Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
38/22.7YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO CONTENCIOSO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: OFICIAL DE JUSTIÇA
RESIDÊNCIA
DOMICÍLIO PROFISSIONAL
PANDEMIA
COVID-19
SANÇÃO DISCIPLINAR
DIREITO DE DEFESA
PROVA
ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE FACTO
VIOLAÇÃO DE LEI
ANULABILIDADE
Data do Acordão: 07/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AÇÃO ADMINISTRATIVA
Decisão: JULGADA PROCEDENTE A ACÇÃO.
Sumário :
I - O dever especial de residência constante do art. 64.º, n.º 1, do EFJ determina que devendo os funcionários de justiça residir na localidade onde se encontra instalado o tribunal em que exercem funções ou em qualquer ponto da comarca sede do tribunal, se eficazmente servido por transporte público regular, possam residir em qualquer outra localidade desde que autorizados pelo Diretor-Geral dos Serviços Judiciários que apreciará se fica assegurado o cumprimento dos atos de serviço.
II - Tendo no período temporal de confinamento pandémico a autora - a exercer funções na Secretaria do Núcleo de Benavente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém com residência profissional em Vila Franca de Xira, da Comarca de Lisboa- Norte e com residência pessoal em Barcelos - solicitado à DGAJ informação sobre se podia realizar o teletrabalho no seu domicílio pessoal, se esta entidade informa que para esse assunto o competente é o Sr. Administrador do tribunal, informando este quando contactado pela autora não ser o competente para resolver essa matéria, não existe ilicitude na conduta da autora em realizar teletrabalho a partir de Barcelos, quando foi informada pelo sindicato de que o poderia fazer desde que comunicasse ao administrador, o que esta fez sem que este lhe tivesse referido que não estava autorizada a estar em Barcelos.
III - Não é censurável, em termos de culpa, que no período excecional de confinamento pandémico com a proibição de sair de casa e com a realização de teletrabalho a autora tenha suscitado a questão de saber se não obstante o disposto no art. 64.º do EFJ, naquelas condições excecionais de desempenho profissional, poderia realizar o teletrabalho a partir do seu domicílio pessoal, porque tendo colocado a questão à DGAJ esta entidade não afastou a razoabilidade da questão mas antes informou que esse assunto referente à prestação do trabalho em tempo de pandemia deveria ser solucionado pelo administrador do tribunal que, por sua vez, se declarou incompetente para o efeito.
Decisão Texto Integral:


Ação Administrativa nº 38/22.7YFLSB

Relator – Juiz Conselheiro Manuel Capelo

Adjunta – Senhora Juíza Conselheira Maria João Tomé

Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Rijo Ferreira

Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha

Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Ramalho Pinto

Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Orlando Gonçalves

Adjunto – Senhor Juiz Conselheiro Barateiro Martins

Presidente da Secção do Contencioso do STJ – Senhora Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Acordam no Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

A autora AA instaurou contra o Conselho Superior da Magistratura, ação administrativa de impugnação da deliberação do Conselho Plenário do Conselho Superior da Magistratura proferida em ........2022 que determinou “a sanção de multa que lhe foi aplicada pelo Conselho de Oficiais de Justiça, por violação do dever especial de residência previsto no art. 64.º, n.º 1 do Estatuto dos Funcionários de Justiça, no montante de € 108,38 (cento e oito euros e trinta e oito cêntimos), correspondente a 3 remunerações base diárias, suspendendo-se a mesma, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art.º 192 da LGTFP, pelo período de um ano.” pedindo que esta deliberação seja declarada nula ou anulada, ou revogada com prolação de outra que decida não sancionar disciplinarmente a A./recorrente, ou caso assim não se entenda, decida pela aplicação de repreensão escrita, tudo com as legais consequências.

Alega que a deliberação impugnada é nula por violar o dever legal de enunciar de forma clara, de modo a poderem determinar-se de forma inequívoca o seu sentido e alcance e os seus efeitos jurídicos. (art.º 151.º, n.º 1 e 2, 153.º, n.º 2, 161.º do CPA), ou no mínimo é anulável (art.º 162.º CPA);

é nula por contradição entre os fundamentos e a decisão, nomeadamente no que concerne ao elemento subjetivo da infração disciplinar (art.º 151.º, n.º 1 e 2, 153.º, n.º 2, 161.º do CPA) ou, no mínimo, é anulável (art.º 162.º CPA);

é nula por contradição entre os fundamentos, e entre os fundamentos e a decisão. (art.º 151.º, n.º 1 e 2, 153.º, n.º 2, 161.º do CPA) ou no mínimo é anulável (art.º 162.º CPA);

é nula por nada referir sobre os requerimentos probatórios formulados no recurso hierárquico interposto pela A. para o CSM, omitindo a realização dessas diligências essenciais para a descoberta da verdade, como se não tivessem sido requeridas, o que constitui nulidade, entre outros, art.º 123.º do EMJ, art.º 203.º LGTFP;

é nula por violação do art.º 97.º do DL n.º 343/99, de 26 de Agosto (Estatuto dos Funcionários de Justiça), bem como por violação do art.º 125.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas).

Não se encontra preenchido o elemento subjetivo referente à infração disciplinar contida no art. 64.º, n.º 1 do EFJ, pelo que, a deliberação impugnada incorreu em erro sobre os pressupostos de facto, sendo a mesma anulável (art.º 163.º, n.º 1 do CPA);

A deliberação impugnada errou sobre os pressupostos de direito.

Não se verifica cumprido o dever legal de individualização ou discriminação dos factos que se tenham por averiguados e disciplinarmente puníveis, com a indicação das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que foram cometidas e com referência aos preceitos legais e às penas aplicáveis, pelo que a deliberação impugnada (e bem assim a acusação) padece(m) de nulidade, a qual é insuprível

A deliberação impugnada conduz a resultados irrazoáveis, injustos e que chocam com o senso comum, pelo que, a deliberação impugnada violou, pois, os princípios da proporcionalidade, da adequação, justiça e razoabilidade, previstos no n.º 2 do artigo 26. da CRP e artigos 7.º e 8.º do CPA.

O réu contestou sustentando a inexistência das nulidades arguidas e vícios apontados.

… …

Fundamentação

Está provada a seguinte matéria de facto:

25.º A Sr.ª Escrivã AA tem domicílio profissional em ... e residência pessoal em ..., a cerca de 350 Km do Núcleo de ...

26.º No mês de ... a Sr.ª AA comunicou ao Sr. Administrador Judiciário que não dispunha de equipamento para teletrabalho, tendo este sugerido três soluções, a primeira solicitar equipamento à DGAJ (e internet), a segunda que a Trabalhadora solucionasse o problema, e como terceira, que a mesma passasse a efetuar trabalho presencial.

27.º A Sr.ª AA começou a trabalhar utilizando a “internet” do seu telemóvel.

28.º Após a Sr.ª Escrivã BB ter descoberto que a Sr.ª AA estava em teletrabalho fora da comarca, começou a existir um mal-estar entre ambas.

9.º Em várias mensagens, a Sr.ª Escrivã questiona a Sr.ª AA acerca do local onde esta se encontrava a trabalhar, a partir de casa, aconselhando-a a proceder de acordo com as diretivas vigentes e alertando-a até para o risco de acidente 30.º Em momento não concretamente apurados, a Sr.ª Escrivã BB referiu à Sr.ª AA que, para estar fora da comarca em teletrabalho teria que ter autorização da DGAJ ou do Sr. administrador.

