Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA CLARA SOTTOMAYOR | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO REAPRECIAÇÃO DA PROVA ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS ÓNUS DE ALEGAÇÃO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE ÓNUS DO RECORRENTE DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO | ||
Data do Acordão: | 07/04/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | ANULA-SE O ACÓRDÃO RECORRIDO E ORDENA-SE QUE OS AUTOS BAIXEM AO TRIBUNAL DA RELAÇÃO | ||
Sumário : | I - Na análise do cumprimento do ónus de alegação quanto à impugnação da matéria de facto, nos termos do art. 640.º do CPC, devemos ter em consideração os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, com prevalência dos aspetos materiais sobre os aspetos formais, e, ainda, proceder a uma leitura concertada das alegações, apreciadas globalmente, e não apenas das respetivas conclusões. II - A análise crítica da prova não constitui um ónus a observar pelo recorrente na impugnação da matéria de facto, nos termos do art. 640.º do CPC, mas um dever do juiz, de acordo com o art. 607.º, n.º 4, do CPC, na elaboração da sentença ou do acórdão. III - A apreciação sumária e genérica da prova, sem que tenha ocorrido uma análise de cada facto impugnado, em conjugação com os meios de prova indicados pelo recorrente e/ou outros que o tribunal recorrido entenda necessários, demonstra que não ocorreu no acórdão recorrido um 2.º grau de jurisdição quanto à matéria de facto, conforme exigido pelo artigo 662.º, n.º 1, conjugado com os n.os 4 e 5 do art. 607.º do CPC. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I - Relatório 1. AA e mulher, BB, vieram propor contra E-Redes Distribuição de Eletricidade, S.A., a presente ação em processo declarativo comum, pedindo a condenação da R. a pagar-lhes a quantia total de € 78.455,13 a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento. Para o efeito alegam, em síntese, no dia 29 de junho de 2019, pelas 23.30 horas, na Rua ..., ..., deflagrou um incêndio na sua arrecadação, a qual era destinada para a recolha de maquinaria, produtos e acessórios utilizados pelo A. na sua atividade de produtor agrícola, o qual só foi declarado extinto pelas 03.40 horas. Na sequência da investigação da polícia judiciária, foi o inquérito arquivado por não se ter encontrado qualquer vestígio de ação criminosa, tendo o A. informado a entidade policial que já em ocasião anterior ocorrera outro foco de incêndio num quadro elétrico instalado noutro armazém seu, “sendo seu convencimento que a circunstância da linha aérea de transporte de electricidade terminar na sua propriedade, a sujeita a “picos de corrente” que danificam os elementos eléctricos ali existentes”. Verificou ainda a autoridade policial que os cabos elétricos que fazem a alimentação de energia da rede de distribuição até ao quadro elétrico no interior da propriedade dos AA. se encontravam danificados. Em resultado do incidente supra descrito, perderam todas as máquinas, equipamentos e demais produtos utilizados na sua atividade agrícola, além dos danos causados no edifício ardido que teve que ser substituído por uma nova construção e, na perda total dos dois quadros elétricos que ficaram completamente destruídos, prejuízos materiais que computam em € 68.455,13. Aos prejuízos materiais acrescem os danos não patrimoniais decorrentes da aflição de se verem confrontados com o evoluir do incêndio e de perderem os seus instrumentos de trabalho. Concluem ser o mau estado dos cabos de baixa tensão, cuja manutenção é obrigação da R. que provocou uma variação de tensão elétrica no fornecimento de energia à propriedade dos AA. e que, consequentemente, resultou num sobreaquecimento do quadro elétrico provocando o incêndio. 2. Contestou a Ré, por impugnação, negando a materialidade de facto que lhe é imputado e gerador de responsabilidade. 3. Os AA. apresentaram articulado superveniente onde alegam: 1ºDurante o mês de Julho de 2020 os A.A. constataram que os disjuntores do seu contador disparavam constantemente provocando a falta de corrente eléctrica nas várias fases e consequentemente em diversas zonas da propriedade. 2º Contactaram o seu electricista que em diversos dias e horas se deslocou à propriedade munido de voltímetro e ao medir a tensão sem consumo verificou que a tensão nas três fases estava baixa para os valores considerados normais e dentro dos limites de segurança, o que provoca sobreaquecimento dos equipamentos. 3º Perante as anomalias e o perigo de sobreaquecimento, os A.A. alertaram o piquete da EDP que se deslocou ao local e procedeu à substituição dos fusíveis do quadro eléctrico onde se verificava a anomalia de corrente com disparo das diferentes fases eléctricas. 4º Posteriormente, no dia 6 de Agosto de 2020 queimou-se a caixa do quadro da electrobomba existente na propriedade dos A.A. 5º Situação que foi comunicada e verificada pelos serviços técnicos da EDP que se deslocaram ao local. 6º A referida caixa da electrobomba teve que ser substituída a expensas dos A.A., protestando juntar documento comprovativo do valor apurado quando a factura lhe for apresentada pela empresa reparadora para pagamento. 7º Em 28 de Agosto de 2020 os A.A. aperceberam-se que os serviços técnicos da EDP se deslocaram ao local e substituíram os cabos do ramal até à propriedade dos A.A. bem como a caixa de chegada de ramal aí colocada pela EDP pelo menos desde o início do contrato de fornecimento de energia. 