Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10/21.4PJAMD.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - A tentativa impossível, prevista no art. 23.º, n.º 3, do CP, tem lugar quando os atos de execução se dirigem a um objeto inexistente essencial à produção do resultado típico ou se utiliza um meio inidóneo para o atingir.
II - Nestes casos, a conduta do arguido só não será punível se a inexistência do objeto ou inidoneidade do meio empregado for «manifesta» à data da prática dos factos.
III - Os inúmeros orifícios na parede e no estore na residência dos ofendidos deixados pelos bagos de chumbo, numa área relativamente concentrada, estão longe de permitir concluir que uma espingarda caçadeira de calibre 12, a 35 metros de distância do objetivo é, pelas regras da experiência comum, um meio inidóneo ou inapto e, mais ainda de manifesta inidoneidade, para tirar a vida a quem sofra o impacto dos grãos de chumbo em órgãos vitais.
IV - Não estamos perante a inexistência de objeto essencial à consumação do homicídio simples quando o ofendido estava na sua residência e em situação de poder ter sido atingido por chumbos disparados pela arma caçadeira do arguido.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 10/21.4PJAMD.L1.S1


Recurso Penal



*




Acordam, em audiência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.


I- Relatório


1. Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Criminal de ... - J... ., sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção de tribunal coletivo, o arguido AA, devidamente identificado nos autos, imputando-se-lhe a prática, em autoria material e em concurso real, de:


- dois homicídios qualificados, na forma tentada, agravados pelo uso de arma, p. e p. pela conjugação dos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 23.º, n.ºs 1 e 2 e 73.º, todos do Código Penal, com os artigos 2.º, n.º 1, alínea ar) e 86.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro;


- um crime de aborto, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pela conjugação dos artigos 140.º, n.º 1 do Código Penal com os artigos 2.º, n.º 1, alínea ar) e 86.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro;


- dois crimes de dano com violência, agravados pelo uso de arma, p. e p. pela conjugação dos artigos 214.º, alínea a) e 212.º, n.º 1, ambos do Código Penal, conjugados com os artigos 2.º, n.º 1, alínea ar) e 86.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro; e


- um crime detenção de arma proibida, p. e p. pela conjugação dos artigos 86.º, n.º 1, alínea c) e 2.º, n.º 1, alínea ar), ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.


2. Realizada a audiência de julgamento – no decurso da qual foi comunicada ao arguido uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos do art.358.º, n.º 1 do C.P.P. –, o Tribunal Coletivo, por acórdão proferido a 13 de dezembro de 2022, decidiu (transcrição):


“I. Julgar a acusação parcialmente procedente por parcialmente provada, e, em consequência:


a) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pela conjugação dos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal, com os artigos 2.º, n.º 1, alínea ar) e 86.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão (ofendida BB);


b) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pela conjugação dos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal, com os artigos 2.º, n.º 1, alínea ar) e 86.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 4 (quatro) anos de prisão (ofendido CC);


c) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de dano com violência, agravado pelo uso de arma, p. e p. pela conjugação dos artigos 214.º, alínea a) e 212.º, n.º 1, ambos do Código Penal, conjugados com os artigos 2.º, n.º 1, alínea ar) e 86.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;


d) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime detenção de arma proibida, p. e p. pela conjugação dos artigos 86.º, n.º 1, alínea c) e 2.º, n.º 1, alínea ar), ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 1 (um) ano de prisão;


e) e operando o cúmulo jurídico das quatro penas parcelares referidas de a) a d), condenar o arguido AA na pena única de 7 (sete) anos de prisão.


f) Absolver o arguido AA do demais que lhe é imputado.


g) (…).


II - Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes BB e CC parcialmente procedente por parcialmente provado e, em consequência:


a) Condenar o arguido/demandado AA a pagar à demandante BB, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros);


b) Condenar o arguido/demandado AA a pagar ao demandante CC, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros).


c) Absolver o arguido/demandado do demais pedido. (…)”.


3. Inconformado com o acórdão dele interpôs recurso o arguido AA, para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua motivação do modo seguinte:


I. Nem nos factos provados nem na fundamentação da decisão recorrida se demonstra que motivos alheios à vontade do arguido levaram a que o mesmo quer, a título de dolo direto ou dolo eventual, não tivesse consumado os aludidos crimes, seja como uma representação direta


dessa vontade ou como uma consequência possível da mesma.


II. Pese embora o douto Acórdão ora recorrido não avance a razão de ser para que o arguido, na ótica do Tribunal, não tenha concretizado os ditos crimes na forma consumada, tudo conforme supra se referiu e quer através da doutrina e jurisprudência indicada e que para ai integralmente remetemos por economicidade processual.


III. Entendemos assim que mal andou o tribunal a entender como preenchido o crime tentado de homicídio ao invés das ofensas corporais simples, pelo qual devia ter sido condenado.


IV. Donde, fica assim patente, salvo melhor opinião, que a razão alheia à vontade do arguido mais não foi do que, naquelas circunstâncias, existia inaptidão do meio utilizado à consumação do crime posto que ineficaz ao operar naquelas circunstâncias em que foi empregado na medida


em que face à distância em que os disparos foram efetuados era incapaz, aliás como o foi, de forma patente e notória de causar qualquer lesão que pusesse em causa a vida dos ofendidos posto que atingindo a ofendida, não chegou sequer a penetrar a hipoderme.


V. Temos assim, uma manifesta inaptidão do meio – fatores de não punibilidade – referidos ao critério da generalidade das pessoas a ser aferidos objetivamente à luz das circunstâncias do caso, e de acordo com as regras da experiência comum.


VI. Na situação concreta, tendo por referência a prática dos factos o uso da arma assente as zonas efetivamente atingidas com os danos causados, ferimentos superficiais e leves, apelando às regras da experiência comum, para a generalidade das pessoas é evidente e ostensiva a inidoneidade do meio utilizado, apesar de ser uma arma de fogo em que naquele circunstancialismo e da forma como foi utilizada/disparada, jamais poderia alcançar objetivamente o dano morte.


VII. Assim, estas foram as questões alheias à vontade do arguido, nos dizeres do Acórdão, e dos factos assentes, que foram a causa da impossibilidade de se alcançar o objetivo final que era matar os ofendidos, quer a título de dolo direto, quer a título de dolo eventual.


VIII. E assim, salvo o devido respeito, naquele circunstancialismo e, apesar do elemento subjetivo até poder estar presente no arguido, o certo é que falece o elemento objetivo para a sua possível concretização.


IX. À contrario, Como se costuma dizer “de boas intenções está o inferno cheio”…


X. Neste particular, relativamente à intenção de matar a ofendida BB em que o tribunal dá como assente que o arguido quis efetivamente matá-la não deixa de ser estranho que na própria fundamentação do Acórdão recorrido, em consonância com toda a dinâmica dos factos, tenha chegado à conclusão que “quem disparou tinha como alvo principal o ofendido CC” !


XI. E se dúvidas houvesse sobre tudo aquilo que se está a expor, e apesar de sabermos que este mais alto tribunal não se pode socorrer de elementos “estranhos” ao texto da decisão recorrida, não podemos de, em defesa dos factos assentes e com ele corroborantes indicar o seguinte link Qual a efetividade de uma espingarda calibre 12 a várias distâncias? - YouTube , em que se constata objetivamente que aquela arma disparada a mais de 20 metros contra uma pessoa não tem qualquer poder de letalidade.


XII. Por isso, mais uma vez, dúvidas não temos que apesar de terem existidos atos de execução, os mesmos jamais eram idóneos a produzir o resultado típico do crime de homicídio, nos termos do disposto no artigo 22º, nº2, al. b) e 23º, nº3 do Código Penal.


XIII. Pelo que relativamente à ofendida BB, o arguido deveria ter sido condenado pelo crime de ofensas corporais simples, agravada pelo uso da arma e não pelo crime tentado de homicídio, como efetivamente o foi.


XIV. Ora, e por maioria de razão, o mesmo deveria acontecer relativamente ao ofendido CC, este ainda de forma mais patente na medida em que independentemente do meio utilizado e das circunstâncias em que foi utilizado, o certo é que se extrai dos factos 8º, que face à ausência da materialidade provada, nomeadamente que não se apurou, em concreto, que tivesse tão pouco disparado na sua direção, era quanto bastava para que o mesmo fosse absolvido in totum do crime tentado de homicídio.


XV. Na verdade, conjugada a matéria assente no ponto 8 e ponto 9 e ponto 17, jamais o arguido podia prever como consequência possível da sua conduta a morte do ofendido CC, conformando-se com esse resultado posto que não estando provado a direção dos disparos efetuados na sua direção, é lógico, patente e evidente que nunca poderia representar como possível o resultado morte de alguém quando não se apurou que se quisesse atingir esse mesmo alguém, nem mesmo através de um “bago mágico”.


XVI. Mas mesmo que assim não fosse, sempre nos recorreríamos dos doutos ensinamentos deste Alto Tribunal, conforme douto Acórdão deste STJ cujo link se junta Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt), tudo isto sem prejuízo como acima se referiu dos vícios de conhecimento oficioso resultantes, em que na nossa opinião, neste caso, existe erro notório na apreciação da prova, bem como contradição insanável entre a fundamentação e os factos provados, porquanto na própria fundamentação, aliás na esteira dos factos provados em 8º e 9º, acaba por afirmar que, efetivamente, o arguido terá disparado na direção da viatura do ofendido donde, mais uma vez, como podia ser condenado por uma tentativa de homicídio quando se desconhece a direção dos disparos (cfr. Pontos 8º, 9º e 17º da matéria assente).


XVII. Assim, quando muito e sem prescindir, de que quanto a este crime o arguido deve ser absolvido, ainda podíamos congeminar, apesar da indefinição factual que o permitisse, o crime tentado de ofensas corporais simples, posto que, pelo uso da arma sempre permitiria a punibilidade da tentativa do crime em questão.


XVIII. Casos há em que o meio é idóneo mas que o crime não se consumou nomeadamente por imperícia dos arguidos, porque a vitima foi imediatamente transportada ao hospital, por as zonas do corpo atingidas não alojarem órgãos vitais e por aí adiante.


XIX. Agora, no caso sub iudice, tendo a vítima sido atingida, principalmente na zona lombar com dois chumbos, ficamos, e a matéria assente não nos diz, que razões alheias à vontade do arguido não produziram o resultado morte, a não ser aquelas que supra referimos no sentido das circunstâncias de modo, tempo e lugar era impossível chegar ao resultado típico previsto no artigo 131º do CP.


XX. Assim, pelo exposto, entendemos, salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal recorrido a condená-lo pelos dois crimes de tentativa de homicídio.


XXI. Além disso, os factos assentes de 10º a 15º, bem como 19º e 20º, dúvidas não há que o arguido atingiu a parede e os estores dos ofendidos.


XXII. Ora, salvo o devido respeito que aliás é muito pelo Tribunal recorrido, e sem prejuízo da matéria assente não especificar, em concreto os danos causados, quer nos estores, quer na parede, pois que diz que ambos ficaram “estragados” – admitamos que é sinónimo de danificar – mesmo assim, a nossa discordância vai mais no sentido da qualificação desse tipo de crime como dano com violência, ao abrigo do artigo 214º, nº1, al. a) do CP.


XXIII. Desde logo, entendemos que o arguido não pretendeu usar “coisa alheia” contra os ofendidos mas sim que os pretendia pelo menos atingir (sem prejuízo do supra referido) e não utilizar os estores ou as paredes como forma de os «violentar».


XXIV. Ora, na conjugação dos artigos 213º e 214º do CP, dúvidas não temos, sempre ressalvando o devido respeito por opinião contrária, que a agravação do crime de dano com violência só se verifica quando através do tipo previsto do artigo 212º do CP se utiliza “a coisa” contra uma pessoa, com perigo eminente para a vida ou integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir.


XXV. A título de exemplo alguém que conduzindo a sua viatura automóvel, deliberadamente se lança contra a viatura de terceiro, embatendo no lado do condutor, podendo ou não causar perigo eminente para a vida ou integridade física, sendo essa, efetivamente, a sua intenção.


XXVI. No caso concreto, nada disto aconteceu tanto mais que dos factos provados e assentes e aqui até admitindo sem prescindir que a intenção do arguido era tirar a vida aos ofendidos, os danos causados pela dispersão dos bagos de chumbo da referida arma – que consabidamente quanto maior a distância, maior a dispersão das mesmas – mais não seria do que um “dano” colateral da efetiva intenção do arguido, aqui como conduta causal e necessária do fim anteriormente pretendido.


XXVII. Assim, não houve qualquer intenção dolosa por parte do arguido de através desse dano causado nas paredes e estores praticar violência contra os ofendidos, através da “danificação” da coisa, pondo em perigo a vida ou a sua integridade física.


XXVIII. Assim, salvo melhor opinião, e sem necessidade de mais considerandos, posto que violada até estaria o princípio de ne bis in idem, e para tanto socorremo-nos dos doutos ensinamentos deste Alto Tribunal que para facilidade de consulta se indica Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt) 22610895, que, em súmula, decide que: “VIII - A violência ali tipificada também pode consistir numa intervenção física sobre coisas, (que tanto podem ser do ofendido como de terceiro) desde que exercida diretamente sobre tais coisas, atinja pessoa(s ) por via indireta.”.


XXIX. Ainda, sempre sem prescindir, considerando mais uma vez a inaltrabilidade dos factos assentes, aceitamos que os “estragos” causados nas coisas (estores e parede) não fazem alusão a qualquer tipo de valor.


XXX. Ora, nos termos do artigo 214º, nº1 CP remete precisamente para os factos descritos nos artigos 212º e 213º do mesmo diploma legal e dúvidas quanto a nós não teos, que o valor da coisa alheia referido no tipo legal de crime, nos dizeres do douto Acórdão deste STJ – acima referido – “Na verdade, a aceitar-se o valor do dano pelo da coisa danificada, sem cuidar do prejuízo concreto, chegaríamos à conclusão inaceitável de que, a mera danificação parcial de uma coisa de grande valor seria punida, sempre, em função daquele valor, quer o dano fosse grande quer fosse pequeno, e receberia mesmo a moldura penal abstracta da sua danificação total, o que seria um absurdo.”


XXXI. Ora, não constando em concreto o valor do prejuízo causado pela conduta do arguido, além dos estragos na parede e nos estores e constando expressamente a remissão para os factos descritos nos artigos – para o caso que nos ocupa – 213º, nº3 do CP, temos por certo e seguro que mesmo nestes casos de dano com violência, sem prejuízo da posição que supra assumimos, sempre estaríamos perante o crime previsto no artigo 212º do mesmo diploma legal por total ausência do valor da coisa danificada, o que implicará atendendo ao princípio in dúbio pro reo que o “prejuízo” causado nas coisas “estragadas” e face às regras da experiência comum seriam de valor diminuto, 214º, nº1 ex vi artigos 213º, nº3, com referência ao artigo 204º, nº4, todos do CP.


XXXII. Aliás, dada a similitude do conteúdo do artigo 214º, nº1 com o artigo 210º, nº1 do CP, mal seria que este último desqualificasse o crime de roubo por aplicação do nº4 do artigo 204º do CP e não já fosse possível essa mesma remissão nos termos do artigo 214º porquanto quer o tipo quer as molduras penais são exatamente as mesmas naqueloutros e neste artigo.


XXXIII. Assim, sem nos querermos imiscuir da competência deste Alto Tribunal relativamente à matéria de facto, parece-nos, salvo melhor opinião, que a ausência, quer do valor das coisas “estragadas” e bem assim do efetivo prejuízo causado, sempre existiria insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o que originaria a nulidade do douto Acórdão recorrido nos termos e com os efeitos do artigo 379º, nº1, al. c) do CPP o que, entendemos sempre com o devido respeito que deverá, por V. Exas Colendos Conselheiros ser apreciada e reparada oficiosamente.


XXXIV. Violou assim, o douto Acórdão recorrido as disposições legais acima indicadas.


XXXV. Foi o arguido condenado numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão relativamente à ofendida BB cujas sequelas não demandaram para a mesma quaisquer períodos de doença ou incapacidade para o trabalho conforme a contrario se extrai da matéria assente dos factos 7 além da dor e sofrimento e os constantes aqui quanto ao pedido de indemnização civil, vertido na matéria assente sob os nº 25 a 28 que, mais uma vez, se reporta exclusivamente a danos morais.


XXXVI. Quanto à determinação da medida da pena, desde já, uma questão nos salta à vista quando o Tribunal “valorou” negativamente o facto de o arguido não ter prestado declarações, não ter colaborado ou contribuído para a descoberta da verdade material.


XXXVII. Ou seja: se é certo que o silêncio do arguido, alias constitucionalmente garantido e ínsito no artigo 343º, nº1 do CPP não o pode favorecer, também é certo que não o pode desfavorecer e como sujeito processual não tem esse “dever”.


XXXVIII. Por outro lado, entende também o Acórdão recorrido que a ofendida BB sofreu efetivas lesões físicas quando se é certo que as sofreu, também não é menos certo que não consta dos factos assentes que a mesma tenha tido sequelas, qualquer incapacidade que fosse para o trabalho, ou doença, bem como que tivesse corrido perigo de vida (cf. Relatório pericial a fls. 238 a 240), que sendo um elemento externo ao texto da decisão recorrida, não deixa de ser evidente a não inclusão dos factos assentes dado o “insignificante” desvalor do resultado causado pelo comportamento do arguido, donde entendemos salvo melhor opinião que apesar do desvalor da ação se poder considerar intenso e contrabalançando com o desvalor do resultado, a pena encontrada de 5 anos e 6 meses se entende por excessiva, desproporcional e desadequada ao caso em concreto e que se deveria ter situado mais junto ao seu mínimo legal, na pena de 3 anos de prisão.


XXXIX. Mutatis mutandis, o mesmo se denota relativamente à pena de 4 anos de prisão aplicada ao arguido quanto ao ofendido CC.


