito, a prova de que “a 4ª Ré conhecia as responsabilidades assumidas pelos três primeiros RR. perante a A..”, é manifestamente insuficiente para inculcar que a 4ª R. tinha consciência de que o acto que celebrou estaria a prejudicar a A.

E isto, sim, é que importava fosse provado – o aludido requisito da má fé – para a eventual procedência da demanda.


De facto, impunha-se que a Autora tivesse sido alegado e provado, não apenas que a 4ª R. sabia da existência das responsabilidades assumidas pelos três primeiros RR., mas também que estes não tinham possibilidade de as cumprir integralmente; ou, no mínimo dos mínimos, que a 4ª R., aquando da celebração do acto impugnado, sabia que os três primeiros RR. estavam em incumprimento das responsabilidades assumidas com a Autora.

E nada disto se provou!

E só provando-o – ónus a cargo da Autora – se poderia falar em má fé de alienante (1ª ré) e adquirente (4ª Ré); só com tal prova se poderia aventar a possibilidade de, com a dação em cumprimento, as partes outorgantes em tal negócio, ao celebrá-lo, terem consciência da possibilidade de lesar o credor.


Portanto, necessário se tornava provar que por banda dos outorgantes houve intenção ou, pelo menos, consciência de que, com a dação em cumprimento, estavam, na prática, a tornar impossível a satisfação do crédito ao credor, aqui autora.

Com efeito, relativamente ao tipo de prejuízo em questão, ele deve ser entendido como a impossibilidade prática de satisfação do crédito, admitindo-se assim a existência de má fé sempre que haja intenção ou consciência dessa impossibilidade.

Quer a má fé do alienante, quer a do adquirente, terão que ser provadas pelo credor, para que a impugnação pauliana possa ser julgada procedente.

Prova essa, percute-se, que a Autora não logrou fazer.

Assim, também improcede esta (segunda) questão – impondo-se a revogação do acórdão, com a repristinação do sentenciado.


**



IV. DECISÃO 

Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, consequentemente, conceder a revista, revogando-se o Acórdão recorrido e mantendo-se a sentença.


Custas a cargo do Recorrente.


Lisboa, 22 de junho 2023


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Afonso Henriques (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Rijo Ferreira (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)

____

[1] Al. a) - A 4ª Ré conhecia as responsabilidades assumidas pelos três primeiros RR. perante a A.

[2] Suprimido pela Relação – passou para os factos provados.

[3] JOSÉ LEBRE DE FEITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 736.

[4] Cfr. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, Coimbra Editora, p. 141 e ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 690.

[5] Cfr. FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, p. 371.

[6] Disponível em www.dgsi.pt.

[7] In “Acção Declarativa À Luz Do Código Revisto”, 3.ª Edição, pág. 667.

[8] Como visto supra, tal al. a) tem o seguinte teor: “A 4ª Ré conhecia as responsabilidades assumidas pelos três primeiros RR. perante a A.”.

[9] Assim, v.g., Ac. S.T.J. 25/11/2014, p.º 6629/04.0TBBRG.G1.S1, rel. Pinto de Almeida, louvando-se nos Acs. S.T.J. de 8/7/2003, Col. II/151, de 9/12/2004 Col. III/144, de 9/9/2008 Col. III/23, de 14/6/2011 Col. II/104 e de 22/5/2012 Col. II/90.
[10] ABRANTES GERALDES, Recursos, in Revista do Ministério Público, Cadernos 11, 2012, p. 12.
[11] LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA - Prova por presunção no direito civil, pp 161-163. O destaque é nosso.

[12] Responsabilidade Patrimonial, Boletim do Ministério da Justiça nº75, 1958, págs. 5-408 e Acórdão de 30 de Janeiro de 1968. Anotação, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 102º, nº3382, 1969, págs. 4-10.

[13]Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra.

[14] Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição (com a colaboração de M. HENRIQUE MESQUITA) – reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 2010; JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Fundamentos da acção pauliana, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 91º, 1959, págs. 349-353, nº3140, págs. 366-370, nº3141, págs. 379-38 e Das Obrigações em Geral, vol. II, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 1997.

[15] Lições de Direito Civil, vol. II, 3ª edição, Coimbra.

[16] Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra.