8º Aperceberam-se ainda que no posto de transformação situado no início da rua e que serve as habitações ali existentes bem como as do loteamento contíguo à propriedade dos A.A. foi feita intervenção técnica no sentido de aumentar a saída de potência da tensão no transformador que distribui a electricidade para os consumidores. 9º Mais uma vez a falta de qualidade no fornecimento de electricidade à propriedade dos A.A. foi a causa das avarias detectadas e dos estragos que se verificaram na instalação eléctrica destes. 10º A fraca tensão e as oscilações constantes no sistema trifásico provocam sobreaquecimento dos cabos e dos equipamentos que originam a sua combustão e destruição. 11º A origem das anomalias e dos danos causados nos equipamentos dos A.A. são consequência directa e necessária da fraca tensão e das oscilações constantes da electricidade fornecida pela R. EDP. 12º A própria EDP ao proceder à substituição dos cabos exteriores e dos cabos do ramal assim como da caixa de fusíveis instalada no poste do ramal e ainda no reforço da saída de potência do posto de transformação central que serve toda a área circundante, demonstra inequivocamente, que a origem do problema se situa na linha de distribuição de energia ao consumidor, linha essa cuja manutenção e qualidade é da exclusiva responsabilidade da R.» 4. Realizou-se a audiência prévia onde se proferiu despacho saneador, se indicou o objeto do litígio e os temas da prova 5. Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a Ré. 6. Desta sentença recorreram os Autores para o Tribunal da Relação, apresentando alegações com as seguintes conclusões: «A) Face à prova documental junta aos Autos e à prova testemunhal produzida em sede de Audiência de discussão e julgamento, nunca a Meritíssima Juiz A Quo poderia ter dado como não provados, a maioria dos factos que assim foram considerados. B) De facto, devem ser dados como provados os factos constantes dos pontos 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 14, 16, 17, 18 (até à propriedade dos A.A.) 20 e 21. E ainda o ponto 12. Todos conforme supra melhor fundamentado. C) Igualmente, nunca a Meretíssima Juíza poderia ter dado como provados os factos constantes das alíneas cc), ii), jj), kk), mm) e nn), tudo conforme melhor supra explanado. D) O depoimento da testemunha CC, que se identificou como vizinho dos AA, que mora no loteamento confinante com a propriedade destes, e que é engenheiro eletrotécnico de profissão tendo exercido durante mais de 20 anos a sua atividade ao serviço da E..., como engenheiro de projeto, que foi totalmente esclarecedor, isento e não pode merecer qualquer dúvida quanto aos conhecimentos técnicos demonstrados, declarou factos dos quais tem conhecimento direto e profissional contrários à apreciação da Meritíssima Juíza. E) A R. não adequou a sua rede antes dimensionada para fornecer exclusivamente energia elétrica à propriedade dos A.A. para fornecer muitas moradias construídas posteriormente à dos A.A. F) Passando a propriedade dos A.A. a ser um ponto de entrega de energia em fim de linha. G) A R. não fez a manutenção e substituição, conforme estava obrigada, dos cabos e demais equipamentos que se encontravam em avançado estado de deterioração e fora das normas regulamentares. H) Dos factos referidos em C) e D) resultou abaixamento de tensão na propriedade dos A.A. o que provocou um sobreaquecimento dos equipamentos e, consequentemente a combustão dos quadros electricos. I) A rede particular dos A.A. estava em perfeitas condições de funcionamento, com material dentro das normas regulamentares e alvo de constante manutenção. J) Os incidentes e o incêndio que ocorreu na propriedade dos A.A. e que causou os prejuízos dados como provados, tiveram origem na rede de distribuição da responsabilidade da R.. K) Toda a prova documental e testemunhal apresentada pelos A.A. demonstram inegavelmente a existência de nexo de causalidade entre o deficiente fornecimento de energia feito pela R. e o sinistro dos autos. L) Estando em causa nos autos acidente ocorrido devido à má condução e entrega da energia, não se tendo verificado caso de força maior, existe responsabilidade objectiva da R. M) Verificam-se assim, os pressupostos relativos á responsabilidade civil extracontratual prevista no artigo 509º do Código Civil, que conduz à condenação da R., no pagamento dos prejuízos causados aos A.A.» 7. O Tribunal da Relação proferiu decisão com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelos recorrentes». 8. Novamente inconformados, os autores interpõem recurso de revista, nos termos dos artigos 674.º, n.º 1, al. a), 675.º, n.º 2, e 676.º, do CPC, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões: «1- Os Recorrentes na Motivação de Recurso interposto para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa indicaram concretamente os pontos da matéria de facto que consideraram incorrectamente julgados; 2- Também indicaram os concretos meios probatórios, transcrevendo concreta e expressamente, os trechos dos depoimentos gravados das testemunhas que foram ouvidas à matéria de facto impugnada; 3- Igualmente especificaram a decisão que, em seu entender, deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas e que davam razão à sua pretensão. 