Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
808/21.3PCOER.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
PODERES DE COGNIÇÃO
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MEDIDA DA PENA
ATENUAÇÃO ESPECIAL
CULPA
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O acórdão da Relação que confirma condenação em pena de prisão superior a 8 anos é recorrível para o Supremo (arts 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. f), a contrario, do CPP), mas o recurso não pode ter como fundamento os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP;

II. O art. 434.º do CPP determina que o Supremo Tribunal de Justiça só julga em matéria de direito, e, fora das previsões das als. a) e c) do n.º 1 do art. 432.º do CPP - as quais respeitam a “recurso de 1.º grau” e justificam por isso a excepção – o conhecimento dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP só pode operar-se oficiosamente, não podendo constituir fundamento do recurso.

III. Tendo-se concluído pela “agravação pela culpa” ínsita ao tipo do art. 132.º do CP (agravação pela culpa também suportada pela agravação especial do ilícito), uma vez que se decidiu que os factos provados realizavam a prática, pelo arguido, de um crime de homicídio qualificado (dos arts. 131.°, n.º 1 e 132.°, n.°s 1 e 2, al. a) do CP), constituiria uma contradição nos próprios fundamentos poder admitir depois a acentuada e excepcional diminuição da ilicitude do facto ou da culpa, pressuposto da atenuação especial da pena, peticionada pelo arguido em recurso.

IV. Sendo os recursos remédios jurídicos, mantendo o arquétipo de recurso-remédio também em matéria de pena, a sindicabilidade da medida da pena abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”.

V. Face a todos os factos provados do acórdão, é de confirmar a pena de 15 anos de prisão, fixada relativamente próximo do limite mínimo da pena abstracta de 12 a 25 anos de prisão (art 132.°, n.° 1, al. a) do CP).

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 808/21.3PCOER, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Criminal de Cascais - Juiz 2, por acórdão de 19/12/2022, foi o arguido AA condenado como autor de um crime de homicídio qualificado, dos arts. 131.°, n.º 1 e 132.°, n.°s 1 e 2, al. a) do CP, na pena de 15 (quinze) anos de prisão, e declarado indigno para suceder na herança aberta por morte do seu pai, AA.

Inconformado com a decisão, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, no qual impugnou a decisão sobre a matéria de facto, a qualificação jurídica dos factos e a medida da pena, recurso que foi julgado totalmente improcedente.

Novamente inconformado, agora com o decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, interpôs o arguido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“A – O Arguido AA, notificado do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que manteve a decisão condenatória de primeira instância e aplicou uma pena de prisão de 15 (quinze) anos, e com o mesmo não se conformando, vem do mesmo interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto nos artigos 410.º.2, 412.º.1 e 2, 432.1.b) e c), 400.º.f) (a contrario) e 434.º, todos do CPP.

B – Versando o recurso o reexame da matéria de Direito com indicação das normas jurídicas violadas, o sentido de interpretação das mesmas e ainda as que no entender do Arguido deveriam ter sido aplicadas, versando ainda sobre a matéria de facto por erro notório na apreciação da prova, ao abrigo do disposto no art. 410.º.2.c) do CPP.

C – O Arguido entende que os pontos 3, 8 a 12, 16, 21 e 22 dos factos provados não deveriam ter sido dados como provados, nem assim mantidos, por erro notório na apreciação da prova.

D – Não resultou nem dos depoimentos transcritos no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa nem dos relatórios periciais, nem mesmo do relatório social do arguido e do Médico Psiquiatra em serviço no EP que as agressões perpetradas pela vítima no seu agregado familiar dadas como provadas teriam causado apenas “desagrado” mas sim raiva, revolta e desespero vivencial e que foi levando à deterioração da relação entre o arguido, a mãe e a irmã daquele e o pai do arguido, BB, o que se requer seja dado como provado nesta sede.

E - A aplicação do art. 127.º do CPP encontra um limite presuntivo, não podendo o Tribunal utilizar o princípio da livre apreciação da prova para ignorar ou contrariar as conclusões dos relatórios periciais sem fundamentação que possa contrariar esses mesmos relatórios de forma fundamentada, como aconteceu, violando o Tribunal os arts. 127.º CPP e 163.º CPP.

F – Os pontos 8 a 12 dos factos provados devem igualmente ser alterados por erro notório na apreciação da prova.

G – Quer os depoimentos do Arguido em sede de primeiro interrogatório e de audiência de julgamento, sendo o Arguido a única pessoa a vivenciar o crime, tendo merecido credibilidade no seu depoimento, a credibilidade do mesmo deverá ser aferida globalmente e não apenas por meros trechos do episódio consoante o que pode ou não justificar a decisão recorrida.

H – Pelo que os pontos 8 a 12 da decisão recorrida deveriam ter sido dados como provados da seguinte forma: (…)

I - Quanto ao ponto 21, não resultou da prova produzida que o Arguido tenha colocado o saco na cabeça da vítima para a sufocar pois o Arguido referiu que colocou o saco de plástico na cabeça da vítima depois da mesma estar no chão e que estava convencido que a mesma já estava morta, algo que foi dado como provado nos pontos 14 e 16 dos mesmos factos provados.

J - O ponto 22 deve igualmente ser alterado, para o seguinte teor “Agiu o arguido, em todas as descrias circunstâncias, com compreensível emoção violenta e/ou desespero vivencial, como resulta das perícias juntas aos autos.”

K – Os factos enquadram-se no crime de homicídio privilegiado, uma vez que avaliando a questão do valor da prova pericial, esta não poderia ter sido contrariada sem fundamentação bastante que ilidisse a presunção do art. 163.º do CPP, como aconteceu.

L – Pois que a “Informação” enviada aos autos pelo Médico-Psiquiatra que acompanha o Arguido no Estabelecimento Prisional referiu a compreensível emoção violenta, sendo o caso em apreço “complicado e em nada semelhante aos demais casos que tem vindo a acompanhar no EP e no Hospital Prisional ...” e que todos os elementos apurados pelo mesmo leva o profissional à conclusão de que existe forte probabilidade de estarmos perante crime praticado em face de compreensível emoção violenta e/ ou desespero, tal como acabou por ser confirmado e concluído pela perícia psiquiátrica, e ainda sustentado pelos relatórios social e de perícia à personalidade do arguido.

M – Com base na prova produzida, designadamente nos relatórios periciais, o homicídio perpetrado pelo Arguido enquadra-se no art. 133.º do CP, sendo homicídio privilegiado, pois que o Arguido se enquadra no conceito de homem médio para efeitos de determinação de actuação sob compreensível emoção violenta ou desespero, devendo o mesmo ser condenado numa pena de prisão de 1 a 5 anos, o que se requer.

N - Se assim não se entender, mesmo quanto ao crime de homicídio qualificado, as circunstâncias do art. 132.º CP não são de funcionamento automático, designadamente a alínea a) dada a relação afectiva inexistente entre o Arguido e o seu pai, devendo assim o homicídio ser qualificado como simples, o que se requer subsidiariamente numa condenação tendo por base o art. 131.º CP.

O - Mesmo assim, deve sempre o Arguido ser condenado numa pena especialmente atenuada, não superior a 6 anos e 4 meses de prisão, em conjugação com o disposto no art. 72.º.1 e 2.a) e b) CP e 73.º.1.b) do mesmo diploma legal, ou, caso assim não se entenda, deve o Arguido ser condenado, o que se requer ainda subsidiariamente, a uma pena entre 8 e 16 anos, próxima do seu limite mínimo, de acordo com o plasmado no art. 131.º CP.

P – Se este Tribunal entender que o Arguido deve ser condenado no crime de homicídio qualificado, p.p. art. 132.º.1.a) do CP, a sua pena não deverá ser superior a 9 anos e 6 meses de prisão, tendo em conta a especial atenuação da pena dos arts. 72.º.1 e 2.a) e b) e 73.º.1.b) do CP, ou, ainda subsidiariamente, na pena não superior a 12 anos de prisão, por homicídio qualificado, ou outra mais próxima do seu limite mínimo, o que se requer.

Q – Entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa (pág. 105 do Acórdão) que não acolhia as alegações acerca da compreensível emoção violenta ou estado de desespero que levassem a uma diminuição da culpa porquanto, entre outros motivos, os filhos nunca fizeram queixa do falecido e a mãe fez queixa uma vez e depois desistiu da mesma, o desespero não é compatível com o facto de o arguido ter prosseguido os estudos e o seu trabalho, o arguido admitiu que nunca se defendeu do pai porque chegou primeiro às facas, a mãe do arguido não chamou primeiro a polícia quando chegou a casa e não chamou auxílio médico e ainda que o medo do arguido de o pai o matar não era credível.

R – O Tribunal da Relação não poderia afirmar que a mãe do arguido fez queixa e depois desistiu da mesma, sendo o crime de violência doméstica de natureza pública e não admitindo desistência de queixa.

S – Nem existe factualidade que permita afirmar que o desespero do Arguido impediria o arguido de prosseguir os seus estudos e o seu trabalho, nunca tendo o mesmo admitido não se ter defendido do pai, sendo o facto provado de o pai ter tentado alcançar as facas mais do que suficiente para um medo credível do arguido, não podendo ainda o arguido ser prejudicado na fundamentação do Acórdão porque a sua mãe não chamou a polícia nem auxílio médico para quem estava já falecido, de forma óbvia.

T - Requer assim, que a pena a aplicar ao Arguido ser alterada, nos seguintes termos:

- requer que seja condenado por homicídio privilegiado, nos termos do art. 133.º do CP, no seu limite mínimo, sendo especialmente atenuada ao abrigo do disposto nos arts. 72.º.1 e 2.a) e b) e 73.º.1.b) do CP;

- subsidiariamente e se assim não se entender, requer que seja condenado por homicídio privilegiado, nos termos do art. 133.º do CP, numa pena entre 1 e 5 anos de prisão;

- ainda subsidiariamente e se assim não se entender, requer que seja condenado por homicídio simples, nos termos do art. 131.º do CP, numa pena especialmente atenuada de 6 anos e 4 meses de prisão, em conjugação com o disposto no art. 72.º.1 e 2.a) e b) CP e 73.º.1.b);

- subsidiariamente e se assim não se entender, requer que seja condenado por homicídio simples, nos termos do art. 131.º do CP, numa pena entre 8 e 16 anos de prisão, próxima do seu limite mínimo;

- ainda subsidiariamente e se assim não se entender, requer que seja condenado por homicídio qualificado, nos termos do art. 132.º.a) do CP, numa pena especialmente atenuada de 9 anos e 6 meses de prisão, tendo em conta a especial atenuação da pena dos arts. 72.º.1 e 2.a) e b) e 73.º.1.b) do CP;

- se assim não se entender e ainda subsidiariamente, requer que seja condenado por homicídio qualificado, nos termos do art. 132.º.a) do CP, numa pena mais próxima do limite mínimo do que a que foi aplicada nos autos.

U - No entendimento do Arguido foram violadas as seguintes normas jurídicas: arts. 72.º.1 e 2.a) e b) e 73.º.1.b), 131.º, 132.a) e 133.º do CP e arts. 127.º, 163.º, 374.º.2 e 379.º.1.a) e c) do CPP.”

O Ministério Público na Relação respondeu ao recurso, concluindo:

“1 - Se o acórdão recorrido considerou provado que os factos atribuídos ao recorrente foram por ele praticados e se correctamente deu parte, na motivação, da existência de provas, bem andou a decisão recorrida em condenar o arguido recorrente pela prática de um crime de homicídio qualificado

2 - Pelo exposto, não enfermando a decisão recorrida de qualquer errada aplicação ou interpretação da lei e não contendo a mesma vício ou nulidade de conhecimento oficioso, o recurso interposto deve ser considerado improcedente, devendo ser mantido o decidido, nos seus precisos termos, com o que farão V. Excelências, aliás, como sempre, Justiça..”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu desenvolvido parecer, acompanhando a resposta ao recurso e concluindo: “subscrevendo na íntegra, com a devida vénia, os fundamentos exarados no acórdão condenatório colocado em crise, pronunciamo-nos igualmente pela improcedência do recurso interposto e pela manutenção do decidido.”

O arguido nada acrescentou, o processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. O acórdão recorrido, na parte que agora releva, tem o seguinte teor:

“A) FACTOS PROVADOS

Discutida a causa e produzida a prova, resultaram assentes os seguintes factos:

1 - O arguido AA nasceu em .../.../1997 e é filho de AA e de CC.

2 - O arguido residiu desde sempre com os seus pais e com a sua irmã DD, na Av. da ...°, em ..., concelho de ....

3 - A vivência do agregado familiar era intercalada por períodos de vivência normal do dia-a-dia e com períodos de agressões verbais e físicas perpetradas por BB sobre os filhos e a esposa, com intensidade, periodicidade e gravidade não concretamente apuradas mas que, quanto às agressões físicas, não necessitaram de assistência hospitalar, sendo os períodos de violência verbal mais frequentes, desde há cerca de um ano antes dos factos a seguir descritos, período que coincidiu com a passagem à reforma de BB, o que causava naqueles desagrado e que foi levando à deterioração da relação entre o arguido, a mãe e a irmã daquele e o pai do arguido, BB.

4 - No dia .../09/2021, em hora não concretamente apurada, mas situada entre as 11h30 e as 18h00, o arguido e BB encontravam-se no interior da residência.

5 - A certa altura, em hora não concretamente apurada, mas no referido período temporal, o arguido e BB iniciaram uma discussão originada pelo facto de o arguido não ter ligado a ventilação da casa de banho após ter tomado banho.

6 - O arguido afirmou ao pai que tinha ligado a mencionada ventilação e deslocou-se para o seu quarto.

7 - Mais tarde, após ter preparado o seu almoço e de ter ido almoçar para o quarto, o arguido dirigiu-se à cozinha da residência tendo, nesse momento, ocorrido nova discussão originada pelo facto de BB reafirmar ao arguido que este não tinha ligado a ventilação da casa de banho.

8 - Na sequência da discussão referida em 7 dos factos provados, BB disse ao arguido que um dia destes iria acabar com "isto tudo" e que iria matar a mãe e irmã do arguido, e também o arguido, sendo este em último lugar.

9 - Nessa sequência, BB dirigiu a sua mão para a bancada da cozinha que continha, entre outros objectos, facas, não tendo logrado alcançá-las, tendo o arguido, de imediato, agarrado numa faca de cozinha com lâmina de cerca de 11,5 cm de comprimento, aproximou-se de BB com o propósito formulado de lhe tirar a vida, e desferiu-lhe um golpe superficial na zona do peito e, de imediato, um outro golpe na região carotidiana esquerda.

10 - BB agarrou-se à sua garganta e ainda tentou chegar a uma faca que se encontrava na cozinha.

11 - Porém, o arguido, de imediato, muniu-se de outra faca de cozinha, com uma lâmina com cerca de 7,5 cm de comprimento, e desferiu outro golpe na região carotidiana esquerda de BB, que veio a partir-se na sequência da força que foi utilizada pelo arguido.

12 - De seguida, e no momento em que a vítima BB já se encontrava caída no chão da cozinha, o arguido muniu-se de outra faca de cozinha com lâmina de cerca de 13,5 cm de comprimento, e desferiu com a mesma um outro golpe na região carotidiana direita de BB.

13 - Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB sofreu ferida incisa na região cervical lateral direita, oblíqua para baixo e para a frente, medindo 3,5 cm de eixo maior longitudinal por 1 cm de maior afastamento de bordos na extremidade anterior, rodeada de infiltração sanguínea, e duas feridas incisas na região cervical lateral esquerda, oblíquas para baixo e para a frente, medindo 1,3 cm de eixo maior longitudinal por 0,5 cm de afastamento de bordos na extremidade anterior, rodeadas de infiltração sanguínea, tendo ainda duas feridas incisas no dedo da mão esquerda, de relevar nas falanges distais do 2° e do 5° dedos, rodeadas de infiltração sanguínea.

14 - De seguida, e com a vítima desfalecida, o arguido despiu as calças da mesma, que se encontravam ensanguentadas e colocou-as dentro de um saco de plástico, juntamente com os sapatos daquela, deixando BB desnudado, ficando o mesmo apenas com a roupa interior - boxers.

15 - De seguida, o arguido limpou o corpo de BB e muniu-se de fita adesiva, e atou as mãos e os pés de BB.

16 - Após, com as suas mãos, o arguido colocou um saco de plástico na cabeça de BB, que apertou, sufocando-o pela obstrução das vias respiratórias, assim lhe provocando directa e necessariamente a morte, e envolveu o pescoço deste com uma toalha.

17 - A morte de BB foi devida à actuação do arguido, por asfixia mecânica por oclusão extrínseca das vias aéreas — sufocação com saco de plástico — associada a lesões traumáticas cervicais.

18 - De seguida, o arguido transportou o corpo de BB para o seu próprio quarto, onde o deixou no solo, junto à cama, na posição de decúbito dorsal.

19 - Então, o arguido lavou o chão e a bancada da cozinha e as facas que utilizou e, em hora não concretamente apurada, mas situada pelas 18h00, saiu de casa.

20 - Após a mãe do arguido ter chegado a casa, cerca das 19h00, e ao ver o corpo de BB no quarto do arguido, telefonou ao arguido dizendo-lhe para este regressar a casa, o que o arguido fez pouco tempo depois.

21 - Ao agir da forma descrita, agiu o arguido com o propósito concretizado de tirar a vida ao seu pai, AA, com quem residia, bem sabendo que, face às características corto-perfurantes dos meios utilizados (facas) e às zonas do corpo que pretendia atingir e atingiu, nomeadamente o pescoço que aloja vasos sanguíneos essenciais à vida, seguido da asfixia mediante a colocação de um saco de plástico na cabeça, sufocando-o, lhe causaria a morte, como causou.

22 - Agiu o arguido, em todas as descritas circunstâncias, de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Da personalidade e das condições pessoais do arguido e dos seus antecedentes criminais

23 - Sendo o mais novo de dois filhos de um casal de modesta condição socioeconómica, o processo evolutivo de AA decorreu no agregado de origem, na altura constituído pelos pais e irmã, dez anos mais velha, enquadramento familiar que se manteve inalterado até ao passado ano.