31.º No dia ...-...-2020, a Sr.ª Escrivã Auxiliar AA solicitou à DGAJ através de e-mail dirigido aos Recursos Humanos informações acerca da possibilidade de exercer o teletrabalho a partir da residência de .... Pergunta igualmente se existem impedimentos a que a mesma trabalhe na sua residência em ..., que estava dotada de todas as condições.

32.º Em resposta, igualmente por correio eletrónico, a Sr.ª AA foi informada que deveria colocar a questão junto do Sr. Administrador Judiciário da Comarca de Santarém, pois seria este o competente para decidir sobre questões de quarentena teletrabalho e todas as demais questões em que se justifique, no âmbito das MEDIDAS COVID-19

33.º A Sr.ª AA contactou telefonicamente com o Sr. CC, Ex- Presidente do SFJ, que lhe terá referido que esta poderia trabalhar de qualquer sítio, desde que efetivamente trabalhasse.”

34.º Sabendo que não estava autorizada a efetuar teletrabalho fora da comarca a Sr.ª Escrivã Auxiliar AA comunicou, em ........2020, ao Sr. Administrador Judiciário, que nos períodos em que estivesse em teletrabalho estaria na sua residência em ....”

35.º Em ...-...-2020, o Sr. Administrador Judiciário proferiu despacho a informar a Sr.ª AA do regime dos acidentes de trabalho e do dever de residência a que a trabalhadora está adstrita, declarando não dispor de competência para autorizar a residência da trabalhadora fora da comarca, sugerindo que a mesma enviasse exposição à Exma. Diretora Geral da Administração da Justiça

36.º No dia ...-...-2020, a Escrivã Auxiliar DD informou a Administração da Comarca que o seu filho tinha tido contacto direto com uma pessoa infetada com “COVID 19” e o Sr. Administrador da Comarca determinou que esta fosse para casa em teletrabalho

37.º Igualmente determinou que a Sr.ª EE fosse igualmente para casa e o Sr. FF, que não efetua teletrabalho, ficasse a trabalhar num local isolado. – Permanecendo o Sr. GG, que não tinha contacto com a Sr.ª DD

38.º Determinou igualmente que fossem chamados os funcionários que se encontravam em teletrabalho, para substituir os funcionários que passaram a exercer funções a partir de casa

39.º A Sr.º HH telefonou à Srª AA que não atendeu e depois, por SMS, pelas 10:09 horas a solicitou a sua presença imediata no Tribunal, atendendo a que existiam diligências agendadas para esse dia

40.º Em resposta, por mensagem pelas 10:25 horas, a Sr.ª AA confirmou por SMS referindo, “mas demoro o meu tempinho a chegar”

41.º Com a ausência “preventiva e forçada” das duas Escrivãs Auxiliares, só restava a Escrivã AA

42.º A Sr.ª AA estava em ... e chegou ao Tribunal pelas 16:30 horas, com maus modos a acusar os colegas, referindo que estava cansada, indignada, acusando os colegas de ser covardes uns para os outros

43.º Questionada pela M. Juiz 2 Dr.ª II, que se encontrava presente na secção, acerca da demora a chegar ao Tribunal, a Sr.ª AA respondeu que se encontrava em teletrabalho em ... e teve de se deslocar em transportes públicos

44.º A Dr.ª II informou-a de que já não era necessário realizar os julgamentos, pois os processos já estavam despachados (sem consequências para os intervenientes)

45.º Em resposta, a Sr.ª AA referiu que nesse caso não tinha valido a pena ter vindo.

46.º De seguida, a Sr.ª Juiz referiu que a sua presença seria necessária nos 3 dias seguintes (quarta, quinta e sexta), pois existiam julgamentos marcados.

47.º Nesse momento, a Sr.ª Escrivã BB questionou a Sr.ª AA acerca da autorização para estar em teletrabalho em ... e esta informou que tinha efetuado um requerimento e que tinha solicitado informações a um sindicato, que lhe terá respondido que poderia estar em ...

48.º A Sr.ª Escrivã questionou-a se tinha colocado a questão em concreto, tendo esta referiu que sim.

49.º A Dr.ª II disse à Sr.ª AA que se calhar deveria ter esperado uma resposta oficial.

50.º Na página eletrónica da direção Geral da Administração da Justiça, acessível a todos os funcionários, nas Perguntas Frequentes consta:

Sou oficial de justiça em teletrabalho não estando escalado para trabalho presencial.

Qual o domicílio onde devo permanecer?

Estando em teletrabalho, o oficial de justiça encontra-se no exercício efetivo das suas funções, pelo que se encontra sujeito ao dever estatutário de residir até 90 minutos da secretaria do tribunal

51.º Os oficiais de justiça em regime de teletrabalho continuam obrigados ao dever de residência, não se podendo ausentar da localidade de residência, sem a respetiva autorização nos termos do art.º 64.º do Estatuto dos Funcionários de Justiça, aprovado pelo Dec. Lei 343/99 de 26.08

(…)

131.º A Sr.ª Escrivã Auxiliar refere que a sua deslocação para a sua residência em ... foi devida a uma situação excecional, decorrente da pandemia e potenciada pelo facto de se encontrar emocionalmente fragilizada, por viver sozinha num quarto arrendado.

132.º Que previamente à decisão de se ausentar tentou informar-se sobre a legitimidade da ausência tendo ficado convicta, à data, da inexistência de impedimentos para essa ausência.

… …

Apreciando a questão suscitada observamos que a autora argui a nulidade da deliberação em dois temas distintos: o referente ao conteúdo do ato impugnado na dimensão da sua obscuridade, contradição entre fundamentos/ decisão e erro sobre os pressupostos e o que respeita à dimensão procedimental imputando a omissão de realização de diligências essenciais para a descoberta da verdade ainda violação do direito de defesa previsto no art. 97.º do DL n.º 343/99.

Quanto ao segundo grupo das nulidades arguidas a autora sustenta que na altura em que apresentou a sua defesa se encontrava doente e incapacitada para o fazer.

Neste âmbito o art. 215 da LGTFP estabelece que “1- Quando o trabalhador esteja incapacitado de organizar a sua defesa por motivo de doença ou incapacidade física devidamente comprovadas, pode nomear um representante especialmente mandatado para o efeito.

2- Quando o trabalhador não possa exercer o direito referido no número anterior, o instrutor nomeia-lhe imediatamente um curador, preferindo a pessoa a quem competiria o acompanhamento, se este fosse requerido nos termos da lei civil.

4- Quando o instrutor tenha dúvidas sobre se o estado mental do trabalhador o inibe de organizar a sua defesa, solicita uma perícia psiquiátrica nos termos do n.º 6 do artigo 159.º do Código de Processo Penal, aplicável com as necessárias adaptações.”

O art. 97 do EFJ prevê que “ 1- Se o arguido estiver impossibilitado de elaborar defesa, por motivo de ausência, doença, anomalia mental ou incapacidade física, a entidade que tiver instaurado o processo disciplinar requer à ordem dos Advogados a nomeação de um defensor.

2- Quando o defensor for nomeado em data posterior à da notificação da acusação, reabre-se o prazo para defesa com a sua notificação.

Para fundamentar o alegado a autora juntou declarações clínicas de ........2022; outra de ... de ... de 2022 e outra de ... de ... de 2021, que já havia sido junta quando apresentou a defesa (cf. Fls. 340) .