4- Os Recorrentes cumpriram o ónus que sobre os mesmos impende previsto no artigo 640º do C.P.C.. 5- O douto Tribunal da Relação violou assim a alínea b) do nº1 do artigo 674º do C.P.C., ao aplicar erradamente o previsto naquele artigo 640º do C.P.C». 9. Os réus não apresentaram contra-alegações. 10. A Relatora, no Tribunal da Relação, não admitiu o recurso de revista. 11. Os autores apresentaram reclamação contra o despacho de não admissibilidade do recurso, ao abrigo do artigo 643.º do CPC. 12. Neste Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do incidente de reclamação, foi proferido pela ora Relatora despacho a admitir o recurso de revista com os seguintes fundamentos: «Ora, delimitado o objeto do recurso de revista à questão da observância dos requisitos fixados no artigo 640.º, n.º 1, do CPC, para a admissibilidade da impugnação da matéria de facto no Tribunal da Relação, tem este Supremo Tribunal de Justiça entendido que esta questão quebra a dupla conformidade decisória e de fundamentação prevista no n.º 3 do artigo 671.º do CPC e chama a si a competência para fiscalizar se o tribunal recorrido foi, ou não, demasiado exigente e formal na interpretação destes requisitos». 13. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, a questão a decidir é saber se o acórdão recorrido aplicou erradamente o previsto no artigo 640.º do CPC. Cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação A – Os factos Factos provados a) No dia 29 de junho de 2019, cerca das 23.30 horas, na Rua ..., em ..., concelho de ..., deflagrou um incêndio na arrecadação dos AA., a qual era destinada por estes para a recolha das alfaias agrícolas, máquinas, equipamentos, ferramentas, produtos e acessórios utilizados na sua atividade de produtor agrícola, edificação que faz parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 912/.... b) Os AA., atendendo à hora tardia, uma vez que já se encontravam a dormir, não se aperceberam do início do incêndio, tendo sido alertados pelos bombeiros, acompanhados pela G.N.R., que lhes solicitaram a abertura do portão principal da quinta, para poderem entrar com as viaturas. c) O incêndio só foi declarado extinto pelas 03:40h da madrugada do dia 30 de junho de 2019, tendo destruído todo o edifício e respetivo recheio, nada sendo recuperado ou recuperável. d) A ocorrência foi acompanhada pela G.N.R. do posto territorial de ..., tendo sido aberto o NUIPC 231/19.0..., no D.I.A.P. do Tribunal Judicial de ..., no âmbito do qual foram efetuadas diversas diligências, nomeadamente pela Polícia Judiciária, tendo a final sido proferido por esta Polícia o seguinte despacho: “Terminada a a investigação, conforme resulta dos autos e, bem assim, por referência ao teor do relatório de folhas 6 e seguintes, parece resultar que estaremos perante factos que, por não constituírem ilícito criminal, não se enquadrarão na competência de investigação desta Polícia. Na verdade, foi possível apurado na sequência das diligências encetadas por elementos desta polícia, que o incêndio em análise terá tido uma causa não humana, provavelmente eléctrica, não constituindo, portanto, crime. Assim e em face do exposto, remetem-se os autos ao Digno Magistrado do Ministério Público no DIAP-... com indicação que esta Polícia não irá realizar Inquérito sobre os fatos denunciados e proposta de arquivamento”. e) No âmbito das diligências realizadas pela Polícia Judiciária, exarou esta entidade como resultado do exame ao local: “A análise do quadro de indicadores de sentido e propagação das chamas nas estruturas remanescente no armazém permitiu inferir que o incêndio evoluiu a partir da zona onde se encontrava instalado o quadro eléctrico. Os cabos eléctricos semi carbonizados presentes na área de envolvência do referido quadro apresentam-se quebradiças ao toque, indício de que estes elementos sofreram um sobreaquecimento a partir do núcleo”. f) Tendo a GNR recolhido imagens fotográficas dos cabos elétricos que fazem a alimentação de energia da rede de distribuição até à propriedade dos AA.. g) Em 4 de junho de 2019 ocorreu outro incidente num edifício dos A.A. sito na mesma propriedade, destinado aos mesmos fins agrícolas, tendo nessa ocasião ardido o quadro elétrico aí instalado apenas há cerca de dois anos, ficando completamente destruído. h) Em resultado dos incidentes relatados em a) e g), os AA. perderam todas as máquinas, equipamentos e demais produtos utilizados na sua atividade agrícola, além dos danos causados no edifício ardido que teve que ser substituído por uma nova construção e, na perda total dos dois quadros elétricos que ficaram completamente destruídos. i) Alguns dos bens perdidos foram substituídos por novos, tendo os AA. despendido na aquisição dos mesmos a quantia de € 3.270.00. j) Outros bens perdidos no incêndio, os quais os AA. ainda não tiveram oportunidade de substituir tinham o valor total de € 14.707,07. k) A substituição do quadro elétrico que ardeu no incidente ocorrido em 4 de junho de 2019 custou a quantia de € 660,56. l) A reconstrução do barracão agrícola ascendeu ao montante de € 46.740,00 e a reparação de portão custou a quantia de € 578,10. m) Os AA. viram-se confrontados com o evoluir do incêndio, referido em a) à sua frente. n) Além da aflição que sentiram no momento, nas semanas que se seguiram os AA. sentiram-se nervosos, angustiados, preocupados com o prejuízo e com a falta dos instrumentos de trabalho para continuar a sua atividade agrícola. o) A propriedade dos