[17] Anotações ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-1991, Impugnação pauliana de actos anteriores ao crédito – Nulidade da fiança por débitos futuros indetermináveis – Efeitos da impugnação, Revista da Ordem dos Advogados, ano 51, 1991, vol. II, págs. 525-572; Tratado de Direito Civil Português, vol. II, IV e X, Almedina, Coimbra.

[18] Garantias do Cumprimento, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2006.

[19] Impugnação pauliana e execução, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.02.2003, Cadernos de Direito Privado, nº7, 2004, págs. 46-63.

[20] Garantias das Obrigações, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2016; Direito das Obrigações, vol. II, 12º edição, Almedina, Coimbra, 2018.

[21] O Regime Registral da Impugnação Pauliana, in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, vol. II.

[22] Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações, 2ª edição, Universidade Católica Editora, Porto, 2017.

[23] Dos meios conservatórios da garantia patrimonial do credor. Declaração de nulidade. Sub-rogação do credor ao devedor. Impugnação pauliana. Arresto (Breve Estudo na Lei, na Doutrina e na Jurisprudência, Porto Editora, Porto, 1996.

[24] Exercício da impugnação pauliana e a concorrência de credores, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, vol. II, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 416-455.

[25] Impugnação Pauliana, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2008.

[26] Maria De Fátima Ribeiro, Um confronto entre a resolução em benefício da massa insolvente e a impugnação pauliana, IV Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 131-180.

45 Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 693-735.

[27] Invalidade e Registo – A protecção de terceiro adquirente de boa fé, Almedina, Coimbra, 2010.

[28] Impugnação pauliana como meio de conservação da garantia patrimonial, Garantia das Obrigações – Publicação de Trabalhos de Mestrado, Coordenação JORGE SINDE MONTEIRO, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 451-489.

[29] Código Civil Anotado, vol. II, Direito das Obrigações (artigos 397º a 873º), Quid Juris, Lisboa, 2012.

[30] Impugnação pauliana – Colectânea de Sumários de Jurisprudência, Quid Juris, Lisboa, 2002.

[31] Sobre a impugnação pauliana no Direito Romano, cfr. FERDINANDO PUGLIA, Dell'azione pauliana e del fondamento scien­tifico del diritto di proprietà, Napoli, Ernesto Anfossi, 1886, pp. 5 e ss., ENRICO SERA­FINI, Della revoca degli atti fraudolenti compiuti dal debitore secondo il diritto romano, I, Pisa, Francesco Mariotti, 1887, e II, Pisa, Francesco Mariotti, 1889. passim, SIRO SOLAZZI, La revoca degli atti fraudolenti nel diritto romano, 3ª ed., Napoli, Jovene, 1934, passim, ANTONIO BUTERA, Dell'azione pauliana o revocatoria, Torino, Utet, 1934, pp. 2 e ss., ANGELO MAIERINI, Della revoca degli atti fraudolenti, 4ª ed., com notas de Giorgio Giorgi, Firenze, Fratteli Cammelli, 1912, pp. 1 e ss.

[32] A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem sustentado que a anterioridade do crédito para efeitos de acção pauliana [artigo 610.º, alínea a), primeira parte, do Código Civil] deve reportar-se ao momento da constituição da relação obrigacional respectiva e não, v. g., à data da respectiva forma de tutela jurisdicional (cfr., entre outros, os acórdãos de 19/04/2004 e de de 06/07/2010, publicados in www.dgsi.pt.).

[33] Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 601.

[34] Segundo ANTUNES VARELA (das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª ed., pp 435), o acto impugnado “(...) há-de envolver diminuição da garantia patrimonial do crédito. Diminuição de garantia que pode traduzir-se tanto numa perda ou decréscimo do activo (v.gr., a doação dum imóvel), como num aumento do passivo (...), visto por qualquer dessas vias se poder diminuir o conjunto de valores penhoráveis que, nos termos do art. 601º, respondem pelo cumprimento da obrigação”.

[35] Assim, v.g., MENEZES CORDEIRO, Impugnação Pauliana. Fiança de Conteúdo Indeterminável, in CJ 17 (1992), III, pág. 55-64; ROMANO MARTINEZ e FUZETA DA PONTE, Garantias do Cumprimento, 4ª ed., pág. 16; CARVALHO FERNANDES, O Regime Registral da Impugnação Pauliana, in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, vol. II, pág. 33-34; LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. II, pág. 313-315; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência nº3/2001, in Diário da República, Série I-A, de 9 de Fevereiro de 2001.

[36] Teoria Geral do Direito Civil, pág. 606-607.