Da consulta dessas declarações não se extrai qualquer impossibilidade do exercício do direito de defesa, aquando da notificação da acusação no âmbito do procedimento disciplinar, ocorrida em ........2021 e nada permite concluir que a autora se apresentasse num estado notório de incapacidade que determinasse por parte do COJ a realização das diligências prescritas no art. 97 nº 1 do EFJ, ou a necessidade de ser determinada a realização de uma perícia psiquiátrica. Em rigor, tais declarações apenas permitem concluir que a autora desde ... de ... de 2020 solicitou apoio clínico, que lhe foi aconselhado e prescrito e que foi seguida em clínica desde ... de ... de 2020 o que em termos lógicos e cronológicos não evidencia qualquer impossibilidade de defesa. Por outro lado, a defesa apresentada em ato sequente ao da acusação não revela qualquer incongruência (mas antes adequada e coerente estrutura) e de tal maneira evidenciava logicidade que foi determinada a suspensão da sanção. Neste mesmo sentido de apreciação se pronunciam entre outros os acs. do STA 04-11-2003 no processo n.º 48169 ou do TCA de 24-5-2001 no proc. 2817/99.

Acresce, quanto à junção dos documentos/ declarações que é de acolher o que se refere na contestação no sentido de a acusação ter sido notificada à autora em ...-...-2021 e tendo aquela apresentado a sua defesa em ...-...-2021 a sua defesa, tal implica que as diligências probatórias pretendidas poderiam e deveriam ter sido juntas atempadamente, durante a fase de defesa do trabalhador conforme se refere no artigo 216.º da LGTFP não sendo admissíveis nos termos do 226.º da LGTFP, por não compreenderem novos meios de prova, que não pudessem ter sido requeridos ou utilizados em devido tempo e isto porque “o impugnante do ato pode instruir o recurso administrativo com novos documentos ou requerer a realização de novas diligências probatórias, desde que a anterior não junção do documento ou a não solicitação da diligência não lhe possa ser imputável, designadamente por se tratar de um documento superveniente (no sentido de que só depois de apresentada a defesa chegou ao conhecimento do arguido ou passou a ter existência ou de uma diligência que só posteriormente se revelou necessária.

Em qualquer dos casos, nunca o documento ou a diligência podem deixar de estar relacionados com a prova de factos constantes da acusação ou da defesa, pois nesse caso serão irrelevantes para a boa decisão do recurso” - Paulo Veiga e Moura e Cátia Arrimar – Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas – 1.º Volume Artigos 1.º a 240.º, 1.ª Edição, novembro 2014, Coimbra Editora, página 632.

Num outro segmento a autora argui a nulidade de omissão de realização de diligências essenciais para a descoberta da verdade, mas também neste domínio não lhe assiste razão.

Sobre a admissibilidade de novas diligências probatórias no âmbito do recurso hierárquico, dispõe o 197 n.º 3 do CPA que “o órgão competente para decidir o recurso pode, se for caso disso, anular, no todo ou em parte, o procedimento administrativo e determinar a realização de nova instrução ou de diligências complementares”. Todavia esta admissibilidade de novas diligências probatórias encontra-se dependente da anulação da decisão de 1.º grau (no todo ou em parte), podendo ser acompanhada da determinação da realização de nova instrução ou de diligências complementares, o que não sucede no caso em presença não existindo neste particular qualquer preterição do direito de audiência da Autora, nem a omissão de diligências que, na sua ótica, eram relevantes para a descoberta da verdade.

… …

Abordando agora as questões suscitadas pela autora e dirigidas à substância do ato impugnado, por referência à matéria de facto sobre a qual assenta a deliberação proferida, uma primeira e necessária observação revela que a deliberação impugnada é o que sobreviveu a uma atividade investigatória abundante tendo por base a imputação de diversas outras infrações que foram consideradas infundadas.

Por outro lado, tem-se presente que, como o STJ vem afirmando, ainda que sem unanimidade, nenhuma disposição legal lhe impõe o conhecimento de matéria de facto e, por regra, o âmbito do seu poder cognitivo está restrito à reapreciação da matéria de direito quando funciona como órgão jurisdição do contencioso administrativo, no julgamento de deliberações do CSM. A impugnação do ato administrativo tem por objeto a anulação ou a declaração de nulidade ou inexistência desse ato (art 50 nº 1, do CPTA), pois consiste num procedimento contencioso de anulação, havendo que apurar se existem vícios da deliberação em causa, que sejam decisivos para a sua anulação, declaração de nulidade ou inexistência (art. 95.°, n.º 2 do CPTA).

Por outro lado, a CRP não assegura um duplo grau de jurisdição administrativa e o EMJ também não. Daí que prevendo inicialmente o EMJ no seu art. 165 que das deliberações do C. Permanente do CSM haja reclamação – não um recurso – para o Plenário do mesmo órgão, tal significava, em termos práticos, que eram as deliberações do Plenário que davam ao visado o ensejo de requerer a tutela jurisdicional efetiva que a Lei Fundamental garante em termos de reponderação ponderação da matéria de facto. E mesmo que o art. 165 do EMJ (entretanto revogado pelo/a artigo 8.º da Lei 67/2019, em vigor a partir de 2020-01-01) tenha visto a sua disciplina rearrumada no art. 167 nº2, haverá fundamento para continuar a entender (quem o entenda) que na ação administrativa neste Contencioso do STJ pode não haver lugar, por regra, a produção de prova, devendo sublinhar-se que o art. 121-A do EMJ, no lugar em que se encontra inserido e em leitura cuidada diz respeito à impugnação imediata da decisão proferida no procedimento disciplinar e não à deliberação do CSM.

Ora, cabendo ou não em tese à Secção do Contencioso do STJ o controlo sobre a matéria de facto fixada, é pacifico que em qualquer circunstância sempre deverá ser apreciada a existência de evidente e grosseira distorção da realidade o que constitui uma salvaguarda de certeza e segurança jurídicas porquanto, tem ( o Contencioso do STJ) não só a possibilidade mas também o dever de realizar a leitura dos factos que tenham sido considerados provados e de os interpretar sem quaisquer limitações, sendo nesta interpretação e não na produção de prova que se suscitam nesta ação as questões enunciadas pela autora.

… …

Feita esta advertência, tendo sido deliberado pelo Conselho de Oficiais de Justiça que a autora violou o dever especial de residência previsto no art. 64 nº 1 do Estatuto dos Funcionários de Justiça, o que desde logo verificamos é que não se definiu nem identificou concretamente a data em que tal situação teve início e ou terminou.

Dos factos provados, nos números 26 a 40, apenas se retira com certeza e segurança que a autora começou a trabalhar utilizando a “internet” do seu telemóvel, não se sabendo nem podendo saber, porque não ficou provado nem tal se obtém por presunção, onde e desde quando (mesmo que se aceite por implícito que tal correspondia a trabalhar à distância). E de igual, tendo ficado provado que quando a srª escrivã descobriu que a autora estava em teletrabalho fora da comarca em várias mensagens a questionou (à autora) acerca do local onde esta se encontrava a trabalhar, aconselhando-a a proceder de acordo com as diretivas vigentes, desconhece-se em absoluto e sem possibilidade de conhecer em que data a escrivã fez aquela descoberta e, mais importante, em que período se desenrolou a troca de mensagens, podendo ter-se por seguro, mas apenas por ser lógico e coerente, que nessa altura a autora estaria em teletrabalho em ....

