Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CATARINA SERRA | ||
Descritores: | FORMA LEGAL CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS TÉCNICO OFICIAL DE CONTAS CONTRATO VERBAL NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL | ||
Data do Acordão: | 06/22/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
Sumário : | I. O Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (ECTOC), aprovado pelo DL n.º 452/99, de 5.11, estabelece a liberdade de forma para os contratos a celebrar entre os TOC e as entidades a quem prestam serviços, que só poderia ser afastada por disposição legal. II. A norma do artigo 9.º, n.º 1, do Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas, determinando a redução a escrito daqueles contratos, não faz parte integrante do ECTOC, constituindo uma norma de conduta com efeitos meramente internos. III. Neste enquadramento normativo, o contrato celebrado verbalmente entre o TOC e a sua cliente não padece de nulidade por vício de forma. | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. RELATÓRIO
Recorrente: AA Recorrida: Companhia de Distribuição Integral Logista Portugal, S.A.
1. No âmbito de acção com processo comum proposta por Companhia de Distribuição Integral Logista Portugal, S.A., contra AA, proferiu o Tribunal da Relação de Lisboa um despacho com o seguinte teor: “Nos termos do art. 671º, nº1, do C.P.Civil, exceptuadas as decisões interlocutórias a que se refere o seu nº 2, apenas cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos. Não ocorrendo, no caso, qualquer das aludidas situações, não se admitem, assim, os recursos interpostos”.
2. Deste despacho veio o recorrente AA reclamar para este Supremo Tribunal “nos termos do disposto no artigo 643.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 679.º do mesmo diploma legal”.
3. Apreciando a reclamação, decidiu a ora Relatora que, ao apreciar da excepção peremptória da nulidade do contrato, o Tribunal recorrido havia conhecido, ainda que parcialmente, do mérito da causa. Consequentemente, deferiu a reclamação e determinou a requisição do processo principal ao tribunal recorrido, nos termos do artigo 643.º, n.º 6, do CPC.
4. A autora e recorrida Companhia de Distribuição Integral Logista Portugal, S.A., veio requerer que a decisão singular fosse submetida à conferência para prolação de Acórdão, tendo esta decisão sido confirmada pela Conferência.
5. Subidos os autos, verifica-se que se trata de acção em que Companhia de Distribuição Integral Logista Portugal, S.A., pede a condenação de AA a pagar à autora a quantia de € 221.243,09, a título de indemnização por danos alegadamente decorrentes do incumprimento de contrato de prestação de serviços de técnico oficial de contas, com aquele celebrado. O réu AA contestou, invocando, nomeadamente, a nulidade do aludido contrato e a prescrição do direito à reclamada indemnização, concluindo pela improcedência da acção e pedindo, em reconvenção, a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de € 10.000, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida da que se vier a liquidar em execução de sentença, referente a danos patrimoniais futuros.
6. Admitida a intervenção de Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A., Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., Mapfre - Seguros Gerais, S.A., e Ageas Portugal - Companhia de Seguros, S.A., no despacho saneador, foi proferida sentença, na qual se julgou improcedente a acção e a reconvenção, absolvendo-se o réu e as intervenientes do pedido formulado pela autora, e absolvendo-se esta última do pedido reconvencional. Afirmou-se na sentença, nas passagens relevantes: “A A. sustenta a sua pretensão em incumprimento por parte do R. de alegado contrato verbal de prestação de serviços com ele celebrado para o desempenho das funções de Técnico Oficial de Contas, no período compreendido entre janeiro de 2004 e outubro de 2010. Em momento anterior á celebração desse alegado contrato verbal, concretamente pelo artº 59° da Lei nº 39-B/94, de 27/12, foi concedida ao Governo autorização legislativa para instituir uma associação profissional de natureza pública para os técnicos oficiais de contas e para aprovar os respetivos estatutos profissional e institucional (…). E no uso da autorização legislativa concedida pela citada Lei nº 39-B/94, de 27/12, veio a ser aprovado, pelo DL nº 265/95, de 17/10, o Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas, o qual, em respeito de nova autorização legislativa, veio a ser revogado com a aprovação do DL nº 425/99, de 05/11, o qual, por sua vez, aprovou o Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficias de Contas, cujo artº 3° confere á Câmara, entre outras, as atribuições de promover o respeito pelos princípios éticos e deontológicos, definir normas e esquemas técnicos de atuação profissional, e estabelecer princípios e normas de ética e deontologia profissional (cfr. als. b), d) e o)). E foi no desenvolvimento dessas atribuições legalmente cometidas e que respeitam ao desenvolvimento das atribuições de interesse público que subjazem á sua constituição como associação pública, integrante da Administração descentralizada e autónoma - como vimos -, que a Câmara veio a aprovar o Código Deontológico entrado em vigor em 01/01/2000 (…). O Código foi, pois, adoptado pela então Câmara no âmbito dos poderes de regulação que lhe foram conferidos pelo Estado com base em norma expressa, e integra um conjunto vasto de normas de conduta que vinculam diretamente os seus destinatários - o conjunto dos profissionais inscritos no organismo profissional - e fazem-no de forma geral e abstrata, não derivando das mesmas deveres para terceiros situados fora daquele universo. Este facto não retira àquele instrumento a sua natureza jurídica, embora não seja revestido da estadualidade que caracteriza o universo da lei como fonte de direito. Aquele instrumento normativo insere-se, pois, numa componente infraestadual do sistema jurídico, embora seja parte integrante do mesmo quando globalmente considerado (…). Concluímos, pois, que o Código Deontológico entrado em vigor 01/01/2000, aprovado em execução das atribuições conferidas á então Câmara pelo DL nº 452/99, consiste num instrumento normativo com a natureza de regulamento autónomo, integrante do ordenamento jurídico. Era o mesmo vigente em janeiro de 2004, data em que terá sido celebrado o alegado contrato verbal entre A. e R. Dispondo o artº 9° nº 1 desse Código Deontológico que o contrato entre os TOC e as entidades às quais prestam os seus serviços deve sempre ser reduzido a escrito, teremos, por fim, que concluir que o invocado contrato verbal é nulo por falta da forma legalmente exigida (cfr. disposições conjugadas dos art.º 219° e 220º CCivil). Assim, aqui chegados, há que julgar procedente a exceção material da nulidade do alegado contrato por falta de forma. E nulo o contrato, insuscetível é de imputar ao R. responsabilidade contratual, pelo que qualquer eventual dano produzido pelo R. á A. remeter-nos-á então para o domínio da responsabilidade extracontratual. E aqui surge oportuno o conhecimento da exceção da prescrição, arguida precisamente com fundamento em que as relações entre A. e R. se encontrariam no domínio da responsabilidade extracontratual e com esteio no artº 498º CCivil. É clara a petição quanto a que a A. reporta os danos de que pretende ser ressarcida ao período de vigência do alegado contrato verbal, isto é, entre janeiro 2004 e 31 de outubro de 2010. Tendo em consideração que a ação foi interposta em 09-10-2017, não resta se não concluir que já há muito se havia verificado o prazo prescricional previsto no art.º 498º CCivil, certo não terem sido aduzidos factos dos quais possa resultar qualquer evento interruptivo desse prazo. E assim há que julgar procedente a exceção material da prescrição do direito indemnizatório que a A. pretendia fazer valer. Prescrito o direito indemnizatório da A. face ao R., não podendo assim ser-lhe assacada qualquer responsabilidade - que é sempre a génese do direito indemnizatório - tal importa inevitavelmente a prescrição daquele direito também no confronto com qualquer das seguradoras que apenas respondem na medida da responsabilidade do segurado, por estar em causa uma transferência por via contratual dos efeitos da responsabilidade. E assim, aqui chegados, na procedência daquelas excepções de direito material, há que concluir pela improcedência da ação com a absolvição do R. e das Intervenientes dos pedidos”.