24 - O crescimento do arguido processou-se desde o seu nascimento na zona residencial acima referenciada, destacando-se a actividade laboral de ambos os progenitores, o pai, ... no sector da construção civil, trabalho que requereu moderada mobilidade geográfica ao longo dos anos, no desempenho de funções em diversos países da Europa, interrompidos por períodos em Portugal, no respectivo agregado familiar. Por sua vez, a mãe, foi desde sempre trabalhadora no sector doméstico para terceiros, constituindo-se como a principal fonte de sustento da família.

25 - Foi relatado pela mãe e irmã do arguido, e por este, aos técnicos da DGRSP, para efeitos de elaboração do relatório social do mesmo, que existia tensão vivenciada no lar familiar, mas que o arguido regista um percurso escolar marcado com bom aproveitamento, tendo superado as várias etapas académicas sem retenções, em estabelecimentos de ensino público.

Com a conclusão do 12° ano de escolaridade, o arguido optou pela continuidade académica a um nível superior, sendo que após a obtenção da ... em ..., ingressou no grau de ... no Instituto ..., que concluiu com a média de catorze valores, em período recente à data dos factos.

Em paralelo ao percurso académico, AA descreve aos técnicos da DGRSP algumas experiências laborais, com o início por volta dos dezanove anos de idade, maioritariamente em superfícies comerciais, tendo desenvolvido actividade como ... e no serviço de cafetaria. Nesse trajecto incluiu-se também a sua prestação laboral como ajudante num ....

26 - O arguido AA tinha como ocupação dos tempos livres, o convívio com alguns amigos, participando de forma activa em algumas reuniões de carácter ... e em acções de voluntariado no contexto da dinâmica do grupo de amigos.

27 - O arguido é descrito por quem lhe é próximo, como um bom amigo, pacífico e de fácil convívio, prestável, respeitado e respeitador.

28 - Em período precedente à actual prisão, o arguido mantinha-se integrado no agregado familiar, constituído pelos progenitores e irmã, embora esta última já estivesse em processo de aquisição da sua primeira habitação, prevendo eventual alteração de residência.

29 - No plano profissional e já concluído o grau académico de ..., AA referiu aos Técnicos da DGRSP que tinha como ambição o seu ingresso nas ..., encontrando-se na altura a desenvolver os procedimentos legais de ingresso, justificando tal opção para ter "alguma disponibilidade para mim".

30 - No plano laboral, estaria a aguardar a renovação do seu contrato de trabalho junto da entidade laboral, numa das superfícies comerciais da zona de residência. Segundo o próprio, parte da sua remuneração salarial seria voluntariamente partilhada nas despesas comuns da família, não descurando o facto de a progenitora ser a fonte de maior sustento no lar familiar e mesmo no apoio financeiro com os seus estudos.

31 - Em face do discurso do arguido em sede de entrevista, os técnicos da DGRSP concluíram pela existência de uma forte ligação afectiva do arguido pela mãe e de sentimentos de elevado proteccionismo do arguido face à mãe e à irmã.

32 - No presente contexto prisional AA tem vindo a promover um comportamento isento de reparo, embora algo reservado e marcado por algum isolamento social, encontrando-se integrado laboralmente, como faxina da ..., com um bom desempenho.

33 - O arguido, no Estabelecimento Prisional, tem as visitas da progenitora e irmã, bem como de alguns amigos e respectivo representante legal.

34 - Consta do relatório de perícia sobre a personalidade do arguido que: "O arguido viu o seu desenvolvimento biopsicossocial ser negativamente condicionado pela violência paterna e pela ausência de protecção materna, tendo sido ele próprio vítima reiterada de abusos verbais, físicos e psicológicos.

Ao nível do seu funcionamento verificamos que AA apenas conseguiu, ao longo do seu crescimento e vida adulta, estabelecer e manter relacionamentos com familiares de primeiro grau, tendo referido que nunca se terá sentido à vontade para se relacionar com pares.

Por outro lado, a ausência de relacionamentos gratificantes, para além do seu núcleo familiar, parece ter sido sentida, pelo arguido, como uma frustração, tendo sido referidos pelo arguido vários relacionamentos funcionais, temporários e desinvestidos em termos afectivos. O arguido parece ter consciência da sua inadequação pessoal em relacionamentos, a qual parece ser reforçada por um funcionamento rígido e obsessivo.

Este padrão de funcionamento pessoal é consistente com os resultados da presente avaliação que apontam para a presença, no arguido, de um funcionamento associado a personalidade esquizotípica.

Para além do referido, os resultados obtidos, em duas das provas aplicadas apontam para a presença de desordem ao nível do pensamento, e de ideias delirantes, as quais podem condicionar negativamente o processo de tomada de decisão do arguido, dado que podem pressupor um corte com a realidade.

O funcionamento de personalidade esquizotípica é também consistente com a presença de um aparente humor neutro em contextos de ativação emocional, e de uma aparente ausência de empatia ou frieza, que corresponde à presença, no arguido, de afetos incongruentes e/ou limitados.

No que concerne ao funcionamento intelectual verificamos que, de acordo com a prova aplicada, o arguido parece ter recursos superiores à média esperada para a sua faixa etária, o que é consistente com a existência de um percurso escolar e formativo regular, e com a conclusão de ... aos 23 anos, sem qualquer retenção anterior.

Em termos da agressividade, verifica-se que, de acordo com a prova aplicada, o arguido se encontrava, aquando da realização da mesma, irritado, pese embora não o tenha expressado verbalmente, o que pode estar associado ao facto de considerar a avaliação como intrusiva.

Os resultados apontam para que o arguido, com frequência, contém ou suprime pensamentos de raiva, ou qualquer pensamento ou emoção/afeto relacionado com a zanga, exercendo controlo pessoal sobre estados de hostilidade, o que é consistente com a informação provinda das fontes colaterais que nos referiram que mesmo em situações de tensão ou agressividade, o arguido mantinha-se, de forma geral, contido, e que até tinha um efeito dissuasor, junto do progenitor. Contudo, em situação vivenciada como sendo de pressão extrema, pode ocorrer uma externalização, como forma de libertação desta tensão.

(…)

O arguido não dispôs de um contexto familiar que favorecesse o seu adequado desenvolvimento biopsicossocial, tendo sido exposto, desde o nascimento a um quadro de violência severa, em termos verbais, físicos e psicológicos.

Este enquadramento terá favorecido a formação e consolidação de uma aliança entre a mãe, o arguido e a irmã deste, que se foi retroalimentando ao longo do tempo, tendo o arguido denotado, ao nível do discurso o seu dever de proteção destas.

Apesar deste quadro de adversidade e tensão intrafamiliar, o arguido, mercê dos seus recursos intelectuais conseguiu manter um percurso formativo regular, tendo concluído ... na idade expectável para o efeito.

Os resultados da presente avaliação, são consistentes com a informação recolhida junto das fontes colaterais contactadas, sendo que existem indicadores da presença, no arguido, de um funcionamento decorrente de personalidade esquizotípica, tendo sido inteligível a existência de desorganização ao nível do pensamento, e de ideação paranoide, as quais parecem ter condicionado negativamente a capacidade de gestão socio emocional do arguido e o processo de tomada de decisão.

Do apurado, verificamos que o arguido tem consciência das suas limitações ao nível do funcionamento intrapessoal, parecendo vivenciar a mesma com sofrimento e frustração, não parecendo dispor, no momento, de estratégias para alterar este padrão comportamental.

Em termos de agressividade, verificamos a presença, no arguido, de capacidade de contenção pessoal, sendo que a raiva é tendencialmente direcionada internamente, pese embora, em situações de extrema pressão possa ser externalizada, como forma de aliviar a tensão interna. (...)."

35 - O arguido não é portador de doença do foro psiquiátrico e, à data dos factos, estava capaz de avaliar a ilicitude dos seus actos e de se determinar de acordo com essa avaliação.

36 - Não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais ao arguido. Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa.

(…)

B) Qualificação jurídica dos factos

Alega ainda o recorrente que a matéria de facto dada como provada não é idónea para integrar o crime de homicídio qualificado, mas antes o crime de homicídio privilegiado.

Vejamos se lhe assiste ou não razão.

No caso em apreço, são as seguintes as normas do Cód. Penal a ter em conta:

“Artigo 131.º - Homicídio

Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.

Artigo 132.º - Homicídio qualificado

1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;(…)

i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso; (…)

Artigo 133.º - Homicídio privilegiado

Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.”(sublinhados nossos)

Relativamente aos diferentes tipos de homicídio, consideramos correctamente efectuada a distinção e a fundamentação doutrinal e jurisprudencial no acórdão recorrido, a qual se dá aqui por reproduzida e à qual aderimos:

“(…) Enquadramento jurídico-penal dos factos provados:

Vem o arguido acusado da prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.° e 132°., n°. 1 e rio. 2, als. a) e i), ambos do Código Penal.

Quanto ao crime de homicídio:

Segundo a definição legal integra tal tipo de crime a conduta daquele que matar outra pessoa - cfr. art°. 131° do Código Penal.

O elemento objectivo do tipo consiste em matar outra pessoa e traduz-se num acto que seja causal da morte.

E o elemento subjectivo consiste na vontade de praticar o acto de que resultou a morte e no conhecimento de que esse acto a causaria. Exige-se, assim, o dolo, em qualquer das suas modalidades contempladas no art°. 14° do Código Penal: directo, necessário ou eventual.

No caso dos autos, sem margem para dúvida, em face da matéria factual provada a conduta do arguido, ao desferir em BB um golpe superficial na zona do peito, dois na região carotidiana esquerda e um outro na região carotidiana direita, e ao colocar a cabeça do corpo de BB, já sem reacção, no interior de um saco de plástico que apertou, provocando-lhe, em consequência, lesões que foram causa directa e necessária da sua morte (por asfixia mecânica por oclusão extrínseca das vias aéreas - sufocação com saco de plástico - associada a lesões traumáticas cervicais), resultado este que o arguido previu e quis -, integra o crime de homicídio.

Os golpes desferidos pelo arguido nas zonas do corpo que foram atingidas de BB e a sufocação com o saco de plástico são, indiscutivelmente, actos idóneos a provocar a morte.

O resultado morte igualmente se verificou.

Estão, assim, in casu, verificados os elementos do tipo objectivo do crime de homicídio.

No que respeita ao elemento subjectivo do tipo de ilícito em referência, estando provado que o arguido, ao desferir os golpes com as facas no corpo de BB e de colocar a cabeça do mesmo dentro de um saco de plástico, nas circunstâncias em que o fez, previu e quis atingi-lo no seu corpo, em zonas onde se alojam órgãos vitais, sendo que quis tirar a vida a BB, agindo voluntária, livre e conscientemente, sabendo que tal conduta é proibida por lei, é indubitável ter o arguido actuado com dolo directo (cfr. art°. 14°, n° 1, do Código Penal): o agente representou a morte de outrem e actuou com o propósito de a provocar (dolo directo).

Posto isto, cumpre apreciar se estão verificadas as circunstâncias qualificativas do homicídio previstas nas alíneas a) e i) do n°. 2 do artigo 132°, por que o arguido vem acusado.

O artigo 132° do Código Penal qualifica o crime de homicídio em virtude do maior grau de culpa que considera existir sempre que a morte seja causada em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, enumerando, a título exemplificativo, algumas dessas circunstâncias, as quais não são de funcionamento automático, querendo com isto significar que uma vez verificadas, não se pode desde logo concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente (cfr. Prof. Figueiredo Dias, in "Direito Penal Português", págs. 203 a 205).

No nosso ordenamento jurídico o crime de homicídio qualificado não é um tipo legal autónomo, com elementos constitutivos específicos, constituindo antes uma forma agravada de homicídio, em que a morte é produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade.

Como refere Teresa Serra, in "Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena", p. 81, o homicídio qualificado é um caso especialmente grave de homicídio, pelo que é correcto afirmar que este caso especialmente grave está totalmente referido ao tipo de homicídio simples previsto no artigo 131°.

Também Figueiredo Dias, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", T 1, p. 25, assume posição coincidente ao defender que o homicídio qualificado não é mais que uma forma agravada do homicídio simples previsto no artigo 131° do Código Penal.

No que ao caso concreto releva:

- A al. a) do no. 2 do artigo 132°. do Código Penal refere-se à circunstância de o agente ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima.

Seguimos de perto o entendimento do S.T.J. no acórdão proferido no âmbito do Proc. n°. 109/18.4GS SB.El.S1, de 30/10/2019 (disponível em www.DGSI.pt), no qual se refere, relativamente à circunstância prevista na al. a) do n°., 2 do artigo 132° do Código Penal, que " a especial censurabilidade derivada e consignada como factor de valoração e categorização qualificativa do crime de homicídio advêm, no caso da alínea a) do n° 2 do artigo 132° do Código Penal, do estabelecimento predefinido e paradigmático de uma relação pré-constituída e criada por decorrência de um relacionamento interpessoal gerador de laços que se firmam e desenvolvem com independência de um relacionamento vivencial futuro e lastrado por uma inextrincável incisão na vida pessoal dos indivíduos dessa geração, em comum, de feição biológico-natural.

A concepção normativo-funcional da qualificativa surge, em nosso juízo, aprioristicamente e, iteramos, independente de factores de relacionamento interpessoal que se desencadeiem e se venham a desenvolver, posteriormente, no interior da relação criada.

Independentemente das vicissitudes e sobressaltos, quiçá perversos e derruidores de uma relação convivencial oriunda de uma assumpção fundacional e geradora, única e típica de pai e filho, advertimos que a valoração normativa não pode ser afastada pela avaliação conjuntural e contingente do devir relacional interpessoal, antes devendo ser fixado pelo nexo relacional biológico que resulta de uma concepção única e pessoalmente indissolúvel.

A qualificação assume, em nosso juízo, uma feição ôntico-normativa que não pode ser arredada e escamoteada pela deterioração do relacionamento que surta no decurso da vivência interpessoal e que delapide o típico relacionamento, socialmente assumido entre um ascendente e um descendente. Este pode deteriorar-se, diluir-se e, inclusive, frustrar-se e assumir uma ruptura funcional-pessoal irredenta e irremeável só que o vínculo irremível, indissolúvel e inauferível permanecerá independentemente das conjunturas vivenciais e das incidências mundanas que possam vir a carcomer e desfigura o vínculo original e ontologicamente incindível, inconcusso e incessível.

Esta circunstância não pode ser afastada — sem perigo de se obliterar um lastro biológico e ético-cultural indestrutível da pessoa e do indivíduo histórico-socialmente situado - pela caracterização e configuração social de um relacionamento interpessoal dessorado e esvaído na acepção afectiva e sentimental. Estes são factores volúveis e contingentes enquanto que o laço originário se mantém na sua integridade geracional (...)"..

- A al. i) do n°. 2 do artigo 132°. do Código Penal refere-se à circunstância de o agente utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso.

Reportando-se ao "meio insidioso", Maia Gonçalves entende que se trata "de um conceito amplo (...) que abarca os meios aleivosos, traiçoeiros e os desleais. Não foram particularizados quaisquer meios para não retirar elasticidade ao conceito". E acrescenta que, "devido a esta elasticidade, deverá aqui haver um particular cuidado na concreta indagação e constatação da especial censurabilidade ou perversidade que estão na base da agravação, e que são sua condição nine qua non" (cfr. "Código Penal Português, 9ª ed., págs. 546/547).

Dentro desta elasticidade do conceito, segundo o ensinamento de Nelson Hungria, podem distinguir-se estes diversos meios insidiosos:

» a traição (ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso);

» a emboscada (dissimulada espera da vítima em lugar por onde terá de passar);

» a simulação (ocultação da intenção hostil, para acometer a vítima de surpresa (cfr. "Comentários ao Código Penal Brasileiro", Vol. V, págs. 167 e segs.).

Entende a Defesa do arguido que os factos perpetrados por este devem ser subsumidos ao crime de homicídio privilegiado, p. e p. pelo artigo 133°, do Código Penal e, não, ao crime de homicídio qualificado pelo qual o mesmo se encontra acusado, pois os factos permitem concluir pela existência de uma "compreensível emoção violenta", ou até mesmo de "desespero", exigidos pelo artigo 133° do Código Penal

Importa, pois, analisar o crime de homicídio privilegiado, fazendo menção aos contributos mais relevantes da doutrina e da jurisprudência sobre os fundamentos do privilegiamento invocados: a "compreensível emoção violenta", e o "desespero", enquanto estados que diminuam sensivelmente a culpa.

Estabelece o artigo 133.°, do Código Penal que: "Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos".

A redacção original do preceito, constante do Código Penal, aprovado pelo Decreto Lei n.° 400/82, de 23 de Setembro, dispunha: "Será punido com pena de prisão de 1 a 5 anos quem for levado a matar outrem dominado por compreensível emoção violenta ou por compaixão, desespero ou outro motivo, de relevante valor social ou moral, que diminua sensivelmente a sua culpa".

O tipo previsto no Código Penal de 1982 traduziu-se numa ruptura com o regime anteriormente consagrado no artigo 370.°, do Código Penal de 1852/1886 relativo ao homicídio provocado «por pancadas ou outras violências graves contra as pessoas», uma vez que, como refere Amadeu Ferreira, o fundamento do privilegiamento passou a estar "ligado ao próprio agente emocionado, menos culpado devido às características da sua emoção, independentemente das causas" (cfr. Homicídio Privilegiado, Almedina, 1996 (reimpressão), p. 13.), e não, como sucedia anteriormente, à existência de um facto exterior ao mesmo que o impelia a agir, diminuindo a sua culpa.

Foi com o Decreto-Lei n.° 48/95, de 15 de Março, que o artigo 133.° passou a ter a sua actual redacção, tendo sido esclarecidas algumas das dúvidas que a redacção original suscitava.

Assim, questionava-se “se a compaixão e o desespero deveriam ser valorados, primeiro, enquanto motivos de relevante valor social ou moral, como a redacção do preceito parecia inculcar (...), valoração expressiva de uma menor ilicitude que conduziria à exigência de que estes motivos assumissem uma relevância objectiva" (cfr. Teresa Serra, "Homicídios em Série", in Jornadas de Direito Criminal - Revisão do Código Penal - Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, CEJ, 1998, p. 158).