XL. Aliás, quanto a este ofendido, e para o quantum da pena, o Tribunal recorrido nem uma linha ou consideração lhe teceu, limitando-se, sem mais, a aplicar a pena de 4 anos de prisão, isto porque entendemos nós, que na ausência de qualquer lesão, sequela ou dano corporal (nem


emocional foi referido) nomeadamente ao nível da matéria dada como provada para além dos artigos 25º, 27º e 28º no capítulo do pedido de indemnização civil, nada mais foi encontrado para aquela pena em concreto.


XLI. Donde, atendendo aos princípios fixados no artigo 71º, nº2 do CP e considerando nomeadamente a ausência expressa quer do grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e ausência de gravidade das suas consequências, bem como a intensidade do dolo, neste caso, dolo eventual, não podemos deixar de considerar que a pena mais adequada ao caso em concreto se situaria nos 2 anos de prisão, o que se requer.


XLII. Já quanto, mais uma vez, sempre sem prescindir tudo o que acima se alegou quanto ao crime de dano com violência, também aqui sem mais se aplica a pena parcelar dois anos e seis meses de prisão, sem fundamentar o quantum, nomeadamente o grau de violência exercido ou


as consequências dessa conduta que como supra se referiu não foi além dos ditos “estragos” na parede e estores não sendo, causal de qualquer perigo eminente para a vida ou integridade física para que possa ter chegado àquela dosimetria da pena pelo que, sempre seria mais adequado e proporcional face a toda a matéria assente, uma pena de 1 anos e 6 meses de prisão, mantendo-se a condenação pela detenção de arma proibida em 1 ano de prisão.


XLIII. Já quanto à medida única da pena e admitindo o que consta nos critérios de avaliação do Tribunal recorrido, se entende que o conjunto dos factos não é reconduzível a uma tendência criminosa, mas tão-só pluriocasionalidade que não radica na personalidade do arguido tanto mais que conforme consta dos factos provados, embora tendo antecedentes criminais todos se reconduzem a crimes de condução sem habilitação legal, crimes de natureza diversa quanto ao bem jurídico protegido tutelado neste processo o que denota o que se afirmou quanto à ausência da tendência criminosa de crimes contra as pessoas e mesmo patrimoniais e que foi um ato único e isolado, até então, da sua vida.


XLIV. Pelo que entendemos sempre sem prescindir tudo o que acima se referiu, se entende como mais justa e adequada ao caso concreto uma pena única que não ultrapasse os 5 anos de prisão, mesmo assim já próximo do meio da moldura penal abstratamente aplicável.


XLV. E, afigura-se-nos possível formular um juízo de prognose favorável, fundado numa esperança ou expectativa razoáveis, de que a condenação constituirá para o arguido ora recorrente, uma advertência séria que o motivará a, no futuro, se abster da prática de catividades delituosas; isto é, espera-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarão, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.


XLVI. Assim entendemos que a condenação, em cúmulo jurídico, não superior 5 anos de prisão, que se requer, seja suspensa na sua execução por igual período.


XLVII. Entendemos ainda, que essa suspensão deverá ser acompanhada por regime de prova, tendo em vista o que deve ser a regra prevista nº 3 do artº 53º do C.P.


XLVIII. Pelo que deverá optar-se por um plano individual de readaptação social, a definir pelos serviços de reinserção social nos termos do artº53º nº 2 do Código Penal.


XLIX. E face ao valor do PIC atribuído aos ofendidos, temos os mesmos por exagerados, considerando que se bastam pelos danos morais, sem qualquer respaldo na dinâmica dos factos, posto que na realidade, foi um ato isolado e irrepetível na conduta do arguido ora recorrente, e, como consta dos factos provados, o arguido nem tão pouco conhecia a ofendida (facto provado), por forma a que a mesma se sinta, ou continue a sentir-se insegura (na data de hoje), ao ponto de merecer a tutela penal e civil no valor de €20.000 de indemnização, bem como o valor de €10.000 para o ofendido, também por danos não patrimoniais.


L. Propugnamos assim, até em termos de direito comparado e em termos de equidade, considerando a condição social e económica modestas quer do arguido, quer dos ofendidos, a quantia para a ofendida de €10.000 e para o ofendido a quantia de €5.000.


LI. Donde, douto acórdão recorrido, por erro e má aplicação e interpretação do direito violou as disposições legais supra referidas.


Nestes termos e nos melhores de direito deverão V. Exas conceder provimento ao recurso, e, em consequência, revogar o aliás, douto acórdão recorrido, por outro, ainda mais douto.


4. O Ministério Público no Juízo de Central Criminal de ... respondeu ao recurso interposto pelo arguido, concluindo (transcrição):


1. O Arguido/Recorrente AA foi condenado pela prática, em autoria material e em concurso real, de:


● um crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pela conjugação dos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal, com os artigos 2.º, n.º 1, alínea ar) e 86.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão (ofendida BB);


● de um crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pela conjugação dos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal, com os artigos 2.º, n.º 1, alínea ar) e 86.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 4 (quatro) anos de prisão (ofendido CC);


● um crime de dano com violência, agravado pelo uso de arma, p. e p. pela conjugação dos artigos 214.º, alínea a) e 212.º, n.º 1, ambos do Código Penal, conjugados com os artigos 2.º, n.º 1, alínea ar) e 86.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;


● um crime detenção de arma proibida, p. e p. pela conjugação dos artigos 86.º, n.º1, alínea c) e 2.º, n.º 1, alínea ar), ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 1 (um) ano de prisão;


➡ Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, pena única de 7 (sete) anos de prisão.


2. O crime de homicídio é um crime material ou de resultado que se consuma quando o agente, com a sua conduta, causa a morte a outrem, ou seja, quando a conduta daquele agente é causa adequada e directa da morte ocorrida, sendo que o artigo 10.º, do CP consagra a teoria da causalidade adequada com vista à imputação objectiva do resultado ao agente.


3. Necessário se torna que a acção seja, em abstracto, idónea a produzir o resultado típico e que tal resultado seja uma consequência normal de tal actuação.


4. E para aferir da existência de tal nexo de adequação, como refere o Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1º Vol., pág. 328 e seguintes) “o juiz se deve deslocar mentalmente para o passado, para o momento em que foi praticada a conduta e ponderar, …, se, dadas as regras da experiência e o normal acontecer dos factos (…), a acção praticada teria como consequência a produção do resultado», de tal modo que, “se entender que a produção do resultado era previsível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação não deverá ter lugar” tendo em consideração as regras da experiência comum e os especiais conhecimentos do agente.


5. A nível subjectivo trata-se de um crime doloso, que pode assumir qualquer das suas modalidades – directo, necessário ou eventual – cfr. art.º 14º, do CP.


6. No caso concreto, não se suscitam dúvidas quanto ao preenchimento do tipo objectivo e subjectivo do crime em análise relativamente às duas vítimas, porquanto está demonstrado que o arguido, munido da espingarda de caça, calibre 12, municiada com cartuchos, apontou o cano da espingarda na direção da varanda da residência dos ofendidos CC e BB, efetuando vários disparos, assim atingindo esta última, só não lhes causando a morte por motivos exteriores à sua acção e intenção (artigo 22.º, nºs. 1 e 2, alíneas a) e b) do CP).


7. A nível do dolo, verifica-se que o arguido actuou:


- Com dolo directo, quanto à ofendida BB (artigo 14º, nº.1, do CP), ou seja, o resultado morte foi o propósito que alimentou a sua actuação;


- Com dolo eventual quanto ao ofendido CC, ou seja, representando o resultado morte como uma consequência possível da sua actuação, conformando-se com essa mesma possibilidade (nº.3, da citada disposição legal).


8. Quando disparou a espingarda, calibre 12, o arguido encontrava-se a cerca de 35 metros da janela da residência daqueles.


9. Sendo que um cartucho de espingarda calibre 12 com bolinhas de chumbo de 2,5 milímetros alcança 400 metros (pesquisa efectuada no Google).


10. Logo, o meio utilizado pelo arguido não era, como este alega, inidóneo para causar a morte aos ofendidos.


11. Morte essa que não se verificou porque o arguido, não obstante ter efectuado vários disparos, não conseguiu atingir os ofendidos, certeiramente e em zonas vitais.


12. Pelo que incorreu na prática de dois crimes de homicídio tentado.


13. De facto, a sua intenção não era apenas atingir a sua integridade física, mas sim tirar-lhes a vida, tal como anunciou antes de disparar – “vou-te matar CC, ... do caralho”.


14. Assim, bem andou o tribunal a quo ao condenar o Recorrente pelos crimes de homicídio, na forma tentada.


15. No que respeita ao erro notório na apreciação da prova, tal vício verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.


16. A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão abrange as circunstâncias em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.


17. Ora, diga-se desde logo que, do texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação dos apontados vícios posto que daquele decorre que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e dele não resulta qualquer incompatibilidade entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão, assim como nele não se detecta qualquer equívoco ostensivo contrário a facto do conhecimento geral ou ofensivo das leis da física, da mecânica, da lógica ou de conhecimentos científicos criminológicos e vitimológicos.


18. Efectivamente, não obstante na factualidade dada como provada nos pontos 8. (o ponto 9. refere-se à necessidade de se refugiarem em loca onde não houvesse qualquer janela e não aos disparos) se afirmar que após ter atingido BB nas costas e após o ofendido CC lhe ter dito que já havia atingido a sua mulher, o arguido continuou a disparar em direcção não concretamente apurada, o certo é que o mesmo já havia apontado, anteriormente, o cano da espingarda na direcção da varanda da residência dos ofendidos e efectuado vários disparos naquela direcção, onde se encontravam ambos, tendo inclusivamente atingido a ofendida.


19. Pelo que a factualidade dada como provada no ponto 17. em nada colide com a factualidade dada como provada no ponto 8..


20. Foram dados como provados os seguintes factos que não foram impugnados pelo Recorrente:


10. Na sequência de todos os disparos realizados na direção da varanda da residência dos ofendidos CC e BB, o arguido atingiu, em número de vezes não concretamente apurado, a parede e o estore da mesma.


11. Como consequência direta de tais disparos, a parede e estore da varanda da residência dos ofendidos ficaram estragados, com um número indeterminado de orifícios distribuídos por uma área de 258 centímetros de comprimento por cerca de 117 centímetros de largura.


12. De igual modo na sequência dos disparos efetuados pelo arguido, este atingiu, em número de vezes não concretamente apurado, a parede e o estore da varanda da residência da ofendida DD, sita no ... do mesmo prédio, no interior da qual estava a mesma e os seus três filhos menores.


13. Perante tal conduta, a ofendida DD acordou os seus três filhos menores, que se encontravam no quarto cujo estore estava a ser atingido com bagos de chumbo, tendo-os levado para outro compartimento da casa, mais distante da varanda.


14. Em consequência de tais disparos, a parede e o estore da varanda da residência de DD ficaram estragados, com um número indeterminado de orifícios distribuídos por uma área de cerca de 194 centímetros de comprimento por cerca de 93 cm de largura.


15. O arguido cessou a sua conduta quando avistou as autoridades policiais a aproximarem-se do local.


19. Ao atuar nos moldes descritos supra, disparando em direção ao imóvel onde residem os ofendidos, o arguido bem sabia que poderia atingir a parede e o estore da varanda da residência daqueles, bem como as paredes e os estores das residências vizinhas, e que os mesmos poderiam ficar estragados, o que veio a acontecer, não se abstendo, apesar disso, de prosseguir com os disparos.


20. O arguido sabia ainda que, ao atingir os locais que atingiu, iria perturbar e provocar inquietação, medo e receio pelas integridades físicas e vidas das pessoas que se encontravam no interior das residências respetivas (... da Praceta ...), o que efetivamente aconteceu, não se coibindo, ainda assim, de disparar de forma contínua.


21. Assim, não existem dúvidas que a conduta do Recorrente, vertida nesta factualidade dada como provada, integra, pelo menos, um crime de dano, previsto e punível pelo art.º 212.º, n.º 1, do CP.


22. Relativamente ao crime de dano com violência Costa Andrade comenta o preceito deste modo: O crime de dano com violência configura uma forma dependente e qualificada das infracções previstas nos artºs 212° e 213°. Entre dano com violência e estas últimas medeia uma relação de continuidade quanto aos elementos estruturais da factualidade típica. O que impõe uma remissão, de princípio, para a disciplina daqueles preceitos e para os respectivos comentários. Trata-se, por outro lado, de uma qualificação ditada pela especificidade da conduta, sobreponível, à acção típica do roubo. Por isso, cabe também remeter para o regime e o comentário ao crime de roubo para acertar o sentido, o alcance e as implicações práticas da expressão “violência contra uma pessoa, ou ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade resistir” (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, p. 255).


23. Os artigos 210.º, n.º 1 e 214.°do Código Penal, apresentam grande similitude de expressão, repetindo-se as palavras supra referidas e inclusive sendo iguais as penalidades previstas num e noutro dos preceitos para as diferentes formas de lesão: prisão de 1 a 8, de 3 a 15 e de 8 a 16 anos de prisão.


24. Sendo o roubo um crime complexo e pluriofensivo, pois os valores jurídicos tutelados são de ordem patrimonial – direito de propriedade e de detenção de coisas móveis – abrangendo bens jurídicos eminentemente pessoais, como a liberdade individual de decisão e acção, integridade física e até a própria vida alheia, o mesmo se passará com o tipo agravado de dano, em que a lesão ao bem jurídico propriedade, se alcança já não através de uma apropriação de coisa móvel, mas pela destruição, que pode ser parcial, desfiguração de coisa móvel ou imóvel alheia, mas em que a componente de lesão de bens eminentemente pessoais é alcançada pelas condutas descritas com os mesmos termos nos dois tipos, sendo o mesmo o modo de comissão do crime que o qualifica.


25. A propósito de violência no âmbito do Código Penal de 1982, que previa este tipo no artigo 309°, decidiu o STJ (acórdão de 1.4.1992, BMJ 416, 511) que as violências pressupostas no art.º 309.º, nº 1, para além de deverem ser relevantemente violentas para com as pessoas, tinham de ser dirigidas por forma tal que se pudesse dizer que as pessoas foram violentadas directamente com os danos causados.


26. Posteriormente ponderou o Supremo Tribunal de Justiça que a violência contra as pessoas, não tem de ser produto de contacto físico directo com o ofendido, podendo sê-lo por outras maneiras. A lei não exige expressamente esse contacto directo e, por outro, a tranquilidade e a integridade física das pessoas são o bem jurídico protegido conjuntamente com a propriedade. Ora a integridade física, tanto pode ser atingida com contacto directo como indirecto.


27. No mesmo sentido decidiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 Janeiro 2003, reafirmando que «o conceito de violência contemplado no art. 214° do Código Penal abrange tanto a violência física, como psíquica sobre certa pessoa, como também a intervenção física directa sobre coisas, do visado ou de terceiro, que atinjam por via indirecta as pessoas (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 Janeiro 2003, Processo 4098/02 Relator António Pereira Madeira (Ref. 597/2003), disponível na CJ on line).


28. Pode-se assim assentar que este tipo legal (dano com violência), compreende quer a violência física (sobre o corpo de outrem), quer a psíquica (neste sentido, vd, ainda, Acórdão do STJ de 14 de Dezembro de 2006, Santos Carvalho, com o doc. n.º SJ200612140043505 e disponível em www.dgsi.pt).


29. Assim também o Acórdão STJ de 23.01.2003, proc. 4098-02, Pereira Madeira, disponível em www.dgsi.pt: «O conceito de violência, tradicionalmente ligado à simples violência física sobre o corpo da vítima, é hoje um conceito mais abrangente, já que tanto a doutrina como a jurisprudência se inclinam para o englobamento da violência psíquica».


30. Ficou provado que o arguido levou a cabo uma acção delituosa que impediu o livre exercício ou gozo de direitos individuais dos ofendidos.


31. Querendo o arguido tirar a vida ao ofendido CC e, quando disso teve oportunidade, também a BB, não se absteve de disparar contra a parede e estores daquele imóvel.


32. Tal violência, pela madrugada numa casa de habitação quando os seus habitantes dormiam, intimida, constrange e inibe qualquer reacção por parte das vítimas que ficam impossibilitadas de resistir. Tanto é assim que, tolhidos de medo, BB e CC, juntamente com EE, pai da ofendida, refugiaram-se em local onde, dentro da residência, não existe qualquer janela.


33. E tendo atingido ainda a parede e o estore da varanda da residência da ofendida DD, sita no ... do mesmo prédio, no interior da qual estava a mesma e os seus três filhos menores, fez com que aquela acordasse os seus três filhos menores, que se encontravam no quarto cujo estore estava a ser atingido com bagos de chumbo, tendo-os levado para outro compartimento da casa, mais distante da varanda.


34. Criando, assim, uma situação de constrangimento para os ofendidos que, pese embora não preencha o conceito de violência física ou de ameaça (no que respeita a esta conduta), enquadra-se naquelas situações que o legislador entendeu, ainda assim, proteger com o tipo legal em análise, inserindo no conceito de violência (impossibilidade de reacção).


35. De qualquer modo a actuação do arguido integra o conceito de violência psíquica, que é, como vimos, típica.


36. Mas, para que se verifique o crime de dano com violência não basta o emprego de violência, ameaça ou colocação de outrem na impossibilidade de resistir, é necessário que se possa afirmar um nexo de imputação entre a destruição, total ou parcial da coisa alheia e os meios utilizados e que esses meios tenham provocado directamente uma lesão de bens eminentemente pessoais (Supremo Tribunal de Justiça, Secção Criminal, Acórdão de 6 Fevereiro 2008, Processo 3991/07 Relator Raul Borges (Ref. 4682/2008), disponível na CJ on line).


37. Ora isso também ocorre no caso. A actuação do arguido intimidou e perturbou a tranquilidade física e psíquica dos ofendidos; foi constrangedora para os ofendidos a quem afectou e limitou a sua liberdade, obrigando-os a confinar-se noutros locais da casa para não serem directamente atingidos na sua integridade física.


38. A actuação do arguido foi preordenada a um objectivo – atingir a vida de CC – e, para isso, actuou empregando violência de modo a inibir e inviabilizar qualquer reacção de oposição.