AA. localiza-se no fim de uma estrada, tendo sido estes os primeiros a requerer o fornecimento de eletricidade, o que foi efetuado já há cerca de 30 anos. p) Depois dos AA., várias outras pessoas requereram o fornecimento de eletricidade para as suas habitações. q) Os cabos instalados na data em que os AA. requereram o fornecimento de eletricidade para a sua propriedade nunca foram substituídos. r) Alguns meses depois dos dois incidentes, a R. procedeu à substituição dos mencionados cabos elétricos, que transportam a eletricidade desde o início da rua até à propriedade dos AA. s) A R. é a sociedade que exerce a atividade de Operador de Rede de Distribuição, no território continental de Portugal, sendo titular da concessão para a exploração da Rede Nacional de Distribuição (RND) de Energia Elétrica em Média Tensão (MT) e Alta Tensão (AT), e da concessão municipal de distribuição de energia elétrica em Baixa Tensão (BT) no concelho de .... t) Para o exercício da sua atividade, esta explora variadas infraestruturas e equipamentos, entre os quais os cabos de rede. u) As ligações à rede de energia elétrica são da responsabilidade da R., constituindo sua propriedade todas as instalações elétricas que servem essa rede e por referência às quais impende, sobre a mesma, um dever de manutenção e preservação, de modo a garantir a continuidade do fornecimento de energia elétrica. v) As ligações à rede de energia elétrica são de utilidade pública, nos termos da legislação aplicável ao sector elétrico nacional. w) A R., enquanto concessionária da exploração da Rede Nacional de Distribuição (RND) de Energia Elétrica em Média Tensão (MT) e Alta Tensão (AT), dispõe, para o efeito, de instalações elétricas, infraestruturas e ligações à rede em todo o território nacional, nomeadamente no local da ocorrência identificado em a). x) A 29 de junho de 2019, a instalação dos AA. era - e é - abastecida de energia elétrica, em Regime de Baixa Tensão Normal. y) O imóvel identificado em a) corresponde ao Local de Consumo n.º ...49, sendo o titular do contrato de fornecimento de energia elétrica o ora A. AA. z) No dia 04 de junho de 2019, pelas 19h07, comunicou o A. AA uma avaria na instalação elétrica particular supra identificada, a saber, interrupção do fornecimento de energia elétrica, tendo no âmbito da avaria comunicada, sido gerado o incidente n.º ...18 no sistema da R. aa) Na sequência da comunicação realizada, deslocaram-se ao local dois técnicos ao serviço da R. que tomaram conta da ocorrência. bb) Em concreto, verificaram os técnicos que se deslocaram ao local que se encontravam dois ligadores queimados no ramal XS 4X6, procedendo, nesse sentido, à sua substituição. cc) Após análise dos factos no local, verificaram os técnicos que os danos no ramal terão sido provocados pela instalação elétrica a montante deste, em concreto, a instalação elétrica particular dos ora AA.. dd) A única comunicação registada na R. para o incidente referido em a), data de 01 de julho de 2019 e foi realizada pelo A. AA. ee) Para o dia 29 de junho de 2019, não existe no sistema de registo de anomalias da R. o registo de qualquer incidente nas linhas que abastecem o local de consumo identificado em y). ff) No local de consumo identificado em y) o equipamento de contagem está a cerca de 100 metros do ponto de entrega da energia e já dentro da propriedade dos ora AA.. gg) O armazém onde deflagrou o incêndio situa-se a cerca de 150 metros do ponto de entrega, igualmente dentro da propriedade dos AA.. hh) O “transporte” da energia desde o ponto de entrega até ao quadro onde deflagrou o incêndio, é totalmente da responsabilidade dos AA., enquanto consumidores. ii) A rede BT, em questão, foi verificada de acordo com o plano de manutenção da rede. jj) Em particular, o posto de transformação, e a rede de baixa tensão que alimenta o local de consumo em causa, foram verificados em 04 de junho de 2019. kk) Todos os componentes da rede se encontravam em condições normais de exploração, conservadas e dentro do tempo de vida útil, não tendo sido detetadas quaisquer anomalias. ll) As equipas do piquete ao serviço da R. estiveram na propriedade dos AA. em agosto de 2020, no seguimento dos incidentes n.º 8858285 e 8860355. mm) O incidente registado sob o número 8858285 prendeu-se com o facto de a caixa de proteção do ramal da instalação elétrica particular dos AA. ter queimado (caixa de proteção de ramal XS 4x6), derivado da fundição de um fusível (L1). nn) O fusível queimado (fusível da fase 1), cumpriu a sua função, ou seja evitar progressão da sobretensão gerada pela instalação elétrica particular dos AA. para a rede pública de distribuição de energia elétrica. oo) Em 07 de agosto de 2020, procederam os técnicos ao serviço da R. à reparação provisória da caixa de proteção do ramal, deixando a instalação elétrica particular dos AA. ligada diretamente numa fase. pp) Posteriormente, em 10 de agosto de 2020, deslocou-se, uma vez mais, uma equipa ao serviço da R. à instalação elétrica particular dos AA., no âmbito do incidente n.º ...55. qq) Chegados ao local, verificaram os técnicos que se encontrava queimada uma segunda fase (fusível tipo gardy) em caixa de ferro. Foi realizada a reparação provisória, com a colocação de 3 bases 14/51 e 3 fusíveis cilíndricos 14/51 32 A. rr) Os técnicos que se deslocaram ao local realizaram medições na entrada da instalação elétrica particular dos AA., tendo verificado que os valores das três fases se encontravam dentro dos parâmetros indicados (232/228/234 e 405/408/407). ss) De seguida, comunicaram os técnicos aos AA. que existiria uma avaria na sua instalação, devendo estes, de molde a solucionar o problema, contactar um eletricista. tt) Em 31 de agosto de 2020, no âmbito da obra n.