Questionava-se, ainda, "se a exigência de uma diminuição sensível da culpa respeitava a todas as cláusulas de privilegiamento ou apenas à última, ou seja, o motivo de relevante valor social ou moral, como a redacção do preceito deixava transparecer (...)" (cfr. Teresa Serra, in ob. cit., p. 159).

Com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.° 48/95, passou a ser claro que se nos deparam quatro conceitos autónomos e distintos: «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» ou «motivo de relevante valor social ou moral», aos quais acresce a exigência de que os mesmos diminuam sensivelmente a culpa, para que se verifique o privilegiamento do homicídio.

Questão amplamente debatida na doutrina e fundamental para ajudar a concretizar os requisitos exigidos para que se mostre preenchido o artigo 133.°, do Código Penal, é a de saber qual é afinal o fundamento do privilegiamento aí previsto.

Assim, Fernanda Palma ( in Direito Penal — Parte Especial — Crimes contra as Pessoas, AAFDL, Lisboa, 1983), considera que o privilégio tem dois fundamentos distintos: por um lado, e no que diz respeito aos casos de «compreensível emoção violenta», «compaixão» e «desespero», a menor capacidade psicológica de o agente dominar os seus impulsos e de determinar a sua vontade; por outro, e no que concerne ao «motivo de relevante valor social ou moral», a menor exigibilidade de um comportamento de acordo com o Direito, atenta a relevância social do motivo que o conduziu à decisão criminosa.

Frederico Costa Pinto ("Crime de Homicídio Privilegiado — Acórdão da Relação de Évora de 4 de Fevereiro de 1997", RPCC, 8, 1998.) expressa entendimento semelhante, considerando que o fundamento do privilegiamento nos casos de «compreensível emoção violenta», «compaixão» e «desespero» é um estado de menor culpa do agente (imputabilidade diminuída), pelo que relativamente a estas causas não se aplica a exigência de diminuição sensível da culpa, prevista na parte final do artigo 133.°. Na opinião deste autor, tal exigência apenas é aplicável ao privilegiamento por conta de «motivo de relevante valor social ou moral», sendo que, neste caso, o mesmo tem natureza mista, assente num decréscimo do conteúdo de ilícito e da culpabilidade do facto.

Também Amadeu Ferreira se situa nesta posição, ao cindir o fundamento do privilegiamento em dois aspectos distintos: por um lado, na «compreensível emoção violenta» a culpa é atenuada por via da imputabilidade diminuída; ao passo que nos restantes casos tal funda-se na exigibilidade diminuída de um comportamento diverso. Sendo que, em ambos os casos, "o art. 133.° constitui um tipo de culpa em que se atende prioritariamente, não à causa do facto ou à sua consideração global, mas ao estado do agente, ao grau de afectação da sua vontade" (in ob. cit., p. 143).

Por sua vez, para Sousa Pinto ("Um caso de homicídio privilegiado", in Direito Penal II, AAFDL, 1984.), o fundamento do privilegiamento do artigo 133.°, do Código Penal é, em todas as situações aí previstas - «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» e «motivo de relevante valor social ou moral» - a imputabilidade diminuída do agente.

Por fim, no entendimento sustentado por Figueiredo Dias (in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, 1999.), Teresa Serra (in ob. cit.), e Curado Neves ( "O Homicídio Privilegiado na Doutrina e na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça", RPCC, 11, 2001), o privilégio é reconduzido à exigibilidade diminuída, sendo certo, porém, que estes autores não são unânimes na concepção de exigibilidade diminuída perfilhada.

Para Figueiredo Dias, as várias circunstâncias elencadas no artigo 133.° - a «compreensível emoção violenta», a «compaixão», o «desespero» e o «motivo de relevante valor social ou moral» - têm de ser externas ao próprio agente. Tal conclusão resulta da delimitação e diferenciação do conceito de «diminuição sensível da culpa», exigida pelo preceito em causa, do conceito de «imputabilidade» (artigo 20.°, do Código Penal) e ainda do conceito de «consciência da ilicitude» (artigo 17.°, do Código Penal). Ou seja, uma vez que a aplicação do artigo 133.°, do Código Penal pressupõe a imputabilidade do agente e a consciência da ilicitude, o privilegiamento tem necessariamente que se fundar numa situação endógena e exógena ao agente e em que "também o homem normalmente "fiel ao direito" ("conformado com a ordem jurídico-penal") teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções" (cfr. ob. cit. P. 48).

Vejamos, assim, e desde já, a "compreensível emoção violenta".

Por emoção violenta deve entender-se, segundo Augusto Silva Dias, "um estado de exaltação, de arrebato súbito, de ira ou fúria que limita a capacidade de o agente se motivar concretamente pela proibição" (in Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, p. 38.).

Na definição de Figueiredo Dias (in ob. cit., p. 50), a "compreensível emoção violenta" é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente "fiel ao direito" não deixaria de ser sensível.

Para Amadeu Ferreira (in ob. cit., p. 63 e 96), a "compreensível emoção violenta que domina o agente" constitui um "estado psicológico que não corresponde ao normal do agente, encontrando-se afectadas a sua vontade, a sua inteligência e diminuídas as suas resistências éticas, a sua capacidade para se conformar com a norma. Há uma "excitação de molde a obscurecer-lhe a inteligência e a arrebatar-lhe a vontade", sendo uma situação que documenta um menor grau de culpa do agente, que se aproxima da incapacidade acidental".

A emoção para ser relevante como cláusula privilegiante deve dominar o agente, significando que este perde o seu autodomínio, o controlo, ficando obnubilada ou cortada a sua relação com a realidade. Não é o agente que conduz o seu comportamento, mas "deixa-se levar", arrastar, pela violência da emoção que o domina.

A emoção violenta, diversamente ao que sucede com as demais cláusulas privilegiadoras, submete-se a uma dupla exigência que se configura como um duplo controlo na medida em que tem de ser compreensível e tem de diminuir sensivelmente a culpa. Tem de ser uma emoção (violenta) socialmente tolerável ou respeitável. Esta característica explica, como considera Augusto Silva Dias (in ob. cit. p. 39) que "a circunstância privilegiante em questão releve através de critérios de menor exigibilidade de uma reacção conforme as exigências normativas".

Como refere o douto acórdão do S.T.J., de 29/10/2008 (proferido no processo n.° 08P1309, disponível em www.dgsi.pt.), "No esforço de compreensão da emoção é imperativo o estabelecimento de uma relação entre o afecto e as suas causas ou motivos, pois, para se entender uma emoção tem de se entender as relações que lhe deram origem, tendo em atenção o sujeito que a sentiu e o contexto em que se verificou a atitude, em ordem a entender o estado de espírito, o "conflito espiritual", a situação psíquica que leva o agente ao crime".

Como assinala Figueiredo Dias (in Parecer na Colectânea de Jurisprudência 1987, tomo 4, pág. 55), o facto que origina a emoção não tem agora que radicar em qualquer provocação. Na visão do artigo 133° do C.P. - assente, não em juízos de ponderação ético-jurídicos dos valores conflituantes, mas sim na valoração da situação psíquica que leva o agente ao crime — o que interessa é "compreender" esse mesmo estado psíquico, no contexto em que se verificou, a fim de se poder simultaneamente "compreender" a personalidade do agente manifestada no facto criminoso.

A compreensibilidade da emoção é mais, assim, o estabelecer de uma relação não desvaliosa entre os factos que provocaram a emoção e essa mesma emoção. Se essa relação for estabelecida, a emoção é compreensível e provoca, portanto, uma diminuição da culpa do agente.

Subjacente a todo o preceito está um critério de menor exigibilidade relacionado com a "sensível diminuição da culpa", a que acresce, segundo Figueiredo Dias (in ob. cit., p. 50 e 51) uma exigência adicional, exigindo-se da emoção violenta (e apenas desta, com exclusão da compaixão e desespero - § 11, pág. 52) que seja compreensível, restringindo o mencionado autor a validade da exigência de compreensibilidade para os estados de afecto esténicos.

A "compreensibilidade, que não se confunde com a "diminuição sensível da culpa", deve ser avaliada por correspondência ao tipo social do agente, ou seja, "por uma pessoa proveniente do mesmo meio social do autor, com uma educação e uma mentalidade análogas às dele, conhecedora de todas as circunstâncias de facto" (cfr. Teresa Quintela de Brito, in ob. cit., p. 333.). Assim, a "compreensibilidade" corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito à situação externa geradora da "emoção violenta", ao passo que a "diminuição sensível da culpa" corresponde à sensibilidade do mesmo homem ao conflito espiritual criado ao autor.

Por sua vez, no "desespero" estamos perante estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta.

Augusto Silva Dias trata o "desespero" como "vivência emocional caracterizável como total falta de esperança, como sensação de estar num "beco sem saída" existencial" (cfr. ob. cit., p. 44.)

Um estado de afecto que, segundo Paulo Pinto de Albuquerque, "suscita no agente impotência diante de uma situação pessoal, de terceiro ou da vítima" (cfr. Comentário do Código Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, p. 523).

O supra citado acórdão do S.T.J. faz também menção às posições doutrinárias sobre a mencionada cláusula do desespero.

Assim: "Para Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ..., pág. 52, o estado de afecto desespero corresponde, não tanto a situação objectiva de falta de esperança na obtenção de um resultado ou de uma finalidade, mas sobretudo a estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta, não se tornando necessário que deva ter-se como compreensível.

Teresa Serra, Homicídios em Série, págs. 159/160, define desespero como estado emocional que tal como a compaixão afecta o discernimento normal do agente, em que em contraposição à emoção violenta, há uma acumulação de tensão que impele o autor a um beco sem saída ou a considerar-se num beco sem saída, actuando em conformidade com esse impulso. A situação de desespero implica estados emotivos de natureza passiva, interiorizada, reflexiva, com uma componente intelectual, não sujeita à cláusula da compreensibilidade, podendo reconduzir-se ao desespero os casos de homicídio de humilhação prolongada.

João Curado Neves, in RPCC 2001 citada, pág. 186, afirma que o desespero tanto pode consistir num estado de espírito ocasional como resultar da avaliação ponderada da situação em que o agente se encontra; está em causa, não a perturbação do agente, mas a motivação do facto.

Para Frederico Lacerda Costa Pinto, in RPCC 1998 citada, pág. 288, desespero corresponde a situação de facto em que o agente se encontra numa situação de pressão psicológica que lhe apresenta o crime como a única saída possível para a situação em que se encontra.

Segundo Leal Henriques - Simas Santos, Código Penal Anotado, II, pág.132, entende-se por desespero «o estado de alma em que se encontra quem já perdeu a esperança na obtenção de um bem desejado, de quem enfrenta uma grande contrariedade ou uma situação insuportável, enfim, de quem está sob a influência de um estado de aflição, desânimo, desalento, angústia ou ânsia» - assim no acórdão do STJ de 17-01-2008, processo n.° 607/07-5ª.

Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, págs. 68 a 71 refere: Embora muito próximo da emoção violenta, distingue-se dela porque coincide em geral, com situações que se arrastam no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança, exigindo a lei não apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua consideravelmente a sua culpa, o que só poderá entender-se se levarmos em conta os motivos do autor.

Se é certo que "o que identifica socialmente um homem desesperado não é o valor social ou ético dos seus motivos, mas a estrutura comportamental, independentemente das suas causas", devemos realçar que não basta identificar o homem desesperado. É necessário que tal desespero diminua sensivelmente a culpa do agente."

Para Teresa Quintela de Brito (in o.. cit., p. 923), o desespero só pode tornar menos exigível um comportamento conforme ao direito, em função da não reprovabilidade ou, mesmo, da relevância humana, ética ou social dos motivos que orientam o agente, e da correspondência de tais motivos a um quadro de vida tão grave que ponha em causa a própria dignidade humana do autor.

A jurisprudência que julgamos majoritária, do S.T.J., segue tendencialmente a doutrina de Figueiredo Dias, no sentido de que o fundamento do privilegiamento previsto no artigo 133.°, do Código Penal é a exigibilidade diminuída, considerando que o mesmo é comum a todas as circunstâncias aí previstas.

Assim, e como refere o citado acórdão: "O homicídio privilegiado assente numa cláusula de exigibilidade diminuída concretizada em certos "estados de afecto" vividos pelo agente, que diminuam sensivelmente a sua culpa".

Também o acórdão do S.T.J. de 24/02/2017 (proc. n.° 1825/08.4PBSXL.ELS1, disponível em www.dgsi.pt), relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes: "Ao crime de homicídio privilegiado subjazem considerações atinentes à culpa, que se situam ao nível da exigibilidade. É a especial diminuição da culpa, em resultado de exigibilidade diminuída, que justifica e fundamenta o crime do art. 133°, do CP".

Bem como o acórdão do S.T.J., de 07/09/20016 (proc. n.° 405/14.0JACBR.C1, disponível no mesmo local), relatado pelo Conselheiro Santos Cabral: "Subjacente à norma do art. 133.°, do CP, como elemento do tipo privilegiado, está um critério de menor exigibilidade relacionado com a sensível diminuição da culpa".

No mesmo sentido, e referindo-se expressamente ao facto de a exigibilidade diminuída ser fundamento comum às várias circunstâncias previstas no artigo 133.°, do Código Penal, veja-se o acórdão do S.T.J., de 05/02/2015 (proc. n.° 160/13.0GBTMR.C1.S1, disponível in loc. cit.), relatado pela Conselheira Isabel Pais Martins: "O privilegiamento do homicídio deriva de uma sensível diminuição da culpa, a qual constitui denominador comum às quatro circunstâncias enunciadas no art. 133.°, do CP, todas elas com o efeito de conformar uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente».

Veja-se ainda o acórdão do S.T.J. de 09/04/2015 (proc. n.° 353/13.0PAPNI.L1.S1, in loc. cit.), relatado pelo Conselheiro João Silva Miguel: "A compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero, ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afecto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio".

Também no que diz respeito à delimitação das várias circunstâncias previstas no citado preceito, designadamente no que diz respeito ao facto de as mesmas terem de ser externas ao próprio agente, é a doutrina perfilhada por Figueiredo Dias que é seguida, manifestando-se a mesma sobretudo na referência da jurisprudência a uma relação de proporcionalidade "entre o facto injusto provocador e o facto ilícito provocado" - neste sentido cfr., designadamente, os acórdãos do S.T.J. de 12/03/2015 (proc. n.° 40/11.4JAAVR.C2.S1), de 29/05/2013 (proc. n.° 1264/11.0PCSTB.El.S1) e de 20/06/2012 (proc. n.° 416/10.4JACBR.C1.S ) todos eles consultáveis in www.dgsi.pt.

Finalmente, e do mesmo modo, é a doutrina de Figueiredo Dias que está presente na posição assumida pela jurisprudência de que a "compreensibilidade" exigida para a emoção violenta se distinga da "diminuição sensível da culpa" e de que aquela tem de ser aferida "não atendendo às suas reacções particulares ou ao seu temperamento mas, em função do padrão do homem médio, colocado na situação do agente" - cfr., entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 31/03/2016 (proc. n.° 221/14.9JAFAR.E1.S1), de 20/06/2012 (proc. n.° 416/10.4JACBR.C1.S1) e de 17/09/2009 (proc. n.° 434/09.5YFLSB), todos eles consultáveis in loc. cit..

E é também ao homem médio que a jurisprudência considera ser de recorrer para aferir da "diminuição sensível da culpa".

Como se considera no acórdão do S.T.J., de 05/06/2014 (proc. n.° 259/09.8JAPTM.E1. S 1, consultável em www.stj.pt/index.php/jurisprudencia 42213/sumarios), a «"menor exigibilidade tem de ser vista à luz do comportamento de uma pessoa normal, respeitadora das normas jurídicas, e não do particular ponto de vista do agente".

Analisando o requisito da compreensibilidade da emoção, lê-se no já citado acórdão do S.T.J., de 24/02/ 2016, que "o mesmo consiste no entendimento, compreensibilidade e perceptibilidade da emoção, no sentido de que a emoção só será relevante quando aceitável (aceitabilidade que se refere apenas à emoção e não ao facto de matar - cf. Fernando Silva, Direito Penal Especial - Crimes Contra as Pessoas (2005), 91.), cuja aferição deve ser avaliada em função de um padrão de homem médio, colocado nas condições do agente, com as suas características, o seu grau de cultura e formação, sem perder de vista o agente em concreto; a partir da imagem do homem médio (diligente, fiel ao direito, bom chefe de família) tentar-se-á apurar se, colocado perante o facto desencadeador da emoção, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar em que o agente se encontrava, se conseguiria ou não libertar da emoção violenta que dele se apoderou".

O entendimento perfilhado por Figueiredo Dias e adoptado pela jurisprudência, é aquele que, efectivamente, quanto a nós, melhor conjuga e articula os conceitos de "imputabilidade", "consciência da ilicitude" e "diminuição sensível da culpa", sendo que, se o legislador utilizou designações diferentes, tais conceitos têm necessariamente que corresponder a realidades distintas e ter campos de aplicação perfeitamente diferenciáveis e não sobreponíveis. O mesmo se diga quanto à distinção entre o conceito de "compreensibilidade" e de "diminuição sensível da culpa".

Em breve síntese do agora explanado e conforme referido no Acórdão do S.T.J. de 28/06/ 2017, relatado por Manuel Augusto de Matos (consultável in loc. cit.):

"a) A exigibilidade diminuída constitui o fundamento do tipo privilegiado previsto no artigo 133.°, do Código Penal comum a todas as situações aí previstas - «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» e «motivo de relevante valor social ou moral».

b) A exigibilidade diminuída corresponde à «diminuição sensível da culpa» referida no artigo 133.°, do Código Penal. Uma vez que, para que possa estar em causa a prática por um agente do crime previsto no artigo 133.º, do Código Penal, este tem, previamente, que ser imputável (artigo 20.º, do Código Penal) e ter consciência da ilicitude (artigo 17.°, do Código Penal), a «diminuição sensível da culpa» tem de corresponder à sensibilidade que o homem normalmente fiel ao direito teria sentido ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão, no sentido de ter tolhido o normal cumprimento das suas intenções.