39. O que equivale por dizer que se encontra preenchido o nexo de imputação entre o fim danoso e os meios utilizados.


40. No que respeita à não indicação do valor, fácil será recorrer às regras da experiência comum.


41. O tribunal a quo condenou o Recorrente pelo crime previsto no art.º 214.º, n.º 1, al. a) do CP, que remete para o art.º 212.º da mesma disposição legal.


42. Logo, abrangerá qualquer dano, mesmo de valor diminuto (pois neste caso, já seria pela al. b) do art.º 214.º, a que corresponde uma pena de prisão mais elevada).


43. Pelo que, igualmente, bem andou o tribunal a quo ao condená-lo por este tipo de crime.


44.◾O crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelo art.º 132.º do CP, com a agravação a que alude o art.º 86.º, nº 3 da Lei 5/2006, de 23.02, é punível com a pena de 2 anos, 1 mês e 18 dias a 14 anos, 2 meses e 20 dias de prisão.


◾O crime de dano com violência, agravado pelo uso de arma, p. e p. pela conjugação dos arts.º 214.º, alínea a) e 212.º, n.º 1, ambos do CP, e arts.º 2.º, n.º 1, al. ar) e 86.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23.02, é punido com pena de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão


◾O crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23.02, alterada pela Lei n.º 17/2009, de 6.05, é punível com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.


45. Na determinação da medida da pena há que ter em consideração:


↪ a pluralidade de crimes cometidos pelo Recorrente;


↪o dolo, directo e muito intenso no que respeita aos crimes de homicídio na forma tentada e de detenção de arma proibida e necessário no que respeita ao crime de dano com violência, tendo o Recorrente representando o facto como consequência possível da sua conduta, conformando-se com esse resultado;


↪o grau de ilicitude dos factos que é extremamente elevado atentos os bens jurídicos violados e o modo de execução dos crimes – com recurso a uma arma de fogo, colocando os visados numa situação de impossibilidade de resistir, o que demostra indiferença pela vida humana;


↪ o grau de culpa, que é elevado, tendo utilizado uma arma de fogo ultrapassando a barreira ética, que deve ser inultrapassável, da inviolabilidade da vida humana;


↪ a motivação do arguido: querer tirar a vida, desde logo, ao ofendido CC;


↪ as necessidades de prevenção geral, que são muito elevadas nos tipos criminais em causa;


↪ as necessidades de prevenção especial atentos os actos que cometeu e a personalidade que revela quem assim procede;


↪ que já regista antecedentes criminais, não obstante por crimes diferentes;


↪ que não confessou os factos, logo, não revelou arrependimento;


↪ a sua inserção social e familiar.


46. Tudo ponderado, entendeu o tribunal a quo por adequada a aplicação da pena de:


➡ 5 anos e 6 meses de prisão quanto ao crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, na pessoa da ofendida BB;


➡ 4 anos de prisão quanto ao crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, na pessoa do ofendido CC;


➡ 1 ano de prisão pelo crime de detenção de arma proibida.


47. E, em cúmulo jurídico destas penas parcelares, entendeu o tribunal a quo condenar o Recorrente na pena única de 7 (sete) anos de prisão.


48. Tendo em consideração que a soma das penas concretamente aplicadas aos crimes é de 13 anos de prisão e que o limite mínimo é de 5 anos e 6 meses de prisão, a pena única aplicada de 7 anos, muito perto do limite mínimo, mostra-se justa e adequada.


49. pelo que, no caso dos autos, atenta a pena aplicada, com a qual se concorda, não é legalmente possível a suspensão da execução da pena.


50. Os montantes fixados a título de indemnização aos ofendidos são justos face aos motivos expostos no acórdão, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, por se concordar, na integra, com os mesmos.


51. Face ao exposto, concorda-se inteiramente com o veredicto condenatório, por se entender que foi feita justiça e o direito bem aplicado;


52. No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito.


5. O Ex.mo Procurador-geral adjunto, neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder na sua vertente criminal, mantendo-se a decisão recorrida.


6. Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2 do C.P.P. , respondeu ao parecer o recorrente no sentido de relegar a sua resposta para a audiência de discussão e julgamento, “sem prejuízo de se fazer notar que, apesar de aceitar a razão do recorrente quanto à dupla valoração negativa da medida da pena de ter exercido o seu direito ao silêncio, aliás constitucionalmente garantido, ainda assim entende que as penas parcelares e única foram devidamente aplicadas, não se revelando excessivas !... Omitindo por completo pronúncia sobre o desvalor do resultado, porquanto o mesmo, salvo melhor opinião foi diminuto (art.71.º, n.º2, al. a) do CP).”.


7. Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.


II- Fundamentação


8. A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes do acórdão recorrido é a seguinte:


Factos provados


1. No dia 28 de fevereiro de 2021, pelas 02:50h, o arguido, que se encontrava na Rua ..., paralela e acima da Praceta ..., munido de uma espingarda caçadeira de calibre 12, começou a descer o monte ali existente em direção à residência de CC, sita no ... da Praceta ....


2. Enquanto descia, o arguido apontou o cano da espingarda para o ar, efetuando vários disparos, e em tom sério, gritou, na direção da residência de CC, o seguinte: “vou-te matar CC, ... do caralho!”.


3. Em simultâneo, e de forma alternada com os disparos para o ar, o arguido apontou o cano da espingarda em direção ao Lote... da Praceta ..., efetuando vários disparos.


4. Após, voltou a subir o monte em direção à Rua ..., de modo a colocar-se ao nível da residência do ofendido CC, distando cerca de 35 metros da janela da residência.


5. Aí, o arguido colocou-se em frente à residência do ofendido CC, tendo avistado BB, mulher de CC, na varanda.


6. Ato contínuo, o arguido apontou o cano da espingarda na direção da varanda da residência dos ofendidos CC e BB, efetuando vários disparos, assim atingindo esta última, que, à data, se encontrava grávida de 37 semanas, com quatro bagos de chumbo na zona das costas.


7. Em virtude de tais disparos, a ofendida sofreu dois ferimentos à direita da linha média da região lombar, com 0,5cm de diâmetro cada, e dois ferimentos no quadrante súpero-externo da nádega, com 0,5cm de diâmetro cada, que lhe causaram dor e sofrimento.


8. Após atingir a ofendida BB nas costas, o ofendido CC gritou, junto da varanda da sua residência, pelo menos o seguinte: “já atingiste a minha mulher”, após o que o arguido continuou a disparar em direção não concretamente apurada.


9. Perante tal conduta, os ofendidos BB e CC, juntamente com EE, pai da ofendida, refugiaram-se em local onde, dentro da residência, não existe qualquer janela.


10. Na sequência de todos os disparos realizados na direção da varanda da residência dos ofendidos CC e BB, o arguido atingiu, em número de vezes não concretamente apurado, a parede e o estore da mesma.


11. Como consequência direta de tais disparos, a parede e estore da varanda da residência dos ofendidos ficaram estragados, com um número indeterminado de orifícios distribuídos por uma área de 258 centímetros de comprimento por cerca de 117 centímetros de largura.


12. De igual modo na sequência dos disparos efetuados pelo arguido, este atingiu, em número de vezes não concretamente apurado, a parede e o estore da varanda da residência da ofendida DD, sita no ... do mesmo prédio, no interior da qual estava a mesma e os seus três filhos menores.


13. Perante tal conduta, a ofendida DD acordou os seus três filhos menores, que se encontravam no quarto cujo estore estava a ser atingido com bagos de chumbo, tendo-os levado para outro compartimento da casa, mais distante da varanda.


14. Em consequência de tais disparos, a parede e o estore da varanda da residência de DD ficaram estragados, com um número indeterminado de orifícios distribuídos por uma área de cerca de 194 centímetros de comprimento por cerca de 93 cm de largura.


15. O arguido cessou a sua conduta quando avistou as autoridades policiais a aproximarem-se do local.


16. O arguido não é titular de qualquer licença de uso e porte de arma nem das suas munições.


17. Ao disparar na direção da varanda da residência dos ofendidos, o arguido previu como consequência possível da sua conduta atingir o ofendido CC e, assim, tirar-lhe a vida, conformando-se com esse resultado, que só não logrou atingir por motivos que lhe são alheios.


18. Ao disparar na direção da ofendida BB, logo após a ter visto na varanda, atingindo-a, o arguido representou e quis atingir órgãos vitais da ofendida e, assim, tirar-lhe a vida, o que só não aconteceu por motivos que lhe são alheios.


19. Ao atuar nos moldes descritos supra, disparando em direção ao imóvel onde residem os ofendidos, o arguido bem sabia que poderia atingir a parede e o estore da varanda da residência daqueles, bem como as paredes e os estores das residências vizinhas, e que os mesmos poderiam ficar estragados, o que veio a acontecer, não se abstendo, apesar disso, de prosseguir com os disparos.


20. O arguido sabia ainda que, ao atingir os locais que atingiu, iria perturbar e provocar inquietação, medo e receio pelas integridades físicas e vidas das pessoas que se encontravam no interior das residências respetivas (... da Praceta ...), o que efetivamente aconteceu, não se coibindo, ainda assim, de disparar de forma contínua.


21. O arguido bem sabia que não era titular de qualquer licença de uso e porte de arma e que não possuía armas registadas em seu nome.


22. Não obstante saber que a posse da referida arma sem qualquer licença para o seu uso e porte ou para a sua mera detenção não é permitida e é punida por lei, tal não coibiu o arguido de com ela praticar os disparos supra descritos.


23. O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.


Mais se provou:


24. O arguido não prestou declarações.


Pedido de Indemnização Civil:


25. Por via da atuação do arguido, o ofendido CC teve receio pela sua vida, pela vida da sua mulher e pela vida do filho, que aquela à data carregava no ventre.


26. Por via da atuação do arguido, a ofendida BB teve receio pela sua vida, pela vida do marido e pela vida do filho, que então carregava no ventre.


27. Por via da atuação do arguido, os ofendidos ainda hoje se mantêm atentos, no sentido de com ele não se cruzar, com receio do que possa voltar a fazer.


28. Por via da atuação do arguido, os ofendidos passaram, pelo menos, algumas noites sem dormir, sofrendo ainda pesadelos.


Condições Pessoais/Relatório Social


29. AA é o mais novo de quatro descendentes e provém de uma família de etnia cigana.


30. Apesar dos rendimentos irregulares dos pais, ambos vendedores-ambulantes, o núcleo doméstico não atravessou dificuldades económicas porquanto o progenitor era detentor de uma herança familiar avultada.


31. No seu trajeto de socialização, aponta-se a exposição a meios residenciais onde proliferam comportamentos desviantes de referência pró-criminal.


32. Devido a fases litigância vicinal, foi imposta ao arguido a saída/expulsão da comunidade de origem em diversos períodos temporais.


33. Apesar do pai ter assumido uma postura rígida ao nível da supervisão parental, o modelo educativo revelou-se globalmente permissivo e sobre protetor, o que terá contribuído para a dificuldade do arguido em lidar com a rejeição ou frustração na transição para a vida adulta.


34. Na sequência da desvalorização da componente escolar, o mesmo concluiu o segundo ano, tendo a posteriori frequentado um curso de literacia. Todavia, apesar da respetiva conclusão, aquele manifesta dificuldades acentuadas de leitura e de escrita.


35. Realça-se ainda o desinvestimento na aquisição de competências profissionais, porquanto a sua atividade circunscreveu-se à colaboração com os progenitores na venda ambulante.


36. Ao nível dos relacionamentos conjugais e de acordo com os preceitos culturais apreendidos, o arguido contraiu matrimónio aos 17 anos de idade com uma jovem de 14 anos. O casal tem dois descendentes com 3 e 11 anos.


37. AA atravessou um curto período temporal de consumo de cocaína e, por iniciativa própria, cessou o consumo daquela substância há cerca de dois anos.


38. Comparativamente à data dos factos em julgamento, não se assinalam alterações no contexto vivencial de AA, porquanto se mantém a residir com os progenitores, a esposa e dois filhos numa casa arrendada associada a um encargo de 250 euros mensais.


39. Presentemente, o cenário económico é percecionado como insuficiente na sequência da desocupação dos vários elementos do agregado, cuja subsistência é assegurada pelo apoio estatal (rendimento social de inserção no valor de 700 euros) e pela ajuda de familiares e do Banco Alimentar.


40. Os seus tempos livres são maioritariamente despendidos em atividades com a família.


41. O clima relacional é descrito como coeso, sendo que a esposa realça as competências parentais do arguido.


42. Aquele desvaloriza o consumo abusivo de bebidas alcoólicas (cerca de 20 unidades diárias de cerveja), conquanto afirme ter recentemente diminuído o padrão mencionado.


43. Pese embora se encontre desempregado há vários anos, o arguido refere dedicar--se pontualmente à compra e venda de automóveis usados e à respetiva distribuição de panfletos publicitários, não se identificando fatores motivacionais dirigidos à procura de alternativas ocupacionais.


44. Em termos das características pessoais demonstradas no decurso da interação presencial, AA denota limitações na gestão de emoções e de impulsos, perante as quais denota relativa consciência.


45. Apesar de se mostrar transtornado com a medida de coação aplicada, direcionada à apresentação diária na esquadra da PSP da sua área de residência, AA não elenca outras repercussões da situação jurídico-penal.


Antecedentes Criminais


46. Do certificado de registo criminal do arguido constam as seguintes condenações anteriores:


a. No Processo Sumário n.º 118/13.0..., do Juízo de Pequena Instância Criminal de ..., por sentença datada de 1 de julho de 2013, transitada em julgado em 23 de setembro de 2013, foi condenado pela prática, no dia 30 de junho de 2013, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 e na pena acessória de proibiçãodeconduzirveículos motorizados por3meses.Ambas as penas se mostram extintas respetivamente pelo pagamento e pelo cumprimento.


b. No Processo Sumário n.º 543/14.9..., do Juízo Local Criminal de ..., por sentença datada de 29 de maio de 2014, transitada em julgado em 30 de junho de 2014, foi condenado pela prática, no dia 29 de maio de 2014, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e de um crime de condução sem habilitação legal, na pena única de 110 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 3 meses. Ambas as penas se mostram extintas, respetivamente pelo pagamento e pelo cumprimento.


c. No Processo Comum Singular n.º 177/10.7..., do Juízo Local Criminal de ..., por sentença datada de 16 de junho de 2014, transitada em julgado em 3 de setembro de 2014, foi condenado pela prática, no dia 5 de maio de 2010, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5,00. A pena mostra-se extinta pelo pagamento da multa.


d. No Processo Sumário n.º 103/18.5..., do Juízo Local Criminal da ..., por sentença datada de 8 de outubro de 2018, transitada em julgado em 7 de novembro de 2018, foi condenado pela prática, no dia 6 de outubro de 2018, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 horas de trabalho a favor da comunidade. A pena mostra-se extinta pelo cumprimento.


Factos não provados


Do julgamento realizado nos presentes autos não resultou demonstrada a seguinte factualidade constante da acusação e do pedido de indemnização civil:


a. Sem prejuízo da matéria assente em 1., que a espingarda caçadeira de calibre 12 em questão fosse da marca “Pietro Beretta”, modelo A-304LU, com o n.º de série .....6E.


b. Sem prejuízo da matéria assente em 2., que a expressão em questão tenha sido gritada pelo arguido antes de começar a realizar disparos.


c. Sem prejuízo da matéria assente em 5., que o arguido tivesse avistado BB junto da varanda, a espreitar por baixo do estore, que então se encontrava semiaberto.


d. Sem prejuízo da matéria assente em 6., que o arguido soubesse que a ofendida estava grávida, em estado avançado.


e. Sem prejuízo da matéria assente em 8., que o arguido tivesse continuado a disparar na direção da varanda da residência dos ofendidos.


f. Sem prejuízo da matéria assente em 9., que os ofendidos BB e CC, juntamente com EE, se tivessem refugiado na cozinha.


g. Que, ao efetuar disparos na direção dos ofendidos BB e CC, o arguido tivesse agido determinado por motivos torpes e fúteis, decorrentes de desavenças anteriores com os ofendidos.


h. Que a conduta do arguido tivesse deixado marcas profundas na vida dos ofendidos BB e CC, dificultando a sua vida diária, a sua integração na sociedade, colocando em causa a sua autoestima e sentido de auto valorização.


Convicção do Tribunal


No que respeita à matéria de facto dada como provada e não provada formou o Tribunal a sua convicção na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como em toda prova documental e pericial constante dos autos e considerada igualmente analisada naquela sede.


Teve ainda em conta este Tribunal as regras da vida e da experiência comum, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova ínsito no art.127.º do Código de Processo Penal.


1 - Os presentes autos iniciaram-se com o auto de notícia por detenção de fls. 3 a 7, dando conta de um episódio de tiros realizados com uma arma caçadeira, ocorrido na madrugada do dia 28 de fevereiro de 2021.


Realizado o julgamento é inquestionável terem sido disparados tiros em direção ao lote ... da Praceta ..., concretamente, em direção à residência dos ofendidos CC e BB, tendo esta última, então grávida de 37 semanas, sido atingida quer na zona lombar quer no quadrante súpero-externo da nádega (cf. relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 238 a 240).


Por outro lado, é incontornável que quem o fez, fê-lo com uma espingarda caçadeira de calibre 12, sendo tanto em razão dos cartuchos deflagrados apreendidos (cartuchos de caça calibre 12), e independentemente de a arma em questão ser ou não aquela que foi apreendida nos autos, na medida em não foi realizado o respetivo


Por seu turno, o percurso do atirador é atestado pelos locais de recolha dos cartuchos deflagrados, conforme relatório de exame pericial elaborado pela PJ, a fls. 173 a 201, sendo ainda em conjugação com os depoimentos dos ofendidos CC e BB, que o colocam no local dos factos nos termos trazidos a julgamento.