º ...96, procederam os técnicos ao serviço da R. à correção definitiva do ramal, tendo substituído o ramal existente por um ramal de LXS 4x156 e instalando uma nova portinhola. Factos não provados: 1- Não se provou que os AA. residem perto da arrecadação identificada em a). 2- Não se provou que objetivamente a linha aérea de transporte de eletricidade à propriedade dos AA. está sujeita a “picos de corrente” que danificam os elementos elétricos ali existentes. 3- Não se provou que tivesse ocorrido a possibilidade do incêndio referido em a) se propagar às restantes construções e à habitação própria dos AA.. 4- Não se provou que os cabos que transportam a eletricidade para a propriedade dos AA. se encontravam em avançado estado de degradação e latente falta de manutenção preventiva. 5- Não se provou que desde o posto de transformação situado no início da Rua ... até à propriedade dos AA., o cabo elétrico fornece mais de 12 habitações, todas edificadas após a dos AA.. 6- Não se provou que por diversas vezes antes da ocorrência dos incidentes relatados os AA. reportaram à R. as visíveis deficiências do cabo de condução de energia, nem que esta nada fez. 7- Nada se provou no sentido da R. ter procedido à substituição do cabo de condução de energia na sequência das comunicações efetuadas pelos AA. imputando-lhe responsabilidade na ocorrência dos sinistros. 8- Não se provou a objetiva má qualidade do cabo de condução de energia, nem a correspondente falta de segurança do mesmo. 9- Não se provou que a circunstância da propriedade dos AA. se localizar no extremo da rua e não haver “posto de transformação” em toda a extensão da rua, terá provocado “picos de tensão” o que, aliado ao facto dos cabos aéreos estarem em mau estado de conservação, causou aquecimento excessivo nos quadros elétricos e dano de tal forma grave que os mesmos entraram em combustão. 10- Não se provou que foi o mau estado dos cabos de transporte da baixa tensão que provocou uma variação de tensão elétrica no fornecimento de energia à propriedade dos AA. e que, consequentemente, resultou num sobreaquecimento do quadro elétrico provocando o incendio. 11- Não se provou que a génese da avaria se situou fora da rede elétrica interna dos AA.. 12- Não se provou que os incidentes identificados em a) e g) não resultaram da instalação elétrica existente dentro da sua propriedade. 13- Não se provou que os incidentes identificados em a) e g) resultaram da má qualidade da rede de distribuição da responsabilidade da R.. 14- Não se provou que o incidente registado sob o n.º 8268718 identificado em g) teve origem na rede pública de distribuição de energia elétrica. 15- Não se provou que durante o mês de julho de 2020 os AA. constataram que os disjuntores do seu contador disparavam constantemente provocando a falta de corrente elétrica nas várias fases e consequentemente em diversas zonas da propriedade. 16- Não se provou que nessa sequência contactaram o seu eletricista que em diversos dias e horas se deslocou à propriedade munido de voltímetro e ao medir a tensão sem consumo verificou que a tensão nas três fases estava baixa para os valores considerados normais e dentro dos limites de segurança, o que provoca sobreaquecimento dos equipamentos. 17- Não se provou que perante as anomalias e o perigo de sobreaquecimento, os A.A. alertaram o piquete da EDP que se deslocou ao local e procedeu à substituição dos fusíveis do quadro elétrico onde se verificava a anomalia de corrente com disparo das diferentes fases elétricas. 18- Não se provou que posteriormente, no dia 6 de agosto de 2020 se queimou a caixa do quadro da eletrobomba existente na propriedade dos AA., nem que tal situação foi comunicada e verificada pelos serviços técnicos da EDP que se deslocaram ao local. 19- Não se provou que os AA. tiveram que substituir a referida caixa da eletrobomba. 20- Não se provou que a falta de qualidade no fornecimento de eletricidade à propriedade dos AA. foi a causa das avarias detetadas em julho e agosto de 2020, nem dos estragos que se verificaram na instalação elétrica destes. 21- Não se provou que se verificasse fraca tensão e oscilações constantes no sistema trifásico da eletricidade fornecida pela R. B – O Direito 1. Os recorrentes alegam, nas conclusões da revista, que o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 674.º, n.º 1, al. b) e 640.