A «diminuição sensível da culpa» tem, assim, de se fundar numa situação ao mesmo tempo endógena e exógena ao agente: endógena na medida em que tem de corresponder a uma emoção sentida pelo mesmo, e exógena no sentido de que tem de ter um suporte externo e objectivo para ser atendível.

c) A «diminuição sensível da culpa» distingue-se da «compreensibilidade» exigida para a «emoção violenta»: esta corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito à situação externa geradora da «emoção violenta»; aquela corresponde à sensibilidade do mesmo homem normalmente fiel ao direito ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão.

d) Em ambas as situações, isto é, tanto no que diz respeito à «compreensibilidade», como no que diz respeito à «diminuição sensível da culpa», é ao homem médio, colocado na situação do agente, que tem de se atender para se verificar da existência, no caso, das mesmas".(…)”

Segundo Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ”, 5ª edição atualizada, UCP, pág. 585 a 588, a incriminação do homicídio privilegiado fundamenta-se num estado emotivo do agente que torna a sua conduta menos exigível e diminui sensivelmente a sua culpa, em qualquer dos casos previstos no tipo, entendimento que perfilhamos, porquanto, mesmo segundo a letra da lei, a diminuição sensível da culpa é uma circunstância que se reporta a todas as situações anteriormente descritas na norma do art.º 133º do Cód. Penal.

Quanto à emoção, a mesma tem de ser violenta e compreensível.

Também segundo Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 586, a emoção é violenta quando é uma emoção asténica, fruto de perturbação, medo ou susto, ou quando é uma emoção esténica, decorrente de ira, cólera ou irritação, ou um estado de afeto que suscita no agente uma perturbação psíquica transitória e uma reação agressiva imediata a um facto da vítima ou de um terceiro.

A emoção violenta tem de ser compreensível, ou seja, deve corresponder a uma reação que um homem médio colocado na situação concreta do agente poderia ter.

Quanto ao desespero, defende este autor que o acto de matar deve ser, para um observador externo, o único meio de o agente pôr fim a uma situação insuportável.

Já quanto ao homicídio qualificado, entende o mesmo autor, in ob. cit., pág. 572 a 574, que se trata de um tipo de culpa agravada de homicídio por força da cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade.

Quanto à incriminação prevista na alínea a) do nº 2, entende este autor que os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade, porquanto, pese embora as relações familiares e parentais permitam uma maior desinibição, essa desinibição não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado.

Relativamente à caracterização do crime de homicídio privilegiado, podemos ainda ver as seguintes considerações expendidas no Acórdão do STJ de 18/09/18, proferido no processo nº 697/16.0JABRG.S1.G1.S1, em que também foi relator Manuel Augusto de Matos, in www.dgsi.pt: “ I - A exigibilidade diminuída constitui o fundamento do tipo privilegiado previsto no art. 133.º, do CP é comum a todas as situações aí previstas – “compreensível emoção violenta”, “compaixão”, “desespero” e “motivo de relevante valor social ou moral”.

II - A exigibilidade diminuída corresponde à “diminuição sensível da culpa” referida naquele preceito, que tem de corresponder à sensibilidade que o homem normalmente fiel ao direito teria sentido ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão, no sentido de ter tolhido o normal cumprimento das suas intenções.

III - A “diminuição sensível da culpa” tem, assim, de se fundar numa situação ao mesmo tempo endógena e exógena ao agente: endógena na medida em que tem de corresponder a uma emoção sentida pelo mesmo, e exógena no sentido de que tem de ter um suporte externo e objectivo para ser atendível.

IV - A “diminuição sensível da culpa” distingue-se da “compreensibilidade” exigida para a “emoção violenta”: esta corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito à situação externa geradora da “emoção violenta”; aquela corresponde à sensibilidade do mesmo homem normalmente fiel ao direito ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão.

V - Em ambas as situações, isto é, tanto no que diz respeito à “compreensibilidade”, exigida para a “emoção violenta”, como no que diz respeito à “diminuição sensível da culpa”, é ao homem médio, colocado na situação do agente, que tem de se atender para se verificar da existência, no caso, das mesmas.

VI - O desespero tem de diminuir sensivelmente a culpa do agente para o que se terá de conhecer os motivos significantes, que têm de ser bons e não vãos.(…)

O crime de homicídio privilegiado, previsto na citada disposição legal deriva de uma menor culpa do agente. O facto típico e ilícito «corresponde, segundo FERNANDO SILVA, ao mesmo do previsto no art. 131.º, acrescentando elementos privilegiadores. Em causa está um estado de perturbação psicológica do agente face a determinadas circunstâncias que tornam o seu comportamento menos exigível. A menor exigibilidade pode resultar de factores de perturbação distintos, mas todos eles influenciam a decisão do agente, que apenas decide cometer aquele facto por se encontrar sob um estado psicológico afectado».

Para o autor que se vem citando, «[n]a estrutura do tipo do art. 133.º podemos identificar quatro elementos privilegiadores, e dois requisitos fundamentais. Os elementos privilegiadores são a compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero e o motivo de relevante valor social ou moral: A menor exigibilidade ocorre pelo facto do agente se encontrar sob um desses estados psicológicos e praticar o facto por força dessa influência». Para além da verificação de um dos quatro elementos privilegiadores, «é necessário, acrescenta o mesmo autor, que se verifiquem dois requisitos: que o agente actue dominado pelo respectivo elemento, o que significa que a circunstância em causa tem de envolver o agente e levá-lo a praticar o crime, sendo por esse motivo que a sua exigibilidade está diminuída». O segundo requisito consiste “na diminuição da culpa, que se apresenta neste tipo como o fundamento único do privilegiamento. Face à actual, redacção do tipo, não restam dúvidas que apenas pode haver privilegiamento se o agente tiver a sua culpa diminuída»

Seguindo de perto a lição de TERESA QUINTELA DE BRITO, para uns, o fundamento do privilegiamento é diverso consoante estejam em causa as situações de «compreensível emoção violenta», «compaixão» e «desespero» ou o «motivo de relevante valor social ou moral».(…)

Também M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO consideram que «os fundamentos do privilégio assentam em motivos ligados ao agente, que contam unicamente para a culpa», salientando que «o art. 133.º tem o seu lugar próprio em situação de exigibilidade diminuída», sendo este, pois, «o fundamento único do privilégio»

Como se considera no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12-09-2013, proferido no processo n.º 844/11.8JAPRT – 3.ª Secção: «A enumeração das circunstâncias que caracterizam o tipo privilegiado de homicídio feita no artigo 133.º não é exemplificativa, o que ressalta com clareza a partir da redacção introduzida pela alteração do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrada em vigor em 1 de Outubro de 1995 (anteriormente a jurisprudência considerava-a exemplificativa – cfr. acórdãos do STJ, de 16-01-1990, processo n.º 38690, CJ 1990, tomo 1, pág. 11 e BMJ n.º 393, pág. 212; de 16-01-1990, processo n.º 40599, AJ, n.º 5 e mesmo BMJ n.º 393, pág. 278; de 23-05-1991, BMJ n.º 407, pág. 341 e de 05-02-1992, comentado in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6 (1996), Fasc. 1.º, pág. 119).

«Não foi intenção do art. 133º (…) consagrar uma cláusula geral de menor exigibilidade no crime de homicídio; foi, pelo contrário, a de vincular uma tal cláusula à verificação de um dos pressupostos nele explicita e esgotantemente contidos. O que neles não caiba só pode ser (eventualmente) considerado através do instituto da atenuação especial da pena do homicídio simples previsto no art.131º» (cf., Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense …, §§ 6 e 12, págs. 49/50 e 53).

A compreensível emoção violenta; a compaixão; o desespero; ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afecto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio.

O artigo 133.º consagra hipóteses de homicídio privilegiado em função, em último termo, de uma cláusula de exigibilidade diminuída legalmente concretizada, advertindo o Autor que a diminuição sensível da culpa não pode ficar a dever-se nem a uma imputabilidade diminuída, nem a uma diminuída consciência do ilícito, mas unicamente a uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente, tratando-se da verificação no agente de um estado de afecto, que podendo ligar-se a uma diminuição da imputabilidade ou da consciência do ilícito, independentemente de uma tal ligação, opera sobre a culpa ao nível da exigibilidade.

“O efeito diminuidor da culpa ficar-se-á a dever ao reconhecimento de que, naquela situação (endógena e exógena), também o agente normalmente “fiel ao direito” (“conformado com a ordem jurídico penal”) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções” (cf., Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense § 1, pág. 47, e § 3, pág. 48).

“Tanto a qualificação no artigo 132º, como o privilegiamento no artigo 133º, ficam-se a dever a diferentes graduações da culpa, no primeiro caso no sentido de uma especial censurabilidade da atitude contrária ao direito actualizada no facto pelo agente, e, no segundo, no sentido da consideração da atitude do agente manifestada no facto como sensivelmente menos censurável”; “o fundamento de uma agravação ou de uma atenuação que altera uma moldura penal pode não ser um fundamento de ilicitude, mas apenas um fundamento de culpa”.

“A moldura penal do homicídio privilegiado funda-se ela própria numa atitude do agente sensivelmente menos censurável e que ultrapassa até os limites impostos pela atenuação especial prevista no (então) artigo 74º, nº 1, alínea a)” (cf., Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, pág. 40).

3.1.3. De entre as várias situações a que alude o artigo 133.º, do Código Penal, cumpre, perante a economia deste recurso, examinar o desespero enquanto fundamento privilegiador. Na verdade, no caso vertente, é com base no estado emocional de desespero, recondutível ao conceito tipo do artigo 133.º do Código Penal que a recorrente entende dever censurada pelo homicídio do filho.

No desespero despontam estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta.

É entendimento de M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, que se acompanha, que «o desespero, como o elemento que privilegia o crime, significa ausência total de esperança e sentimento de absoluta incapacidade de superação das contingências exteriores que afectem negativamente o indivíduo, a falência irremediável das elementares condições para a manifestação da dignidade da pessoa. O desespero significa e traduz um estado subjectivo em que a angústia, a depressão ou as consequências de factores não domináveis colocam o estado de afecto do sujeito no ponto em que nada mais das coisas da vida parece possível ou sequer minimamente positivo».

AUGUSTO SILVA DIAS trata o «desespero» como «vivência emocional caracterizável como total falta de esperança, como sensação de estar num “beco sem saída” existencial».

Um estado de afecto que, segundo PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «suscita no agente impotência diante de uma situação pessoal, de terceiro ou da vítima».

Enfim, o agente do crime, observa JAIME FREIRE, «tem de estar desesperado, de se encontrar num beco sem saída».

O acórdão deste Supremo Tribunal de 29-10-2008, proferido no processo n.º 08P1309, supra citado, condensa as contribuições da doutrina sobre a cláusula do desespero que se nos afigura pertinente convocar.

Assim:

«Para Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense …, pág. 52, o estado de afecto desespero corresponde, não tanto a situação objectiva de falta de esperança na obtenção de um resultado ou de uma finalidade, mas sobretudo a estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta, não se tornando necessário que deva ter-se como compreensível.

Teresa Serra, Homicídios em Série, págs. 159/160, define desespero como estado emocional que tal como a compaixão afecta o discernimento normal do agente, em que em contraposição à emoção violenta, há uma acumulação de tensão que impele o autor a um beco sem saída ou a considerar-se num beco sem saída, actuando em conformidade com esse impulso. A situação de desespero implica estados emotivos de natureza passiva, interiorizada, reflexiva, com uma componente intelectual, não sujeita à cláusula da compreensibilidade, podendo reconduzir-se ao desespero os casos de homicídio de humilhação prolongada.

João Curado Neves, in RPCC 2001 citada, pág. 186, afirma que o desespero tanto pode consistir num estado de espírito ocasional como resultar da avaliação ponderada da situação em que o agente se encontra; está em causa, não a perturbação do agente, mas a motivação do facto.

Para Frederico Lacerda Costa Pinto, in RPCC 1998 citada, pág. 288, desespero corresponde a situação de facto em que o agente se encontra numa situação de pressão psicológica que lhe apresenta o crime como a única saída possível para a situação em que se encontra.

Segundo Leal Henriques - Simas Santos, Código Penal Anotado, II, pág.132, entende-se por desespero «o estado de alma em que se encontra quem já perdeu a esperança na obtenção de um bem desejado, de quem enfrenta uma grande contrariedade ou uma situação insuportável, enfim, de quem está sob a influência de um estado de aflição, desânimo, desalento, angústia ou ânsia» - assim no acórdão do STJ de 17-01-2008, processo n.º 607/07-5ª.

Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, págs. 68 a 71 refere: Embora muito próximo da emoção violenta, distingue-se dela porque coincide em geral, com situações que se arrastam no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança, exigindo a lei não apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua consideravelmente a sua culpa, o que só poderá entender-se se levarmos em conta os motivos do autor.

Se é certo que “o que identifica socialmente um homem desesperado não é o valor social ou ético dos seus motivos, mas a estrutura comportamental, independentemente das suas causas”, devemos realçar que não basta identificar o homem desesperado. É necessário que tal desespero diminua sensivelmente a culpa do agente.”

Para Teresa Quintela de Brito, loc. cit, pág. 923, o desespero só pode tornar menos exigível um comportamento conforme ao direito, em função (a) da não reprovabilidade ou, mesmo, da relevância humana, ética ou social dos motivos que orientam o agente e (b) da correspondência de tais motivos a um quadro de vida tão grave que ponha em causa a própria dignidade humana do autor.

Fernando Silva, loc. cit., pág. 113, refere que o desespero está associado a situações extremas, em que o agente foi suportando uma situação que sobre ele exerce grande pressão psicológica, vendo limitar-se as suas capacidades de resistir mais à situação, e mata como forma de libertação desse estado. Neste tipo de situações o decurso do tempo foi funcionando como agravante da situação do agente, que provavelmente em silêncio e sozinho foi interiorizando o seu sentimento, acabando por o exteriorizar. Todo o circunstancialismo foi desgastando o agente, que acaba por matar por força dessa mesma situação, não encontrando outra saída para o problema que o afecta.»

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça elaborada sobre a figura do homicídio segue tendencialmente a doutrina de FIGUEIREDO DIAS, no sentido de que o fundamento do privilegiamento previsto no artigo 133.º, do Código Penal é a exigibilidade diminuída, considerando que o mesmo é comum a todas as circunstâncias aí previstas.

Assim, e como refere o citado acórdão de 29-10-2008: «O homicídio privilegiado assente numa cláusula de exigibilidade diminuída concretizada em certos “estados de afecto” vividos pelo agente, que diminuam sensivelmente a sua culpa».

Também o acórdão de 24-02-2016, proferido no processo n.º 1825/08.4PBSXL.E1.S1 – 3.ª Secção:

«Ao crime de homicídio privilegiado subjazem considerações atinentes à culpa, que se situam ao nível da exigibilidade. É a especial diminuição da culpa, em resultado de exigibilidade diminuída, que justifica e fundamenta o crime do art. 133.º, do CP».

Bem assim, o acórdão de 07-09-2016, proferido no processo n.º 405/14.0JACBR.C1 - 3.ª Secção:

«Subjacente à norma do art. 133.º, do CP, como elemento do tipo privilegiado, está um critério de menor exigibilidade relacionado com a sensível diminuição da culpa».

No mesmo sentido, e referindo-se expressamente ao facto de a exigibilidade diminuída ser fundamento comum às várias circunstâncias previstas no artigo 133.º, do Código Penal, veja-se o acórdão de 05-02-2015, proferido no processo n.º 160/13.0GBTMR.C1.S1 – 5.ª Secção:

«O privilegiamento do homicídio deriva de uma sensível diminuição da culpa, a qual constitui denominador comum às quatro circunstâncias enunciadas no art. 133.º, do CP, todas elas com o efeito de conformar uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente».

Veja-se ainda o acórdão de 09-04-2015, proferido no processo n.º 353/13.0PAPNI.L1.S1 – 3.ª Secção:

«A compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero, ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afecto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio».

Também no que diz respeito à delimitação das várias circunstâncias previstas no citado preceito, designadamente no que diz respeito ao facto de as mesmas terem de ser externas ao próprio agente, é a doutrina perfilhada por Figueiredo Dias que é seguida, manifestando-se a mesma sobretudo na referência (e exigência) da jurisprudência a uma relação de proporcionalidade “entre o facto injusto provocador e o facto ilícito provocado” – neste sentido vejam-se, a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 12-03-2015, proferido no proc. n.º 40/11.4JAAVR.C2.S1, o acórdão do STJ de 29-05-2013, proferido no proc. n.º 1264/11.0PCSTB.E1.S1, e o acórdão do STJ de 20-06-2012, proc. n.º 416/10.4JACBR.C1.S1.

3.1.4. Como já se referiu e como salienta JAIME FREIRE, a condição substantiva do desespero não basta para o privilégio suceder. O desespero tem além disso de diminuir sensivelmente a culpa do autor, só se almejando tal indiciação conhecendo os motivos significantes, que têm de ser, como tais (no ordenamento), bons, não vis, ou vãos.

Sendo ao homem médio que a jurisprudência considera ser de recorrer para aferir da «diminuição sensível da culpa».

Como se considera no acórdão do STJ de 05-06-2014, proferido no proc. n.º 259/09.8JAPTM.E1.S1-5.ª,[24], a «menor exigibilidade tem de ser vista à luz do comportamento de uma pessoa normal, respeitadora das normas jurídicas, e não do particular ponto de vista do agente».

3.1.5. Em breve síntese:

a) A exigibilidade diminuída constitui o fundamento do tipo privilegiado previsto no artigo 133.º, do Código Penal comum a todas as situações aí previstas – «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» e «motivo de relevante valor social ou moral».

b) A exigibilidade diminuída corresponde à «diminuição sensível da culpa» referida no artigo 133.º, do Código Penal. Uma vez que, para que possa estar em causa a prática por um agente do crime previsto no artigo 133.º, do Código Penal, este tem, previamente, que ser imputável (artigo 20.º, do Código Penal) e ter consciência da ilicitude (artigo 17.º, do Código Penal), a «diminuição sensível da culpa» tem de corresponder à sensibilidade que o homem normalmente fiel ao direito teria sentido ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão, no sentido de ter tolhido o normal cumprimento das suas intenções.