[37] Garantia Geral das Obrigações, 2ª ed., págs. 77-78.

[38] Sobre a má fé, escreve este Autor, na nota 187:

« (...). No âmbito dos trabalhos preparatórios, VAZ SERRA, "Responsabilidade patrimo­nial", no BMJ 75 (1958), pp. 5-410, p. 215, nota (302) e art. 8.°, n.° 2 do anteprojecto, a p. 220 defendeu expressamente a solução de que se deveria incluir na má fé a ignorância por negligência do prejuízo causado ao credor, posição que continuaria a defender em "Anotação Ac. STJ 30/1/1968" na RLJ 102 (1970), pp. 5-10. Esta posição foi depois expressamente sufragada por MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1984, pp. 492 e ss. Já para ALMEIDA COSTA, "Anotação Ac. STJ 23/ /1/1992", na RLJ 127 (1995), pp. 274-278, o conceito de má fé abrange tanto o dolo como a negligência consciente, mas não pode abranger a negligência inconsciente, posição que parece merecer igualmente a adesão de ANTUNES VARELA, Obrigações, 11, p. 452. No mesmo sentido, ROMANO MARTINEZ/FUZETA DA PONTE, op. cit., pp. 22-23.

A jurisprudência também tem andado dividida sobre esta questão. No (Ac. STJ 23/1/1992 (RICARDO VELHA) em BMJ 413 (1992), pp. 548-553 = RLJ 127 (1995), pp. 270-274, sustentou-se que a má fé aqui referida apenas poderia abranger casos de dolo. No Ac. STJ 11/1/2000 (MARTINS DA COSTA), no BMJ 493 (2000), pp. 351-353 entende­-se que a má fé prevista no art. 612.°, n.° 2, exigiria pelo menos a negligência consciente. Já no Ac. STJ 15/2/2000 (TORRES PAULO), no BMJ 494 (2000), pp. 302-311 manifesta-­se adesão à tese de MENEZES CORDEIRO, mas a decisão a que se chega dificilmente pode ser vista como aplicação dessa doutrina.

A nosso ver, a solução preferível é a que exige a negligência consciente, já que não se afigura correcto sujeitar o terceiro a ver frustrada uma aquisição que efectuou a título oneroso, se ele ignorava, ainda que por negligência, os danos causados ao credor».

[39] Impugnação Pauliana, pág. 199 – destaque nosso.

No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/11/2020, pesquisável em www.dgsi.pt, é dito que: «1. Na impugnação pauliana o conceito de má fé expresso no art.º 612.º n.º 2 do C. Civil tem um sentido próprio, não impondo o legislador que tenha havido por parte dos intervenientes no negócio uma intenção deliberada de prejudicar o credor, bastando-se com a consciência desse prejuízo, exigindo, porém, que a consciência desse prejuízo se verifique em ambos os contratantes.

2. Verifica-se a má fé quando os intervenientes no negócio impugnado não podiam ignorar ou deixar de ter consciência do prejuízo que causavam aos restantes credores do alienante, que todos sabiam que existiam, tal como sabiam que o devedor não dispunha de outros de outros bens aptos a satisfazer os seus créditos, procurando com o negócio salvaguardar o único bem que existia no património do devedor de vir a ser penhorado».

Também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/02/2019, depositado em www.dgsi.pt, se apela a este conceito de má fé, recorrendo à lição de VAZ SERRA, que defendia que: «entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor». Pode assim afirmar-se que a má-fé é entendida como a consciência de que o ato em causa vai provocar a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou um agravamento dessa impossibilidade. Este conceito de má-fé traduz-se numa má-fé subjectiva ou em sentido subjectivo, também conhecida por sentido psicológico, que consiste na convicção do agente de que não tem um comportamento conforme ao direito. A consciência do prejuízo apresenta-se, assim, como um resultado de um raciocínio em que o devedor e o terceiro adquirente devem ter noção da situação patrimonial em que se encontra o primeiro e dos efeitos provenientes do ato que irão praticar, juntamente com a percepção de que este pode prejudicar a garantia patrimonial do credor e impossibilitá-lo de obter a satisfação do seu crédito”.

[40] Ver ALMEIDA COSTA, RLJ, 127º, nº 3846, 277 (destaque nosso); e Ac. STJ de 09.02.2012 (Pº 2233/07.0TBCBR.C1.S1), acessível em www.dgsi.pt.