Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2522/19.0T8MAI.P1.S2
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: REVISTA EXCEPCIONAL
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: NÃO ADMITIDA A REVISTA EXCECIONAL.
Sumário :

Não existe contradição de acórdãos, relevante para efeitos da al. c) do nº nº 1 do artº 672º do CPC, se no acórdão fundamento se considerou que o acordo remuneratório em causa é nulo, por se revelar globalmente mais desfavorável ao Autor do que o sistema remuneratório previsto no CCT, o que confere o direito ao autor/trabalhador de reclamar do empregador as quantias devidas por força do previsto no CCT aplicável (no caso cl.ª 74.ª n.º 7, 41.ª e prémio TIR), contudo, por força do estatuído n art.º 289.º do C.C., incumbe também ao autor/trabalhador o dever de restituir as importâncias que recebeu do seu empregador, em consequência do regime remuneratório acordado, enquanto no acórdão recorrido, nada se dizendo em contrário de tal entendimento, se considerou não haver lugar a enriquecimento sem causa da parte do trabalhador, pela simples razão que se não provou que a rubrica “ajudas de custo” que consta nos recibos de vencimento do autor se destinasse a pagar a compensação prevista na cláusula 74ª do CCT aplicável.

Decisão Texto Integral:

Processo 2522/19.0T8MAI.P1.S2


Revista Excepcional


120/23


Acordam na Formação a que se refere o nº 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


AA intentou contra FRT Cargo, Transportes, S.A. acção declarativa de condenação com processo comum, peticionando que a Ré seja condenada a pagar-lhe:


a) a quantia de € 24.846,30 a título de pagamento da retribuição especial prevista na actual cláusula 61ª da CCTV desde Janeiro de 2014 até Setembro de 2018;


b) o montante de € 6.873,75 referente ao prémio TIR devido desde Janeiro de 2014 a Setembro de 2018;


c) a quantia de € 15.522,00 concernente ao pagamento do trabalho prestado aos sábados, domingos e feriados de Janeiro de 2014 até Dezembro de 2017.


A Ré contestou.


Foi proferido despacho saneador e realizada a audiência de julgamento.


Em 1.01.2022, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:


Pelo exposto, e sem necessidade de ulteriores considerações, julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência :


1- Condeno a Ré a pagar ao Autor :


a) a quantia de €25.718,01 a título de pagamento da retribuição especial prevista na anterior cláusula 74ª, nº7 do CCTV- actual cláusula 61ª do CCTV, desde Janeiro de 2014 até Setembro de 2018;


b) a quantia de €6.027,75 referente ao prémio TIR devido desde Janeiro de 2014 a Setembro de 2018;


c) a quantia de €3.580,16 concernente ao pagamento do trabalho prestado aos sábados, domingos e feriados de Janeiro de 2014 até Dezembro de 2017;


d) absolvo a Ré do demais contra si peticionado na presente causa”.


A Ré interpôs recurso de apelação.


Por acórdão de 20.03.2023, os Juízes do Tribunal da Relação acordaram em julgar improcedente a apelação.


A Ré veio interpor recurso de revista excepcional.


O Autor não contra-alegou.


x


O processo foi distribuído a esta Formação, para se indagar se estão preenchidos os pressupostos para a admissibilidade da revista excepcional referidos na alínea c) do nº 1 do artº 672º do Código de Processo Civil.


A Recorrente formulou as seguintes conclusões:


I. O presente recurso é de revista excecional, nos termos do art. 672.º, n.º 1, al. c), do CPC, por existir acórdão, já transitado em julgado, do Tribunal da Relação de Guimarães (de 17.12.2020, proc. 5416/18.3T8VNF.G1, relatora: Desembargadora Vera Maria Sottomayor), com decisão diferente sobre a mesma questão jurídica aqui em causa (junta-se certidão do acórdão-fundamento sob doc. 1)


II. Com efeito, o acórdão recorrido apresenta-se em frontal contradição com a decisão do acórdão-fundamento, sendo ambos os processos sobre os mesmos factos e com semelhante prova, mas dizendo respeito a outro trabalhador, o que indica, conforme se pretende demonstrar, que o acórdão recorrido assenta numa errada aplicação do Direito, resultando numa decisão incorreta e injusta.


III. A questão jurídica em causa nos presentes autos (tal como no acórdão-fundamento) pode enunciar-se da seguinte forma:


Considerando que, entre Janeiro de 2014 e Setembro de 2018, o trabalhador foi pago segundo um regime remuneratório que o tribunal considera desfavorável para o trabalhador, quais os efeitos de tal decisão relativamente ao que tiver sido auferido pelo trabalhador ao abrigo de tal regime remuneratório?


IV. Note-se que a jurisprudência tem sido unânime no reconhecimento de validade a regimes remuneratórios que disponham de forma diferente da lei ou de IRCT, desde que a aplicação de tal regime resulte mais favorável para o trabalhador; a conclusão mantém-se, mesmo que tal regime não resulte de um acordo, mas de uma decisão unilateral do empregador – o que importa é que o regime seja mais favorável para o trabalhador.