A «diminuição sensível da culpa» tem, assim, de se fundar numa situação ao mesmo tempo endógena e exógena ao agente: endógena na medida em que tem de corresponder a uma emoção sentida pelo mesmo, e exógena no sentido de que tem de ter um suporte externo e objectivo para ser atendível.

c) A «diminuição sensível da culpa» corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão.

d) Tanto no que diz respeito à «compreensibilidade» da emoção violenta, como no que diz respeito à «diminuição sensível da culpa», é ao homem médio, colocado na situação do agente, que tem de se atender para se verificar da existência, no caso, das mesmas.(…)

Contudo, como já se salientou, o privilegiamento do homicídio não ocorre automaticamente por ter sido praticado em estado de desespero, a lei não exige apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua sensivelmente a sua culpa. Clarifica Figueiredo Dias que «O efeito diminuidor da culpa ficar-se-á a dever ao reconhecimento de que, naquela situação (endógena e exógena), também o agente normalmente “fiel ao direito” (“conformado com a ordem jurídico penal”) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções».

Torna-se assim relevante avaliar os motivos do agente, que para preencherem o elemento típico do artigo 133.º têm de ser identificados como bons ou, pelo menos, como aceitáveis pelo ordenamento jurídico.(…)”

Quanto à caracterização do crime de homicídio qualificado, pode ver-se o expendido no Acórdão do STJ datado de 3/04/19, proferido no processo: 38/17.9JAFAR.E1.S1, também relatado por Manuel Augusto de Matos, in www.dgsi.pt:

“(…) Retomando considerações tecidas no acórdão deste Supremo Tribunal de 22-11-2017, proferido no processo n.º 980/15.1PRPRT.P1.S1 – 3.ª Secção, relatado pelo agora relator, o crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132.º do Código Penal, constitui uma forma agravada de homicídio. A qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no nº 1 da disposição, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n.º 2 do artigo 132.º.

«O critério generalizador, lê-se no acórdão desse Supremo Tribunal de 21-01-2009 (Proc. n.º 08P4030), está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral.

Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza.

Mas, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado.

A qualificação do homicídio do artigo 132º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (cfr. FIGUEIREDO DIAS, "Comentário Conimbricense do Código Penal", vol. I, págs. 27-28).

O modelo de construção do tipo qualificado - qualificado pelo especial tipo de culpa - através da enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não permitirá, por seu lado, salvo afectação do princípio da legalidade, «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto [...] ou de uma situação valorativamente análoga» (cfr. idem, pág. 28)».

Como também se pode ler no acórdão deste Supremo Tribunal de 30-03-2016, proferido no processo n.º 158/14.1PBSXL.L1 - 3:ª Secção:

«O artigo 132 do Código Penal define o tipo de crime de homicídio qualificado constituindo uma forma agravada de crime em relação em relação ao tipo do artigo 131 do mesmo diploma. Objectivamente o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no artigo 131 funcionando a qualificação assente na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos padrão.

O critério da qualificação está definido no nº 1 do artigo 132 e consiste em tirar a vida a outrem em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade. Algumas das circunstâncias que são susceptíveis de revelar especial censurabilidade, ou perversidade, estão enumeradas no nº 1 do mesmo normativo.

A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contem elementos da culpa que integra factores relativos á actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobe a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. Em suma, o agente actua culposamente quando realiza um facto ilícito podendo captar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta em que desenvolveu a sua conduta e, possuindo uma capacidade suficiente de auto controlo, e poderia optar por uma alternativa de comportamento.

O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar especial censurabilidade àquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação ».

Como se consigna em recente acórdão deste Supremo Tribunal, de 20-09-2017, proferido no processo n.º 596/12.4JABRG.G2.S1 – 3. ª Secção, também relatado pelo ora relator, o homicídio qualificado constitui, como tem sido unanimemente apontado, um tipo especial de culpa agravada, evidenciado nas circunstâncias enunciadas no n.º 2, que têm carácter exemplificativo, aí se referenciando contributos da doutrina e da jurisprudência relativos à qualificação do crime.

Assim, segundo FIGUEIREDO DIAS, «a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2». E que «a verificação desses elementos, por um lado, não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; por outro lado, a sua não verificação não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador», concluindo: «Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador - o Leitbildtatbestand (…) – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º- 2».

E a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem mantido uma interpretação do tipo do artigo 132.º do Código Penal como sendo baseado estritamente na culpa mais grave, revelada pelo agente, tendo como fundamento o facto do agente revelar especial censurabilidade ou perversidade no seu comportamento, sendo ainda entendimento uniforme deste Supremo Tribunal o de que as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, os chamados exemplos-padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa, como se dá nota no acórdão de 02-4-2008, proferido no processo n.º 07P4730, onde se referencia abundante jurisprudência sobre este tópico.

No que especialmente releva para o caso agora em apreço, cumpre insistir, quanto à cláusula geral do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, que, subjacente à especial censurabilidade ou perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta nas circunstâncias elencadas, o que motiva a agravação.

Como considera TERESA SERRA, «a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito.

No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial, que existe quando “as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores”.

A especial perversidade supõe «uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade».

Dominantemente, refere a autora, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto.

Para FIGUEIREDO DIAS, «[o] especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da «especial censurabilidade ou perversidade» do agente.

O pensamento da lei é o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas.

Segundo FERNANDO SILVA, a especial censurabilidade prende-se essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar, as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico, vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada.

A especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável. A decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis. O agente toma a decisão sob grande reprovação atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento. O agente deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto.

Por fim, o entendimento de AUGUSTO SILVA DIAS segundo o qual «[h]á unanimidade na doutrina e jurisprudência nacionais em torno da ideia de que, em último termo, a qualificação do homicídio assenta num especial tipo de culpa: toda a punição por homicídio qualificado tem de passar pela comprovação da especial censurabilidade ou perversidade do agente (n.º 1) e isso exige uma ponderação final da atitude deste».

Retomando o caso presente neste recurso, verificamos que o acórdão recorrido, confirmando a decisão da 1.ª instância, considerou verificada a circunstância qualificativa referida na alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, segundo a qual, é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente ser descendente da vítima.

Analisando a circunstância ou exemplo-padrão constante da citada disposição, considera FERNANDO SILVA que, «em causa está um facto praticado revelando uma maior energia criminosa, uma vez que o agente venceu as contra-motivações éticas determinadas pelas relações de família que naturalmente se impõe entre pai e fiho», identificando-se «um duplo critério: afectivo e jurídico, proveniente da relação familiar de grande proximidade que entre ambos se estabelece. De entre todas as relações entre pessoas, esta é que maior vínculo faz nascer, e pode falar-se de um vínculo que começa por ter uma natureza biológica, que cria uma afectividade ímpar». O vínculo existente, bem como os poderes-deveres que se impõem, fazem criar – prossegue o autor que se vem acompanhando – uma maior censurabilidade ou perversidade na prática do homicídio. Para além de se revelar à partida, como uma acção mais desvaliosa. É difícil conceber um motivo que torne minimamente “aceitável” a atitude do agente.(…)”

Vejamos agora no que concerne à qualificativa, também imputada ao arguido, da alínea a), do nº 2, do art. 132º, do Código Penal, que respeita ao facto de o acto ser praticado por descendente da vítima.

Obviamente que, estando em causa um exemplo-padrão e que não funciona como agravante automaticamente, não basta que ocorra qualquer uma dessas especiais relações entre o agente e a vítima, é necessário que no caso concreto a existência dessa relação traduza uma especial censurabilidade ou perversidade do comportamento do agente.

Tendo resultado provado que o arguido quis matar outra pessoa já nascida e que essa pessoa era sua mãe, tendo o arguido conhecimento de que se tratava da sua mãe, mostra-se verificado o exemplo padrão que indicia o preenchimento da qualificativa prevista na alínea a), do n.º2, do artigo 132.º, do Código Penal.

«A revogação de tal efeito indício terá de basear-se numa acentuada diminuição da ilicitude, designadamente em consequência de uma diminuição do desvalor da conduta, a que pode associar-se uma diminuição do desvalor do resultado, como principalmente na diminuição do desvalor da atitude. Mas, para além disso, o que importa é que, do ponto de vista do leitbild do exemplo-padrão, as referidas circunstâncias consigam atribuir ao facto uma imagem global insusceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente. Daí que se possa dizer que só circunstâncias extraordinárias ou, então, um conjunto raro de circunstâncias especiais possa anular o efeito de indício. Exemplo disso é o caso do filho que mata o pai dominado pelo desespero de o ver sofrer de uma forma atroz no estágio terminal de um doença incurável e dolorosa” – neste sentido Teresa Serra (in Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 50).

Ora, no caso em apreço, mostra-se que o arguido e a sua mãe viviam desde juntos na mesma casa, tomavam as refeições juntos e a sua relação sempre foi de entreajuda, harmonia e respeito, sendo que nos últimos meses de vida de BB, o arguido auxiliava a mesma na execução das tarefas domésticas e das suas necessidades básicas de higiene.

E sendo assim, têm-se por verificados laços afectivos típicos da filiação, o que torna este homicídio especialmente censurável (neste sentido o acórdão do Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2012, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

O acórdão recorrido fundamentou a imputação dos comportamentos do arguido no disposto nos arts.º 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea a) do Cód. Penal pela seguinte forma, que consideramos correcta e que secundamos:

“(…) Revertendo uma vez mais ao caso dos autos, e perante as considerações jurídicas acima expostas, desde já referimos que não foram apurados quaisquer factos que pudessem permitir integrar a conduta do arguido no tipo legal de crime de homicídio privilegiado.

É verdade que se tratava de uma relação instável e conflituosa, pouco gratificante para o arguido em termos afectivos.

Mas naturalmente que este contexto vivenciado pelo arguido, com os contornos que ficaram apurados, nem de longe nem de perto é susceptível, em nosso entender, de no caso concreto poder integrar o conceito de "emoção violenta" ou de poder constituir um "estado de desespero ou motivo de relevante valor social ou moral" que possa levar a diminuir de forma sensível o juízo de censura e, portanto, o juízo de culpa que impende sobre a sua actuação homicida.

Basta lembrar apenas que, durante toda a relação com a vítima, o arguido continuou a fazer a sua vida normal, não alterando as suas rotinas, tal como a sua mãe e irmã, teve um percurso académico de sucesso e nunca, perante ninguém (pois nada foi relatado nesse sentido), deu sinais de se encontrar deprimido, angustiado ou desesperado com a sua situação familiar ou outra.

Como se pode ler na anotação a este preceito legal agora em análise, constante do C.P. anotado por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal", 2ª ed., "A incriminação do homicídio privilegiado fundamenta-se no estado emotivo ou de afecto em que se encontra o agente que torna a sua conduta menos exigível e diminui sensivelmente a sua culpa.

Portanto, o fundamento do privilegiamento reside na menor exigibilidade da conduta do agente em qualquer um dos casos previstos do tipo (. ),,

A emoção violenta deve ser compreensível, isto é, deve corresponder a uma reacção que o homem médio, colocado na situação concreta do agente poderia ter; compreensível para um homem médio no sentido de que este pode representar-se que também pode cair, nas particulares circunstâncias dadas, em tal estado de ânimo. É necessário que o homem médio possa rever-se no modo como o agente lidou com a situação, ou seja, o carácter compreensível da emoção violenta deve ser iluminado pelo juízo de culpa sensivelmente diminuída. O acto de matar deve ser, para um observador externo, o único meio de o agente pôr fim a uma situação insuportável.

E, no caso presente, é perceptível para qualquer cidadão médio, a desproporcionalidade existente entre a alegada causa invocada pelo arguido - a relação conflituosa vivenciada com o pai -, não estando, portanto, claramente reunidos no caso em apreço, os pressupostos para a aplicação deste tipo legal. Dito de outro modo, não se verificam no caso em concreto, a existência de uma situação de "desespero" nem uma "emoção violenta" e, ainda que assim não fosse, esta nunca seria "compreensível", porquanto tal exigência não pode ser aferida tendo por base as reacções particulares do arguido, mas antes as do homem médio.

Veja-se que a expressão proferida pela vítima - de que um dia destes iria acabar com "isto tudo" e que iria matar a mãe e irmã do arguido, e também o arguido, sendo este em último lugar -, mesmo que acompanhada pelo gesto de procurar alcançar uma faca - desconhecendo-se o que pretenderia fazer com ela mas, seguramente, não seria para matar o arguido pois que este, nas palavras do pai do arguido, seria o último a morrer -, não podia ser interpretada pelo arguido como um indício de agressão iminente, tanto mais que, nem a mãe, nem a irmã do arguido, se encontravam, no interior da residência, circunstância que, desde logo, inviabilizaria a iminência da concretização da ameaça.

E mesmo que a situação conflituosa e de total desapego para com o pai, vivida pelo arguido, tivessem gerado instabilidade emocional e sentimentos de revolta, potenciados pela grande proximidade física dos elementos do agregado familiar, fazendo crer ao arguido que tal ambiente tenderia a manter-se, ainda assim, esses esses sentimentos não foram sendo resolvidos positivamente pelo arguido, ou seja, foram faltando laços de afecto e de solidariedade, tendo o arguido optado pela solução prática e definitiva do problema, o afastamento do pai, de forma incompatível com as exigências sociais e familiares específicas.

A actuação do arguido que resultou provada é, isso sim, demonstrativa de uma desproporção enorme entre a provocação da vítima e a gravidade do facto danoso praticado pelo arguido e, porque assim é, o circunstancialismo dos autos não permite dizer que o arguido estivesse dominado por compreensível emoção violenta que diminuísse sensivelmente a sua culpa, antes permitindo afirmar que o arguido agiu, movido por uma profunda inimizade e ausência de laços de afectividade para com a vítima. Ficou provada uma intenção de matar, em absoluto, sem contornos alguns susceptíveis de conduzir a um qualquer tipo de atenuação a este nível, não integrando a matéria de facto provada, qualquer elemento privilegiador.


*


Aqui chegados e perante a imputação que é feita ao arguido na acusação deduzida, e perante as considerações jurídicas supra explanadas, em nosso entender, perante o quadro factual provado, não pode ter-se por verificada a circunstância qualificativa do homicídio prevista na alínea na i) do n°. 2 do artigo 132° do Código Penal.

Na verdade, o arguido decidiu matar o pai, BB, munindo-se para tal de três facas de cozinha, cujas características e natureza corto-perfurante conhecia, resolveu enfrentar o mesmo, na cozinha da residência onde se encontravam tais facas, não tendo tal confronto constituído qualquer surpresa para a vítima que, também ela, e ainda antes do arguido, dirigiu a sua mão para alcançar uma faca, não tendo logrado concretizar tal intento, tendo o arguido logrado alcançá-la primeiro. Sabia BB o que poderia advir do confronto com o arguido e, mesmo assim, não o evitou.

A actuação do arguido não foi inesperada, súbita e sorrateira. A vítima sabia que existiam facas de cozinha ao seu alcance (desconhecendo-se o que pretenderia fazer com elas mas, seguramente, não seria para matar o arguido pois que este, nas palavras do pai do arguido, seria o último a morrer, após a mãe e a irmã) e do arguido e também não evitou tal confronto, antes procurando munir-se de uma faca que não veio a utilizar.

Demonstrou o arguido, é certo, com a sua conduta, uma atitude perfeitamente distanciada e desproporcional e um profundo desrespeito pelos valores de uma sociedade assente na dignidade da pessoa humana e em que o primeiro direito fundamental é a vida. Porém, analisando a conduta apurada do arguido, no contexto global destes factos, temos por seguro ter inexistido qualquer surpresa e deslealdade do ataque que tivesse dado origem à completa desprotecção da vítima — no momento em que lhe foram desferidos os golpes na região cervical - e que tivesse aumentado seriamente as probabilidades de lesão do bem jurídico vida.

Em face do exposto, a conduta do arguido consubstanciada na agressão mortal a BB não será pois reveladora de especial censurabilidade e perversidade, pelo menos em função deste exemplo regra, por não preenchimento do mesmo.

Já quanto à circunstância qualificativa prevista na alínea a) do n°. 2 do artigo 132° do Código Penal, entendemos que a conduta do arguido a preenche.

Com efeito, o arguido decidiu tirar a vida ao seu pai, com quem vivia desde que nasceu o que, pelos laços que a ele o ligavam, tinha, em relação à vítima, especial dever de se abster de assumir comportamentos violentos, pois aquele era o seu pai.

Por piores que tenham sido as relações entre pai e filho antes da perpetração dos factos pelo arguido, e para além do mal cometido, violou o arguido os deveres de respeito, de subordinação ou disciplina, desrespeitando os motivos inibitórios do crime que a tais relações devem andar ligadas.

A relação de filiação entre o arguido e o pai, a vítima BB, que o arguido matou, existiu, quer o arguido sentisse afecto pelo seu pai ou não.

Como defende Fernanda Palma (in, "Direito Penal Especial. Crimes Contra as Pessoas", 1983, pág. 53), ao referir-se à al. a) do n°. 2 do artigo 132° do Código Penal, "não é necessária nenhuma motivação especial do agente para que o homicídio seja qualificado. Basta que o agente tenha consciência da sua relação de parentesco com a vítima... e tenha vencido as contra-motivações éticas relacionadas com os laços básicos de parentesco".

Embora a vida humana seja o bem mais fortemente tutelado do nosso ordenamento penal e toda a vida humana seja igualmente digna dessa protecção penal sem discriminação, a razão de ser da especial censura que a existência de uma relação de filiação acarreta para o agente no caso de homicídio, tem a ver com o facto de o legislador partir do princípio de que os laços biológicos existentes entre dois indivíduos ligados por uma relação de filiação são especial e suficientemente fortes, para ser exigível entre ambos um muito maior e recíproco dever de respeito pela vida de cada um - tornando assim social e eticamente mais difícil de aceitar (e por isso muito mais censurável) que entre ambos ocorra uma situação de homicídio voluntário.

E esse dever de maior respeito exigível pela vida de cada um, impõe-se independentemente de, em concreto, se gerarem entre ambos laços de afecto, mais ou menos intensos.

Para além do supra exposto, importa ainda que avaliar a conduta global do arguido com vista a perscrutar a especial censurabilidade da sua culpa.