Sobre as circunstâncias e momento em que é atingida, distingue-se o depoimento da própria vítima BB, ao esclarecer com efetiva relevância, que tal coincidiu com o instante em que estava na varanda ( ), o que é diferente de estar junto da varanda a espreitar por baixo do estore (conforme vinha descrito na acusação e que por isso motivou uma alteração não substancial dos factos nessa parte).


Elucidativo foi de igual modo o depoimento da vítima, ao afirmar, como afirmou, que depois dos tiros, referindo-se aos primeiros que percebeu como tal e não aos que a atingiram, ouviu o atirador gritar a seguinte expressão: “... do caralho, CC, vou-te matar”, identificando nessa expressão o destinatário dos mesmos, a saber, o seu companheiro (ofendido CC), consigo residente na mesma habitação.


Finalmente, e sobre o momento em que o atirador tem necessariamente a perceção da presença de uma segunda pessoa, foi também demonstrativo o depoimento da vítima, ao relatar a expressão então proferida pelo seu companheiro (CC), gritando para o atirador: “já atingiste a minha mulher!”


Menos claro, concede-se, foi o depoimento do ofendido CC, ao ponto de suscitar a abertura em julgamento do depoimento que, a fls. 18 e 19, prestou em sede de inquérito. Não obstante, suficientemente esclarecedor, ao relatar, a instâncias do Ministério Público, como ele próprio se colocou junto da varanda após a sua mulher ser atingida, sem que os tiros cessassem. Contudo, não afirmou que o atirador tivesse continuado a disparar na direção da varanda dos ofendidos, mas antes na direção da viatura do ofendido, sem prejuízo de, ainda na curva, o ter tentado fazer sem sucesso na sua direção, porquanto a arma encravou.


Acrescentou que o atirador tornou a disparar, mas quando já se encontrava junto da própria casa (referindo-se à casa do arguido), ficando nós sem compreender em que direção o fez, mas de qualquer modo esclarecidos quanto à necessidade de todos eles (BB, CC e EE, pai da primeira) se refugiarem em local da casa onde, pelo menos, não existisse qualquer janela (referiram o corredor e não a cozinha).


2- Aqui chegados, temos como certo que quem disparou tinha como alvo principal o ofendido CC, e que por isso disparou na direção da varanda da residência dos ofendidos, prevendo como consequência possível da sua conduta atingi-lo e, assim, tirar-lhe a vida.


Outrossim, procurou atingir a ofendida BB, que de facto atingiu, logo após a ter visto na varanda.


3 - De igual modo é verdadeiro que a parede e estore da varanda dos ofendidos BB e CC foram atingidos pelos disparos, tal como o foram a parede e o estore da varanda da residência da vizinha de baixo (3.º B), a testemunha DD, sendo tanto nos termos considerados assentes, e conforme alteração não substancial quanto à residência desta última, porquanto as áreas atingidas há muito que se encontravam apuradas nos autos, o que apenas não foi anteriormente conseguido pelo Ministério Público por errada interpretação dos vestígios identificados a fls. 196 pela PJ (o vestígio 21 refere-se ao 3.º B, enquanto o vestígio 22 se refere ao 4.º B).


4 - Tudo considerado, e sendo efetiva a ausência de colaboração do arguido com vista à descoberta da verdade material, desconhecendo-se-lhe qualquer versão dos factos (na medida em que optou por não prestar declarações), nada obsta a que possamos concluir pela autoria dos mesmos pelo arguido, ainda que a defesa o tenha contestado (sem prejuízo de ter aceitado, pelo menos em alegações finais, a ocorrência dos disparos).


Com efeito, e pese embora a defesa tenha procurado, no limite, a aplicação a favor do arguido do princípio in dubio pro reo, certo é que os ofendidos BB e CC lhe atribuem claramente a autoria dos disparos, identificando-o por morar na mesma área geográfica, não vacilando quanto ao seu papel de atirador, correspondente, aliás, mesmo que de forma residual, à conclusão respeitante ao exame pericial obtido a esse mesmo propósito (cf. ref. ......31, ap. 17.01.2022, coincidência das partículas detetadas nas amostras recolhidas no arguido com elementos municiais deflagrados, todos calibre 12).


Nessa medida, e pese embora tenham em absoluto ficado por apurar as razões que presidiram à atuação do arguido, concretamente, a ocorrência de quaisquer desavenças anteriores (logo, que tivesse agido determinado por motivos torpes e fúteis), bem como sequer que o mesmo conhecesse o estado de gravidez da ofendida BB, assentou a convicção deste tribunal quanto à autoria dos factos por aquele no depoimento destes últimos, que assim o afirmaram de modo a não deixar objeções.


5 - Quanto ao pedido de indemnização civil deduzido pelos ofendidos BB e CC contra o arguido, e sem prejuízo daquilo que a esse propósito considerámos assente com base em critérios de senso comum, certo é que, quanto ao demais, considerámo-lo excessivo ( que a conduta do arguido tivesse deixado marcas profundas na vida dos ofendidos BB e CC, dificultando a sua vida diária, a sua integração na sociedade, colocando em causa a sua autoestima e sentido de auto valorização ), desde logo porque ficaram por apurar as razões subjacentes à atuação do arguido, de modo a justificar a pretendida dimensão.


6 - A propósito das condições pessoais do arguido, foi considerado o relatório social para julgamento produzido pela DGRSP, onde se abordam as respetivas condições sociais e pessoais.


7 - Por último, as condenações tidas como assentes foram alcançadas a partir do certificado de registo criminal do arguido, junto de forma atualizada aos autos.


*


9. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 1 e de 24-3-1999 2 e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, pág. 103).


São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar 3, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.


Como bem esclarecem Simas Santos e Leal-Henriques, « Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art.684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).


No caso dos autos , face às conclusões da motivação do recorrente AA as questões a decidir são as seguintes:


1.ª Da existência dos vícios a que aludem as alíneas a), b) e c), n.º2 do art.410.º do C.P.P.;


2.ª Dos crimes de homicídio, sob a forma tentada;


3.ª Da qualificação jurídica do dano;


4.ª Da medida das penas parcelares e única;


5.ª Da suspensão da execução da pena; e


6.ª Do valor da indemnização civil.


1.ª Questão: Dos vícios a que aludem as alíneas a), b) e c), n.º2 do art.410.º do C.P.P.


10. O recorrente AA defende que o acórdão recorrido padece dos vícios de erro notório na apreciação da prova, bem como de contradição insanável entre a fundamentação e os factos provados, relativamente ao crime de homicídio, sob a forma tentada em que é ofendido CC, porquanto na própria fundamentação, na esteira dos factos provados nos pontos n.ºs 8.º e 9.º, acaba por afirmar que, efetivamente, o arguido terá disparado na direção da viatura do ofendido donde, não podia ser condenado por uma tentativa de homicídio quando se desconhece a direção dos disparos (cf. pontos n.ºs 8.º, 9.º e 17.º da matéria assente).


O acórdão padece ainda, no entender do recorrente, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto, por ausência do valor das coisas “estragadas” e, bem assim, do efetivo prejuízo causado.


10.1. Recordemos, primeiramente e de modo sucinto, em que consistem estes vícios enunciados no art.410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.


Esta norma processual, estatui que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:


a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;


b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou


c) O erro notório na apreciação da prova.


Os vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P., que são de conhecimento oficioso, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.


As normas da experiência comum são, na lição de Cavaleiro de Ferreira «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.».4


O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) deste preceito, existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.


Como bem anota Pereira Madeira “Se se constatar que o tribunal averiguou toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objecto do Processo – ainda que toda ela tenha porventura obtido resposta de «não provado», então o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão”5.


O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, a qual resulta da convicção do julgador e das regras da experiência ( art.127.º do C.P.P.).


Para afirmação deste vício importa, pois, perspetivar o objeto do processo, fixado pela acusação e/ou pela pronúncia, complementada pela pertinente defesa.


Em conclusão, só existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto provada se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes que integram o objeto do processo e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa.6


O vício da contradição insanável a que alude a alínea b) em apreciação, existirá, por sua vez, quando se afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa.


Ocorrerá este vício, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.


Como assertivamente escrevem Simas Santos e Leal Henriques, «Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.»7.


Este vício não se verifica quando o recorrente fundamenta o seu recurso na valoração da prova de modo diverso daquela que o tribunal entendeu, nem quando o resultado a que o juiz chegou na decisão advém, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal que entendeu melhor corresponder aos factos provados.

Por fim, o erro notório na apreciação da prova, imputado ao acórdão recorrido, consiste num vício de apuramento da matéria de facto que, como todos os outros vícios do n.º2 do art.410.º do C.P.P., prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos juntos aos autos.

Verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

No dizer de Leal-Henriques e Simas Santos existe “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. 8

Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).

Este vício tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média.

Nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento.

Posto isto, vejamos se o arguido AA tem razão.


10.2. Comecemos pela apreciação dos vícios de erro notório na apreciação da prova, bem como de contradição insanável entre a fundamentação e os factos provados, que no entender do recorrente se verificam através da conjugação da factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 8, 9 e 17, com um segmento da fundamentação do acórdão recorrido.


Recordemos, pois, antes do mais, os pontos n.ºs 8, 9 e 17 e o segmento da fundamentação do acórdão recorrido a que alude o recorrente:


Pontos n.ºs 8, 9 e 17:


«8. Após atingir a ofendida BB nas costas, o ofendido CC gritou, junto da varanda da sua residência, pelo menos o seguinte: “já atingiste a minha mulher”, após o que o arguido continuou a disparar em direção não concretamente apurada.


9. Perante tal conduta, os ofendidos BB e CC, juntamente com EE, pai da ofendida, refugiaram-se em local onde, dentro da residência, não existe qualquer janela.


17. Ao disparar na direção da varanda da residência dos ofendidos, o arguido previu como consequência possível da sua conduta atingir o ofendido CC e, assim, tirar-lhe a vida, conformando-se com esse resultado, que só não logrou atingir por motivos que lhe são alheios” .».


Fundamentação:


Menos claro, concede-se, foi o depoimento do ofendido CC, ao ponto de suscitar a abertura em julgamento do depoimento que, a fls. 18 e 19, prestou em sede de inquérito. Não obstante, suficientemente esclarecedor, ao relatar, a instâncias do Ministério Público, como ele próprio se colocou junto da varanda após a sua mulher ser atingida, sem que os tiros cessassem. Contudo, não afirmou que o atirador tivesse continuado a disparar na direção da varanda dos ofendidos, mas antes na direção da viatura do ofendido, sem prejuízo de, ainda na curva, o ter tentado fazer sem sucesso na sua direção, porquanto a arma encravou.


Acrescentou que o atirador tornou a disparar, mas quando já se encontrava junto da própria casa (referindo-se à casa do arguido), ficando nós sem compreender em que direção o fez, mas de qualquer modo esclarecidos quanto à necessidade de todos eles (BB, CC e EE, pai da primeira) se refugiarem em local da casa onde, pelo menos, não existisse qualquer janela (referiram o corredor e não a cozinha).”.


Analisando a matéria de facto ora descrita e respetiva fundamentação do acórdão recorrido invocada pelo recorrente, verificamos que a mesma concerne ao ofendido CC.


A factualidade descrita no ponto n.º17, do acórdão recorrido, respeita ao chamado elemento do tipo subjetivo do crime de homicídio, sob a forma tentada, na modalidade de dolo eventual, imputado ao arguido.


Dela resulta que o arguido AA, ao disparar na direção da varanda da residência dos ofendidos, previu como consequência possível da sua conduta atingir o ofendido CC e, assim, tirar-lhe a vida, conformando-se com esse resultado, que só não logrou atingir por motivos que lhe são alheios.


Do ponto n.º 8 retira-se, no essencial, que após a ofendida BB ter sido atingida nas costas, estando o ofendido CC junto da varanda da sua residência, gritou para o arguido que este tinha atingido a sua mulher. O arguido continuou a disparar, mas em direção não concretamente apurada.


O ponto n.º 9 do acórdão recorrido limita-se a narrar o local da residência para o qual os ofendidos e o pai da ofendida se refugiaram.


Por fim, do segmento da fundamentação da matéria de facto, ora transcrita, conclui-se que o depoimento do ofendido CC permitiu ao Tribunal a quo esclarecer, designadamente, qual o local onde se encontra ( junto da varanda) após a sua mulher ser atingida e como em seguida o arguido continuou a disparar tiros, embora já não na direção da varanda dos ofendidos, mas antes na direção da viatura do ofendido, sem prejuízo de, ainda na curva, o ter tentado fazer sem sucesso na sua direção, porquanto a arma encravou.


Não havendo qualquer referência na factualidade descrita nos pontos n.ºs 8 e 9 dos factos dados como provados a disparos na direção da varanda da residência dos ofendidos (a que se faz referência no ponto n.º17), nem a disparos na direção da viatura do ofendido (como é referido no segmento da fundamentação do acórdão recorrido), impõe-se, naturalmente, enquadrar estes factos provados e a respetiva fundamentação.


Procedendo ao enquadramento daqueles factos, através da leitura dos pontos n.ºs 2 a 6, 10, 11 e 15, verificamos que antes do arguido haver disparado uma espingarda caçadeira de calibre 12 em direção à ofendida BB, quando a viu na varanda da residência dela e de ofendido CC, a cerca de 35 metros de distância, onde a veio atingir com quatro bagos de chumbo nas costas, já ele fizera com a mesma arma vários disparos em direção a esta residência, gritando “vou-te matar CC, ... do caralho!” , atingindo em número de vezes não concretamente apurado, a parede e o estore da varanda, causando um número indeterminado de orifícios distribuídos por uma área de 258 cm de comprimento por cerca de 117 cm de largura, só cessando de disparar quando avistou as autoridades policiais a aproximarem-se do local.


Os disparos referidos na última parte do ponto n.º 8 dos factos provados, “em direção não concretamente apurada” só ocorrem, pois, após o ofendido CC ter gritado para o arguido que este já havia atingido a sua mulher, a ofendida BB.


Deste modo, não existe qualquer colisão racional entre a factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 8 e 9 com a factualidade do ponto n.º 17, nem entre estes factos provados com quaisquer outros pontos da factualidade dada como provada (ou não provada).


Essa factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo não se mostra, ainda, em contradição e, menos ainda insanável, com a fundamentação da matéria de facto, pois como já se consignou, o ofendido CC declarou que após a sua mulher ter sido atingida, o arguido continuou os disparos, mas na direção da viatura do ofendido. Ou seja, o Tribunal a quo refere que o ofendido CC não afirmou que, após o arguido ter atingido a sua mulher, este continuou a díspar em direção da varanda da residência dos ofendidos.


Referindo-se esta fundamentação da matéria de facto apenas ao segundo momento dos disparos, que ocorre após o arguido ter atingido a ofendida BB com tiro de caçadeira, não tem sentido lógico a afirmação do arguido/recorrente de que este terá disparado na direção da viatura do ofendido, donde, não podia ser condenado por uma tentativa de homicídio do ofendido CC quando se desconhece a direção dos disparos.


Analisando o texto da decisão recorrida, nomeadamente a fundamentação da matéria de facto, e mais concretamente ainda o exame critico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, não vemos que o Tribunal a quo, ao decidir a matéria de facto dada como provada, nos pontos n.ºs 8, 9 e 17 do acórdão recorrido, tenha seguido um raciocínio ilógico, arbitrário ou contraditório, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, de onde se possa concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova.


10.3. A terminar o conhecimento desta primeira questão, vejamos se o acórdão recorrido padece do invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto, por ausência do valor das coisas “estragadas” e, bem assim, do efetivo prejuízo causado (conclusão XXXIII da motivação do recurso).

O tipo fundamental do crime de dano consta do art.212.º do Código Penal, consistindo o tipo objetivo de ilícito na destruição, danificação, desfiguramento ou inutilização de coisa alheia.

O legislador quis proteger com esta norma a coisa corpórea em toda a sua integralidade, procurando salvaguardar o seu estado, a sua substância, o seu aspeto estético e a sua funcionalidade.

No caso de destruição total da coisa, existe coincidência entre o valor do dano e o da coisa; nos demais casos, o prejuízo causado pela ação do agente já não tem de coincidir com o valor da coisa.

Como assertivamente esclarece Manuel da Costa Andrade “o valor do dano afere-se pelos custos da reparação e da desvalorização da coisa; tratando-se de lesão irreparável, pelo valor da coisa no momento do facto.”.9

O art.214.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, ao agravar os factos descritos no art.212.º (como no art.213.º) do mesmo Código, «se forem praticados com violência contra uma pessoa ou ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir», não faz referência a um concreto valor.

Embora não esteja escrito no tipo fundamental do crime de dano, como não está no crime de dano com violência, para o facto atingir o limiar da dignidade penal não pode deixar de se exigir, por um lado, que a coisa tenha algum valor e, em segundo lugar e complementarmente, que a conduta lesiva se revista de algum relevo.10

No caso concreto, resulta da factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 10, 11, 12 e 13 e 14 do acórdão recorrido, que em consequência direta dos disparos efetuados pelo arguido na direção da residência dos ofendidos CC e BB, ficou estragada a parede e o estore da varanda da residência destes, por terem sido atingidos com bagos de chumbo, que causaram um número indeterminado de orifícios, distribuídos por uma área de 258 cm por cerca de 117 cm de largura.

Não consta dessa factualidade provada, nem de outra, o concreto valor dos estragos na varanda e estore da varanda da residência dos ofendidos CC e BB.

Ainda assim, resulta das regras da experiência comum que os inúmeros bagos de chumbo de espingarda caçadeira que estragaram o estore da varada e a parede da residência dos ofendidos CC e BB, distribuídos por uma área não despicienda de 258 cm por cerca de 117 cm de largura, são danos com algum valor e relevo.

Não se tendo apurado o valor dos estragos causados na varanda e estore da varanda da residência destes ofendidos, entende o Ministério Público que deverá fazer-se apelo à jurisprudência deste Supremo Tribunal a propósito dos crimes de furto, em que não se conseguindo determinar o valor dos objetos subtraídos, tem preconizado, em benefício do arguido, que o mesmo é insignificante e diminuto. Remetendo o crime de dano com violência, previsto no art.214.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, para o art.212.º da mesma disposição legal, a norma abrangerá qualquer dano, mesmo de valor diminuto (exceto, evidentemente, o dano de valor elevado ou de valor consideravelmente elevado, que integram circunstâncias do dano qualificado previsto no art.213.º, n.º1, alínea a) e 2, alínea a) do Código Penal).