7. Inconformadas, vieram ambas as partes interpor recursos de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa proferido Acórdão no qual decidiu: “Pelo acima exposto, se acorda em, concedendo provimento ao recurso interposto pela A., revogar a decisão recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos - relegando-se para ulterior momento processual o conhecimento do recurso interposto pelo R. Custas a fixar a final”. A fundamentação é a seguinte: “A questão a decidir centra-se, pois, primacialmente, na apreciação da declarada nulidade do contrato, alegadamente celebrado entre as partes. À data da celebração do invocado contrato (2004), estava em vigor o Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovado pelo Dec-Lei 452/99, de 5/11 - o qual, ao invés do que veio a ser aprovado pelo Dec-Lei 310/2009, de 26/10 (e, posteriormente, com a designação de Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, pela Lei 139/2015, de 7/9), não integrava o denominado Código Deontológico, contendo a norma que obriga à redução a escrito dos contratos entre esses profissionais e as entidades a quem prestam os seus serviços. Do simples confronto entre os aludidos diplomas legais, resulta, assim, claro que, na vigência do aludido Dec-Lei 452/99, inexistia obrigação legal referente à forma escrita de tais contratos - constituindo o Código Deontológico, elaborado na sequência da respectiva publicação (mas não contido no próprio diploma), e em vigor a partir de 1/1/2000, regulamento de natureza interna e, portanto, com efeitos meramente disciplinares. Pelo que, contrariamente ao decidido, terá de entender-se que, pese embora não reduzido a escrito, não enferma esse contrato da arguida nulidade - e a prescrição dos direitos dele emergentes se acha submetida ao prazo geral do art. 309°, e não ao estabelecido, para a responsabilidade extracontratual, pelo art. 498° do C.Civil. Face à improcedêcia da excepção invocada, deverá, consequentemente, a acção prosseguir, para conhecimento do pedido formulado pela A. - quedando-se, por ora, prejudicada, a apreciação do recurso interposto pelo R. reconvinte”.
8. As conclusões do recurso de revista de AA são as seguintes: “1. Nos presentes autos de ação declarativa sobre a forma comum vem a ora RECORRIDA, “COMPAÑIA DE DISTRIBUCIÓN INTEGRAL LOGISTA, S.A.”, demandar o ora RECORRENTE, AA, invocando a existência de uma relação contratual entre ambas, no âmbito de um contrato verbal de prestação de serviços, mediante o qual o RECORRENTE prestaria serviços de técnico oficial de contas à RECORRIDA. 2. Alega a RECORRIDA que, na sequência do alegado incumprimento do contrato de prestação de serviços de técnico oficial de contas pelo RECORRENTE, sofreu danos e prejuízos pelos quais tem direito a ser ressarcida nos termos do disposto nos artigos 798.º, 799.º, e 1154.º, todos do Código Civil. 3. Contestando, o RECORRENTE, para além de todo o mais, alegou a nulidade do contrato de prestação de serviços de técnico oficial de contas, por inobservância de forma legal, nos termos previstos no artigo 220.º, do Código Civil. 4. Sendo que, consubstanciando-se a inexistência ou nulidade do contrato como uma exceção perentória, peticionou o RECORRENTE, nesses termos, a sua absolvição do pedido, nos termos do disposto no artigo 576.º, número 3., do Código de Processo Civil (doravante abreviadamente designado CPC). 5. Ainda contestando, referiu o ora RECORRENTE que, sendo nulo o contrato de prestação de serviços, não há lugar ao apuramento de qualquer responsabilidade contratual. 6. Sendo que, ainda que existisse alguma responsabilidade do RECORRENTE (a qual não se admite), a mesma apenas poderia ser apurada em sede de responsabilidade civil extracontratual, a qual, como se sabe, prescreve ao fim de 3 (três) anos, nos termos previstos no artigo 498.º, número 1., do Código Civil, sendo forçoso concluir-se pela prescrição do direito a que se arroga a autora, ora RECORRIDA. 7. Realizada audiência prévia, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, julgou procedente a exceção material da nulidade do contrato de prestação de serviços por falta de forma, julgando improcedente a ação e absolvendo o ora RECORRENTE, bem como as Intervenientes, dos pedidos. 8. No mesmo despacho saneador-sentença, o tribunal de 1.ª instância julgou igualmente procedente a exceção material da prescrição do direito indemnizatório que a ora RECORRIDA pretendia fazer valer, por já há muito se ter ultrapassado o prazo prescricional previsto no artigo 498.º, do Código Civil, e, nessa medida, julgou improcedente a ação, absolvendo o ora RECORRENTE e as Intervenientes dos pedidos. 9. Desta decisão, a autora, ora RECORRIDA, interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa que, conhecendo do mérito da causa, decidiu revogar a decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte. 10. Não podendo o RECORRENTE conformar-se com o teor do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, motivo pelo qual vem interpor o presente recurso de revista, nos termos do disposto no artigo 671.