O primeiro elemento concreto que a prova fornece em termos de definição temporal é o de, em ...-...-2020, a autora ter solicitado à DGAJ, através de e-mail dirigido aos Recursos Humanos, informação sobre a possibilidade de exercer o teletrabalho a partir da residência de .... E que obteve por resposta que deveria colocar a questão junto do Sr. Administrador Judiciário da Comarca de Santarém, pois seria este o competente para decidir sobre questões de quarentena teletrabalho e todas as demais questões em que se justifique, no âmbito das MEDIDAS COVID-19, revelando ainda a prova que a autora, comunicou em ........2020, ao Sr. Administrador Judiciário, que nos períodos em que estivesse em teletrabalho estaria na sua residência em .... A primeira referência de tempo datada que certifica a autora em ... é a que resulta da conjugação da data de solicitação de informação à DGAJ em ...-...-2020 com a da comunicação que ela faz ao administrador em ... de ... de 2020. Assim, podemos considerar como certo que em ... de ... de 2020 a autora se encontrava em teletrabalho em ... e que, após a srª escrivã ter descoberto que a autora estava em teletrabalho fora da comarca, começou a existir um mal-estar entre ambas, mal estar que de acordo com as regras de experiência comum exercidas sobre os factos provados, na sua totalidade, tem por causa a oposição e a vontade de a srª escrivã pôr termo a essa situação. No entanto, a srª escrivã nunca ordenou à autora que comparecesse para serviço no tribunal (por tal nunca ter sido necessário) e esta manteve-se (pelo menos desde ... de ... de 2020) em teletrabalho em ..., com um desempenho real de resultado igual ao que ocorreria se estivesse em qualquer outro lugar a menos de 90 minutos do seu local de trabalho.

Ocorre que, em ...-...-2020, a srª escrivã contactou a autora para que esta comparecesse imediatamente no Tribunal porque existiam diligências agendadas para esse dia e era ela a única funcionária disponível. Tendo sido chamada para comparecer às 10.09 h e comparecendo apenas às 16.30 h, sem que afinal essa presença tenha sido necessária porquanto os processos já estavam despachados sem terem reclamado o secretariado da autora, os factos revelam uma falta de comparência tempestiva no tribunal determinada pela circunstância de a autora se encontrar em ....

O art. 64 nº1 e 2 do Estatuto dos Funcionários de Justiça estabelece que os funcionários de justiça devem residir na localidade onde se encontra instalado o tribunal em que exercem funções, podendo, todavia, fazê-lo em qualquer ponto da comarca sede do tribunal, desde que eficazmente servido por transporte público regular ou em qualquer outra localidade quando autorizado pelo diretor-geral dos Serviços Judiciários, desde que fique assegurado o cumprimento dos atos de serviço. E o Ofício-Circular n.º 54/91 da DGAJ esclarece que “a autorização de residência fora da comarca em que o funcionário presta serviço será concedida desde que fique assegurado o rigoroso cumprimento dos atos de serviço e o funcionário comprove (mediante envio do horário dos transportes a utilizar)que o tempo percorrido entre o local de residência e a localidade de trabalho não excede uma hora e meia”.

Ora, encontrando-se a autora em ... no dia ... de ... de 2020, tendo sido chamada para comparecer no tribunal e apenas se apresentando às 16.30 h, esta factualidade que inscreve, numa observação comum, um atraso/falta ao serviço ou, na aceção da deliberação impugnada, uma violação do dever especial de residência, deve ser analisada para efeitos disciplinares não só objetivamente, mas também no seu elemento subjetivo (na culpa) pois sem ele não há fundamento para aplicar uma sanção.

Neste aspeto da culpa a prova dá por demonstrado que após a srª escrivã ter descoberto que a autora se encontrava em teletrabalho em ... começou a existir mal estar entre ambas; na sequência desse mal estar a srª escrivã advertiu a autora de que para estar fora da comarca em teletrabalho teria de ter autorização da DGAJ; em ...-...-2020 a autora solicitou à DGAJ através de e-mail dirigido aos Recursos Humanos informações acerca da possibilidade de exercer o teletrabalho a partir da residência de ..., perguntando igualmente se existiam impedimentos a que trabalhasse na sua residência em ..., que estava dotada de todas as condições. Em resposta a autora foi informada que deveria colocar a questão junto do Sr. Administrador Judiciário da Comarca de Santarém, pois seria este o competente para decidir sobre questões de quarentena, teletrabalho e todas as demais questões em que se justifique, no âmbito das MEDIDAS COVID-19.

A autora contactou telefonicamente com o Sr. CC, Ex- Presidente do SFJ, sendo informada que poderia trabalhar de qualquer sítio, desde que efetivamente trabalhasse e em ........2020 comunicou ao administrador judiciário, que nos períodos em que estivesse em teletrabalho estaria na sua residência em ....

Em ...-...-2020, o administrador proferiu despacho a informar a autora do regime dos acidentes de trabalho e do dever de residência a que a trabalhadora está adstrita, declarando não dispor de competência para autorizar a residência da trabalhadora fora da comarca, sugerindo que a mesma enviasse exposição à Exma. Diretora Geral da Administração da Justiça

A análise desta factualidade recomenda critério de lógica, razoabilidade e segurança uma vez que existe na redação dos factos provados matéria que apenas um exercício de interpretação coerente dos mesmos pode esclarecer.

Fez-se constar no ponto 33 dos factos provados que A Sr.ª AA contactou telefonicamente com o Sr. CC, Ex- Presidente do SFJ, que lhe terá referido que esta poderia trabalhar de qualquer sítio, desde que efetivamente trabalhasse.

E no ponto 47 desse mesmo elenco de factos provados, que Nesse momento, a Sr.ª Escrivã BB questionou a Sr.ª AA acerca da autorização para estar em teletrabalho em ... e esta informou que tinha efetuado um requerimento e que tinha solicitado informações a um sindicato, que lhe terá respondido que poderia estar em ....

Na redação destes dois pontos a alusão ao pedido de informação solicitado pela autora ao sindicato tem-se por certo que esse contacto foi realizado, mas quanto ao resultado/informação esses pontos referem que “terá dito” e “terá respondido” o que suscita como essencial saber o que se pode tomar como provado. Defendendo a autora que deve considerar-se provado que o ex-presidente do SFJ informou conforme referido nesses pontos e sustentando o réu que não se pode considerar provada essa informação porque na redação se fez constar terá dito e não disse ou terá respondido e não respondeu.

Tendo presente os critérios de atenção, razoabilidade, segurança e lógica antes reclamados, a realidade julgada como provada que se incluiu nesses números tem por utilidade fornecer os elementos relevantes, coerentes e seguros para a decisão. Se as expressões, terá dito e terá respondido, não significarem disse e respondeu nenhuma relevância e coerência teriam para ser incluídas. Os factos provados não servem para que neles se exponha e transcreva o que alguém, mesmo a autora, declarou ter acontecido (assim seriam inúteis) mas servem para declarar como provado o que mediante a prova e um juízo de convicção valorativa do julgador este entende que ocorreu. Para fazer constar simplesmente o que a autora declarou numa forma de discurso indireto quanto à existência de contacto com o ex-Presidente do SFJ, esses dois factos seriam prejudiciais porquanto não acrescentariam nada de útil e provocariam confusão, devendo os factos que constam nos provados ser analisados e interpretados de forma lógica, razoável, esclarecida e coerente.

Procedendo a uma análise com estas características, é inquestionável que os factos em questão declaram como provado que a autora contactou o ex-presidente do sindicato. Sendo assim, fazer constar o que este terá dito ou terá referido só pode aceitar-se como confirmação de que a resposta obtida pela autora foi a de que poderia trabalhar de qualquer sítio, desde que efetivamente trabalhasse e que poderia estar em .... E sendo a autora o único elemento de prova sinalizado quanto ao contacto realizado, tendo este sido julgado como provado apenas se pode retirar como lógico e coerente que também a resposta foi a que consta desses factos, devendo ter-se por certo, sem necessidade de alteração da prova, mas apenas interpretando-a, quer o contacto feito quer a resposta que obtida.