V. Ambos os acórdãos em contraste colocaram a questão de saber se o regime remuneratório aplicado pela Ré era mais favorável para o trabalhador e ambos responderam que não ficou provado que tal regime fosse mais favorável, pelo que, consequentemente, a Ré é condenada a pagar a retribuição que o CCTV impõe (no caso, cl.ª 74.ª n.º 7, 41.ª e prémio TIR).


VI. Onde os acórdãos divergem é em saber se, perante a ilicitude do regime remuneratório aplicado e sua substituição pelo que resulta do Direito vigente, deve o trabalhador restituir o que recebeu ao abrigo de tal regime, sob a forma de compensação com aquilo de que é credor.


VII. O acórdão fundamento conclui que, “sendo nulo o acordo, tal confere o direito ao autor/trabalhador de reclamar do empregador as quantias devidas por força do previsto no CCT aplicável (no caso cl.ª 74.ª n.º 7, 41.ª e prémio TIR), contudo por força do estatuído no citado art.º 289.º do C.C. incumbe também ao autor/trabalhador o dever de restituir as importâncias que recebeu do seu empregador, em consequência do regime remuneratório acordado; (…) de outra forma, ou seja não havendo lugar a tal restituição, estaríamos perante um enriquecimento do trabalhador sem causa justificativa”.


VIII. Por outro lado, o acórdão recorrido não admite qualquer dever de restituição pelo Autor, concluindo que “não aferimos ter ocorrido um enriquecimento sem causa da parte do Autor, atenta a circunstância de ter percebido os montantes atribuídos com a designação de «ajudas de custo» e a pretensão que faz em lhe ser paga a retribuição do n.º 7 da Cláusula 74.ª do CCT”. (Na verdade, o que o acórdão recorrido afirma não é inteiramente rigoroso, porque os montantes percebidos pelo Autor ao abrigo do referido regime remuneratório não o foram apenas a título de «ajudas de custo», mas também de «horas extra»)


IX. Há jurisprudência abundante no sentido do dever de restituição, pelo trabalhador, do que auferiu ao abrigo do regime remuneratório alternativo (julgado ilícito, por desfavorável), nomeadamente:


a. Ac. STJ de 27/07/2012, proc. 248/07.7TTVIS.C1.S1, Conselheiro Fernandes da Silva


b. Ac. STJ de 14/03/2006, proc. n.º 05S1377, Conselheiro Pinto Hespanhol


c. Ac. TRG de 17/12/2020, proc. n.º 5416/18.3T8VNF.G1, Desembargadora Vera Sottomayor


X. Com o devido respeito, não é de aderir à fundamentação do acórdão recorrido, em primeiro lugar porque assenta num pressuposto de outro processo que não se verifica neste (o regime remuneratório aplicado no caso dos autos não implicada o pagamento total sob a rubrica de «ajudas de custo internacional»; e, em segundo lugar, porque o dever de restituição não pressupõe a prova expressa de que as quantias em causa tenham sido pagas em substituição do regime que decorreria da lei e do CCT, antes pressupõe a qualificação jurídica como um pagamento sem causa (trata-se de um enriquecimento sem causa do Autor, na medida em que se julga ilícito e inaplicável o regime remuneratório que deu causa a tais pagamentos).


XI. O acórdão recorrido viola, portanto, a norma da restituição retroativa do que tiver sido prestado por causa de ato nulo (art. 289.º do Código Civil), bem como a obrigação de restituição do enriquecimento sem causa (art. 473.º do Código Civil) o Autor tenha auferido a título de «horas extra» durante o período em causa, ou o seu desconto na parte da condenação que se refere ao pagamento de trabalho em dias de descanso e feriado.


XIII. Com efeito, o acórdão recorrido viola ainda o disposto na cl. 74.ª, n.º 8, do CCT aplicável, identificado no facto julgado provado sob n.º 17.º.


x


Cumpre apreciar e decidir:


Não existe a contradição pretendida.


Neste recurso está em causa saber se:


- a Ré tem direito à restituição (compensação) das quantias pagas ao Autor a título de ajudas de custo;


- a Ré tem direito à restituição (compensação) dos valores pagos a título de «horas extra».


Como refere a recorrente, no acórdão fundamento- Proc. 5416/18.3T8VNF, julgou-se provada a existência de um acordo sobre a remuneração do Autor e, não tendo o tribunal considerado que este acordo fosse mais favorável, operou-se a compensação entre o que devia ser pago ao ali Autor nos termos legais e convencionais e o que este auferiu nos termos do acordo, concluindo-se por um valor a pagar pela Ré de apenas € 2.660,66.


No acórdão recorrido foi considerado como não provado que tenha sido concluído qualquer acordo sobre a remuneração do Autor, não se tendo feito qualquer compensação entre o que devia ser pago ao aqui Autor nos termos legais e convencionais e o que este efectivamente auferiu, concluindo-se por um valor a pagar pela Ré de € 35.325,92.