Efetivamente, a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem decidido que não se conseguindo apurar o valor da coisa furtada ou objeto de roubo, para não desfavorecer o arguido, deverá considerar-se na qualificação jurídico-penal do tipo o valor mais favorável ao mesmo , que será o de valor diminuto.

Assim, o decidiram, entre outros:

O acórdão do S.T.J. de 05-05-2021 (proc. n.º 53/20.5GHCTB.C1.S1): “Não se apurando o valor da coisa furtada, tem de considerar-se, para o efeito previsto no n.º 4 do art. 204.º do CP, que esse valor é diminuto.”; e

O acórdão do S.T.J. de 21/1/2021 (proc. 202/20.3PAPTM.S1):“A determinação do valor das quantias monetárias suscetíveis de apropriação é essencial, como pressuposto da qualificação ou não do crime de roubo e da determinação da moldura penal abstrata. Quando dos factos provados não consta qualquer indicação sobre o valor - quantificado ou quantificável, por referência a valores monetários - das coisas tentadas roubar, e não sendo tal valor revertível à noção de facto notório, porque necessita ser provado, a ausência de circunstâncias que permitam ao menos uma quantificação aproximada, relevante e segura para satisfazer o respeito pelo princípio da tipicidade, não pode ser interpretada in pejus, em desfavor do arguido. Nesse caso, na qualificação jurídico-penal apenas se poderá considerar o valor mais favorável, contido na definição legal de valor diminuto, não podendo ter lugar a qualificação do crime (art.204.º, n.º 2, al. f, do CP) por efeito do disposto no art.204.º, n.º 4”; e

Não se vislumbram razões para não adaptar a jurisprudência seguida a este propósito nos crimes de furto ou de roubo, ao crime de dano, quando dos factos provados não resulta apurado o prejuízo da coisa “estragada”, no sentido de danificada, e considerar que o prejuízo causado na coisa corresponde ao valor diminuto a que alude o art.202.º, alínea c) do Código Penal.11

O próprio recorrente na conclusão XXXI da motivação do seu recurso menciona que, sem prejuízo da invocação da existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, não constando da factualidade provada o valor concreto dos estragos na parede e nos estores causado pela conduta do arguido, estes teriam de considerar-se de “valor diminuto”, atendendo ao princípio in dúbio pro reo e às regras da experiência comum.

Perante todo o exposto, não resultando do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, que os factos provados, não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa, não se reconhece também a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Perante o exposto, improcede a primeira questão.


2.ª Questão: dos crimes de homicídio, sob a forma tentada


11. O recorrente AA defende que não deveria ter sido condenado pela prática de dois crimes de homicídio, sob a forma tentada, alegando, em síntese, o seguinte:


- O n.º3 do art.23.º do Código Penal, condiciona a não punibilidade da tentativa impossível à manifesta inidoneidade do meio empregado ou à inexistência do objeto, significando, pois, que se, pelo menos, na aparência se verifica um perigo objetivo, pela intranquilidade que o ato cria, a tentativa é punível;


- Decorre da lição de Figueiredo Dias, que a tentativa impossível será punível se, razoavelmente, segundo as segundo as circunstâncias do caso e de acordo com um juízo ex ante, ela era ainda aparentemente possível ou não era já manifestamente impossível e, da posição de Germano Marques da Silva, resulta que a tentativa, definida pelo art.º 22.º, do Código Penal, só não é punível quando embora os atos do agente sejam atos de execução (capazes de ofender o bem jurídico), seja patente (objetivamente) que naquela circunstância concreta não podem ofender o bem jurídico. A mesma ideia decorre do acórdão do S.T.J. de 12-3-2009 (proc. n.º 07P1769);


- O acórdão recorrido não demonstra que motivos alheios à vontade do arguido o levaram a não que consumasse os homicídios, quer a título de dolo direto (ofendida BB), quer eventual (ofendido CC).


Porém, da matéria de facto dada como assente nos pontos n.ºs 4, 7 e 18, do mesmo acórdão, retira-se que, relativamente à ofendida BB, a não consumação do crime resultou da impossibilidade de se alcançar o objetivo final à luz das regras da experiência, da normalidade, baseado num juízo ex ante de prognose póstuma, considerando a distância de 35 metros a que foi disparada a arma de fogo, as zonas atingidas e os ferimentos superficiais e leves que lhe foram causados. Não sendo os atos de execução idóneos a produzir o resultado típico do crime de homicídio, nos termos do disposto nos artigos 22.º, n.º2, al. b) e 23.º, n.º3 do C.P., deveria o arguido ter sido condenado pelo crime de ofensas corporais simples, agravado pelo uso de arma.


Por maioria de razão, face à matéria de facto dada como assente nos pontos n.ºs 4, 8, 9 e 17 do mesmo acórdão, nomeadamente, por não se ter apurado que o arguido disparou na direção do ofendido CC como se extrai do ponto n.º 8 dos factos provados, jamais podia prever como consequência possível da sua conduta tirar-lhe a vida, conformando-se com esse resultado, pelo que deve ser absolvido.


Quando muito, apesar da indefinição factual que o permitisse, poderia o arguido ter cometido o crime tentado de ofensas corporais simples, posto que o uso da arma sempre permitiria a punibilidade da tentativa.


Vejamos se assim é.


11.1. Atendamos, em primeiro lugar, às normas penais alegadamente violadas na decisão recorrida.


Dispõe o art.131.º do Código Penal que «quem matar outra pessoa é punido com pena de 8 a 16 anos.».


Em termos muito sintéticos, anotamos que o bem jurídico protegido pela norma penal é a vida humana, consistindo o tipo objetivo de ilícito em matar uma outra pessoa, já nascida, podendo a morte ser causada por ação ou omissão.


É um crime de execução livre, no sentido de que pode ser cometido através de qualquer meio ou modo. O que tem de existir é um nexo de imputação objetiva (e subjetiva) do resultado à conduta.


O tipo subjetivo de ilícito previsto neste tipo fundamental de homicídio, é o dolo, em qualquer das suas formas contempladas no art.14.º do Código Penal, ou seja, direto, necessário ou eventual.


No dolo eventual, previsto no art.14.º, n.º3, do Código Penal, cabem os casos em que o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta e, apesar disso, leva a cabo a conduta, conformando-se com o respetivo resultado.


Embora a forma “normal” de realização do tipo de ilícito penal seja o preenchimento completo do tipo objetivo e subjetivo do ilícito respetivo, nem sempre o agente consuma o crime, ou seja, nem sem sempre realiza integralmente o tipo de ilícito que previu e intentou.


Em casos como este, de não produção do resultado, importa atender à figura da tentativa, definida no art.22.º do Código Penal, nos seguintes termos:


«1- Há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.


2- São atos de execução:


a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;


b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou


c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.».


Para a verificação do crime de homicídio, sob a forma tentada, ora em causa, exige-se, deste modo:


- que uma pessoa decida matar outra pessoa;


- que o agente pratique atos de execução do crime que decidiu cometer; e


- que a morte da outra pessoa não chegue a ocorrer.


É hoje pacífico, em termos legislativos e doutrinais, que nem toda a tentativa, de preenchimento de um tipo de ilícito, é punível.


A delimitação da tentativa punível, quando levada a cabo por meios inaptos ou sobre objeto essencial inexistente, vem sendo tratada, na dogmática, sob o designativo de tentativa impossível.


De acordo com o disposto no n.º3 do art.23.º do Código Penal, « A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime.».


A tentativa impossível, prevista neste n.º 3, tem lugar quando os atos de execução se dirigem a um objeto inexistente essencial à produção do resultado típico ou se utiliza um meio inidóneo para o atingir.


De acordo com o texto legislativo a tentativa só não é punível quando for «manifesta» a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objeto essencial à produção do resultado típico.


Como bem salienta Figueiredo Dias “…a nossa lei equipara em geral e em princípio a tentativa inidónea à tentativa idónea: salvo quando a inaptidão dos meios ou a carência do objeto sejam manifestos, a tentativa continua a ser punível apesar de a realização do facto estar irremediavelmente destinada a não se consumar.”.12


A opção pela punibilidade de princípio da tentativa impossível baseia-se em conceções politico-criminais nem sempre isentas de dúvidas, que a doutrina procura fundamentar em várias teorias.


Para Figueiredo Dias, a delimitação da punibilidade da tentativa impossível tem de ser basicamente pedida a uma teoria subjetiva-objetiva da impressão de perigo.


O “ponto de partida será assim o de que, no caso concreto, a tentativa apesar de na realidade das coisas estar impossibilitada de produzir o resultado típico, é suficiente para abalar a confiança comunitária na vigência e na validade da norma de comportamento. Por esta via se alcançará uma justificação da exigência legal, para a impunibilidade da tentativa, de que a inaptidão do meio ou a carência do objeto, se revelem como manifestas». Nesta solução, acrescenta o mesmo autor, importa sublinhar que “…sobre a perigosidade decidirá um juízo ex ante, um juízo de prognose póstuma, isto é (...) um juízo levado a cabo por um observador colocado no momento da execução e sabedor de todas as circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis do agente. Podendo por isso aproveitar-se aqui uma formulação – aceite pelas próprias teorias subjetivas temperadas - segundo a qual a vontade delituosa do agente não conduziria à punibilidade quando a inaptidão do meio ou a carência do objeto fossem visíveis ou manifestas para a generalidade das pessoas de são entendimento. (…) Assim, pois, a tentativa impossível será punível se, razoavelmente, segundo as circunstâncias do caso e de acordo com um juízo ex-ante, ela era ainda aparentemente possível ou (como prefere exprimir-se o art.23º-3) não era manifestamente impossível.”.13


Em sentido idêntico, escreve Germano Marques da Silva que o n.º3 do art.23.º do Código Penal “condiciona a punibilidade da tentativa impossível a que a inidoneidade do meio empregue ou a inexistência do objeto sejam manifestas. Se, pelo menos aparentemente, se verifica um perigo objetivo, entendem muitos que se justifica a punição, pela intranquilidade que o ato cria. É este perigo objetivo – embora aparente – que pode causar alarme e intranquilidade social e que, assim, está apto a fundamentar a punição do agente.”.14


Na jurisprudência podem citar-se, entre outros, e neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-3-2009 (proc. n.º 07P1769), indicado pelo recorrente, com o seguinte sumário:


XVI - Na denominada tentativa impossível, através dos actos de execução praticados o agente cria um perigo objectivo, embora aparente, que desencadeia ou pode desencadear alarme ou intranquilidade na comunidade, e é isso que lhe confere dignidade punitiva.


XVII - O resultado não sobrevém, seja porque o meio utilizado não é idóneo, seja porque há carência do objecto.


XVIII - A punição da tentativa impossível depende de a inexistência do objecto essencial à consumação do crime ou a inaptidão do meio utilizado pelo agente serem manifestas, à data da prática do facto ilícito – art. 23.º, n.º 3, do CP.


XIX - Este conceito de “manifesto” é, então, sinónimo de claro, ostensivo, público ou evidente, não para o agente, mas para a generalidade das pessoas, posto que o primeiro tem que estar convencido da idoneidade do meio, sem o que não é possível imputar-lhe a intenção de cometer o crime; sendo assim, este juízo sobre a aptidão ou inaptidão do meio é um juízo objectivo.


XX - A inidoneidade do meio (falta de potencialidade causal para produzir o resultado típico) pode ser absoluta (aquele que por essência ou natureza nunca é capaz de produzir o resultado) ou relativa (se o meio normalmente eficaz deixou de operar pelas circunstâncias em que foi empregado), sendo certo que só o meio absolutamente inidóneo exclui a tentativa, configurando a tentativa inidónea ou impossível (…).”.


Por fim , importa consignar que o art.143.º, do Código Penal, trazido à colação pelo recorrente, estabelece que «Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa


O bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa e sendo um crime material exige-se a efetiva lesão do bem jurídico.


A ofensa á integridade física fica preenchida logo que o bem estar físico da vítima é atingido de forma não insignificante, independentemente da dor ou do sofrimento causados ou de uma eventual incapacidade para o trabalho 15.


Trata-se de um crime doloso, pelo que para o seu preenchimento torna-se necessário que o arguido aja de acordo com uma das modalidades descritas no art.14.º do Código Penal.


Retomando o caso concreto.


11.2. Para sustentar a convolação do crime de homicídio tentado, para um crime de ofensas corporais simples, agravado pelo uso de arma, relativamente à ofendida BB, e a sua absolvição do crime de homicídio tentado, relativamente ao ofendido CC, funda-se o recorrente AA, essencialmente, no seguinte raciocínio: o acórdão recorrido não demonstrou os motivos alheios à vontade do arguido que o levaram a que não consumasse os homicídios dos ofendidos BB e CC, mas esses motivos alheios à vontade do arguido retiram-se da factualidade dada como assente nos pontos n.ºs 4, 7 e 18 do mesmo acórdão, ou seja, advém da inidoneidade da arma de fogo utilizada para produzir o resultado típico.


Antes do mais, importa aqui recordar, em termos sintéticos, o que a este propósito se retira da factualidade dada como provada, e da fundamentação de direito do acórdão recorrido.


Da factualidade dada como provada retira-se que: o arguido AA, na data e local descritos, dirigiu-se à residência dos ofendidos BB e CC, e enquanto efetuava vários disparos para o ar com uma espingarda caçadeira de calibre 12, em tom sério, gritou na direção da residência daqueles “vou-te matar CC, ... do caralho”. Em simultâneo, de forma alternada com os disparos para o ar, apontou o cano da espingarda em direção ao Lote onde viviam os ofendidos e efetuou vários disparos. Após, subiu um monte, de modo a colocar-se ao nível da residência dos ofendidos e estando a 35 metros desta, tendo avistado na varanda a BB, mulher de CC, apontou a espingarda caçadeira na direção dessa varanda e efetuou vários disparos, vindo a atingir esta última com quatro bagos de chumbo na zona das costas. O ofendido CC, que estava junto da varanda, após gritar para o arguido que já tinha atingido a sua mulher, refugiou-se com ela dentro da residência, em local onde não existia qualquer janela. Como consequência direta desses disparos realizados na direção da varanda da residência dos ofendidos, o arguido atingiu a parede e o estore da varanda causando neles um número indeterminado de orifícios distribuídos por uma área de 258 cm de comprimento por cerca de 117 cm de largura.


Deu-se ainda como provado, nomeadamente, que o arguido ao disparar na direção da varanda da residência dos ofendidos previu como consequência possível da sua conduta atingir o ofendido CC e, assim, tirar-lhe a vida, conformando-se com esse resultado, que só não logrou atingir por motivos que lhe são alheios e que ao disparar na direção da ofendida BB, logo após a ter visto na varanda, atingindo-a, o arguido representou e quis atingir órgãos vitais da ofendida e, assim, tirar-lhe a vida, o que só não aconteceu por motivos que lhe são alheios.


Acerca dos crimes de homicídio, sob a forma tentada, consta da fundamentação de direito, do acórdão recorrido, o seguinte:


Ocorre que quer o arguido, quer os ofendidos BB e CC são, respetivamente, agente e vítimas deste tipo de crime.


Do mesmo modo, o arguido, ao disparar a direção da residência dos ofendidos, chegando, inclusive, a atingir a ofendida BB, levou a cabo condutas abstratamente adequadas a causar a morte daqueles.


Porém, o resultado morte não se verificou, razão pela qual os crimes de que o arguido vem acusado são meramente tentados.


Tendo presentes os atos praticados pelo arguido, nos termos considerados assentes, bem como o disposto no artigo 22.º do Código Penal, podemos considerar que os atos praticados pelo arguido são atos de execução do tipo objetivo do crime de homicídio.


Nessa sequência, a conduta do arguido preenche a tipicidade objetiva dos crimes de homicídio de que se encontra acusado, mas apenas sob a forma tentada.


No que se refere à componente subjetiva do tipo, exige-se o dolo para que este seja plenamente preenchido. É o ensinamento que se retira do disposto no artigo 13.º do Código Penal, segundo o qual só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.


In casu o que vem imputado ao arguido são dois homicídios dolosos, embora na forma tentada.


Constam do artigo 14.º do Código Penal as situações em que o legislador considera existir dolo, havendo sempre que verificar-se quer o elemento intelectual quer o elemento volitivo do mesmo, sendo que no caso da ofendida BB atuou o arguido com dolo direto (art. 14.º, n.º 1), e, no caso do ofendido CC, com dolo eventual (art.14.º n.º 3).


Consequentemente está igualmente preenchida a tipicidade subjetiva de ambos os crimes de homicídio sob a forma tentada.


Nessa medida, na inexistência de qualquer causa de justificação ou de exculpação, conclui-se que as condutas do arguido, desenvolvidas em autoria material, para além de típicas são ilícitas e culposas, pelo que arguido cometeu, de facto, dois crimes de homicídio sob a forma tentada.”.


Posto isto.


Resulta da factualidade dada como provada e da fundamentação de direito do acórdão recorrido, que para o Tribunal a quo a espingarda caçadeira de calibre 12, disparada diversas vezes pelo arguido na direção da varanda da residência dos ofendidos, chegando, inclusive, a atingir a ofendida BB, é um meio adequado a causar a morte desta e do ofendido CC.


É certo que o acórdão recorrido não faz menção, expressa, na fundamentação de direito aos concretos motivos alheios à vontade do arguido pela qual este não consumou a morte dos ofendidos, limitando-se a mencionar que “o resultado morte não se verificou, razão pela qual os crimes de que o arguido vem acusado são meramente tentados.”.


Embora não sejam explicitados na fundamentação de direito do acórdão recorrido os “motivos alheios à vontade do arguido” pelos quais não tirou a vida aos ofendidos CC e BB, retira-se da factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 5 a 9 e 15 do acórdão recorrido, que a razão da não consumação do homicídio resultou da conjugação de várias circunstâncias.