º, número 1., do CPC. 11. No indicado normativo, encontram-se abrangidos os acórdãos da Relação que se tenham envolvido diretamente na resolução material do objeto do processo ou que, sem conhecer do mérito da causa, extingam a instância. 12. Nos presentes autos, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação conheceu das invocadas exceções perentórias da nulidade do contrato por preterição de forma legal, nos termos previstos no artigo 220.º do Código Civil, da prescrição do direito da RECORRIDA, nos termos previstos no artigo 498.º, número 1., do Código Civil, tendo conhecido do mérito da causa, dado que se envolveu, efetivamente, na resolução material do litígio. 13. Pelo que é admissível o presente recurso de revista, nos termos do disposto no artigo 671.º, número 1., do Código de Processo Civil. 14. Como já se referiu, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, em decisão proferida em saneador-sentença, concluiu pela procedência das exceções da nulidade do alegado contrato por falta de forma e da prescrição do direito indemnizatório que a RECORRIDA pretendia fazer valer, julgando improcedente a ação, com a absolvição do RECORRENTE e das Intervenientes dos pedidos. 15. Na sequência de recurso de apelação interposto pela ora RECORRIDA, veio o Tribunal da Relação de Lisboa revogar a decisão proferida, julgando improcedentes ambas as exceções. 16. In casu, importa atentar não apenas no disposto nos artigos 219.º, e 220.º, do Código Civil, mas também no artigo 1.º, números 1., e 2., do Código Civil, e ao conceito amplo de fontes de direito aí previsto, e, ainda, ao disposto no artigo 8.º, e no artigo 112.º, da Constituição da República Portuguesa, que inclui na categoria de atos normativos os regulamentos. 17. O regulamento administrativo sempre viu o seu conceito definido de forma unânime e pacifica, tanto na doutrina como na jurisprudência, como uma norma jurídica emanada no exercício do “poder administrativo” por um órgão da Administração Pública ou por “outra entidade pública ou privada para tal habilitada”. 18. Trata-se de uma invocação dos poderes funcionais de autoridade que, no exercício da atividade administrativa, têm a faculdade de produzir normas regulamentares. 19. Os regulamentos externos são bilaterais, isto é, vinculam a Administração Pública e os particulares ou entes públicos. 20. Precisam sempre de uma norma legal habilitadora, devendo indicar a lei ao abrigo da qual são emanados, de acordo com o disposto no artigo 112.º, número 7., da Constituição da República Portuguesa. 21. Atualmente, o Código do Procedimento Administrativo define o conceito de regulamento administrativo, no respetivo artigo 135.º, como as normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos juridicamente externos. 22. As associações públicas são constitucionalmente consideradas como formas de participação dos interessados na Administração Pública. 23. As ordens profissionais, por força das funções que desempenham e da forma como se encontram estruturadas, têm o estatuto de associações públicas e constituem uma das componentes mais relevantes desta forma de administração. 24. A regulamentação destas profissões tem por objeto, em primeira linha, o interesse público, garantindo aos cidadãos e à sociedade no seu conjunto a qualidade, certeza e confiança que são absolutamente necessárias ao exercício de determinadas atividades. 25. A Lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro, concedeu autorização legislativa ao Governo para instituir uma associação profissional de natureza pública para os técnicos oficiais de contas e para aprovar os respetivos estatutos profissional e institucional. 26. As necessidades específicas que se visaram satisfazer por meio da criação desta associação pública profissional prenderam-se com a criação de um quadro institucional adequado ao carácter público da profissão de técnico oficial de contas, designadamente no que respeita à sua intervenção em atos concernentes à administração fiscal, ao seu registo público obrigatório e a um rigoroso condicionalismo de acesso à profissão, e ainda definir regras de deontologia profissional, incompatibilidades, mecanismos de fiscalização e o correspondente regime disciplinar cuja aplicação deverá ser supervisionada pela administração fiscal. 27. Passou ainda a estabelecer-se que todas as entidades que devam, por lei, possuir contabilidade organizada terão de ter um técnico oficial de contas e instituir limites objetivos para o número de contabilidades por cada técnico de contas, isolado ou em empresa. 28. Em consequência, o Decreto-Lei n.º 265/95, de 17 de outubro, procedeu à aprovação do Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas. 29. Posteriormente, em 1999, a Lei n.