Argumenta a ré que as expressões (dubitativas) constantes dos factos 33 e 47 são as corretas porque apenas a autora afirmou tal factualidade, não sendo corroborada por qualquer outro meio de prova. Porém, como se deixou dito e ora repete, se apenas a autora o afirmou e o julgador (eventualmente com base nessa única declaração, o que agora não importa porque nãos e trata de alterar a matéria de facto) firmou como provado esse contacto que a autora fez, nenhuma razão se pode opor a que aceitando como provado o contacto não se tenha como provado o que nele foi dito, que a autora também declarou e se fez constar nos factos provados

Assim, pelo exposto, estando provado o contacto está também provado por lógico, razoável, coerente e seguro o teor da resposta obtida com esse contacto sem que tal possa ser perturbado pela semântica. Mas, mesmo que apenas fosse considerado como provado que a autora fez o contacto sem que se soubesse que resposta teria sido dada, na análise do elemento subjetivo a prova fornece para a decisão matéria mais relevante e decisiva.

Recorrendo de novo aos factos provados, está demonstrado que em ...-...-2020, a autora solicitou à DGAJ através de e-mail dirigido aos Recursos Humanos informações acerca da possibilidade de exercer o teletrabalho a partir da residência de ... e obteve como resposta ser o administrador Judiciário da Comarca de Santarém o competente para decidir sobre essa questão cuja resposta solicitava. Nesta sequência cronológica, depois de contactar o ex-presidente do SFJ a autora comunicou ao administrador judiciário, que nos períodos em que estivesse em teletrabalho estaria na sua residência em ... tendo este respondido com a informação do regime dos acidentes de trabalho e do dever de residência a que a trabalhadora está adstrita, declarando não dispor de competência para autorizar a residência da trabalhadora fora da comarca, sugerindo que a mesma enviasse exposição à Exma. Diretora Geral da Administração da Justiça.

Desta matéria resulta que a autora diligenciou no sentido de obter junto da DGAJ informação sobre se podia realizar teletrabalho a partir de ..., obtendo desse organismo como resposta que o competente para decidir era o administrador judiciário. Por sua vez, dirigindo-se ao administrador para lhe comunicar que nos períodos em que estivesse ausente estaria em teletrabalho a partir de ..., o que obtém deste é a declaração de não ser competente para essa matéria sugerindo que enviasse uma exposição à DGAJ que, afinal, tinha sido a entidade que tinha indicado o administrador como o competente para decidir e esclarecer o que ela pretendia saber.

Pode pretender concluir-se que o comportamento do administrador judiciário, no conhecimento direto de que a autora estaria em teletrabalho a partir de ... foi de não a autorizar, por se afirmar incompetente para decidir e remeter para a DGAJ a solução desse assunto, todavia não pode acolher-se esse entendimento porque o administrador não informou a autora de que não poderia estar em teletrabalho a partir de ... pois apenas lhe sugeriu que colocasse a questão através de exposição à DGAJ. Se a informação do administrador não especificava que a autora não dispunha de autorização para residir em ... não pode retirar-se dessa informação que o que estava a ser dito à autora era que não podia permanecer em .... Ao inverso, o convencimento razoável que poderia retirar era o de lhe ser permitido estar em ... porque o administrador indicado como o competente para essa matéria pela DGAJ descartava essa competência e a devolvia àquela outra entidade. Só que, tendo a autora solicitado anteriormente à DGAJ informação sobre quem decidia sobre esse assunto, com a resposta que obteve só poderia tirar como conclusão que a resposta era a de não lhe ser de todo impossível trabalhar a partir de ..., embora nenhum dos apontados decisores assumisse a responsabilidade e a competência para decidir .

Dispondo o art. 64 nº1 e 2 do Estatuto dos Funcionários de Justiça que os funcionários de justiça devem residir na localidade onde se encontra instalado o tribunal em que exercem funções, podendo, todavia, fazê-lo em qualquer ponto da comarca sede do tribunal, desde que eficazmente servido por transporte público regular ou em qualquer outra localidade, quando autorizado pelo Diretor-Geral dos Serviços Judiciários, desde que fique assegurado o cumprimento dos atos de serviço, o ofício circular nº 54 de 1991 da DGAJ esclareceu que “a autorização de residência fora da comarca em que o funcionário presta serviço será concedida desde que fique assegurado o rigoroso cumprimento dos atos de serviço e o funcionário comprove (mediante envio do horário dos transportes a utilizar) que o tempo percorrido entre o local de residência e a localidade de trabalho não excede uma hora e meia”.

Por outro lado, no período da pandemia/confinamento, a todos os títulos excecional, foi estabelecida como regra a necessidade de fazer estar longe dos locais de trabalho e confinados nas respetivas casas todos aqueles que não fossem estritamente necessários e imprescindíveis à realização dos serviços prioritários, sendo neste particular a experiência dos tribunais reveladora, com a suspensão de todos os serviços não urgentes e inclusivamente a suspensão dos prazos. E lembre-se por notória a dificuldade de definição que ocorreu nesse tempo a propósito das inúmeras leis excecionais e do conceito de teletrabalho obrigatório.

Posto isto, se o art. 64 do EFJ estabelece que a autorização para residir fora da comarca é concedida pelo Diretor-Geral dos Serviços Judiciários e se a autora solicitou em período de confinamento COVID à DGAJ informação sobre como deveria proceder e a quem se dirigir para saber se podia teletrabalhar a partir da sua casa pessoal e familiar em ..., se obteve como resposta que seria o administrador o competente, deve decidir-se que sentido e significado dar ao facto de o administrador a quem a autora se dirigiu ter descartado essa competência, remetendo-a para a DGAJ que, por sua vez, tinha previamente informado a autora ser o administrador o competente.

Com a colocação do problema neste contexto temporal, factual e normativo observa-se que o ponto 132 dos factos provados dá por demonstrado que a autora “previamente à decisão de se ausentar tentou informar-se sobre a legitimidade da ausência tendo ficado convicta, à data, da inexistência de impedimentos para essa ausência.

Diz-se em adverso que esse facto reporta ao momento em que a autora alega ter solicitado informação ao sindicato sobre a possibilidade de “prestar teletrabalho na [sua] residência em ...” certo que à dataou seja, quando colheu tal informação - tinha ficado convencida que poderia desempenhar funções noutro domicílio que não o domicílio profissional, pelo que o facto em causa tem correspondência com a realidade, reportando-se a um determinado e concreto período temporal. Estando provado que à data a autora ficou convencida da inexistência de impedimentos para estar em ..., afinal, esse convencimento teria deixado de existir depois dessa “á data” e designadamente com o ofício do administrador.

Na cronologia que os factos provados permitem, em ...-...-2020 a autora solicita informação à DGAJ recebendo a resposta; a seguir contacta o ex-presidente do SFJ; a seguir, em ........2020 comunica ao administrador que realizará o teletrabalho a partir ... e em ...-...-2022 o administrador responde que não é o competente para esses assuntos. O argumento de a autora, depois do contacto com o sindicato, ter desencadeado um conjunto de ações no sentido de ser esclarecida sobre o impedimento legal da realização de teletrabalho junto do seu domicílio fiscal não colhe fundamento porque, depois desse contacto (com o sindicato), a autora que já havia contactado a DGAJ apenas fez a comunicação ao administrador que, por sua vez, não a informou de não estar autorizada a teletrabalhar a partir de ... enquanto não tivesse autorização da DGAJ para residir fora da comarca.