E, fazendo essa análise, igualmente concluímos que a conduta do arguido é reveladora da especial perversidade ou censurabilidade exigida pela qualificação, atendendo ao modo de execução do crime e à persistência da sua actuação e firmeza da intenção criminosa: o arguido atingiu mortalmente o seu pai; efectuou os golpes com as facas de forma a garantir a morte do mesmo e, quando este já estava em agonia pelos golpes desferidos, despiu-o, guardou as roupas ensanguentadas no interior de um saco, amarrou o corpo do mesmo, nos pés e mão, limpou-o e arrastou-o para o quarto, colocou a cabeça do pai no interior de um saco de plástico que apertou, causando-lhe asfixia e, após a limpeza da residência e das facas utilizadas, abandonou a residência, deixando o seu pai entregue à sua triste sorte, vindo este a falecer por asfixia mecânica por oclusão extrínseca das vias aéreas - sufocação com saco de plástico -, associado às lesões traumáticas cervicais.

O arguido revelou, em toda a sua conduta, uma especial força de vontade de matar e um desrespeito profundo pela vida humana. Todo o seu comportamento que se seguiu aos golpes que foram desferidos com as facas que utilizou, é bem revelador da sua total falta de emotividade, de compaixão perante o sofrimento da vítima, muito para além do que seria necessário para lhe tirar a vida. Toda esta conduta do arguido demonstra uma crueldade e uma desumanidade inusitadas e evidencia uma persistência manifesta da intenção de matar assumida com tenacidade e sangue frio no prosseguimento e na concretização desse objectivo. Tudo isto revela que o arguido formou e executou a vontade de matar o pai de modo frio, imperturbável, firme e inabalável, com inteiro desprezo pela vida da vítima, numa atitude de violência extrema, muito para além do que seria necessário para retirar a vida.

Demonstrou o arguido com esta sua conduta, uma atitude perfeitamente distanciada e um profundo desrespeito pelos valores de uma sociedade assente na dignidade da pessoa humana e em que o primeiro direito fundamental é a vida. A sua atitude, sendo reveladora de uma maior culpa, é, por isso, passível de um mais intenso juízo de censurabilidade ético-jurídico.

A insensibilidade manifestada na execução do crime, a ausência de motivo forte mitigador da culpa, o desvalor da personalidade do arguido, mostram que este revelou na prática do crime um grau de censurabilidade maior do que o juízo de censura subjacente ao homicídio simples. E, ao invés do que foi o entendimento da Defesa do arguido, este não foi um "herói" (sic) que matou um "monstro" (sic), mas, sim, um filho que, de forma desumana, ceifou irremediavelmente e intencionalmente a vida do pai.

Perante este contexto facilmente concluímos que a mencionada conduta do arguido preenche a qualificativa prevista na al. a) do n.° 2 do artigo 132.° do Código Penal.

Constituiu-se, assim, o arguido, autor material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131°, n°. 1 e 132°, n°s. 1 e 2, al. a), do Código Penal.(…)”

Na verdade, da factualidade apurada não é, efectivamente, possível retirar que o arguido agiu com compreensível emoção violenta ou num estado de desespero que pudessem levar a uma diminuição sensível da culpa e que isso tornasse menos exigível a conduta de um jovem médio, com a idade e as características vivenciais e de personalidade do arguido, porquanto:

- o arguido, a mãe e a irmã podiam ter feito queixa da vítima por violência doméstica e pedido o seu afastamento da habitação e a proibição de contactos, até porque estavam numa situação de superioridade numérica;

- no entanto, os filhos nunca fizeram queixa e a mãe fez queixa uma vez e depois desistiu da mesma;

- os filhos e a mãe não dependiam economicamente da vítima, o que torna difícil configurar o desespero;

- o desespero não é compatível com o facto de o arguido ter prosseguido com os seus estudos e o seu trabalho, o que mostra que a morte do pai não era a única solução;

- os maus tratos do arguido pelo pai não foram tão graves ao ponto de os seus amigos terem testemunhado alguma alteração do seu comportamento, como foi negado pela testemunha EE;

- o arguido admitiu que enfrentou o pai uma semana antes da ocorrência do crime;

- o medo do arguido de que o pai o matasse não é credível, pois já teria havido várias ameaças antes e a mãe e a irmã do arguido não estavam em casa no momento do crime, para além do que o pai tinha armas em casa e nenhum deles referiu que o pai os ameaçava com as armas;

- o arguido admitiu que não se defendeu do pai, que chegou sempre antes dele às facas e que não houve luta entre ambos;

- as feridas na mão esquerda da vítima são um sinal de defesa;

- o arguido não tinha marcas de lesões nas mãos;

- o arguido desferiu pelo menos um golpe com a vítima já no chão;

- o arguido atou os pés e mãos da vítima com fita adesiva que depois foi guardar no armário do seu quarto;

- o arguido colocou um saco na cabeça da vítima para abafar o ruido e não para aparar o sangue, para o que utilizou antes uma toalha;

- a morte ocorreu por asfixia;

- o arguido despiu e atou a vítima antes de a arrastar para o quarto;

- o arguido lavou o chão da cozinha, as facas, o corpo e as mãos da vítima;

- a casa estava “estranhamente limpa”;

- o arguido saiu de casa, não sem antes telefonar à mãe a avisar que ia sair;

- a vizinha do lado não ouviu ruídos de luta;

- a vizinha não ouviu discussões, nem marcas de agressões na mãe do arguido, apenas ouvia a DD a ralhar com o pai;

- o arguido, a mãe e a irmã não mostraram remorsos ou compaixão pela vítima, mas apenas alívio pelo seu desaparecimento;

- o arguido confessou os factos e não manifestou arrependimento;

- a mãe do arguido não chamou a polícia sem antes ter chamado a vizinha e ter telefonado aos filhos e de estes chegarem a casa, não tentou socorrer a vítima, não retirou o saco da cabeça da mesma e não chamou auxílio médico;

- todos disseram que estavam fartos do pai.

Ora, perante todo o circunstancialismo fáctico assente, não é possível concluir por uma diminuição sensível da culpa do arguido, decorrente de emoção violenta compreensível ou de desespero.

Pelo contrário, todos os comportamentos do arguido indicam que não houve contra-motivações éticas decorrentes da filiação.

Dos vários golpes, pelo menos um deles foi dado com a vítima já no chão, o que revela vontade séria de matar.

Por seu turno, a conduta do arguido posterior ao homicídio da vítima não se coaduna com um estado de compreensível emoção violenta.

Tudo isto é antes subsumível no disposto no art.º 132º, nºs 1 e 2, alínea a) do Cód. Penal, uma vez que do comportamento do arguido decorre que o mesmo se mostrou capaz de vencer as contra motivações éticas inerentes à relação de parentesco que o ligava à vítima, permitindo, desta forma, concluir pela verificação da especial censurabilidade.

Conclui-se, assim, que não merece censura o enquadramento jurídico-penal dos factos efectuado no acórdão recorrido, devendo o recurso improceder também nesta parte.

C) Medida da pena

Entende ainda o recorrente que, a ser punido por homicídio qualificado, a pena concreta que lhe foi aplicada deve ser especialmente atenuada, nos termos previstos nos arts.º 72º e 73º do Cód. Penal, ou caso assim não se entenda, deve ser fixada uma pena mais baixa do que a pena de 15 anos de prisão em que foi condenado.

Como fundamento da atenuação especial da pena, invoca o recorrente o passado de violência doméstica extrema e grave, bem como a ameaça de atentado à sua vida, mãe e irmã e a inexistência de uma qualquer repulsa social quanto à sua pessoa.

A atenuação especial da pena vem prevista nos arts.º 72º e 73º do Cód. Penal pela seguinte forma:

“Artigo 72.º - Atenuação especial da pena

1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:

a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;

b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;

c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;

d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.

3 - Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.

Artigo 73.º - Termos da atenuação especial

1 - Sempre que houver lugar à atenuação especial da pena, observa-se o seguinte relativamente aos limites da pena aplicável:

a) O limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço;

b) O limite mínimo da pena de prisão é reduzido a um quinto se for igual ou superior a três anos e ao mínimo legal se for inferior;

c) O limite máximo da pena de multa é reduzido de um terço e o limite mínimo reduzido ao mínimo legal;

d) Se o limite máximo da pena de prisão não for superior a três anos pode a mesma ser substituída por multa, dentro dos limites gerais.

2 - A pena especialmente atenuada que tiver sido em concreto fixada é passível de substituição, nos termos gerais.”

Segundo Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 408, a atenuação especial da pena pode verificar-se quer por circunstâncias contemporâneas do facto, que relevam por via da culpa, quer por circunstâncias prévias ou posteriores ao mesmo, que relevam por via da prevenção, sendo o elenco legal das circunstâncias exemplificativo e não automático, porquanto a atenuação especial depende de uma diminuição significativa da culpa ou da necessidade da pena, consoante os casos.

Quanto às circunstâncias em que deve ocorrer uma atenuação especial da pena, podemos ainda ver as considerações expendidas no supra citado Acórdão do STJ de 18/09/18, proferido no processo nº 697/16.0JABRG.S1.G1.S1, em que foi relator Manuel Augusto de Matos, in www.dgsi.pt,: “(…) O instituto da atenuação especial da pena tem em vista casos especiais expressamente previstos na lei, bem como, em geral, situações em que ocorrem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena (correspondendo a necessidade de pena a exigências de prevenção), conforme dispõe o artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal.

Sendo seu princípio regulador a acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, a atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, numa situação em que seja de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura penal abstracta prevista para o tipo legal em causa.

O n.º 2 do artigo 72.º enumera algumas circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito de diminuir de forma acentuada ou a ilicitude do facto, ou a culpa ou a necessidade da pena.

Para a produção do benefício da atenuação especial da pena exige-se, referem M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, «uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena (prevenção geral positiva ou de integração). Qualquer destas situações não tem valor atenuante especial de per si, na sua existência objectiva, mas tem sempre de ser conexionada com um certo preceito que terá de produzir: o de diminuir acentuadamente a ilicitude ou a culpa do agente (ACTAS, 1965, p. 129) ou a necessidade da pena».

Convocando de novo o acórdão deste Supremo Tribunal de 24-02-2016, constitui pressuposto material da atenuação especial da pena «a ocorrência de acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção, sendo certo que tal só se deve ter por verificado quando a imagem global do facto, resultante das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo».

Como explana FIGUEIREDO DIAS, referindo-se às circunstâncias descritas nas diversas alíneas do artigo 72.º do Código Penal, «passa-se aqui algo de análogo – não de idêntico! - ao que vimos (…) suceder com os exemplos-padrão: por um lado, outras situações que não as descritas nas alíneas [do n.º 2 do art. 72.º] podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas nas alíneas do art. 73.º-2 não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, mas só o possuirão se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido».

Assim, não tendo tais circunstâncias (ou outras que eventualmente sejam susceptíveis de integrar o n.º 1 do artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal) o efeito automático de atenuar especialmente a pena, conclui-se que a acentuada diminuição da ilicitude, da culpa ou das exigências de prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena.

Na síntese realizada no acórdão deste Supremo Tribunal 13-10-2010 (proc. n.º 200/06.0JAAVR.C1.S1 – 3.ª Secção), «a atenuação especial da pena só pode, pois, ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena – vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas».(…)”

A este respeito, veja-se também o expendido no supra citado Acórdão do STJ datado de 03-04-2019, proferido no processo nº 38/17.9JAFAR.E1.S1, em que foi relator Manuel Augusto de Matos, in www.dgsi.pt: “(…) Já no âmbito da medida da pena, convoca o recorrente a possibilidade da aplicação de uma atenuação especial nos termos do disposto no artigo 72.º do Código Penal.

Como bem se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de 07-09-2016, proferido no processo n.º 232/14.4JABRG.P1.S1 – 3.ª Secção, tal pretensão deve ser apreciada, obviamente, antes da reapreciação referente à espécie e medida concreta da pena que lhe foi aplicada, por obviamente constituir um “prius” em relação à subsequente pretensão relativa à medida concreta da pena, pois que, a vingar a sua procedência, estar-se-á (ia) perante uma “modificação in mellius” da moldura abstracta punitiva, um regime de punição mais atenuada, uma moldura penal abstracta mais benévola, dentro da qual, sequentemente, a proceder essa pretensão, terá (ia) de encontrar-se a medida concreta da pena a aplicar ao crime em causa, fazendo assim, subsequentemente, actuar os critérios previstos no artigo 71.º do Código Penal, já dentro de uma outra/nova moldura punitiva, com limites mais baixos, quer no limite máximo, quer no limite mínimo, determinados por essa atenuação.

O acórdão recorrido pronunciou-se quanto a esta pretensão dizendo:

«A providência penal prevista no art. 72º do CP e da qual o recorrente pretende beneficiar destina-se a acorrer àquelas situações em que se encontrarem de forma acentuada diminuídos a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, em termos tais que a determinação da medida da pena dentro do quadro punitivo cominado pela norma incriminadora correria o risco de conduzir à aplicação de uma sanção excessiva, pelo que considera justificada redução dos limites mínimos e máximos da penalidade abstracta, cujos moldes são estabelecidos pelo art. 73º do CP.

Se é certo que nenhum dos parâmetros a que se refere o nº 1 do art 72º do CP se apresenta particularmente exacerbado, tudo se situa ainda assim dentro de um certo padrão de normalidade de modo que uma quantificação justa e equilibrada da pena concreta poderá ser ainda operada no interior da moldura prescrita pela norma incriminadora.

Nesta conformidade, teremos de concluir que não se encontram reunidos, no caso em apreço, os pressupostos da decretação da providência peticionada pelo recorrente, improcedendo a sua pretensão também quanto a este aspecto.» (…)

Segundo o acórdão de 24-03-1999 (Proc. n.º 176/99-3.ª Secção), in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247, referenciado no citado acórdão de 07-09-2016, onde se regista uma extensa lista de jurisprudência sobre este tópico, a atenuação especial da pena só deve funcionar quando, na imagem global dos factos e de todas as circunstâncias envolventes fixadas, a culpa do arguido e/ou a necessidade da pena se apresentam especialmente diminuídas, ou seja, quando o caso é menos grave que o “caso normal” suposto pelo legislador, quando estatuiu os limites da moldura correspondente ao tipo, reclamando, por isso, manifestamente, uma pena inferior.

Expressando-se o acórdão de 23-02-2000, proferido no processo n.º 1200/99-3.ª Secção, nos termos seguintes: «É na acentuada diminuição da ilicitude e/ou da culpa e/ou das exigências da prevenção que radica a autêntica ratio da atenuação especial da pena. Daí que, as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal, não sejam as únicas susceptíveis de desencadear tal efeito, nem este seja consequência necessária ou automática da presença de uma ou mais daquelas circunstâncias».

A atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, sendo que, como se afirma no acórdão de 29-04-2015, proferido no processo n.º 791/12.6GAALQ.L2.S1 - 3.ª Secção, há incompatibilidade de atenuação especial de penas respeitantes a crimes com agravação com base na especial censurabilidade e perversidade.(…)”

Ora, avaliada a matéria de facto apurada, verifica-se que no caso dos autos não se mostra preenchida nenhuma das circunstâncias atenuantes previstas no art.º 72º, nº 2 do Cód. Penal, nem se descortina o preenchimento de qualquer outra.

Como se viu, não ocorreu por parte da própria vítima uma provocação injusta ou ofensa imerecida, o arguido não se mostrou arrependido e não decorreu muito tempo sobre a prática do crime.

Também não se verificam outras circunstâncias contemporâneas, prévias ou posteriores ao crime que pudessem ter implicado uma diminuição significativa da ilicitude, da culpa do recorrente ou da necessidade da pena.

As circunstâncias atenuantes de o arguido não possuir antecedentes criminais e de se encontrar socialmente inserido e a trabalhar à data da prática dos factos são de ponderar em termos de determinação da medida concreta da pena, mas não são suficientes para justificar a aplicação do regime da atenuação especial da pena.

Conclui-se, assim, não haver lugar à atenuação especial da pena aplicada ao recorrente pelo crime de homicídio qualificado, improcedendo nesta parte o recurso.

Quanto à determinação da medida da pena, esta deve ser apurada em função dos critérios enunciados no art.º 71º do Cód. Penal, que são os seguintes:

“ Artigo 71.º - Determinação da medida da pena

1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”

Estes critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Como se refere no Acórdão do STJ de 28/09/2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, as finalidades da punição e a determinação em concreto da pena, nas circunstâncias e segundo os critérios previstos no art.º 71º do Cód. Penal, têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena.

Tais elementos e critérios contribuem não só para determinar a medida da pena adequada à finalidade de prevenção geral, consoante a natureza e o grau de ilicitude do facto tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, em função das circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão e arrependimento e permitem também apreciar e avaliar a culpa do agente.

Em síntese, pode dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96).

Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

No entanto, do que se trata agora é de sindicar as operações feitas pelo Tribunal a quo com essa finalidade.

Ainda segundo Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida concreta da pena, bem como o desconhecimento ou a errónea aplicação pelo tribunal a quo dos princípios gerais de determinação da pena, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda que está plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção e a determinação do quantum exacto de pena, o qual será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.

Para este autor, na mesma obra de 1993, § 280, pág. 214 e nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»). As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».

Importa, assim, ter em conta que só em caso de desproporcionalidade manifesta na fixação da pena ou de necessidade de correcção dos critérios da sua determinação, atenta a culpa e as circunstâncias do caso concreto, é que o Tribunal de 2ª Instância deve alterar a espécie e o quantum da pena, pois, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não há que corrigir o que não padece de qualquer vício.

Neste sentido decidiu o Acórdão do TRL de 11/12/19, proferido no processo nº 4695/15.2T9PRT.L1-9, em que foi relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares.”

Também no mesmo sentido se pronunciou José Souto de Moura, in “ A Jurisprudência do S.T.J. sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena”, 26 de Abril de 2010, consultável em www.dgsi.pt, onde defende que: “ Sempre que o procedimento adoptado se tenha mostrado correcto, se tenham eleito os factores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objecto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado.”