º 126/99, de 20 de agosto, concedeu ao Governo autorização para revogar o Decreto-Lei n.º 265/95, de 17 de outubro, e para aprovar um novo Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas. 30. Nos termos da autorização legislativa concedida, o Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de novembro, aprovou o Estatuto da agora designada Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas. 31. Nos termos do artigo 3.º, do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de novembro, constituem atribuições da Câmara, para além das demais: i) Defender a dignidade e prestígio da profissão, promover o respeito pelos princípios éticos e deontológicos e defender os interesses, direitos e prerrogativas dos seus membros; ii) Definir normas e esquemas técnicos de atuação profissional; iii) Estabelecer princípios e normas de ética e deontologia profissional. 32. Nessa conformidade, e no âmbito das prerrogativas que lhe foram legalmente conferidas, a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, no uso dos poderes que lhe foram delegados, aprovou e publicitou, nos termos dos artigos 48.º, do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e do artigo9.º, do Decreto-lei n.º 452/99, de 5 de novembro, o Código Deontológico, cuja entrada em vigor ocorreu no dia 1 de janeiro de 2000. 33. Pelo exposto, ter-se-á forçosamente que concluir que o regulamento administrativo em que se traduz o Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas, trata-se de uma norma jurídica típica. Com efeito trata-se de um conjunto de normas gerais e abstratas, com eficácia externa, emanada por uma associação pública profissional, constituída em conformidade com o disposto no artigo 267.º, número 4., da Constituição da República Portuguesa na sequência de autorização legislativa conferida pela Assembleia da República ao Governo, no exercício de poderes públicos que lhe foram conferidos, ao abrigo da competente lei habilitante - o Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de novembro, que aprovou o Estatuto da então designada Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas. 34. Dispunha o artigo 9.º, número 1., do identificado Código Deontológico, com a epígrafe “contrato escrito”, que: “1. O contrato entre os Técnicos Oficiais de Contas e as entidades a quem prestam serviços deve ser sempre reduzido a escrito.” 35. Como já se referiu, o regulamento em que se traduz o Código Deontológico, trata-se de uma norma jurídica típica, com eficácia externa, emanada por entidade (Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas) que, por habilitação legal (Lei n.º 126/99, de 20 de agosto, e Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de novembro), podem exercer, na esfera das suas competências (alíneas b), d) e o) do artigo 3.º, do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 452/99, de5 de novembro), a função administrativa, no âmbito da qual goza dos poderes públicos necessários para regulamentar os esquemas técnicos de atuação profissional e estabelecer os princípios e as normas de ética e deontologia profissionais. 36. em conformidade, verificando-se a existência de norma jurídica típica que impunha a forma escrita para a validade da declaração negocial, não tendo a mesma sido cumprida, no contrato de prestação de serviço em apreço nos presentes autos, terá que concluir-se pela sua nulidade, nos termos do preceituado no artigo 220.º, do Código Civil. 37. Obrigação de forma que se manteve na versão que foi conferida ao Estatuto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, pelo Decreto-Lei n.º 310/2009, de 26 de outubro, no seu artigo 7.º, número 2. 38. Do que decorre que se manteve a condição de validade formal do contrato em apreciação, a qual, por não ter sido observada, determina a nulidade do mesmo. 39. Verifica-se, ainda, que no Acórdão recorrido se faz uma abordagem assaz redutora à noção de atos normativos e às fontes imediatas de direito, as quais, incluem os regulamentos das entidades administrativas. 40. Por fim, refira-se que, de acordo com o disposto no artigo 220.º, do Código Civil, não será necessário que a norma que impõe a observância de forma especial da declaração negocial expressamente comine com a nulidade a falta de observância da forma determinada, dado que, não sendo prevista outra sanção, a regra é a da nulidade da declaração negocial. 41. Sendo nulo o contrato alegadamente celebrado entre o RECORRENTE e a RECORRIDA, não é possível imputar ao RECORRENTE qualquer responsabilidade contratual, a qual, quando muito, será enquadrável no âmbito da responsabilidade extracontratual. 42. Porém, reportando a RECORRIDA os danos pelos quais pretende ser ressarcida ao período compreendido entre 2004 a 31 de outubro de 2010, e tendo a presente ação sido proposta a 09 de outubro de 2017, tem, naturalmente, que se concluir que há muito que se encontrava ultrapassado o prazo de prescrição previsto no artigo 498.º, número 1., do Código Civil”.