A leitura do ponto 132 dos factos provados deve fazer-se com a do 131 onde se deixou assente que “ a srª escrivã auxiliar refere que a sua deslocação para a residência em ... foi devida a uma situação excecional, decorrente da pandemia e potenciada pelo facto de se encontrar emocionalmente fragilizada por viver sozinha num quarto arrendado.”

Uma vez mais se sublinha a particularidade de se fazer constar num facto provado o que a autora referiu sem que, neste caso se possa retirar dessa matéria alguma demonstração da realidade. Dizer-se que a autora referiu o que se transcreve e não se dar como provado nada do que é referido a não ser que foi dito (ao contrário no ponto 33 e 47 o contacto com o ex-presidente do SFJ foi dado como provado) não tem qualquer utilidade probatória não se podendo fazer reportar o ponto 132 ao momento temporal aludido no ponto 131 (para o qual o 132 remetia). Assim, o ponto 132 dos factos provados deve ler-se no sentido de a autora, à data em que se ausentou para ..., o que ocorreu (no que é relevante para estes autos) desde, pelo menos, ... até ... de ... de 2020, estava convencida da inexistência de impedimentos. E diga-se não ser possível neste domínio que o que se afirmou seja desautorizado pelo ponto 26 dos factos provados - que em ... a autora comunicou ao Administrador Judiciário que não dispunha de equipamento para teletrabalho, tendo este sugerido três soluções, a primeira solicitar equipamento à DGAJ (internet), a segunda que solucionasse o problema, e como terceira, que passasse a efetuar trabalho presencial – porque o mês de ... que aí se refere, na cronologia admissível é anterior ao contacto com o sindicato não podendo ser valorado como posterior.

Ressalve-se que o afirmado quanto ao convencimento da autora não é contrariado também pelo número 34 dos factos provados onde se refere que sabendo que não estava autorizada a efetuar teletrabalho fora da comarca a Sr.ª Escrivã Auxiliar AA comunicou, em ........2020, ao Sr. Administrador Judiciário, que nos períodos em que estivesse em teletrabalho estaria na sua residência em .... Sendo esta matéria conclusiva, mas importando que figure nos factos provados uma vez que a prova da culpa tem de ser explícita e não pode ser presumida, na cronologia da matéria de facto está demonstrado que a autora, por não saber se poderia realizar teletrabalho a partir de ..., diligenciou junto da DGAJ no sentido de obter essa informação e foi remetida para o administrador judiciário, tendo entretanto obtido informação do sindicato de que poderia realizar teletrabalho em ... desde que comunicasse ao administrador, fez essa comunicação. Obviamente que quando contactou o administrador, a autora sabia que a DGAJ não lhe tinha dado autorização, mas antes que deveria colocar a questão junto do Sr. Administrador Judiciário da Comarca de Santarém, pois seria este o competente para decidir sobre questões de quarentena teletrabalho e todas as demais questões em que se justifique, no âmbito das MEDIDAS COVID-19.

Por outro aspeto, ao comunicar ao administrador que estaria em ..., este não a advertiu de que não o poderia fazer, que deveria permanecer no seu domicílio profissional e que precisava autorização da DGAJ, somente lhe disse que deveria enviar uma exposição à Exma. Diretora Geral da Administração da Justiça. Todavia, se antes a autora tinha obtido da DGAJ informação de que era o administrador que no âmbito das medidas COVID tinha competência para tratar desses assuntos (entre os quais o teletrabalho) não pode afirmar-se que o número 34 dos factos provados retire significado ao ponto 132. A articulação destes dois factos apenas consente que se entendam com o sentido de afirmar que não tendo autorização para fazer o teletrabalho em ... e tendo a DGAJ informado que não lhe cabia competência para tratar das questões de teletrabalho, nomeadamente de onde poderia ser realizado, a autora, depois de contactado o sindicato, convencida de que apenas deveria comunicar ao administrador onde se encontrava, realizou essa comunicação, não a tendo este informado nem esclarecido que não o poderia fazer, que não lhe dava autorização, recomendando sim que expusesse a questão À DGAJ, a quem a autora se tinha dirigido primeiro e de quem tinha obtido a informação de ser o administrador o responsável para prestar esse esclarecimento. Devemos sublinhar que o contexto dos autos não é o de a autora obter uma autorização para residir fora da comarca (a autora não pretendeu alterar o seu domicílio profissional) mas sim saber se num tempo excecional, com inúmeras regras excecionais nomeadamente sobre a circulação de pessoas e obrigatoriedade de teletrabalho, a autora enquanto durasse esse período podia fazer o teletrabalho a partir de .... A excecionalidade do tempo justificava de todo que fossem esclarecidas e compreendidas as regras sobre confinamento e teletrabalho, aceitando-se que a obrigatoriedade de permanência em casa justificasse essas dúvidas que a autora colocou e que houvesse razões relevantes para que entendesse ser-lhe admitido ou, pelo menos, poder ser admissível, estar em ....

Tentando informar-se sobre a legitimidade de estar em ... através do contacto com a DGAJ, posteriormente com o sindicato e mais tarde com o administrador, tendo ficado convencida depois dessas diligências não haver entrave a que realizasse teletrabalho de ..., o tempo foi decorrendo desde ... sem qualquer sobressalto, que não o mal estar entre a srª escrivã e a autora, até que em ... de ... de 2020 esta foi chamada por aquela para comparecer no tribunal, sendo nessa data que a permanência da autora em teletrabalho em ... contende com a necessidade de a mesma se encontrar presente no local de trabalho.

Antes desta data, estando a autora a realizar teletrabalho em ... ou em ..., em nada o seu serviço e o serviço da sua secção se diz ter sido afetado, sendo até significativo que os factos provados tenham deixado referido matéria segundo a qual, se não tivesse sido descoberto pela escrivã que a autora realizava o seu teletrabalho de ... esta circunstância teria sido de todo irrelevante. Em verdade, quem realiza teletrabalho mesmo que com obrigação de residência a 90 minutos do local de trabalho, se estiver fora desse perímetro não causará nenhum transtorno desde que a sua atividade esteja a ser realizada e a sua comparência não seja reclamada – e esta conclusão é a que a experiência faz retirar de um tempo em que seguramente várias dezenas, senão mais, de funcionários judiciais terão eventualmente realizado teletrabalho das suas residências pessoais e familiares nas mesmíssimas condições em que a autora o fez –. Porém, no caso, esta conclusão elementar não operou porque a srª escrivã ao ter descoberto que o teletrabalho da autora era realizado a partir de ... e sem que isso estivesse a causar transtorno ou prejuízo ao serviço, sentiu-se incomodada com a situação e tal determinou, ou adensou, o mal estar entre ambas, o qual, naquilo que interessa à presente decisão, se refletiu numa forma avulsa e evitável de desentendimento. Avulsa porque criadora de indisposição e recriminação, mas sem consequência alguma para o trabalho que cada uma realizava porque não determinava a presença da autora no tribunal e evitável porque os deveres mais elementares de urbanidade o recomendavam.

Num tempo que se constituiu a si mesmo e na sua excecionalidade como facto notório, mesmo que pareça ter já sido esquecido, e em que o medo, a perplexidade, a indefinição e a insegurança, não sendo categorias jurídico normativas, foram a experiência transversal do quotidiano de todos, enfrentada sem qualquer rascunho de ocorrência semelhante anterior; em que a declaração de estados de emergência e ou de calamidade, confinamentos obrigatórios e proibições de circulação passaram a ser o registo visível de uma apreensão generalizada; em que a contabilidade diária de mortos e contaminados foi o cenário de todos os dias e todas as horas, indutor de receios e da necessidade de se procurar em casa o único princípio ativo da segurança, ignorar este panorama retirando-lhe notoriedade e qualquer potencialidade para que o que os comportamentos e as dúvidas que nele se desenrolaram sobre o modo como agir sejam privados desta evidência e enquadramento, não é razoável nem sequer equilibrado.