Voltando ao caso dos autos, a decisão recorrida fundamentou a aplicação ao arguido da pena em apreço pela seguinte forma:

“(…) DA MEDIDA DA PENA

O crime de homicídio qualificado é punível com pena de prisão de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos (cfr. artigo 132°, n°. 1, do Código Penal).

Posto isto, importa determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido, pena essa que é limitada pela sua culpa revelada nos factos (cfr. artigo 40°, n° 2, do Código Penal), e terá de se mostrar adequada a assegurar exigências de prevenção geral e especial, nos termos do disposto nos artigos 40°, n° 1 e 71°, n° 1 do Código Penal.

Na determinação da medida concreta da pena há que recorrer aos critérios orientadores fornecidos pelo artigo 71° do Código Penal, ou seja, a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial, devendo ter-se em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente.

A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto este, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez. Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta do agente, o que significa que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide os limites mínimo e máximo para a pena que, em caso algum, podem ser ultrapassados.

Dentro destes limites e para fixar a medida concreta intervêm os demais fins da pena, designadamente a prevenção geral e a prevenção especial.

Com efeito, segundo o disposto no artigo 40°, n.° 1, Código Penal, a aplicação de uma pena visa "a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade". Protecção de bens jurídicos essa que se consubstancia na denominada prevenção geral, enquanto que a reintegração do agente na sociedade se reporta à denominada prevenção especial.

A prevenção geral, dita de integração, prende-se com as exigências comunitárias da contenção da criminalidade e da defesa da sociedade, decorrentes da necessidade de reafirmar as expectativas da comunidade na validade e vigência de uma norma, bem como da tutela do bem jurídico por ela defendido, e assume a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa e, no mínimo, fornecidos pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.

Por sua vez, a prevenção especial está ligada à neutralização do agente e à necessidade de reinserção social do delinquente, da sua conformação com o quadro de valores vigentes na sociedade, especialmente aqueles que tutelam o bem jurídico atingido e que aquela norma visava proteger, cabendo-lhe encontrar o quantum exacto da pena, dentro dessa função, que melhor sirva às exigências da socialização.

Assim sendo, e dentro das duas balizas fixadas pela culpa, a medida da pena deve considerar o quantum indispensável para manter a crença da comunidade na validade e eficácia da norma e, por essa via, a confiança nas instituições, bem como as exigências de prevenção especial que ao caso se fazem sentir, nunca podendo, porém, a pena ultrapassar em caso algum a medida da culpa (n.° 2 do artigo 40° do Código Penal).

Com vista à determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido pelo crime por ele cometido, importa, assim, valorar as seguintes circunstâncias:

O grau de ilicitude dos factos afigura-se-nos muito elevado, tendo em conta a violência empregue pelo arguido, bem patenteada nas lesões evidenciadas pelo cadáver; a persistência no modo de actuação; a indiferença, o desprezo manifestado, pelo arguido, em relação à vida humana, em relação a um seu semelhante, sem qualquer motivo que levasse à compreensão, ainda que remota, de tais actos, e nos transporta para um quadro de violência inusitada, tanto pelos meios empregues, pela forma de cometimento, de grosseira violação da mais elementar regra de convivência social, o respeito pela vida humana; e a desnecessidade da morte da vítima, considerando que sempre o arguido poderia ter recorrido a outra actuação, quanto mais não fosse, desistindo dos seus intentos, em vez de violar o bem supremo - o direito à vida humana - de forma irreparável.

As consequências das condutas do arguido assumem igualmente especial e acentuada gravidade: a natureza insubstituível do bem jurídico atingido - a vida - valor absoluto e fundamental para garantir a vida em comunidade e o respeito pelo outro.

O modo de execução do crime foi gravoso, não podendo deixar de se ter presente a superioridade do arguido em razão da sua idade e das facas utilizadas em relação à vítima, sendo estes instrumentos gravemente perigosos.

O dolo directo do arguido, apresentando-se, em todas as circunstâncias, com intensidade muito acentuada, sendo a sua actuação reveladora de uma atitude persistente e decidida, e com absoluta indiferença pela vítima, tendo o arguido actuado sem que houvesse qualquer causa que, mesmo remotamente, excluísse a culpa ou a diminuísse por qualquer forma.

Porém, embora a sua actuação não se mostre justificada nem desculpabilizada, o seu comportamento manifestou-se num contexto de conflitualidade na relação entre pai e filho, independentemente das restantes relações inter-familiares e da disfuncionalidade e desamor existente no agregado familiar, que afastava a vítima do restante agregado familiar.

As condições pessoais do arguido que resultaram provadas e que aqui se dão por reproduzidas.

O arguido apresenta um percurso de vida normativo (sem antecedentes criminais), beneficiando de enquadramento familiar e social adequado, o que tudo se apresenta como condições facilitadoras da sua reinserção social.

Todavia, a falta de antecedentes criminais, tendo em conta a natureza do crime de homicídio - que, em princípio, apenas é cometido urna vez na vida por quem o comete - é uma circunstância de reduzido valor atenuativo.

Por outro lado, o facto do arguido apresentar integração em termos profissionais e sociais, nada o diferencia, até ao momento do cometimento do crime, de qualquer cidadão normal, cumpridor da lei.

Relativamente à confissão, pouco ou nenhum valor atenuativo tem porquanto, por um lado, pouca relevância assumiu na descoberta da verdade, tanta e tão inequívoca foi a prova produzida em julgamento, que nenhuma dúvida suscitou ao Tribunal quer na fixação dos factos objectivos dados como provados, quer nos factos subjectivos, nomeadamente quanto à personalidade e intenção de matar. Acresce ainda que, embora o arguido admitisse a prática dos factos, o mesmo apresentou um discurso desculpabilizante e vitimizante, sendo incapaz de manifestar qualquer arrependimento ou capacidade de auto-censura.

A sua confissão será, assim, relevante mas em sede de apreciação da personalidade, sendo também, a este nível, de valorar, os indicadores existentes na sua personalidade, de um funcionamento decorrente de personalidade esquizotipica, existindo desorganização ao nível do pensamento, e de ideação paranoide, que parecem ter condicionado negativamente a capacidade de gestão socio emocional do arguido e o processo de tomada de decisão, manifestando o mesmo uma capacidade de contenção pessoal, sendo que a raiva é tendencialmente direccionada internamente, pese embora, em situações de extrema pressão possa ser externalizada, como forma de aliviar a tensão interna.

De salientar, também, que o seu comportamento em meio prisional é adequado e sem registo de incumprirnentos ou indisciplina e recebe visitas da mãe e da irmã, elementos que manifestam disponibilidade para o apoiar durante a após a reclusão.

Há ainda que ponderar as exigências de prevenção, sendo as de prevenção especial elevadas porquanto, pese embora o arguido seja primário, aquele denotou dificuldades relacionais na gestão de conflitos que criam a possibilidade de ocorrência de comportamentos impulsivos e que comprometem a sua socialização. Por outro lado, apresentou um discurso desculpabilizante, evidenciador de uma incapacidade sedimentada de auto-censura pelo seu comportamento delituoso.

Quanto às exigências de prevenção geral, revelam-se prementes, atenta a objectiva gravidade jurídica do ilícito cometido pelo arguido e a necessidade de defesa da sociedade perante este tipo de criminalidade, que regista actualmente um aumento significativo, sendo enorme o alarme social que provoca. O crime em apreço produz no tecido social forte alarme, intraquilidade e insegurança entre as populações, reclamando sentida necessidade de pena para sua defesa e garantia das expectativas contra aquele facto ilícito.

Ponderando todas as referidas circunstâncias e as demais ocorrentes, com destaque para a primariedade do arguido, julgamos adequada aplicar ao arguido a pena de 15 (quinze) anos de prisão.”(…)”

Analisada esta decisão, verifica-se que o Tribunal a quo aplicou correctamente os princípios gerais de determinação da medida da pena, não ultrapassou os limites da moldura da culpa do agente e teve em conta os fins da pena nos quadros da prevenção geral e especial.

No crime de homicídio são muito intensas as exigências de defesa do ordenamento jurídico e da paz social, dada a extrema sensibilidade da comunidade em relação aos mesmos e a premente necessidade de os prevenir, uma vez que o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é, de entre todos, o mais elevado, ou seja, a vida.

Com efeito, a criminalidade especialmente violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume uma preocupação comunitária em crescendo, pelo que, para confiança da colectividade na lei, em nome de uma desejável tranquilidade e segurança de respeito pela vida humana, as necessidades de prevenir a prática de tal crime são muito presentes.

No caso dos autos, é elevado o grau de ilicitude da actuação do recorrente, revelado, desde logo, pelo modo de execução do crime, tendo o arguido agido também com dolo directo.

O recorrente não tem antecedentes criminais, elemento que foi positivamente ponderado no acórdão da 1.ª instância, não obstante tal circunstância seja quase sempre a regra em crimes de homicídio.

De acordo com a matéria de facto provada, inexistem no percurso vivencial do arguido situações reveladoras de comportamento agressivo ou violento, sendo a situação aqui em causa inédita em face do comportamento dominante do arguido.

O arguido é considerado por aqueles que com ele privam pessoa pacata, pacífica, sociável e activa, sendo de sublinhar o carácter inesperado do acto praticado pelo arguido na agressão que vitimou o seu pai.

Nestes termos, salientando-se as exigências de prevenção geral que aqui se fazem sentir, mas sublinhando-se igualmente não serem prementes as exigências de prevenção especial suscitadas, tendo presente todo o percurso de vida do arguido, consideramos que se mostra inteiramente justificada a pena de 15 anos de prisão que lhe foi aplicada, a qual satisfaz adequadamente as exigências de prevenção geral e é consentida pela sua culpa.

Em face de tudo o exposto, considera-se não ser de alterar a pena concretamente aplicada nos autos.

Não se mostrando violadas qualquer das normas jurídicas invocadas pelo recorrente, impõe-se julgar totalmente improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.”

2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), as questões a apreciar respeitam a (a) erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP), (b) erro de subsunção (homicídio qualificado, homicídio simples ou homicídio privilegiado?) e (c) medida da pena.

2.(a) Do erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP)

O recorrente começa por invocar o vício do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, pretendendo impugnar a matéria de facto por esta via.

Assim, assevera que “os pontos 3, 8 a 12, 16, 21 e 22 dos factos provados não deveriam ter sido dados como provados, nem assim mantidos, por erro notório na apreciação da prova”.

E desenvolve, designadamente, que “não resultou nem dos depoimentos transcritos no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa nem dos relatórios periciais, nem mesmo do relatório social do arguido e do Médico Psiquiatra em serviço no EP que as agressões perpetradas pela vítima no seu agregado familiar dadas como provadas teriam causado apenas “desagrado”, mas sim raiva, revolta e desespero vivencial e que foi levando à deterioração da relação entre o arguido, a mãe e a irmã daquele e o pai do arguido, BB, o que se requer seja dado como provado”, que o tribunal não pode ignorar as conclusões dos relatórios periciais, que as declarações do arguido deveriam ter merecido maior credibilidade, que não resultou da prova que o arguido tenha colocado o saco na cabeça da vítima para a sufocar pois o arguido referiu que colocou o saco de plástico na cabeça da vítima convencido que a mesma já estava morta, que o ponto 22 devia ser alterado, para “agiu o arguido, em todas as descrias circunstâncias, com compreensível emoção violenta e/ou desespero vivencial, como resulta das perícias juntas aos autos.”

Como se disse no relatório, o arguido interpôs recurso do acórdão da 1.ª instância para o Tribunal da Relação de Lisboa. Nesse recurso, começou por proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, questão de que a Relação conheceu ampla e integralmente.

Vem agora, no segundo grau de recurso e terceiro de jurisdição, pretender um novo reexame da matéria de facto, visando uma sindicância do acórdão da Relação que abranja a decisão sobre a impugnação da matéria de facto, ou seja, o primeiro reexame já ali efectuado.

É conhecida a jurisprudência do Supremo no sentido de a invocação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP não poder constituir fundamento de recurso para o Supremo, podendo este Tribunal, no entanto, deles conhecer oficiosamente. Esta jurisprudência caducou em parte, com a entrada em vigor das alterações ao Código de Processo Penal operadas pela Lei n.º 94/2021, mais precisamente quando esteja em causa recurso de decisão da Relação proferida em 1.ª instância, ou recurso directo de decisão proferida por tribunal do júri ou coletivo de 1.ª instância. Mas estas duas hipóteses não ocorrem aqui.

Na verdade, o arguido foi condenado em 1.ª instância como autor de um crime de homicídio qualificado na pena de 15 anos de prisão. O Tribunal da Relação, após conhecimento exaustivo do recurso da matéria de facto interposto pelo arguido, confirmou a condenação, mantendo o enquadramento jurídico dos factos e a pena imposta pelo Juízo Central Criminal de Cascais.

O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça só pode visar exclusivamente o reexame em matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas als a) e c) do n.º 1 do art. 432.º do CPP.

Assim, uma vez que foi aplicada pena de prisão superior a 8 anos o acórdão da Relação é recorrível (arts 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. f), mas o recurso não pode ter como fundamento os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP (que constituem uma das vias legais de impugnação da matéria de facto), pois, in casu, o Supremo Tribunal de Justiça só julga de direito (artigo 434.º do CPP).

Assim continua a ser após a entrada em vigor da Lei n.º 94/2021, quando o art. 434.º do CPP passou a estatuir que “o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432”, segmento final aditado em 2021. A norma processual continua a estipular, como regra, que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, passando a exceptuar as duas (únicas) situações, que são as que resultam das als. a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP.

O art. 432.º, n.º 1, al. a) do CPP, estabelece a possibilidade de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”, segmento final aditado, e a al. c), “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, segmento final aditado também. Nestes dois casos, trata-se de recurso de primeiro grau, para o Supremo, e é este primeiro grau que justifica a diferente solução legislativa.

No caso sub judice, como se referiu, não está em causa recurso de decisão da Relação proferida em 1.ª instância, nem recurso directo de decisão proferida por tribunal do júri ou coletivo de primeira instância. Ou seja, não se trata de um recurso de primeiro grau. Trata-se, sim, de um recurso interposto de um acórdão da Relação que decidiu já recurso anterior. E, neste caso, nada foi legislativamente alterado no que respeita à impossibilidade de o recurso poder ter os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.

Recorde-se que o arguido impugnara já a decisão de 1.ª instância sobre a matéria de facto no recurso interposto para a Relação, fazendo-o pela via ampla ou alargada, como se disse, e sobre a impugnação da matéria de facto se pronunciara em recurso o acórdão da Relação, que é agora o acórdão impugnado.

Ora o direito ao recurso constitucionalmente consagrado não impõe o duplo grau de recurso, bastando-se a Constituição com um grau de recurso. O duplo grau de jurisdição satisfaz o direito ao recurso. O recurso de acórdão da Relação que decide em recurso continua a poder visar apenas o reexame em matéria (exclusivamente) de direito. E os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça encontram-se circunscritos a esse conhecimento.

Do exposto resulta que as questões suscitadas no recurso interposto pelo arguido relativas à decisão da matéria de facto excedem os poderes de cognição do Supremo. Supremo que conhece aqui em matéria exclusivamente de direito, sendo o recurso de rejeitar na parte relativa à matéria de facto, pois das questões subjacentes à irrecorribilidade o Supremo não pode conhecer.

No entanto, no exercício da eventual detecção oficiosa de vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, não deixou de se proceder a leitura atenta de todo o acórdão da Relação, incluindo a parte da decisão em que se conheceu do recurso da matéria de facto, sendo tal decisão destituída de quaisquer vícios. O que se consigna.

2.(b) Do erro de subsunção (homicídio qualificado, homicídio simples ou homicídio privilegiado?)

O recorrente pugna pelo enquadramento jurídico dos factos no tipo de crime privilegiado, mas fá-lo na estrita decorrência da impugnação em matéria de facto, impugnação que visou precedentemente encetar. Toda a sua argumentação assenta agora numa alteração de factualidade afinal inalcançada. Logo, o único pressuposto que fundamenta a pretensão em apreciação não se verifica. A matéria de facto do acórdão encontra-se definitivamente estabilizada.

Assim, de nada serve afirmar que “os factos se enquadram no crime de homicídio privilegiado, uma vez que avaliando a questão do valor da prova pericial, esta não poderia ter sido contrariada sem fundamentação bastante que ilidisse a presunção do art. 163.º do CPP, como aconteceu” ou “com base na prova produzida, designadamente nos relatórios periciais, o homicídio perpetrado pelo Arguido enquadra-se no art. 133.º do CP, sendo homicídio privilegiado”, partindo tudo de uma alteração do quadro factual, proposta em vão pelo arguido, no recurso.

Falecendo a base factual pressuposto da agora peticionada alteração do enquadramento jurídico, soçobra logicamente também o recurso nesta parte.

Nada cumpriria aditar. No entanto, não deixa de se confirmar que da leitura do acórdão resulta que ali se procedeu realmente a uma correcta e exaustiva fundamentação do enquadramento jurídico dos factos provados. O juízo subsuntivo levado a cabo pelo colectivo de julgamento e confirmado no acórdão recorrido não é passível de reparo.

Com efeito, após desenvolvida análise teórica do tipo incriminador “homicídio privilegiado”, sempre com apelo a abundante doutrina (tudo conforme já transcrito em 1.2.), operou-se depois a concretização do juízo subsuntivo com base nos factos provados do acórdão.

Acórdão que é, desde logo, de acompanhar quando, sufragando por sua vez a decisão de 1.ª instancia, acertadamente justificou que “não foram apurados quaisquer factos que pudessem permitir integrar a conduta do arguido no tipo legal de crime de homicídio privilegiado”, e sendo “verdade que se tratava de uma relação instável e conflituosa, pouco gratificante para o arguido em termos afectivos, (…) o contexto vivenciado pelo arguido, com os contornos que ficaram apurados, nem de longe nem de perto é susceptível de no caso concreto poder integrar o conceito de "emoção violenta" ou poder constituir um "estado de desespero ou motivo de relevante valor social ou moral" que possa levar a diminuir de forma sensível o juízo de censura e, portanto, o juízo de culpa que impende sobre a sua actuação homicida”.