Assim, relativamente ao ofendido CC, a quem o arguido deixou bem claro , aos gritos, que o pretendia matar, não conseguiu tirar-lhe a vida porquanto, se bem que tenha disparado e acertado nos estores e na parede da varanda da residência do mesmo, aí deixando inúmeros orifícios, não lhe conseguiu acertar no corpo.


Já quanto à ofendida BB, tendo-lhe conseguido acertar com quatro bagos de chumbo disparados com a arma caçadeira, pretendendo tirar-lhe a vida, não o conseguiu porque tendo-lhe infligido dois ferimentos à direita da linha média da região lombar, com 0,5 cm de diâmetro cada e dois ferimentos no quadrante súpero-externo da nádega, com 0,5 cm de diâmetro cada, não a atingiu em órgãos vitais.


Por outro lado, logo que a ofendida BB foi atingida com grãos de chumbo os ofendidos refugiaram-se num local da residência em local onde não existiam janelas e, posto que nessa altura o arguido já não dirigisse os disparos para a residência dos ofendidos, o mesmo só cessou a sua conduta quando avistou as autoridades a aproximarem-se do local.


Caso não tivesse conseguido apurar-se o motivo pelo qual o arguido não consumou os homicídios, será que da factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 4, 7 e 18 do acórdão recorrido, se impunha concluir, como é entendimento do recorrente, que o resultado morte não se verificou, face à por inidoneidade do meio utilizado a uma distância de 35 metros?


A resposta deve ser negativa.


Em primeiro lugar, não se conhece uma regra da experiência comum, vista na perspetiva de uma pessoa com conhecimentos médios sobre armas de fogo, de que uma espingarda caçadeira de calibre 12, disparada a uma distância de 35 metros, não tem alcance ou potencialidade para causar a morte de uma pessoa.


Os inúmeros orifícios na parede e no estore na residência dos ofendidos deixados pelos bagos de chumbo, numa área relativamente concentrada, estão longe de permitir concluir que uma espingarda caçadeira de calibre 12, a 35 metros de distância do objetivo é, pelas regras da experiência comum, um meio inidóneo ou inapto e, mais ainda de manifesta inidoneidade, para tirar a vida a quem sofra o impacto dos grãos de chumbo em órgãos vitais.


Em segundo lugar, e decisivo, não consta dos factos provados, ou mesmo da fundamentação da matéria de facto, que uma espingarda caçadeira de calibre 12, disparada a uma distância de cerca de 35 metros, não tem alcance ou potência para causar a morte a uma pessoa, se atingida com grãos de chumbo em sítios vitais do seu corpo. Bem pelo contrário.


Afastada fica, deste modo, a invocada figura da tentativa impossível , a que alude o art.23.º, n.º3 do Código Penal, de consumação dos crimes de homicídio, sob a forma tentada, com o fundamento da manifesta inaptidão do meio empregado pelo arguido/recorrente para tirar a vida dos ofendidos.


Não estando dado como provado que o arguido ao disparar na direção da varanda da residência dos ofendidos apenas quis ofender a integridade física da BB, mas sim, que o arguido “quis atingir órgãos vitais da ofendida e, assim, tirar-lhe a vida, o que só não aconteceu por motivos que lhe são alheios” (ponto n.º 18 dos factos provados), afastada está a pretensão do recorrente de que o Supremo Tribunal de Justiça proceda à convolação do crime de homicídio, sob a forma tentada, pelo qual foi condenado relativamente a esta ofendida, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.143.º, n.º1 do Código Penal, agravado pelo uso de arma.


Em suma, tendo o arguido atingido a BB com 4 chumbos disparados com a sua arma caçadeira, a cerca de 35 metros da residência dos ofendidos, quando a avistou na varanda, representando e querendo atingir órgãos vitais da ofendida e, assim, tirar-lhe a vida, o que só não aconteceu por motivos que lhe são alheios, bem sabendo que esta sua conduta era proibida e punida por lei, preencheu todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de homicídio simples, sob a forma tentada, pelo que se mantém a condenação do arguido pela prática deste tipo penal, agravado pelo uso de arma.


Enquanto da factualidade dada como provada resulta que a ofendida BB foi atingida pelos disparos quando o arguido a avistou, da mesma factualidade não resulta que, quando este disparou a 35 metros da janela da residência dos ofendidos e acertou com diversos chumbos na parede e estore da varanda, tenha avistado o ofendido CC na varanda ou dentro da divisão com estore e janela da mesma casa.


Do ponto n.º 8 dos factos provados resulta que após o arguido ter atingido a ofendida, o ofendido CC gritou, “junto da varanda da sua residência” para o ofendido, mas após a ofendida ter sido atingida o arguido continuou a disparar em direção não concretamente apurada.


Nestas circunstâncias impõe-se decidir da possibilidade da inexistência do objeto essencial à consumação do crime, que é outra das situações a que alude o n.º 3 do art.23.º do Código Penal, ao lado da inidoneidade do meio empregado, que determina a não punibilidade da conduta do agente, quando for manifesta a situação.


Nos termos desta norma penal, a tentativa é impossível, ainda, quando os atos de execução se dirigem a um objeto inexistente. A existir esse objeto , o agente teria cometido um ato criminoso punível por lei. O objeto é inexistente, por exemplo, se o agente quer destruir uma coisa alheia, mas ela é sua; se o agente procurava encontrar num local coisas valiosas, mas elas não estavam nele.16


A conduta, também no caso de objeto inexistente, só não será punível se a inexistência for «manifesta» à data da prática dos factos.


A este propósito, sublinha Faria Costa que “ o verdadeiro cerne da punibilidade da tentativa impossível reside (…) na avaliação da perigosidade referida ao bem jurídico, sendo certo que nesta hipótese, em boas contas, o bem jurídico não existe, o que há é uma aparência de bem jurídico e neste sentido pareceria que a tentativa impossível, quando não fosse manifesta a inexistência do objeto, também não deveria ser punível, pois que falta o bem jurídico. Todavia tem de se fazer apelo, nesse ponto, a uma ideia de normalidade – segundo as aparências – que se baseia num juízo ex ante de prognose póstuma. É que, entende-se, dado o circunstancialismo em que o agente atuou o desvalor da ação merece ser punido não obstante não existir bem jurídico.”.17


No caso concreto, haveria evidente inexistência de objeto essencial à consumação do homicídio, se o ofendido CC não se encontrava na sua residência quando o arguido fez vários disparos a cerca de 35 metros da janela da residência, para a varanda e estore da residência do ofendido ou se o mesmo ofendido se encontrasse em local onde não poderia ser atingido, como sucederia se estivesse numa divisão sem janelas.


Afigura-se-nos, ainda, que não é o facto do ofendido aparecer visível ou não ao arguido, na varanda ou dentro residência, quando este efetua os vários disparos em direção à varanda e janela, que determina, respetivamente, a existência ou inexistência do objeto essencial à consumação.


Relevante é que o ofendido estava efetivamente na residência onde habitava e estava junto à varanda após a sua mulher ser atingida por chumbos e só após esta situação é que se refugiou, dentro da residência em local onde não existe qualquer janela, o que deixa medianamente claro que, até essa altura, estava em local passível de ser atingido por disparos do arguido.


Nestas circunstâncias entendemos que não nos encontramos perante a inexistência de objeto essencial à consumação do homicídio simples, pois o ofendido estava na sua residência e em situação de poder ter sido atingido por chumbos disparados pela arma caçadeira do arguido.


De todo o modo, entendemos que, na perspetiva de um cidadão comum, perante as circunstâncias em que o arguido fez os disparos, prevendo como possível atingir o ofendido CC, que se encontrava na residência, sempre existiria, aparentemente, um perigo objetivo de atingir aquele no corpo e causar-lhe a morte.


Assim, numa perspetiva de inexistência de objeto essencial à consumação do homicídio simples, não sendo «manifesta» a inexistência desse objeto, sempre a tentativa de homicídio seria punível.


Tendo-se provado, que o arguido AA disparou para a direção da varanda da residência dos ofendidos e, ao fazê-lo, previu como consequência possível da sua conduta atingir o ofendido CC e, assim, tirar-lhe a vida, conformando-se com esse resultado, que só não logrou atingir por motivos que lhe são alheios, mostram-se preenchidos todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo de ilícito do crime de homicídio, sob a forma tentada, nos termos descritos na fundamentação de direito do acórdão recorrido.


Em conclusão, a pretensão do recorrente de absolvição pela prática de um crime de homicídio, sob a forma tentada, com dolo eventual, na pessoa do ofendido CC, com os argumentos de manifesta inaptidão do meio empregado e não se ter apurado a concreta direção para onde o arguido disparou, não pode, deste modo, obter provimento. Pelas razões já indicadas relativamente à ofendida BB, não se mostra viável a pretensão subsidiária do recorrente, de convolação do crime de homicídio, sob a forma tentada, com dolo eventual, de que foi ofendido CC, para um crime de ofensas corporais simples, com uso de arma, sob a forma tentada.


Assim, improcede esta segunda questão.


3.ª Questão : Da qualificação jurídica do dano


12. O recorrente sustenta que da conjugação dos artigos 213.º e 214.º do Código Penal, se retira que a agravação do crime de dano com violência só se verifica quando através do tipo previsto no art.212.º, do mesmo Código, se utiliza “a coisa” contra uma pessoa, com perigo iminente para a vida ou integridade física ou pondo-a na impossibilidade de resistir.


No caso concreto, nada disto aconteceu, tanto mais que dos factos provados e assentes e aqui até admitindo sem prescindir que a intenção do arguido era tirar a vida aos ofendidos, os danos causados pela dispersão dos bagos de chumbo da referida arma mais não seria do que um “dano” colateral da efetiva intenção do arguido, aqui como conduta causal e necessária do fim anteriormente pretendido. Assim, não houve qualquer intenção dolosa por parte do arguido de através desse dano causado nas paredes e estores praticar violência contra os ofendidos, através da “danificação” da coisa, pondo em perigo a vida ou a sua integridade física.


Sem prescindir, não constando em concreto o valor do prejuízo causado pela conduta do arguido, além dos estragos na parede e nos estores e constando expressamente a remissão para os factos descritos nos artigos – para o caso que nos ocupa – 213º, nº3 do CP, mesmo nestes casos de dano com violência, sempre estaríamos perante o crime previsto no art.212º do mesmo diploma legal, por total ausência do valor da coisa danificada, o que implicará atendendo ao princípio in dúbio pro reo que o “prejuízo” causado nas coisas “estragadas” e face às regras da experiência comum seriam de valor diminuto, 214º, nº1 ex vi artigos 213º, nº3, com referência ao artigo 204º, nº4, todos do C.P.. Dada a similitude do conteúdo do art.214.º, n.º1 com o art.210.º, n.º1 do C.P., mal seria que este último desqualificasse o crime de roubo por aplicação do n.º4 do art.204º do C.P. e não já fosse possível essa mesma remissão nos termos do art.214.º, porquanto quer o tipo quer as molduras penais são exatamente as mesmas naqueloutros e neste artigo.


Perante esta argumentação, importa decidir, em primeiro lugar, se a factualidade dada como provada preenche, ou não, todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo de ilícito do art.214.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.


O bem protegido com a incriminação do art.212.º do Código Penal, que é o tipo fundamental do crime de dano, é a propriedade


Como já consignou o tipo objetivo de ilícito consiste, pois, na destruição, danificação, desfiguramento, ou inutilização de coisa alheia. O tipo subjetivo preenche-se com qualquer modalidade de dolo.


O art.214.º, do Código Penal, sob a epigrafe «dano com violência», dispõe, por sua vez, designadamente, o seguinte:


«1- Se os factos descritos nos artigos 212.º e 213.º forem praticados com violência contra uma pessoa, ou ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, o agente é punido:


a) No caso do artigo 212.º, com pena de prisão de 1 a 8 anos;


b) No caso do artigo 213.º, com pena de prisão de 3 a 15 anos;


c) (…).


2. As penas previstas no número anterior são aplicáveis a quem utilizar os meios nele previstos para, quando encontrado em flagrante delito de dano, continuar o ato criminoso».


No entendimento de Paulo Pinto de Albuquerque, em bom rigor, o n.º 2 do art.214.º (dano com violência impróprio) era dispensável, “pois a utilização dos meios violentos durante a execução do crime de dano («para continuar o ato criminoso») transforma o crime de dano em crime de dano com violência e, portanto, é logo subsumível ao n.º 1.”.18 ~


Do texto do n.º1 do art.214.º do Código Penal retira-se que o «dano com violência» é um crime de execução vinculada na medida em que o dano deve ser executado por meio de violência, propriamente dita, contra pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física ou de colocação da vítima na impossibilidade de resistir.


A formulação da norma adota a descrição da conduta típica do roubo prevista no art.210.º do Código Penal, razão pela qual valem para o «dano com violência» as considerações de sentido e alcance que se fazem sobre aquelas expressões a propósito do roubo.


Tal como no crime de roubo, vem-se entendendo atualmente na doutrina e na jurisprudência, que a “violência” tipificada no art.214.º, n.º1 do Código Penal pode ser física, como psíquica.19


A violência contra a pessoa não tem de ser produto de contacto físico direto com o ofendido, podendo sê-lo de outras maneiras.


Neste sentido mais abrangente, decidiu o acórdão deste Supremo Tribunal, de 23-01-2003, a respeito da “violência” qualificativa do dano: «O conceito de violência, tradicionalmente ligado à simples violência física sobre o corpo da vítima, é hoje um conceito mais abrangente, já que tanto a doutrina como a jurisprudência se inclinam para o englobamento da violência psíquica (1) . Para o caso que nos ocupa, há que assinalar que a violência, tal como noutros casos, como por exemplo no crime de coacção, também pode consistir numa intervenção física sobre coisas, que tanto podem ser do ofendido como de terceiro. Ponto é que, sendo exercida directamente sobre coisas, atinja por via indirecta a (s) pessoa (s).».20


A “ameaça” como circunstância prevista no n.º1 do art.214.º do Código Penal, deve ser caraterizada como a cominação de um mal anunciado em termos de produzir-se no lesado sentimentos de medo, receio e inquietação.


Tendo como específico o facto de constranger a vítima através de provocação de medo, inquietação, insegurança, de modo a afetar a liberdade de decisão e ação do ameaçado, só releva quando for “com perigo iminente para a vida ou a integridade física”.


Já o preenchimento do tipo legal por meio de “colocação da pessoa na impossibilidade de resistir”, abrangerá os meios utilizados em relação às quais pudessem surgir dúvidas quanto à sua inclusão nas outras categorias.21


Tal como em relação ao roubo, em que se exige um nexo de imputação entre o conseguir a coisa móvel alheia e os meios utilizados22, também no crime de dano importa verificar se entre a violência contra a pessoa e o dano existe esse nexo de imputação, de modo que possa dizer-se que tal violência foi causal do dano.


O preenchimento do crime de dano com violência, exige como tipo subjetivo de ilícito o dolo, em qualquer das suas modalidades.


Resultando dos factos provados que o arguido, com uma espingarda caçadeira de calibre 12, efetuou diversos disparos na direção da varanda da residência dos ofendidos CC e BB, atingindo em consequência, em número de vezes não concretamente apurado a parede e estore da mesma, estragando-os com um número indeterminado de orifícios, distribuídos por uma área de 258 cm de comprimento por cerca de 117 cm de largura, dúvidas não existem de que o arguido AA, com esta sua conduta preencheu todos os elementos do tipo objetivo de ilícito do art.212.º, n.º1 do Código Penal.


Estando ainda provado nos pontos n.ºs 19 e 23 do acórdão recorrido que o arguido agiu com conhecimento e vontade de produzir “estragos”, como causou, na parede e estore da varanda propriedade dos ofendidos, e consciência de que a sua conduta era censurável penalmente, mostra-se também preenchido o tipo subjetivo de ilícito do art.212.º do Código Penal.


Decidir se o arguido praticou, com a sua conduta, somente um crime de dano simples, como pretende o recorrente, ou um crime de dano com violência, como vem acusado pelo Ministério Público, depende da subsunção dos factos provado ao direito.


O Tribunal a quo considerou que da factualidade dada como provada resultou o preenchimento do crime de dano com violência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 212.º, n.º 1 e 214.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, referindo na fundamentação de direito o seguinte: “Porém, no caso presente, está ainda em causa a prática pelo arguido da imputação relativa ao art.214.º, al. a) do Código Penal - dano com violência -, compreendendo o tipo legal em questão quer a violência física, quer a psíquica.


No caso dos autos, dúvidas inexistem que a violência exercida pelo arguido contra os ofendidos, traduzida sob a forma de disparos com uma arma de fogo na direção da sua residência, foi causal dos estragos verificados quer na parede e estore da varanda respetiva, quer na parede e o estore da varanda do 3.º B, sendo o dano qualificado por tal circunstância.


Confirmando-se esse nexo de imputação, que subscrevemos, identificamo-lo, porém apenas com uma única resolução, não acompanhando a acusação quanto à prática pelo arguido de dois crimes desse tipo.”.


Estando dado como provado, nos pontos n.ºs 6, 10 e 20 do acórdão recorrido, que o arguido utilizou um meio violento, como é uma espingarda caçadeira de calibre 12, na execução do dano na parede e estore da varanda da residência onde se encontravam os ofendidos CC e BB, sabendo que ao atingir aqueles locais iria perturbar e provocar inquietação, medo e receio pelas integridades físicas e vidas das pessoas que se encontravam no seu interior, o que efetivamente aconteceu, não se coibindo, ainda assim, de disparar de forma contínua, entendemos que dano foi praticado com “violência contra pessoa” no sentido amplo atrás definido.


A utilização de meio violento na execução do dano na parede e estore da varanda da residência levou mesmo a que em determinada altura a ofendida não só fosse atingida na sua integridade física por quatro bagos de chumbo, como determinou que ela e o ofendido CC (além do pai da ofendida), se vissem constrangidos a terem de se refugiar em local, dentro da residência, onde não existia qualquer janela (ponto n.º 9 dos factos provados).