Com os factos enunciados o único momento em que a violação do dever de residência por parte da autora pode ter-se por relevável reporta à data de ... de ... de 2020 quando o seu serviço presencial é reclamado e porque, encontrando-se em ..., tendo sido chamada às 10:09 horas apenas compareceu no tribunal pelas 16.30 h. No entanto, o serviço para o qual a presença da autora foi reclamada não se realizou porque a sua presença nem sequer chegou a ser necessária.

Sendo na análise do comportamento da autora no dia ... de ... de 2020 que radica a violação do seu dever de residência, uma vez que o eventual prejuízo que a norma do art. 64 da do EFJ pretende acautelar só nesse dia poderia ter ocorrido, obtemos que esse mesmo prejuízo não ocorreu (a presença da autora não foi necessária) e, por outro lado, como antes vimos, a mesma estava convencida que poderia prestar teletrabalho a partir de ....

Relembrando a excecionalidade do tempo em que se situam os factos, percebe-se que o dever de residência dos funcionários tal como era e é tipificado nunca sofreu um desafio interpretativo tão exigente e cuidadoso como aquele que foi colocado pela novidade de obrigação de confinamento e realização de teletrabalho em tempo pandémico. A autorização de residência pelo Diretor-Geral dos Serviços Judiciários do citado art. 64 e o esclarecimento do Ofício-Circular n.º 54/91 da DGAJ têm de ser conjugados com as implicações do teletrabalho. E é o contexto sanitário excecional do momento que deixa perceber melhor que a própria DGAJ quando solicitada nos termos em que a autora o fez tenha respondido que para todas as questões de teletrabalho e todas as demais questões no âmbito das MEDIDAS COVID-19 era competente o administrador. Reconhecendo a excecionalidade que se vivia, a DGAJ não desconhecendo o art. 64 do EFJ não enquadrou a matéria no domínio de um pedido de alteração de residência da competência do Diretor Geral nem remeteu a autora para a informação das Perguntas Frequentes da sua página eletrónica, mas informou-a expressamente que o competente para apreciar e decidir esses assuntos colocados pela pandemia era o administrador.

Em termos normativos a culpa como elemento subjetivo pressupõe no agente a vontade, a representação como possível ou a inadvertência de, sendo exigível, nem sequer representar, a realização de um tipo legal de ilícito conhecendo aquele as suas circunstâncias fácticas objetivas – arts. 14 e 15 do CPenal.

É precisamente este elemento subjetivo da infração, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta), ao momento volitivo (vontade/representação de realização do tipo objetivo de ilícito) e ao momento emocional (conhecimento do carácter proibido da conduta) que permite estabelecer o tipo subjetivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respetiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo direto, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.

Tanto assim que, como afirma Figueiredo Dias, “…também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado”, cfr. “Direito Penal - Parte Geral”, tomo 1, 2ª ed., 379.

Se os elementos objetivos - que constituem a materialidade da infração - traduzem a conduta, a ação, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos, já o elemento subjetivo traduz a atitude interior do agente na sua relação com o facto material. Será, pois, o elemento volitivo, quando ligado ao elemento intelectual, que verdadeiramente serve para indiciar (embora não para fundamentar) uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento, uma culpa - cfr, Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, I, 334.

A ignorância da lei a ninguém aproveita e, por isso, o erro, à partida, é censurável, censurabilidade que Figueiredo Dias esclarece ao escrever que “o critério que nos permitirá dizer quando e onde pode falar-se de uma falta de consciência do ilícito não censurável há-de decorrer, na sua expressão mais geral, do que se entender sobre o conteúdo material do conceito de culpa jurídico-penal e do sentido da falta de consciência do ilícito àquela luz.

O erro excluirá o dolo sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correta orientação da consciência-ética do agente para o desvalor do ilícito. Caso em que estaremos perante uma deficiência da consciência-psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, conforma o tipo específico de censura da negligência” - in Direito Penal, parte geral, I, 585/587.

Para o conceito de negligência (em responsabilidade sancionatória) que resulta do art. 15 do C.Penal o facto negligente possui um tipo de ilícito (a violação do dever objetivo de cuidado a que, em concreto, o agente está obrigado) e um tipo de culpa (a inobservância do cuidado que o agente está em condições de observar).

O erro direto sobre a ilicitude que se refere no art. 17 do CPenal só excluirá a culpabilidade se, sempre com base nos factos provados, tal erro do agente não lhe for censurável; a falta de consciência da ilicitude do facto excluirá a culpa se tal ignorância do agente não for censurável. E tal erro ou falta só não será censurável quando esse erro da consciência ético-jurídica que se exprime no facto não se fundamentar numa atitude interna desvaliosa face aos valores jurídicos em geral e existir uma consciência reta do agente orientada por uma atitude geral de fidelidade ao Direito, o que ocorrerá em situações em que a questão da ilicitude possa ser discutível e o erro do agente resulte de este ter tomado em conta outros pontos de vista relevantes.

Com este enquadramento, perante os factos provados e na valoração que deles fizemos, não pode dizer-se que a autora tivesse conhecimento de lhe ser proibido realizar teletrabalho a partir da sua casa em ... no período de confinamento pandémico e que tal lhe seja censurável, porque não lhe é imputável qualquer qualidade desvaliosa - disciplinarmente relevante - da sua personalidade que revele indiferença perante o bem jurídico protegido pela norma ou que seja consequência de uma omissão do cuidado exigível.

Num tempo de exercício profissional marcado por condições excecionais, entre as quais o confinamento obrigatório e a realização de trabalho à distância, o comportamento da autora no sentido de obter informação sobre a possibilidade de realizar teletrabalho a partir do seu domicílio pessoal em ..., as informações que diligenciou obter e que obteve, fazem concluir que o convencimento que formou não lhe é censurável e afasta a ilicitude da sua atuação. Não se trata apenas se ela ter tomada a decisão, de estar em ..., a partir de um ponto de vista relevante, mas sim de esse seu comportamento se fundamentar numa atitude de consciência reta procurando obter previamente informação para saber como agir. E deve notar-se que o teor da sua diligência não foi sequer desautorizado pela DGAJ, o que sucederia se esta entidade lhe tivesse comunicado que em período de pandemia nada se tinha alterado e só poderia realizar teletrabalho a partir do seu domicílio profissional que não era o pessoal e familiar, ou se ou se o administrador, quando contactado, lhe tivesse prestado essa mesma informação. Porém, quer a DGAJ quer o administrador não transmitindo à autora que não poderia estar em ... permitiram que naquele tempo particular e concreto, pelo menos, a autora pudesse convencer-se sem lhe ser censurável que poderia estar na sua casa pessoal e familiar em ... eventual, mas seguramente nas mesmas circunstâncias em que os seus colegas estariam nas suas casas pessoais, protegendo-se, embora disponíveis para se apresentarem ao serviço se chamados. Como antes dissemos não estava em causa obter uma autorização de residência fora da comarca, mas sim saber de onde se poderia realizar teletrabalho obrigatório durante o período excecional de confinamento.