º, ambos do CPC, argumentando que cumpriram o ónus de alegação, indicando os pontos da matéria de facto incorretamente julgados, os excertos dos depoimentos gravados relevantes, bem como a decisão de facto que, no seu entender, devia ser proferida. Na motivação do recurso, os recorrentes esclarecem o seguinte: «Vem o presente Recurso interposto do douto Acórdão que não deu provimento ao Recurso dos AA / Recorrentes, porquanto entenderam os Venerandos Juízes Desembargadores que aqueles não cumpriram o ónus que sobre si impendia, previsto no artigo 640º do Código de Processo Civil, ou seja, não procedem a uma análise critica da fundamentação do tribunal recorrido para que, se tivesse alcançado onde este teria errado na valoração da prova, limitando-se a transcrever as afirmações de duas testemunhas, sem analisar nem contraditar a apreciação crítica que o tribunal fez desses depoimentos, para formar a sua convicção». O acórdão recorrido quanto a esta matéria decidiu do seguinte modo: «A argumentação dos recorrentes assenta na invocação dos depoimentos das duas testemunhas indicadas. Os recorrentes não procedem a uma análise critica da fundamentação do tribunal recorrido de forma a que se possa alcançar onde este teria errado na valoração da prova, limitando-se a transcrever as afirmações das duas testemunhas, sem analisar nem contraditar a apreciação crítica que o tribunal fez desses depoimentos para formar a sua convicção. No tocante à testemunha CC alega que “declarou factos dos quais tem conhecimento direto e profissional contrários à apreciação da Meritíssima Juíza” mas não diz onde concretamente errou a apreciação do julgador. Quanto ao depoimento da testemunha DD limitam-se a transcrever o seu depoimento. Não basta a afirmação de uma determinada “conclusão”, “percepção” ou “interpretação”, por parte das testemunhas arroladas pelos apelantes, para o tribunal ter que aceitar as suas afirmações acriticamente. A análise crítica das provas, exigida pelo art. 607º nº 4, implica que o tribunal avalie os depoimentos das testemunhas, o que os recorrentes manifestamente não fizeram no recurso, mas o tribunal recorrido fez na sua fundamentação, conforme supra indicado. Pode haver e há vastas vezes discordância da convicção alcançada pelo julgador, mas essa discordância não é fundamento para a modificação da decisão. É que ao tribunal de recurso não cabe sindicar a convicção das partes, mas tão somente a do julgador. Analisada a fundamentação dada e considerando que o tribunal aprecia as provas livremente não vemos que haja sido cometido qualquer erro na decisão sobre a matéria de facto. Improcede assim o recurso de facto. O recurso de direito ancorava-se na modificação da matéria de facto. Improcedendo esta modificação e tendo a decisão feito uma correcta aplicação do direito aos factos, improcede a apelação». Antes de mais, cumpre referir que o acórdão recorrido, ainda que, formalmente, não rejeite o conhecimento do recurso da matéria de facto, com base na violação dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, a sua fundamentação deve ser interpretada nesse sentido, na medida em que discorreu acerca do ónus de impugnação da matéria de facto e concluiu que os recorrentes não o cumpriram por não terem procedido a uma análise crítica da prova que impugnaram. Veja-se o seguinte excerto do acórdão recorrido: «Na sequência do enquadramento que se deixou feito, entendemos que, incumbindo ao recorrente indicar quais os meios probatórios que impõem uma decisão diferente, também lhe incumbirá apontar as razões pelas quais os meios que o juiz indicou, como tendo estado na base da sua convicção e que fundamentam a resposta, devem ceder perante os elementos que o recorrente indica no recurso». O acórdão recorrido acabou, todavia, por se pronunciar sobre a procedência do recurso quanto à matéria de facto, procedendo a uma análise sumária da reapreciação da prova – «Analisada a fundamentação dada e considerando que o tribunal aprecia as provas livremente não vemos que haja sido cometido qualquer erro na decisão sobre a matéria de facto» – e concluindo pela improcedência do recurso, colocando em jogo a questão de saber se foi efetivamente observado um segundo grau de jurisdição da matéria de facto conforme exige o legislador à luz das regras consagradas no artigo 662.º e 607.º, n.ºs 4 e 5, ambos do CPC. Nesta sede, entendemos que se justifica analisar a decisão recorrida em duas vertentes: 1) saber se a interpretação do artigo 640.º do CPC adotada pela Relação está ou não de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça quanto aos ónus previstos na norma para a impugnação da matéria de facto; 2) analisar o modo como a Relação conheceu da matéria de facto para saber se foi respeitado o 2.º grau de jurisdição quanto à matéria de facto, conforme exigido pelo n.º 1 do artigo 662.º do CPC. 2. É entendimento geral neste Supremo Tribunal de Justiça que o ónus de alegação previsto no artigo 640.º do CPC se desdobra em três tipos: - a obrigação de indicação dos concretos pontos de facto impugnados, por se tratar de uma imposição de delimitação do objeto do recurso – al. a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC; - a obrigação de indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, bem como a exata indicação das passagens da gravação em que se funda o recurso, de forma a possibilitar o acesso mais facilitado aos meios de prova gravados pertinentes para a apreciação da impugnação da matéria de facto – al. b) do n.º 1 do artigo 640 e n.º 2 do citado preceito. - a obrigação de indicar a decisão que preconiza para as concretas questões de facto impugnadas – al. c) do n.º1 do art.º 640.º. Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-10-2015, Revista n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1: «I - Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº1 do art. 