Entre a violência praticada contra os ofendidos, com utilização de arma de fogo, e o dano causado na parede e o estore da varanda da residência daqueles, existe um nexo de imputação, pois pode afirmar-se que a violência exercida sobre aqueles foi causal do dano.


Perante o exposto, não merece censura a decisão recorrida quando dá como preenchido o crime de dano com violência, p. e p. pelo art.214.º, n.º1, alínea a) do Código Penal.


Importa agora decidir se na total ausência do valor da coisa danificada deve o dano com violência pode ser desqualificado para crime de dano simples, p. e p. pelo art.212.º, do Código Penal, pelo valor diminuto dos estragos causados na parede e no estore da varanda da residência dos ofendidos.


O recorrente defende a desqualificação do dano com violência baseando-se em dois argumentos: (i) a remissão que o art.213.º, n.º 3 do Código Penal faz para o disposto no art.204, n.º 4 do mesmo Código e; (ii) a similitude do conteúdo do art.214.º, n.º1 com o art.210.º, n.º1 do C.P..


Vejamos o primeiro argumento.


Na primitiva redação do Código Penal de 1982, o art.309.º , sob a epigrafe «agravação», estabelecia, designadamente:


«Se o dano for praticado:


1. Com violência ou ameaça contra as pessoas ou por meio de substâncias inflamáveis ou explosivas;


2. Em monumento público;


3. Sobre coisas:


(…)


será punido com prisão de 2 a 6 anos ou multa até 200 dias»


A violência contra as pessoas configurava um entre outros fundamentos de qualificação do crime de dano simples, sendo a pena aplicável a mesma quando a ação atingia as pessoas ou, por exemplo, monumento público.


A situação alterou-se com a revisão do Código Penal levada a cabo pelo DL n.º 48/95, de 15 de março, passando a existir além do crime de dano simples (art.212.º), o crime de dano qualificado (art.213.º) e o crime de dano com violência (art.214.º).


O crime de dano contra monumento público passou a constar, entre outras situações descritas no anterior art,309.º do Código Penal, no crime de «dano qualificado».


A agravação do n.º1 do mesmo art.309.º, passou a configurar, na atual redação do Código Penal, uma forma dependente e qualificada das infrações previstas nos artigos 212.º e 213.º .


Como refere Costa Andrade em comentário ao art.214.º do Código Penal, “…a violência surge como uma agravação que se projeta tanto sobre o Dano simples (art.212.º) como sobre o Dano qualificado ( art.213.º). Nesta última hipótese, a violência resulta numa agravação de 2.º grau, elevando uma pena que já era o resultado de uma agravação para a prisão de 3 a 15 anos.”.23


O art.213.º do Código Penal, sob a epigrafe «dano qualificado», estabelece no seu n.º 3 que «É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 204.º e 2 e 3 do artigo 206.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 207.º.».


O n.º 4 do art.204.º do Código Penal, relativo ao furto qualificado, para que remete o n.º 3 do art.213.º, estabelece, por sua vez, que «não há lugar à qualificação se a coisa ou o animal furtados forem de diminuto valor.».


Tendo o legislador passado de um grau de agravação do dano, para dois graus de agravação do dano, numa relação de continuidade quanto aos elementos estruturais da factualidade típica, estabelecendo quanto ao crime de «dano qualificado» a remissão para o n.º4 do art.204.º do Código Penal, entendemos que quis aplicar essa atenuação ao primeiro grau de agravação que constitui o dano qualificado.


Não dispondo o art.214.º do Código Penal que o n.º4 do art.204.º do Código Penal se aplica, correspondentemente, ao crime de «dano com violência», só pode o mesmo ter querido afastar ao segundo grau de agravação do dano a atenuação que resulta do valor da coisa ser diminuto.


Improcede, deste modo, a primeiro argumento para desqualificação do dano com violência.


Passando ao segundo argumento, diremos que é correta a afirmação de que há alguma similitude entre a formulação dos crimes de roubo e de dano com violência quanto aos elementos do tipo.


Já quanto à similitude das penas aplicáveis importa notar que se o crime de roubo do art.210.º do Código Penal, for desqualificado por aplicação correspondente do disposto no n.º 4 do art.204.º do Código Penal ao roubo agravado, a pena aplicável deixará de ser de 3 a 15 anos de prisão, para passar a ser de 1 a 8 anos de prisão (n.º1).


Ora, nos termos do art.214.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, a pena aplicável ao crime de dano com violência, no caso do art.212.º do mesmo Código é de 1 a 8 anos de prisão.


Se o crime de dano com violência do art.214.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, pudesse ser desqualificado pelo valor diminuto, para dano simples, a pena passaria a ser punível com prisão até 3 anos ou com pena de multa.


Não determinado o art.214.º do Código Penal que o n.º4 do art.204.º do Código Penal se aplica, correspondentemente, ao crime de «dano com violência», e levando essa pretendida aplicação a uma enorme diferenciação de penas entre o dano simples e o roubo simples, não pode deixar de improceder também este argumento do recorrente.


Assim, mantem-se a condenação do arguido/recorrente pela prática de um crime de dano com violência.


4.ª Questão: Da medida das penas parcelares e única


13. O recorrente insurge-se, seguidamente, quanto à medida das penas parcelares em que foi condenado pelos dois crimes de homicídio simples, sob a forma tentada, e pelo crime de dano com violência, bem como quanto à medida da pena única.


No que respeita à determinação da medida das penas parcelares pugna pela redução, para 3 anos, da pena de prisão em que foi condenado pelo crime homicídio sob a forma tentada, em que é ofendida BB; pela redução para 2 anos de prisão, pelo crime de homicídio sob a forma tentada, em que é ofendido CC e, pela redução para 1 ano e 6 meses da pena em que foi condenado pela prática de um crime de dano com violência.


Alega para o efeito e em síntese: (i) o Tribunal “valorou” negativamente o facto de o arguido não ter prestado declarações, não ter colaborado ou contribuído para a descoberta da verdade material, quando o silêncio do arguido, constitucionalmente garantido e ínsito no artigo 343º, nº1 do C.P.P., não o podendo favorecer, também não o pode desfavorecer; (ii) no que respeita ao homicídio sob a forma tentada, apesar do desvalor da ação se poder considerar intenso, o mesmo não acontece com o desvalor do resultado, pois não consta do texto da decisão recorrida que as lesões físicas por esta sofridas tenham deixado sequelas, qualquer incapacidade que fosse para o trabalho, ou doença, bem como que tivesse corrido perigo de vida qualquer incapacidade que fosse para o trabalho, ou doença, bem como que tivesse corrido perigo de vida; (iii) mutatis mutandis, se denota relativamente à pena aplicada ao arguido pelo crime de homicídio sob a forma tentada, em que é ofendido CC, perante a ausência de qualquer lesão, sequela ou dano corporal; (iv) o grau de violência e consequências da conduta do arguido não foram além dos “estragos” na parede e estore da varanda, não sendo causal de qualquer perigo para a vida ou integridade física.


No seguimento desta redução das penas parcelares pretende o recorrente a fixação da pena única, em cúmulo jurídico, em medida não superior a 5 anos de prisão, porquanto o conjunto dos factos não é reconduzível a uma tendência criminosa, mas tão-só a pluriocasionalidade que não radica na sua personalidade, pois os antecedentes criminais que tem reconduzem-se todos a crimes de condução sem habilitação legal.


Vejamos se tem razão o recorrente e em que medida.


Como afloramento do Estado de Direito Democrático, consagrado no art.2.º da C.R.P., a última parte do n.º 2 do art.18.º da Lei Fundamental, estabelece pressupostos materiais para a restrição, legítima, de direitos, liberdades e garantias, através do chamado princípio da proporcionalidade. Este princípio, em sentido estrito ou critério de justa medida, está estritamente ligado ao princípio da necessidade da pena criminal e, em face deste a pena criminal será constitucionalmente admissível se for necessária, adequada e proporcional.


Dúvidas não há, pois, que na determinação da medida concreta da pena deve respeitar-se o princípio da proporcionalidade.


Nos termos do art.71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é realizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele.


Não se esgotando o facto punível com a ação ilícita-típica, necessário se torna sempre que a conduta seja realizada com culpa, “isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sociocomunitário.”.24


O juízo de censura, ou desaprovação, é suscetível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela atuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas.


O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete para a realização in casu das finalidades da pena, que de acordo com o art.40.º, n.º1, do Código Penal, são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.


O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais, ou seja, o restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime.


Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).


A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico-penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito.


A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.


É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial.


Na lição de Figueiredo Dias, a medida da “necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial”, mas se o agente não se “revelar carente de socialização”, tudo se resumirá em “conferir à pena uma função de suficiente advertência”.25


Nesta tarefa, importa atender aos fatores de medida da pena, que na linguagem do art.71.º, n.º2 do Código Penal «…depuserem a favor do agente ou contra ele», considerando, designadamente, as suas várias alíneas.


As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente no n.º2 do art.71.º do Código Penal, são, no ensinamento de Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, “ por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art.72.º-1; são numa palavra, fatores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.”.


Para o mesmo autor, esses fatores podem dividir-se em “Fatores relativos à execução do facto”, “Fatores relativos à personalidade do agente” e “Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”.


Como expende Maria João Antunes, podem ser agrupados nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os “fatores relativos à execução do facto”; nas alíneas d) e f), os “fatores relativos à personalidade do agente”; e na alínea e), os “fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”. 26


Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.40.º, n.º 2 do C.P.), designadamente por razões de prevenção. A culpa tem, pois, aqui, uma função limitadora do intervencionismo estatal.


No caso em apreço, importa considerar que o crime de homicídio simples é punível com pena de prisão de 8 a 16 anos e o crime de dano com violência é punível com pena de prisão de 1 a 8 anos.


Nos termos do art.86.º, n.º 3 do Regime Jurídico das Armas das Armas e suas Munições, «as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.».


De acordo com o art.23.º, n.º 2 do Código Penal, a tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado especialmente atenuada.


Havendo um concurso entre circunstâncias modificativas atenuantes e agravantes segue-se o modelo de funcionamento sucessivo começando por funcionar as agravantes e depois as atenuantes.27


Do exposto resulta que cada um, dos dois crimes de homicídio simples, sob a forma tentada, com a agravação a que alude o art.86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, cometidos pelo arguido nas pessoas dos ofendidos BB e CC, é punido com pena de prisão de 2 anos, 1 mês e 18 dias a 14 anos, 2 meses e 20 dias.


Por seu turno, o crime de dano com violência, agravado pelo uso de arma, a que aludem os artigos 2.º, n.º1, alínea ar) e 86.º, n.º3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, é punido com a pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses.


Posto isto.


Quanto aos «fatores relativos à execução do facto» para determinação da pena, o acórdão recorrido acentuou o grau de ilicitude dos factos, como sendo “de gravidade extrema, atento o modo de atuação apurado com recurso a evidentes formas de violência; ao grau de violação do bem jurídico protegido pela norma, bem como às consequências daí resultantes, que assumem relevância considerável, tendo a ofendida BB sofrido efetivas lesões físicas, numa altura em que se encontrava em avançado estado de gravidez, independentemente de não ter ficado assente que o arguido conhecesse essa sua condição”. A respeito da motivação que presidiu à sua atuação, considerou-a “…de contornos indefinidos, mas necessariamente associados a uma atitude/postura violenta”.


O arguido agiu com dolo direto e intenso, só tendo posto fim à sua conduta quando avistou as autoridades a aproximarem-se do local.


No que respeita aos «Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto»,


o acórdão recorrido destacou a existência de antecedentes criminais do arguido “…mesmo que pela prática de crimes de diferente natureza”, e a sua postura processual, com “ ausência de colaboração por parte do arguido, que se absteve de prestar declarações, em nada contribuindo para a descoberta da verdade material.”.


Quanto aos «Fatores relativos à personalidade do agente», a que aludem as alíneas d) e f), n.º2 do art.71.º do Código Penal, o acórdão recorrido destaca as “modestas” condições económicas, sociais e culturais do arguido, “a desvalorização da vertente escolar, défices na aquisição de competências pessoais e sociais, inconsistência de hábitos de trabalho” e a não identificação “de qualquer consciência crítica relativamente aos factos pelos quais surge agora condenado”.


Por via destes fatores, considera o acórdão recorrido que “são prementes as exigências de prevenção geral” , “efetivas as necessidades de prevenção especial” e que “a culpa do arguido aponta para um ponto médio dentro das molduras penais respetivas”.


No âmbito dos «fatores relativos à execução do facto» ora descritos, invoca o recorrente, a seu favor, o desvalor do resultado, que define como “insignificante”, relativamente aos crimes de homicídio simples, sob a forma tentada, porquanto em consequência dos disparos de espingarda caçadeira o ofendido CC não sofreu qualquer lesão na integridade física e não consta dos factos provados que em consequência dos chumbos com que a ofendida BB foi atingida tenha resultado incapacidade ou doença.


Pese embora os disparos efetuados pelo arguido visando os ofendidos, não tenham causado lesões físicas ao ofendido CC e as causadas à ofendida se tenham traduzido em dois ferimentos à direita da linha média da região lombar, com 0,5cm de diâmetro cada, e dois ferimentos no quadrante súpero-externo da nádega, com 0,5cm de diâmetro cada, que lhe causaram dor e sofrimento, este Supremo Tribunal entende que a execução dos factos em sentido global, incluindo aqui o grau de ilicitude, deve ter-se como elevado quanto aos dois crimes de homicídio simples, sob a forma tentada.


O arguido atentou contra a vida de duas pessoas, que é o bem jurídico supremo tutelado pela ordem penal, a coberto da noite (pelas 2h50m), efetuando, não um, mas vários disparos, com uma espingarda caçadeira de calibre 12, não só em direção ao local onde residiam os ofendidos, atingindo um deles, mas também para várias outras direções, causando àqueles inquietação, medo e receio pelas integridades físicas e vida, sentimento que estendeu a outras pessoas que habitavam nas redondezas, como resulta designadamente dos pontos n.ºs 3, 6 , 12, 13 e 20 dos factos provados, com o consequente alarme social que deles se retiram.


No respeitante ao grau de ilicitude dos factos relativo ao crime de dano com violência, consideramos ser de qualificar o mesmo como mediano, atento o grau de violência e os consequentes “estragos” causados do arguido na varanda e estore da residência dos ofendidos descritos nos pontos n.ºs 11, 14 e 20 da factualidade dada como provada.


Já a respeito dos «fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto», não deixa o recorrente de ter razão quando refere que o Tribunal a quo valorou negativamente o facto de o arguido não ter prestado declarações, não ter colaborado ou contribuído para a descoberta da verdade material e que tal valoração não deveria ter tido lugar, pois se o silêncio do arguido não o pode favorecer, também não o pode desfavorecer.


O silêncio do arguido relativamente aos factos de que vem acusado é um direito processual que lhe assiste, consagrado nos artigos 61.º, n.º1, al. d), e 343.º, n.º1, do Código de Processo Penal, integrado no princípio de que ninguém pode ser obrigado a depor contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), e que não o pode desfavorecer.


Apenas em termos fáticos poderia o arguido ser desfavorecido pelo silêncio, como ensina Figueiredo Dias ao escrever que «Se o arguido não pode ser juridicamente desfavorecido por exercer o seu direito ao silêncio, já, naturalmente, o pode ser de um mero ponto de vista fáctico, quando do silêncio derive o definitivo desconhecimento ou desconsideração de circunstâncias que serviriam para justificar ou desculpar, total ou parcialmente, a infracção. Então, mas só então, representará o exercício de tal direito um privilegium odiosum para o arguido.».28


Mal andou, pois, o Tribunal a quo, quer ao levar ao ponto n.º 24 da factualidade dada como provada que “o arguido não prestou declarações”, quer ao daí retirar uma circunstância desfavorável à responsabilidade criminal do arguido.


Salvo quanto a esta circunstância, que não deveria ter sido considerada negativamente, aderimos genericamente à fundamentação de direito do acórdão recorrido relativa à determinação da medida das penas parcelares, pela prática dos dois crimes de homicídio simples, sob a forma tentada e pela prática de um crime de dano com violência.


Sendo prementes as exigências de prevenção geral, particularmente quanto aos crimes de homicídio simples, sob a forma tentada, e razoavelmente elevadas as exigências de prevenção geral, consideramos que, num conjunto de cinco crimes praticados pelo arguido, as penas fixadas em 4 anos de prisão (ofendido CC) e em 5 anos e 6 meses de prisão (ofendida BB), por dois crimes de homicídio simples, tentados, agravados pelo uso de arma, quando a moldura penal abstrata se situa entre um mínimo de 2 anos, 1 mês e 18 dias e um máximo de 14 anos, 2 meses e 20 dias, é adequada e proporcional às exigências de prevenção geral e especial, e não ultrapassa a elevada medida da culpa.


Também a pena fixada em 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de dano com violência, agravado pelo uso de arma, se nos afigura adequada e proporcional às exigências de prevenção geral e especial, e não ultrapassa a elevada medida da culpa, quando a moldura penal abstrata se situa entre um mínimo de 1 ano e 4 meses de prisão e um máximo de 10 anos e 8 meses de prisão.


Importa agora decidir se deve manter-se ou não o cúmulo jurídico das penas fixado pelo Tribunal a quo em 7 anos de prisão.


Nas situações em que o agente praticou vários crimes, o concurso efetivo de crimes impõe que se tenham em consideração as regras da punição do concurso, estabelecidas no art.77.º Código Penal, nos seguintes termos:


«1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.


2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.».