A questão da eventual ausência da autora ao serviço no dia ... de ... de 2020, sai também prejudicada porque essa comparência se destinava exclusivamente a garantir o secretariado das diligências desse dia e ou três dias seguintes (voltando depois a teletrabalho) e como a prova esclarece, essas diligências não tiveram lugar não tendo sido necessária a presença reclamada, não tendo existido qualquer prejuízo por ela apenas ter comparecido às 16.30 h, não havendo até menção de que lhe tenha sido aplicada falta ao serviço.

Pelo exposto, considera-se que perante os factos provados não é possível inscrever a atuação da autora numa violação do dever especial de residência previsto no art. 64.º, n.º 1 do Estatuto dos Funcionários de Justiça.

Sabendo-se que o vício de violação de lei diz respeito a ilegalidades materiais ou substantivas incorrendo nelas os atos administrativos que não respeitem os seus requisitos relativos aos pressupostos de facto, ao objeto e ao conteúdo, o erro nos pressupostos de facto constitui uma das causas de invalidade do ato administrativo, consubstanciando um vício de violação de lei que configura uma ilegalidade de natureza material, pois é a própria substância do ato administrativo que contraria a lei. Este vício consiste na divergência entre os pressupostos de que o autor do ato partiu para proferir a decisão administrativa final e a sua efetiva verificação na situação em concreto, resultando do facto de se terem considerado na decisão administrativa factos não provados ou desconformes com a realidade. Segundo a jurisprudência - Acórdão do Supremo Turbinal de Justiça, de 23.02.2016, proferido no Processo nº 126/14.3YFLSB - o erro nos pressupostos de facto “consubstancia um vício de violação da lei e consiste na discrepância entre os pressupostos factuais que se revelarem determinantes para a decisão e aqueles que efetivamente se verificam. Para que proceda a invocação em apreço, o impugnante tem o ónus de invocar os factos que compõem a realidade que tem como verdadeira e demonstrar que os factos nos quais a administração se baseou não existiam ou não tinham a dimensão por ela suposta, havendo ainda que averiguar a concreta relevância do erro para a decisão que veio a ser tomada”. E na doutrina o erro de direito, consiste na interpretação ou aplicação indevida da regra de direito, perfila-se, ao lado do erro de facto, (…), como integrante do vício de violação da lei – vd. Marcelo Caetano Manual de Direito Administrativo, Almedina, volume I, páginas 502 e seguintes – ou em idêntica formulação é o “vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objeto do ato e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis” - Freitas do Amaral in Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, 4ª edição, 2018, páginas 351/352.

No vício de violação de lei é a própria substância do ato administrativo, a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei por não haver correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre os efeitos de direito determinados pela Administração e os efeitos que a norma ordena. O vício de violação de lei produz-se quando, no exercício de poderes vinculados, a Administração decida coisa diversa do que a lei estabelece, isto é , quando é efetuada uma interpretação errónea da lei, aplicando-a à realidade a que não devia ser aplicada ou deixando-a de aplicar à realidade que devia ser aplicada.

Pelo exposto, competindo a este Contencioso verificar no ato impugnado se a avaliação feita é manifestamente desacertada e inaceitável, quando o erro é percetível a uma pessoa sem os conhecimentos da Administração – vd. Fernanda Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias, “Noções Fundamentais de Direito Administrativo”, 4ª edição, página 142 – observamos que a deliberação em causa assente na matéria de facto constante enferma de erro relativamente ao seu substrato factual sendo os seus critérios de avaliação desajustados existindo assim erro manifesto na apreciação dos pressupostos de facto.

Nos termos do artigo 163 n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, “são anuláveis os atos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção” e elencando o art. 161 os casos de nulidade, o erro na apreciação dos pressupostos de facto cabe na previsão daquele primeiro preceito no qual se prevê que “o ato anulável produz efeitos jurídicos, que podem ser destruídos com eficácia retroativa se o ato vier a ser anulado por decisão proferida pelos tribunais administrativos ou pela própria Administração”.

Assim, o ato anulável, embora inválido, é juridicamente eficaz, produzindo efeitos jurídicos como se fosse válido até ao momento em que venha a ser anulado, sem embargo de a anulação contenciosa de um ato administrativo tem efeitos retroativos, tudo se passando na ordem jurídica como se o ato nunca tivesse sido praticado – não se verificando no caso as situações excecionais, previstas no artigo 163º, n.º 5, do CPA, o legislador permite que tais efeitos anulatórios não se produzam.

Em resumo, é de concluir que padecendo o ato impugnado de erro nos pressupostos de facto a deliberação recorrida é ilegal por vicio de lei o que determina a sua anulabilidade (artigo163º, n.º 1, do CPA), devendo ser a ação ser julgada procedente com a anulação da deliberação do CSM impugnada, ficando prejudicado o conhecimento de todas as outras nulidades invocadas pela demandante.

… …

Síntese conclusiva

- O dever especial de residência constante do art. 64 nº1 do EFJ determina que devendo os funcionários de justiça residir na localidade onde se encontra instalado o tribunal em que exercem funções ou em qualquer ponto da comarca sede do tribunal, se eficazmente servido por transporte público regular, possam residir em qualquer outra localidade desde que autorizados pelo Diretor-Geral dos Serviços Judiciários que apreciará se fica assegurado o cumprimento dos atos de serviço.

- Tendo no período temporal de confinamento pandémico a autora - a exercer funções na Secretaria do Núcleo de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém com residência profissional em ..., da Comarca de ... e com residência pessoal em ... - solicitado à DGAJ informação sobre se podia realizar o teletrabalho no seu domicílio pessoal, se esta entidade informa que para esse assunto o competente é o Sr. Administrador do tribunal, informando este quando contactado pela autora não ser o competente para resolver essa matéria, não existe ilicitude na conduta da autora em realizar teletrabalho a partir de ..., quando foi informada pelo sindicato de que o poderia fazer desde que comunicasse ao administrador, o que esta fez sem que este lhe tivesse referido que não estava autorizada a estar em ....

- Não é censurável, em termos de culpa, que no período excecional de confinamento pandémico com a proibição de sair de casa e com a realização de teletrabalho a autora tenha suscitado a questão de saber se não obstante o disposto no art. 64 do EFJ, naquelas condições excecionais de desempenho profissional, poderia realizar o teletrabalho a partir do seu domicílio pessoal, porque tendo colocado a questão à DGAJ esta entidade não afastou a razoabilidade da questão mas antes informou que esse assunto referente à prestação do trabalho em tempo de pandemia deveria ser solucionado pelo administrador do tribunal que, por sua vez, se declarou incompetente para o efeito.

… …

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem a Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente a presente ação administrativa de impugnação de ato administrativo e, em consequência, anular a deliberação do Conselho Plenário do Conselho Superior da Magistratura de ...-...-2022 que aplicou à autora “a sanção de multa que lhe foi aplicada pelo Conselho de Oficiais de Justiça, por violação do dever especial de residência previsto no art. 64.º, n.º 1 do Estatuto dos Funcionários de Justiça, no montante de € 108,38 (cento e oito euros e trinta e oito cêntimos), correspondente a 3 remunerações base diárias, suspendendo-se a mesma, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art.º 192 da LGTFP, pelo período de um ano.”.

Custas pelo réu.

Valor da ação: € 30.000,01 (artigo 34 n.º 2 do CPTA)

Lisboa, 04 de julho de 2023

Manuel Capelo (Relator)

Maria João Tomé

Rijo Ferreira

Paulo Ferreira da Cunha

Ramalho Pinto

Orlando Gonçalves

Barateiro Martins

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Presidente da secção)