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes ( e que consta actualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC) . II - Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento complemente tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso». Na análise do cumprimento destes requisitos, devemos ter em consideração os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, com prevalência dos aspetos materiais sobre os aspetos formais (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-10-2015, Revista n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1 e de 18-01-2011, Revista n.º 701/19.0T8EVR.E1.S1 e Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 201 a 204), e, ainda, proceder a uma leitura concertada das alegações, apreciadas globalmente, e não apenas das respetivas conclusões (Ibidem, p. 205). Tem entendido de forma constante este Supremo Tribunal de Justiça que «(…) a rejeição da impugnação da matéria de facto pela Relação, com fundamento em incumprimento do ónus do art. 640º do CPC, pode, se tal rejeição for injustificada, configurar uma violação da lei processual que, por ser imputada à Relação, descaracteriza a dupla conforme entre as decisões das instâncias enquanto obstáculo à admissibilidade da revista» (cfr. Acórdãos de 17-12-2019, Revista n.º 363/07.7TVPRT-D.P2.S1 e de 03-11-2020, Revista n.º 294/08.3TBTND.C3.S1). In casu, importa verificar se o recorrente cumpriu o ónus primário e o ónus secundário, previstos no artigo 640.º do CPC, porque o acórdão recorrido apesar de não rejeitar o conhecimento da impugnação da matéria de facto de forma efetiva, entendeu que os recorrentes não cumpriram o ónus de proceder a uma análise crítica da prova prevista no artigo 607.º, n.º 4, do CPC. Ora, conforme facilmente se extrai da leitura do artigo 640.º do CPC, a lei não prevê qualquer ónus de análise crítica da prova como requisito da impugnação da decisão da matéria de facto. O que é exigível ao recorrente é, tão só, que indique os pontos concretos da matéria de facto que impugna, os meios de prova em que funda a sua discordância, e, caso haja prova gravada, as passagens que fundamentam essa impugnação, bem como a decisão que, na perspetiva do recorrente, deve ser proferida relativamente à matéria de facto impugnada. No sentido de o Tribunal da Relação, ao aferir da observância dos requisitos do artigo 640.º, não dever indagar das razões invocadas pelo recorrente para o resultado probatório que pretende, vide o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 17-12-2019, onde se estipulou que «O argumento expressamente avançado pelo acórdão recorrido para rejeitar conhecer parte da impugnação da matéria de facto não foi o incumprimento do ónus de alegação, dito primário, de especificação dos “concretos pontos de facto” considerados “incorrectamente julgados” (alínea a) do nº 1), nem dos “concretos meios probatórios” determinantes de decisão diversa (alínea b) do nº 1), nem ainda da “decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (alínea c) do nº 1), nem até mesmo do ónus, dito secundário, da indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso (alínea b) do n.º 2), mas antes a omissão das “razões pelas quais aqueles meios de prova conduzem à alteração pretendida”.» Prossegue o citado Acórdão afirmando que tal sentido interpretativo, de acrescida exigência, não encontra suporte nos elementos literal, sistemático ou teleológico da interpretação. Este é o entendimento que se afigura consonante com a orientação consolidada da jurisprudência do Supremo, segundo a qual o recurso quanto à matéria de facto deve ser admitido «(…)em todos aqueles casos em que o teor do recurso de apelação se mostra funcionalmente apto à cabal identificação da impugnação da matéria de facto e ao respectivo conhecimento sem esforço excessivo». 3. Regressando ao caso dos autos e compulsadas as alegações e as conclusões do recurso de apelação dos recorrentes (páginas 10 a 30 do corpo das alegações e pontos A) a D) e K) das conclusões), verificamos que os recorrentes identificaram, quer no corpo das alegações, quer nas conclusões, os concretos pontos de facto que entendem estar incorretamente julgados, bem como os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que exigem decisão de facto diversa da recorrida, e, também, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. No que respeita à prova testemunhal, os recorrentes indicaram, nas alegações de recurso, os depoimentos testemunhais em que baseiam o recurso, a sessão na qual foram prestados e o início e o termo das passagens da gravação dos testemunhos, fazendo ainda alusão ao conteúdo relevante do depoimento para o resultado probatório que defendem. Afigura-se, pois, que os pontos que os recorrentes focaram no seu recurso são suficientes para se considerar cumprido o ónus primário e o ónus secundário previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC, não sendo de impor aos recorrentes que procedam a uma análise crítica da prova, como se exige ao juiz para apreciar e reapreciar a prova nas instâncias nos termos do artigo 607.º do CPC A posição do tribunal recorrido, ao considerar incumprido o ónus do 640.º do CPC, por não terem os recorrentes apreciado de forma crítica a prova indicada para sustentar a alteração da matéria de facto, assenta numa interpretação excessivamente formalista do preceito. Neste sentido entendeu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-03-2023, Revista n.