Como a própria Recorrente reconhece “há uma diferença notória quanto à matéria de facto julgada provada em cada um dos processos. No caso do acórdão-fundamento, foi julgado provado que o regime remuneratório especial aplicado a estes trabalhadores resultava de um acordo entre empregadora e trabalhador; ao passo que, no caso sub-judice, não se julga provado que tal regime tenha resultado de um acordo, havendo que considerar ter sido aplicado unilateralmente pela Recorrente”.


No entanto, a mesma Recorrente omite um aspecto decisivo: o acórdão recorrido concluiu que não se retira dos factos provados que qualquer pagamento, sob a rubrica “ajudas de custo” mencionada nos recibos, tivesse por finalidade ser um substituto da compensação prevista na cláusula 74ª do CCT aplicável. E, se assim é, muito menos pode aferir-se se porventura tal tem correspondência com a realidade, que no cômputo final o resultado fosse mais favorável ao Autor, proporcionando-lhe receber mais do que receberia se fosse paga a quantia mensal prevista na CCT a título daquela compensação.


No acórdão fundamento, e tal como consta do seu sumário, entendeu-se que é nulo o acordo remuneratório em causa por se revelar globalmente mais desfavorável ao Autor do que o sistema remuneratório previsto no CCT. Sendo nulo o acordo remuneratório, tal confere o direito ao autor/trabalhador de reclamar do empregador as quantias devidas por força do previsto no CCT aplicável (no caso cl.ª 74.ª n.º 7, 41.ª e prémio TIR), contudo, por força do estatuído no art.º 289.º do C.C., incumbe também ao autor/trabalhador o dever de restituir as importâncias que recebeu do seu empregador, em consequência do regime remuneratório acordado.


Todavia, não corresponde à realidade que o acórdão recorrido tenha decidido em oposição a esse entendimento.


Antes pelo contrário: no mesmo expressamente se adere ao mesmo, como se retira da seguinte passagem:


“Pois, conforme se entendeu e se sintetizou, no sumário do (Acórdão do STJ de 17.12.2009, Proc. nº 949/06.7TTMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt), “X - A Jurisprudência constante deste Supremo evidencia que a entidade patronal, por regra, não pode unilateralmente modificar o sistema retributivo dos seus trabalhadores, no que concerne aos elementos que derivam de lei ou dos instrumentos de regulamentação coletiva.


XI - Apesar disso, nada impede que tal retribuição seja alterada por acordo entre as partes contratantes, ou mesmo unilateralmente, através de um compromisso vinculativo para a entidade patronal, desde que daí resulte um regime mais favorável para o trabalhador, sendo que a prova dessa favorabilidade compete ao empregador (art. 342.º, n.º 2, do CC)”.


E, em idêntico sentido, no sumário do (Acórdão do STJ de 15.11.2006, Proc. nº 06S2706, in www.dgsi.pt), “I - A prestações previstas na lei ou em instrumento de regulamentação coletiva podem ser modificadas por acordo entre a entidade patronal e o trabalhador, ou mesmo unilateralmente, através de um compromisso vinculativo para a entidade patronal, desde que dessa alteração resulte um regime mais favorável para o trabalhador.


II - Compete à entidade patronal a prova de que o sistema remuneratório praticado em virtude dessa alteração é mais favorável para o trabalhador.”.


Sem esquecer que, não diverge desta solução, o art. 476º do CT, dispondo que “As disposições de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho só podem ser afastadas por contrato de trabalho quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador”.


Assim, acompanhando-se o entendimento acima exposto e o disposto neste artigo, seria admissível a alteração do sistema retributivo devido ao autor, por acordo entre este e a Ré, ou mesmo unilateralmente, mas dependendo a sua validade, em qualquer dos casos, de um resultado mais favorável àquele” (sublinhado nosso).


Em parte alguma do acórdão recorrido se entendeu que, sendo nulo o acordo remuneratório, por mais desfavorável ao trabalhador, não é ónus deste restituir as importâncias que recebeu do seu empregador, em consequência do regime remuneratório acordado.


Considerou que: “não aferimos ter ocorrido um enriquecimento sem causa da parte do Autor, atenta a circunstância de ter percebido os montantes atribuídos com a designação de «ajudas de custo» e a pretensão que faz em lhe ser paga a retribuição do nº 7 da Cláusula 74ª do CCT”, mas pela simples razão, clara e inequivocamente expressa no acórdão recorrido, que não se provou que a rubrica “ajudas de custo” que consta nos recibos de vencimento do autor se destinasse a pagar a compensação prevista na cláusula 74ª do CCT aplicável.


x


Decisão:


Pelo exposto, acorda-se em indeferir a admissão da revista excepcional, interposta pela Ré / recorrente, do acórdão do Tribunal da Relação.


Custas pela Recorrente.


Lisboa, 11/10/2023


Ramalho Pinto (Relator)


Mário Belo Morgado


Júlio Vieira Gomes





Sumário (da responsabilidade do Relator).