Mais se notou, sempre acertadamente, que “durante toda a relação com a vítima, o arguido continuou a fazer a sua vida normal, não alterando as suas rotinas, tal como a sua mãe e irmã, teve um percurso académico de sucesso e nunca, perante ninguém (pois nada foi relatado nesse sentido), deu sinais de se encontrar deprimido, angustiado ou desesperado com a sua situação familiar ou outra”.

E também correctamente se concluiu que “não se verificam no caso em concreto, a existência de uma situação de "desespero" nem uma "emoção violenta" e, ainda que assim não fosse, esta nunca seria "compreensível", porquanto tal exigência não pode ser aferida tendo por base as reacções particulares do arguido, mas antes as do homem médio” e que “a actuação do arguido que resultou provada é demonstrativa de uma desproporção enorme entre a provocação da vítima e a gravidade do facto danoso praticado pelo arguido e, porque assim é, o circunstancialismo dos autos não permite dizer que o arguido estivesse dominado por compreensível emoção violenta que diminuísse sensivelmente a sua culpa, antes permitindo afirmar que o arguido agiu, movido por uma profunda inimizade e ausência de laços de afectividade para com a vítima. Ficou provada uma intenção de matar, em absoluto, sem contornos alguns susceptíveis de conduzir a um qualquer tipo de atenuação a este nível, não integrando a matéria de facto provada, qualquer elemento privilegiador.”

E não interessa lucubrar agora sobre diferentes quadros factuais hipotéticos, como os propostos pelo recorrente no recurso, pois tal não é mais processualmente viável.

Resta, neste ponto, sindicar o acórdão ainda na parte em que, confirmando a decisão da 1.ª instância, considerou verificada a qualificativa da al. a) do n.º 2 do art. 132.º do CP, segundo a qual é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente ser descendente da vítima.

Note-se que, também aqui, a impugnação efectuada no recurso assentou no mesmo pressuposto, inverificado, de alteração na factualidade. No entanto, não deixa de se conhecer da correcção do acórdão igualmente nesta parte.

A ratificação da decisão de enquadramento jurídico dos factos no tipo de crime qualificado resulta, em concreto, tanto de uma ausência de razões que afastem o efeito agravante do “indício” retirado do catálogo do n.º 2 do art. 132.º do CP, como da presença positiva de circunstâncias, encontradas nos factos, que integram afirmativamente a cláusula geral de agravação constante do n.º 1.

Mesmo que, em grau de exigência, se deva ir além da posição de Teresa Serra (Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, 2000, p. 87) segundo a qual “o efeito dos exemplos-padrão fundamenta como que uma presunção ilidível” implicando a “contraprova do efeito de indício” – posição acolhida nos acórdãos do Supremo citados no acórdão recorrido - o certo é que a especial censurabilidade ou perversidade do agente sempre resultaria aqui dos factos provados, pela positiva.

Se o “efeito padrão” fornece o “indício da existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente” (Teresa Serra, loc. cit., p. 67), se fornece o indício, precisamente por o ser carece de complementação. E assim, mesmo considerando que a uma construção de presunção de qualificação, se bem que elidível, seja preferível o reconhecimento da especial censurabilidade ou perversidade do agente pela positiva e a par da identificação de uma das alíneas do n.º 2 do art. 132.º, no caso presente existe base factual que leva a esse reconhecimento.

No enunciado de Figueiredo Dias e Nuno Brandão (Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2.ª ed., pp. 50-51), a propósito de “saber se os exemplos-padrão constantes do art. 132.º, n.º 2 constituem em definitivo elementos do tipo de ilícito, elementos do tipo de culpa, elementos uns do tipo de ilícito e outros do tipo de culpa, ou simples circunstâncias determinantes da medida da pena”, respondem os autores que “face ao art. 132.º não parece que possa defender-se outra doutrina que não seja a de ver ali elementos do tipo de culpa”. E concluem não haver “objecções de princípio a que se defenda que a agravação da culpa é em todos os casos suportada por (ou se reflecte necessariamente em) uma correspondente agravação (gradual-quantitativa) do conteúdo de ilícito.” A agravação pela culpa é suportada pela agravação especial do ilícito.

Quanto à incriminação prevista na al. a) do n.º 2, e como se considerou na fundamentação do acórdão, os laços familiares com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade, porquanto, pese embora as relações familiares e parentais permitam uma maior desinibição, essa desinibição não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado.

E é inteiramente de acompanhar o acórdão quando sufraga a decisão de 1.ª instância no referente ao preenchimento da circunstância qualificativa da al. a) do n°. 2 do art. 132° do CP, onde acertadamente se justificou: “(…) o arguido decidiu tirar a vida ao seu pai, com quem vivia desde que nasceu o que, pelos laços que a ele o ligavam, tinha, em relação à vítima, especial dever de se abster de assumir comportamentos violentos, pois aquele era o seu pai. Por piores que tenham sido as relações entre pai e filho antes da perpetração dos factos pelo arguido, e para além do mal cometido, violou o arguido os deveres de respeito, de subordinação ou disciplina, desrespeitando os motivos inibitórios do crime que a tais relações devem andar ligadas. A relação de filiação entre o arguido e o pai, a vítima BB, que o arguido matou, existiu, quer o arguido sentisse afecto pelo seu pai ou não.”

E citando a posição de Fernanda Palma - que a propósito dal. a) do n.º 2 do artigo 132.° do CP refere que "não é necessária nenhuma motivação especial do agente para que o homicídio seja qualificado. Basta que o agente tenha consciência da sua relação de parentesco com a vítima... e tenha vencido as contra-motivações éticas relacionadas com os laços básicos de parentesco" ("Direito Penal Especial. Crimes Contra as Pessoas", 1983, pág. 53) – não deixaram, no entanto, de ser aditadas todas as concretas circunstâncias de facto das quais resulta, pela positiva, a especial censurabilidade e perversidade.

Assim, começou por se notar que “embora a vida humana seja o bem mais fortemente tutelado do nosso ordenamento penal e toda a vida humana seja igualmente digna dessa protecção penal sem discriminação, a razão de ser da especial censura que a existência de uma relação de filiação acarreta para o agente no caso de homicídio, tem a ver com o facto de o legislador partir do princípio de que os laços biológicos existentes entre dois indivíduos ligados por uma relação de filiação são especial e suficientemente fortes, para ser exigível entre ambos um muito maior e recíproco dever de respeito pela vida de cada um - tornando assim social e eticamente mais difícil de aceitar (e por isso muito mais censurável) que entre ambos ocorra uma situação de homicídio voluntário. E esse dever de maior respeito exigível pela vida de cada um, impõe-se independentemente de, em concreto, se gerarem entre ambos laços de afecto, mais ou menos intensos.”

Mas acrescentou-se que “para além do supra exposto, importa ainda que avaliar a conduta global do arguido com vista a perscrutar a especial censurabilidade da sua culpa”, concluindo-se dessa análise, no acórdão recorrido, ”que a conduta do arguido é reveladora da especial perversidade ou censurabilidade exigida pela qualificação, atendendo ao modo de execução do crime e à persistência da sua actuação e firmeza da intenção criminosa: o arguido atingiu mortalmente o seu pai; efectuou os golpes com as facas de forma a garantir a morte do mesmo e, quando este já estava em agonia pelos golpes desferidos, despiu-o, guardou as roupas ensanguentadas no interior de um saco, amarrou o corpo do mesmo, nos pés e mão, limpou-o e arrastou-o para o quarto, colocou a cabeça do pai no interior de um saco de plástico que apertou, causando-lhe asfixia e, após a limpeza da residência e das facas utilizadas, abandonou a residência, deixando o seu pai entregue à sua triste sorte, vindo este a falecer por asfixia mecânica por oclusão extrínseca das vias aéreas - sufocação com saco de plástico -, associado às lesões traumáticas cervicais.

O arguido revelou, em toda a sua conduta, uma especial força de vontade de matar e um desrespeito profundo pela vida humana. Todo o seu comportamento que se seguiu aos golpes que foram desferidos com as facas que utilizou, é bem revelador da sua total falta de emotividade, de compaixão perante o sofrimento da vítima, muito para além do que seria necessário para lhe tirar a vida. Toda esta conduta do arguido demonstra uma crueldade e uma desumanidade inusitadas e evidencia uma persistência manifesta da intenção de matar assumida com tenacidade e sangue-frio no prosseguimento e na concretização desse objectivo. Tudo isto revela que o arguido formou e executou a vontade de matar o pai de modo frio, imperturbável, firme e inabalável, com inteiro desprezo pela vida da vítima, numa atitude de violência extrema, muito para além do que seria necessário para retirar a vida.

Demonstrou o arguido com esta sua conduta uma atitude perfeitamente distanciada e um profundo desrespeito pelos valores de uma sociedade assente na dignidade da pessoa humana e em que o primeiro direito fundamental é a vida. A sua atitude, sendo reveladora de uma maior culpa, é, por isso, passível de um mais intenso juízo de censurabilidade ético-jurídico.

A insensibilidade manifestada na execução do crime, a ausência de motivo forte mitigador da culpa, o desvalor da personalidade do arguido, mostram que este revelou na prática do crime um grau de censurabilidade maior do que o juízo de censura subjacente ao homicídio simples.”

Improcede assim, também, o recurso nesta parte.

2.(c) Da medida da pena

No que respeita à impugnação da pena, resta como questão sobrante e ainda não prejudicada pela improcedência das anteriores, a pretensão de “uma pena especialmente atenuada de 9 anos e 6 meses de prisão, tendo em conta a especial atenuação da pena dos arts. 72.º.1 e 2. a) e b) e 73.º.1.b) do CP, e, se assim não se entender, (…) uma pena mais próxima do limite mínimo do que a que foi aplicada nos autos.”

Defende o arguido que a sua pena deve ser “especialmente atenuada pois que é indubitável que as circunstâncias anteriores, posteriores e contemporâneas ao crime diminuem de forma acentuada a culpa do mesmo e a necessidade da pena, tendo em conta todo o exposto e o conteúdo dos relatórios periciais constantes dos autos.”

Na verdade, o art. 72.º do CP contempla a atenuação especial de pena, determinando no n.º 1, que “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”. O n.º 2 enuncia depois, exemplificativamente, uma série de circunstâncias que podem revelar essa diminuição acentuada ou significativa da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena, conforme for o caso.

A atenuação especial de pena, ao abrigo desta norma geral, deverá sempre fundar-se em circunstâncias excepcionais, ou seja, que extraordinariamente imponham a descida da pena abstracta abaixo do seu mínimo, por essa pena abstracta prevista para o crime se apresentar perante elas (ou seja, concretamente) como singularmente gravosa.

Dito de outro modo, a atenuação especial está prevista apenas para os casos em que a concreta situação de vida em apreciação configure uma ilicitude, uma culpa ou uma necessidade de pena que não atinjam a gravidade pressuposta ou equacionada no tipo incriminador.

Fora dessa diminuição acentuada, essas circunstâncias podem sempre relevar como atenuantes gerais, mas não interferem já na pena abstracta prevista para o crime.

Essas circunstâncias excepcionais inexistem, claramente, no caso.

O recorrente cita em apoio da sua pretensão o acórdão do STJ de 03-03-2010 (Rel. Armindo Monteiro), do qual reproduz o seguinte excerto: “Assumindo-se este entendimento num quadro de ponderação simultânea do crime privilegiado e da atenuação especial da pena, não se suscitarão dúvidas de que, a não verificação de factos configuradores do privilegiamento não impedirá que os factos provados possam apontar no sentido da atenuação especial, estando salvaguardado o respeito pelo princípio da proibição de dupla valoração consagrado no artigo 72.º, n.º 3, do Código Penal.” e que “O instituto da atenuação especial da pena tem em vista casos especiais expressamente previstos na lei, bem como, em geral, situações em que ocorrem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena (correspondendo a necessidade de pena a exigências de prevenção), conforme dispõe o artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal. Sendo seu princípio regulador a acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, a atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, numa situação em que seja de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura penal abstracta prevista para o tipo legal em causa. O n.º 2 do artigo 72.º enumera algumas circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito de diminuir de forma acentuada ou a ilicitude do facto, ou a culpa ou a necessidade da pena.”

Ora do acórdão citado nada se retira em apoio da pretensão defendida em recurso, antes se deduzindo dele o contrário.

Na verdade, aqui está em causa o questionamento da (in)viabilidade da atenuação especial da pena no crime de homicídio qualificado; não, como ali, a viabilidade da atenuação especial por referência ao afastamento do homicídio privilegiado e tendo então por base o tipo do art. 131.º do CP.

Acresce que constituiria uma contradição nos próprios fundamentos ter-se concluído pela “agravação pela culpa” ínsita ao tipo do art. 132.º do CP, agravação pela culpa também suportada pela agravação especial do ilícito, e, simultaneamente, admitir agora a acentuada e excepcional diminuição da ilicitude do facto ou da culpa, pressuposto da atenuação especial da pena peticionada.

Confirma-se, pois, a correcção da moldura abstracta ponderada pelo tribunal na determinação da medida da pena, ou seja, a pena abstracta de prisão de 12 a 25 anos (art 132.°, n.° 1, do CP). E, nesta, constata-se que a pena concreta, de 15 anos de prisão, se encontra fixada relativamente próximo do limite mínimo.

Recorda-se que os recursos são sempre remédios jurídicos e que também em matéria de pena mantêm o arquétipo de recurso-remédio.

A propósito da determinação da medida da pena, a doutrina mais representativa e a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça têm sufragado o entendimento de que a sindicabilidade da medida da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (Figueiredo Dias, DPP. As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197).

Assim, o Supremo não julga de novo, não determina a pena como se inexistisse uma decisão de 1.ª instância, decisão já sufragada em 2.ª instância, e a sindicância desta decisão pelo tribunal superior não abrange a fiscalização dum quantum exacto de pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada. E não inclui a compressão da margem de livre apreciação reconhecida ao tribunal de 1.ª instância enquanto componente individual do acto de julgar. A margem de liberdade do juiz de julgamento nos limites expostos, abrange todo o processo prático de decisão sobre a pena. E dentro deste quadro de entendimento e de definição dos poderes de cognição do tribunal de recurso, a leitura do acórdão recorrido, confirmativo do acórdão de 1.ª instância, permite concluir que este(s) não evidencia(m) a inobservância de qualquer regra legal ou princípio respeitante à pena. Mormente os princípios da necessidade, da proporcionalidade e da culpa-limite.

E mostrando-se juridicamente defensável, e ainda concretamente compreensível, a posição sufragada no acórdão, sendo claramente elevadas as exigências de prevenção, mormente as de prevenção geral, e cabendo ao tribunal de recurso sindicar a decisão com vista à detecção de erros de julgamento – que, em matéria de pena, têm de ser erros evidentes, atenta a margem de liberdade reconhecida ao juiz de 1.ª instância nos termos e pelas razões expostos – a decisão tomada é de confirmar.

E é-o perante as razões de prevenção, que a justificam.

Desde logo as razões de prevenção geral, que são elevadas no grau mensurado no acórdão, e ali amplamente justificado. Notou-se que “a criminalidade especialmente violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume uma preocupação comunitária em crescendo, pelo que, para confiança da colectividade na lei, em nome de uma desejável tranquilidade e segurança de respeito pela vida humana, as necessidades de prevenir a prática de tal crime são muito presentes”.

Destacou-se o elevado o grau de ilicitude dos factos, retirado da actuação do recorrente e do modo de execução do crime. Contextualizou-se o comportamento no ambiente de “conflitualidade na relação entre pai e filho, independentemente das restantes relações inter-familiares e da disfuncionalidade e desamor existente no agregado familiar, que afastava a vítima do restante agregado familiar”. Atendeu-se a todas as condições pessoais do arguido, ao seu percurso de vida “normativo e sem antecedentes criminais, beneficiando de enquadramento familiar e social adequado”, o que se considerou como condições facilitadoras da sua reinserção social. Relevou-se a ausência de antecedentes criminais, referindo-se embora que, “tendo em conta a natureza do crime de homicídio, que, em princípio, apenas é cometido urna vez na vida por quem o comete”, tal circunstância diminui o peso atenuativo. Considerou-se a integração profissional e social, como sendo a de “qualquer cidadão normal, cumpridor da lei”, a admissão da prática dos factos num “discurso desculpabilizante e vitimizante, sendo incapaz de manifestar qualquer arrependimento ou capacidade de auto-censura”. Não se ignoraram os traços de personalidade esquizotípica, com “desorganização ao nível do pensamento, e de ideação paranoide, que parecem ter condicionado negativamente a capacidade de gestão socio emocional do arguido e o processo de tomada de decisão, manifestando o mesmo uma capacidade de contenção pessoal, sendo que a raiva é tendencialmente direccionada internamente, pese embora, em situações de extrema pressão possa ser externalizada, como forma de aliviar a tensão interna”, traços de personalidade que adensam as necessidades de prevenção especial. Por último, considerou-se o comportamento em meio prisional, adequado e sem registo de indisciplina, e o apoio da mãe e da irmã, “elementos que manifestam disponibilidade para o apoiar durante a após a reclusão”.

As exigências de prevenção especial foram consideradas elevadas porquanto, “pese embora o arguido seja primário, aquele denotou dificuldades relacionais na gestão de conflitos que criam a possibilidade de ocorrência de comportamentos impulsivos e que comprometem a sua socialização. Por outro lado, apresentou um discurso desculpabilizante, evidenciador de uma incapacidade sedimentada de auto-censura pelo seu comportamento delituoso”.

Assim se justificou, e se justifica efectivamente, a pena de 15 anos de prisão, realmente necessária à satisfação das concretas exigências de prevenção geral e especial, e ainda consentida pela culpa.

Por todos os motivos enunciados é de reconhecer que as razões invocadas no recurso não fragilizam a consistência do decidido. E que a pena proferida responde adequadamente às concretas exigências de prevenção geral e especial, mostra-se necessária e proporcional, e não pode considerar-se que exceda o limite da culpa do arguido.

É, por tudo, de manter.

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso, mantendo-se o acórdão.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 6 UC’s – (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/9 e Tab. III RCP).

Lisboa, 08.11.2023

Ana Barata Brito, relatora

Teresa Féria de Almeida, adjunta

Ernesto Vaz Pereira, adjunto