A doutrina vem entendendo que o modelo de punição do concurso de crimes consagrado no art.77.º do Código Penal, sendo um sistema de pena conjunta, não é construído, porém, de acordo com o princípio de absorção puro, nem com o princípio da exasperação ou agravação,, mas sim de acordo com um sistema misto, que vem sendo chamado de sistema do cúmulo jurídico.29


Também a jurisprudência segue este caminho, consignando-se, entre outros, no acórdão do S.T.J. de 3 de outubro de 2012, que o modelo de punição do nosso Código Penal é um sistema misto de pena conjunta “erigido não de conformidade com o sistema de absorção pura por aplicação da pena concreta mais grave, nem de acordo com o princípio da exasperação ou agravação, que agrega a si a punição do concurso com a moldura do crime mais grave, agravada pelo concurso de crimes.”30.


Doutrina e jurisprudência coincidem em especificar que no cúmulo jurídico, a pena conjunta é definida dentro de uma moldura cujo limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e o limite máximo resulta da soma das penas efetivamente aplicadas, emergindo a medida concreta da pena da imagem global do facto imputado e da personalidade do agente.


O agente é sancionado, não apenas pelos factos individualmente considerados, numa visão atomística, mas especialmente pelo conjunto dos factos, enquanto reveladores da gravidade da ilicitude global da conduta do agente e da sua personalidade.


A pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art.71º.º, n.º1, um critério especial estabelecido no art.77.º, nº 1, 2ª parte, ambos do Código Penal.31


Os parâmetros indicados no art.71.º do Código Penal, servem apenas, porém, de guia para a operação de fixação da pena conjunta, não podendo ser valorados novamente, sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais fatores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes.32


Na busca da pena do concurso, explicita Figueiredo Dias, na obra que vimos seguindo, que “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).”


Como refere ainda, na doutrina, Cristina Líbano Monteiro, com o sistema da pena conjunta, perfilhado neste preceito penal, deve olhar-se para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.33


As conexões ou ligações fundamentais na avaliação da gravidade da ilicitude global, são as que emergem do tipo e número de crimes, dos bens jurídicos individualmente afetados, da motivação, do modo de execução, das suas consequências e da distância temporal entre os factos.


É evidente que condutas muito gravosas para a comunidade, como as integradas no terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade especialmente violenta ou criminalidade altamente organizada, [definidas no art.1.º, alíneas f) a m)] exigem, por respeito do princípio da proporcionalidade e exigências de prevenção, uma menor compressão das penas parcelares, na formação da pena única, do que condutas de agentes inseridas na chamada média ou pequena criminalidade


Ínsita nos factos ilícitos unificados no âmbito da pena de concurso, a personalidade do agente, é um fator essencial à formação da pena única.


A revelação da personalidade global do agente, o seu modo de ser e atuar em sociedade, emerge essencialmente dos factos ilícitos praticados, mas também das suas condições pessoais e económicas e da sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado.


A interiorização das condutas ilícitas e consequentes penas parcelares que lhe foram aplicadas traduzidas na vontade clara de alteração do comportamento antissocial violador de bens jurídico criminais, assente em factos que o demonstrem, relevam assim, particularmente, no apuramento das exigências de prevenção no momento de determinar a pena única.


Sendo as necessidades de prevenção mais exigentes quando o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, do que quando esse ilícito se reconduz a uma situação de pluriocasionalidade, a pena conjunta deverá refletir esta singularidade da personalidade do agente.


Presentes os critérios e finalidades que se acabam de expor, regressemos ao acórdão recorrido, sem esquecer os argumentos formulados pelo recorrente visando a redução da pena única em que foi condenado em cúmulo jurídico e que, recordemos, são: o conjunto dos factos não é reconduzível a uma tendência criminosa, mas tão só a pluriocasionalidade que não radica na sua personalidade, pois os antecedentes criminais que tem reconduzem-se todos a crimes de condução sem habilitação legal.


Observando o ilícito global, que emerge da análise unificada dos factos, não se pode deixar de qualificar o mesmo como de elevada gravidade.


Assim:


- Os crimes em concurso são quatro, sendo dois de homicídio simples, sob a forma tentada, um de dano com violência e um de detenção de arma proibida, pelo que estão em causa crimes diversos, contra a vida, contra a propriedade e liberdade pessoal e contra a segurança e a tranquilidade pública.


- Os crimes de homicídio simples, sob a forma tentada, e de dano com violência praticados pelo arguido integram o conceito de “criminalidade especialmente violenta” definido no art.1.º, alínea l) do Código de Processo Penal, o que reforça as necessidades de prevenção;


- Os crimes em concurso foram praticados todos na mesma ocasião;


- O grau de violação dos bens jurídicos nos crimes em concurso é mais elevado no que respeita aos crimes de homicídio simples sob a foram tentada, do que nos restantes crimes.


A culpa global do arguido, que se retira da intensa vontade de praticar os factos em concurso, é acentuada.


Do conjunto dos factos em concurso, do percurso de vida do arguido, do seu passado criminal que se retira do CRC, e das condições socioeconómicas e laborais, resulta que o arguido AA tem uma personalidade unitária algo desconforme ao modo de ser suposto pela ordem jurídico-criminal, evidenciando alguma ausência de sensibilidade e suscetibilidade de ser influenciado pelas penas, dadas as condenações que constam do seu C.R.C, por crimes de condução sem habilitação legal e de condução em estado de embriaguez.


Pese embora, no que toca à prevenção especial, se entenda que o recorrente carece de ressocialização, o ilícito global agora julgado não é resultado de uma tendência criminosa, assumindo, ainda, um carácter pluriocasional.


Face à personalidade do arguido manifestada nos factos, entende-se, que as exigências de prevenção especial a que já se aludiu postulam a aplicação de uma pena que possa ser interiorizada pelo arguido, como dissuasora da prática de novos crimes e para que sirva de aviso para que adapte o seu comportamento às normas socialmente vigentes.


Importa ainda não esquecer “as necessidades de prevenção geral”, que são elevadas, como já atrás se consignou.


Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do recorrente, entendemos que se não se mostra excessiva, face às finalidades de prevenção, à culpa e à personalidade do arguido/recorrente, a pena conjunta fixada em 7 anos de prisão - bem mais perto do limite mínimo da moldura abstrata do concurso (5 anos e 6 meses de prisão) do que do seu limite máximo (13 anos de prisão).


Assim, mantém-se a pena conjunta fixada em cúmulo jurídico pelo Tribunal a quo, improcedendo, consequentemente, esta questão e o recurso da parte criminal.


5.ª Questão: Da suspensão da execução da pena


14. Nos termos do art.50.º, n.º1 do Código Penal, a substituição da pena de prisão por pena não detentiva está sujeita a dois pressupostos:


- um pressuposto formal, que consiste na medida concreta da pena aplicada ao arguido não ser superior a 5 anos, e


- um pressuposto material, traduzido na existência dum prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.


No juízo de prognose deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida ( inserção social, profissional e familiar, por exemplo), à sua conduta anterior e posterior ao crime (ausência ou não de antecedentes criminais e, no caso de os ter já, se são ou não da mesma natureza e tipo de penas aplicadas, bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como as motivações e fins que levam o arguido a agir).


Se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, Tribunal, subordina a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres (art.51.º do C.P.) ou à observância de regras de conduta (art.52.º do C.P.), ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, que assenta num plano de reinserção social do condenado (art.53.º do C.P.).


No caso concreto, pressuposto da suspensão da execução pena de prisão, com acompanhamento de regime de prova, pretendida pelo recorrente/arguido, nos termos dos artigos 50.º e 53.º, n.ºs 2 e 3 do Código Penal, é a redução da pena única de prisão que lhe foi aplicada em 1.ª instância, para medida não superior a 5 anos.


Tendo em conta que se manteve, em cúmulo jurídico, a pena conjunta aplicada pela 1.ª instância, superior a 5 anos de prisão - mais concretamente 7 anos de prisão -, não se mostra verificado o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão.


Por falta de verificação deste primeiro pressuposto, fica prejudicada a necessidade de apuramento de existência do pressuposto material desta pena de substituição não detentiva – que, aliás, manifestamente não se verificava face às descritas circunstâncias a levar em conta no juízo de prognose relativamente ao comportamento do arguido.


6.ª Questão: Do valor da indemnização civil


15. A terminar, defende o arguido/demandado que o valor da indemnização civil atribuído aos ofendidos, somente por danos morais, é exagerado, devendo ser reduzido para o valor de €10.000,00 relativamente à ofendida e para €5.000,00 quanto ao ofendido.


Neste sentido, invoca que se tratou de um ato isolado e irrepetível na conduta do ora recorrente, que nem tão pouco conhecia a ofendida, por forma a que a mesma se sinta, ou continue a sentir-se insegura (na data de hoje) e que a redução do valor da indemnização assenta ainda no direito comparado e na equidade, considerando a condição social e económica modestas quer do arguido, quer dos ofendidos.


Vejamos.


O art.483.º do Código Civil enuncia os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, que obrigam a indemnizar o lesado: a violação de um direito ou interesse alheio; a ilicitude; o vínculo de imputação do facto ao agente; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.


Os danos são os prejuízos sofridos pelo lesado e, em termos gerais, diremos que podem ser de natureza patrimonial, quando atingem em si o património, fazendo-o diminuir ou frustrar o seu acréscimo, ou de natureza não patrimonial, quando atingem bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico, insuscetíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro.


Para os danos não patrimoniais rege o disposto no art.496.º do Código Civil, que no seu n.º 3, 1ª parte, estatui que o montante da indemnização deve ser fixado por critério de equidade, tendo em conta as circunstâncias referidas no art.494.º do mesmo Código, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem.


A indemnização dos danos não patrimoniais, prevista no art.496.º do Código Civil, reveste uma natureza acentuadamente mista; por um lado, visa a compensação de algum modo, mais do que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com meios próprios do direito privado , a conduta do agente.34


Na formação do juízo de equidade, devem ter-se em conta ainda as regras da boa prudência, a justa medida das coisas, a criteriosa ponderação das realidades da vida, como se devem ter em atenção as soluções jurisprudenciais para casos semelhantes.35


Tem a jurisprudência ainda defendido que na quantificação do dano, os montantes não poderão ser tão escassos que sejam objetivamente irrelevantes, nem tão elevados que ultrapassem as disponibilidades razoáveis do obrigado ou possam significar objetivamente um enriquecimento injustificado.


A decisão recorrida, claramente minimalista, após descrever os pressupostos legais da responsabilidade civil por factos ilícitos (art.483.º do Código Civil) e os critérios de fixação da indemnização por danos não patrimoniais (art.496.º, n.º1 do Código Civil), ponderou na atribuição dos valores indemnizatórios o seguinte:


Assim, e sendo certa a responsabilidade penal do arguido, nos termos considerados assentes, a que acresce a matéria provada de 25. a 28., tendo em atenção a lesão, a culpa e a situação do lesante, entende-se adequada a fixação da indemnização, a título de danos não patrimoniais, em montante equivalente a euros) a favor da ofendida BB, e no valor de mil euros) a favor do ofendido CC, sobre os quais não incidirão juros uma vez que não foram reclamados.”.


Sendo inquestionável que se verificam no caso todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, e que os danos não patrimoniais, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito, serão excessivos os valores fixados de €10.000,00 e de € 20.000,00?


O dano morte é o prejuízo supremo, que absorve todos os prejuízos não patrimoniais, pelo que o montante da sua indemnização deve, como regra, ser superior à soma de todos os outros danos imagináveis.


O dano pela perda do direito à vida, que aqui não ocorreu, cremos situar-se na jurisprudência, com algumas oscilações, entre os € 70 000,00 e os € 90 000,00.36


Anotando as particularidades do caso concreto, realçamos, antes do mais que a responsabilidade dos danos é unicamente do demandado.


O demandante CC não foi atingido por qualquer dos disparos efetuados pelo arguido/demandado, não tendo consequentemente sofrido fortes dores e sofrimentos prolongados por dias ou meses em resultados de lesões físicas, como frequentemente acontece quando se é atingido por disparo de arma caçadeira nas tentativas de homicídio.


O que demandante sofreu foi dano psicológico, resultante do temor pela própria vida, que lhe anunciou aos gritos quer tirar, durante a noite, enquanto disparava vários tiros de caçadeira, nomeadamente em direção à varanda e estore da sua residência e, ainda pelo receio da vida da sua mulher e do filho que a sua mulher àquela data carregava do ventre (ponto n.º 25 dos factos provados), que foi atingida no corpo com quatro graus de chumbos.


Por via da atuação do arguido/demandado, o demandante CC não dormiu algumas noites e sofre ainda de pesadelos, mantendo-se atento, no sentido de não se cruzar com aquele, com receio do que possa voltar a fazer. Ou seja, podendo o demandante continuar a fazer a sua vida normal, está agora mais vigilante.


O que se consignou relativamente ao demandante CC é transponível para a demandante BB, a que acrescem as circunstâncias de as lesões na região lombar e na nádega, causadas pelos chumbos, lhe terem causado dor e sofrimento e ser ela quem se encontrava grávida de 37 semanas quando foi atingida por disparos do arguido.


A situação económica do demandado, que resulta da factualidade dada como provada, é fraca (pontos n.ºs 39 e 43 dos factos provados)


Relativamente à situação económica dos demandantes nada se apurou.


Considerando os critérios legais e jurisprudenciais que vêm sendo aplicados e o sofrimento moral dos demandantes que resultou da conduta dolosa praticada pelo demandado, consideramos equilibrada a indemnização atribuída a ambos os demandantes, pelo que se mantém a mesma.


Improcede, deste modo esta questão, relativa à matéria cível e, em consequência, o recurso interposto pelo arguido/demandado.


III- Decisão


Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente, manter o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs nos termos do art.513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.



*




(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).



*




Lisboa, 26 de outubro de 2023


Orlando Gonçalves (Juiz Conselheiro Relator)


Leonor Furtado (Juíza Conselheira Adjunta)


Agostinho Torres (Juiz Conselheiro Adjunto)


Helena Moniz (Juíza Conselheira Presidente da Secção)





__________________________________________________

1. Cf. BMJ n.º 458º , pág. 98.↩︎

2. Cf. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.↩︎

3. Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.↩︎

4. - Cf. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág.300.↩︎

5. In “Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, Almedina, 4.ª edição revista, págs. 1327 e 1328.↩︎

6. Cf., neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 7/04/2010 (proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496, pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483, pág. 49) e Leal- Henriques e Simas Santos , in “Código de Processo Penal anotado”, vol. 2.º, 2ª ed., páginas 737 a 739.↩︎

7. Cf. “Código de Processo Penal anotado” , 2.º Vol., 2ª ed., pág. 739.↩︎

8. - Cf. obra citada, 2.º Vol., pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).↩︎

9. Cf. “Código Conimbricense ao Código Penal”, Tomo II, pág. 245.↩︎

10. Cf. Costa Andrade, obra citada, pág. 211.

↩︎
11. Aliás, para Costa Andrade:«.... Embora o prejuízo patrimonial configure uma consequência ou efeito normal do Dano, tal não é inevitável nem necessário. Pode consumar-se o crime de Dano sem que tenha como reflexo um prejuízo patrimonial. Nem está excluída a possibilidade de o crime resultar em ganho ou vantagem patrimonial para o proprietário ofendido»Cf. Comentário Conimbricense, 1999, tomo II, pág. 207.↩︎

12. Cf. “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 713.↩︎

13. Cf. obra citada, págs. 715 e 716.↩︎

14. Cf. “Direito Penal Português, Parte Geral”, II, Verbo, 1998, pág. 250.↩︎

15. Cfr. acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, de 18 de dezembro de 1991, in DR, 1ª Série A, de 2-2-1992 e Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo , páginas 202 a 205.↩︎

16. Exemplos, entre outros, mencionados poe Paulo Pinto de Albuquerque, no “Comentário do Código Penal”, UCE, 4.ª ed. páginas 204/205.↩︎

17. In “Jornadas de Direito Criminal - O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, CEJ, pág. 165.↩︎

18. Cf. “Comentário do Código Penal”, UCE, 4.ª edição, pág. 909↩︎

19. Cf. acórdãos do S.T.J. de 23-1-2003 (proc. n.º 02P4098) e de 14-12-2006 (proc. n.º 06P4350), in www.dgsi.pt↩︎

20. Cf. proc. 4098-02, de que foi relator o Cons. Pereira Madeira, citado no acórdão do S.T.J. de 14-12-2006.↩︎

21. Cf. neste sentido, acerca do crime de roubo, Conceição Ferreira da Cunha, in Código Conimbricense ao Código Penal, Coimbra Editora, Tomo II, pág.169.↩︎

22. Neste sentido, ainda, Conceição Ferreira da Cunha, obra citada, pág.↩︎

23. Cf. obra citada, pág. 255.↩︎

24. Cf. Fig. Dias, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230.↩︎

25. “ Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., pág. 82.↩︎

26. Cf. “Consequências Jurídicas do Crime”, Lições para os alunos da FDC, Coimbra, 2010-2011.↩︎

27. Cf. acórdão do S.T.J. de 13-11-2014 (proc. n.º 249/11.0PECBR.C1.S1), in www.dgsi.pt↩︎

28. in “ Direito Processual Penal”, 1.º Volume, Coimbra Editira, 1974, pág. 449.↩︎

29. Cf. Figueiredo Dias, obra cit. págs. 282 a 284 e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág. 283↩︎

30. Cf. proc. n.º 900/05.1PRLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.↩︎

31. Cf. “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág.290/2.↩︎

32. Cf. Figueiredo Dias, obra cit., pág. 292.↩︎

33. Cf. “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 16, n.º1, , pág. 155 a 166 e acórdão do STJ, de 09-01-2008, CJSTJ 2008, tomo 1.↩︎

34. Cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 8.ª edição, Almedina , pág. 611 e seguintes .↩︎

35. Cf. acórdão do STJ de 4 de novembro de 2004, C.J., n.º 179, pág. 223.↩︎

36. Neste sentido, também o acórdão do S.T.J. de 19-01-2023 ( proc. n.º 3437/21.8T8PNF.P1.S1, 2.ª Secção, in www.dgsi.pt: “O valor padrão desta indemnização que nos últimos tempos tem norteado a jurisprudência dos tribunais superiores tem rondado os € 80.000,00, avultando como critério diferenciador o grau de culpa do lesante.”↩︎