º 2093/21.8T8BRG.G1.S1 que as razões ou argumentos probatórios aduzidos no âmbito da impugnação da matéria de facto devem ser apreciados em sede de mérito e não como condições do conhecimento da modificação dos factos provados e não provados: «I - A rejeição do recurso em sede de impugnação da decisão de facto, ao abrigo do artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, só deve ocorrer quando dos termos em que a pretensão recursória vem formulada não resulte a identificação dos juízos probatórios visados, o sentido da pretendida decisão a proferir sobre eles nem a indicação dos concretos meios de prova para tal convocados, o que é bem diferente do que seria já uma envolvência no plano da apreciação do mérito sobre o invocado erro de julgamento. II - Uma coisa é a definição do objecto da impugnação deduzida e do alcance da alteração pretendida, bem como a indicação dos meios probatórios convocados, garantidas pela mencionada disposição legal; coisa diversa são as razões ou argumentos probatórios aduzidos nesse âmbito, seja qual for a sua densidade ou coerência, a apreciar, portanto, em sede de mérito». 4. O acórdão recorrido, depois de discorrer sobre o ónus de alegação previsto no artigo 640.º e sobre a rejeição da matéria de facto, acaba por reapreciar, de forma perfunctória, a prova, afirmando «Analisada a fundamentação dada e considerando que o tribunal aprecia as provas livremente não vemos que haja sido cometido qualquer erro na decisão sobre a matéria de facto. Improcede assim o recurso de facto». Todavia, a análise que o acórdão recorrido faz acerca do recurso da matéria de facto, pela sua generalidade a abstração, não garante o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, previsto no n.º 1 do artigo 662.º do CPC. A fundamentação da matéria de facto provada e não provada, com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objetividade e discriminadamente, de modo que as partes, destinatárias imediatas da decisão, saibam o que o tribunal considerou provado e não provado e qual a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo tribunal (artigo 607.º do CPC). É entendimento dominante neste Supremo Tribunal de Justiça que «Os poderes de reapreciação contidos no art. 662.º do CPC, traduzem um verdadeiro e efetivo 2.º grau de jurisdição sobre a apreciação da prova produzida, impondo-se, por isso, que a Relação analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si e contextualizando-as, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria convicção» (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-06-2021, Revista n.º 6640/12.8TBMAI.P2.S2 e de 05-07-2018, Revista n.º 2522/16.2TBBRG.G1.S1. A apreciação sumária e genérica, sem que tenha ocorrido uma análise de cada facto impugnado, em conjugação com os meios de prova indicados pelo recorrente e/ou outros que o tribunal recorrido entenda necessários, demonstra que não ocorreu no acórdão recorrido um verdadeiro exame crítico da prova. Só uma discriminada e completa fundamentação de facto, que demonstre uma efetiva reponderação da prova, assegura a transparência e a legitimidade da decisão judicial. No caso, o acórdão recorrido apenas proferiu uma declaração tabelar e genérica quanto à reapreciação da prova. Conforme já referido, a lei processual exige ao tribunal de 2.º grau, a fim de apurar se ocorreu erro de julgamento na apreciação da matéria de facto pela 1.ª instância, que proceda a um exame crítico da prova, individualizando os factos impugnados e contextualizando-os com a prova produzida e indicada pelo recorrente, de acordo com a sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC, conforme é imposto pelos poderes de reapreciação consignados no artigo 662.º do CPC. Resta, assim, concluir que, não tendo o Tribunal da Relação atuado em conformidade com o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, deve o acórdão recorrido ser anulado para que, baixando os autos à 2.ª instância, o Tribunal da Relação proceda, nos termos supra expostos, à reapreciação da prova produzida. 5. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC: I - Na análise do cumprimento do ónus de alegação quanto à impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 640.º do CPC, devemos ter em consideração os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, com prevalência dos aspetos materiais sobre os aspetos formais, e, ainda, proceder a uma leitura concertada das alegações, apreciadas globalmente, e não apenas das respetivas conclusões. II - A análise crítica da prova não constitui um ónus a observar pelo recorrente na impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 640.º do CPC, mas um dever do juiz, de acordo com o artigo 607.º, n.º 4, do CPC, na elaboração da sentença ou do acórdão. III - A apreciação sumária e genérica da prova, sem que tenha ocorrido uma análise de cada facto impugnado, em conjugação com os meios de prova indicados pelo recorrente e/ou outros que o tribunal recorrido entenda necessários, demonstra que não ocorreu no acórdão recorrido um 2.º grau de jurisdição quanto à matéria de facto, conforme exigido pelo artigo 662.º, n.º 1, conjugado com os n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC. III – Decisão Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça conceder o recurso de revista e anular o acórdão recorrido, determinando, para os devidos efeitos, a descida do processo ao Tribunal da Relação. Custas pela recorrida. Lisboa, 4 de julho de 2023
Maria Clara Sottomayor (Relatora) Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto) Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta) |