9. A recorrida Companhia de Distribuição Integral Logista Portugal, S.A., contra-alegou, em conclusão: “1 – De acordo com o n.º 1 do art. 671.º do CPC, “Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.” 2 - Salvo o devido respeito por outra e melhor opinião, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, objeto do presente recurso, não só não conhece do mérito da causa como também não põe termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos. 3 – O tribunal da Relação de Lisboa determina a improcedência da exceção invocada e o prosseguimento da ação, para conhecimento do pedido formulado pela Autora. 4 – Seguindo com Abrantes Geraldes, “O normativo já não permite a recorribilidade designadamente nas seguintes situações: - Do acórdão da Relação que, independentemente do teor da decisão da 1.ª instância, julgue improcedente a exceção de ilegitimidade ou qualquer outra exceção dilatória (para além da incompetência absoluta ou do caso julgado a que se reporta o art. 629.º, n.º 2, al. a), determinando o prosseguimento dos autos para conhecimento do mérito (precisamente porque nem aprecia o mérito da causa, nem põe termo ao processo).”, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 6.ª Edição atualizada, págs. 404 e 405. 5 -Entendemos, por isso, que, a decisão não admite recurso para o Supremo Tribunalde Justiça. Sem prescindir, 6 – O Réu AA e a Interveniente Ageas entendem, grosso modo, que o Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas (hoje contabilistas certificados) é uma norma jurídica típica, com eficácia externa, emanada por entidade que pode exercer, na esfera das suas competências, a função administrativa. 7 - Impondo a forma escrita para a validade da declaração negocial e não tendo sido cumprida no contrato de prestação de serviços dos autos, entende o Réu e a Interveniente, ora recorrentes, que será nulo o contrato, não sendo necessário a existência de cominação expressa de nulidade. 8 – e, por esta via, entendem o Réu e Interveniente que já não estaremos no domínio da responsabilidade contratual mas sim extracontratual, cuja prescrição invocam. 9 – Para além do sentido e clareza do que resultado Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, entende ainda a Autora, ora recorrida, o seguinte: no âmbito da declaração negocial, há liberdade de forma, só sendo exigível, por exemplo, a forma escrita quando a lei assim o disponha. 10 - “A validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei o exigir” (artigo 219.º do CC), sendo que a “A declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.” (art. 220.º do CC). Prevendo-se a liberdade de forma, “As disposições que exijam forma especial, são normas excepcionais.”, In Galvão Telles: CJ, 1985, 1.º-31. 11 – “2. Consideram-se leis todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes; são normas corporativas as regras ditadas pelos organismos representativos das diferentes categorias morais, culturais, económicas ou profissionais, no domínio das suas atribuições, bem como os respetivos estatutos e regulamentos internos. 3. As normas corporativas não podem contrariar as disposições legais de carácter imperativo.” (artigo 1.º, n.º 2 e 3 do CC). 12–“1. (…) A palavra lei é empregada neste artigo 1.º no seu sentido mais lato. Toda a disposição genérica e imperativa, emanada de um órgão estadual competente, é uma lei. O seu sentido é, portanto, o material, embora se exija que a norma tenha por fonte um órgão estadual, quer ele seja central, como a Assembleia da República ou o Governo, quer seja local, como uma Câmara Municipal no domínio da sua competência.”, In Código Civil Anotado, Volume I (artigos 1.º a 761.º), Pires de Lima e Antunes Varela, Coimbra Editora, 4.ª Edição revista e actualizada, anotação 1 ao art. 1.º, pág. 51. 13 – Nos termos do n.º 1 do art. 112.º da Constituição da República Portuguesa, “São actos legislativos as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais.” 14 – O designado Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas não é uma lei em sentido estrito ou amplo, pois não é produzido nem provem do órgão estadual competente. 15 – No limite, e de acordo com o entendimento de parte da doutrina, poderão ser normas corporativas, necessariamente contrapostas às leis e que não podem contrariar normas legais de caracter imperativo, como é o caso do art. 219.º do CC (ver, a propósito, arts.1.º, n.º 3 e art. 219.º do CC). 16 – De acordo com Oliveira Ascensão, “Norma corporativa é a norma própria de uma determinada categoria, figura que não foi suprimida com a abolição da organização corporativa formal. É o caso das ordens profissionais.” (Oliveira Ascensão, ROA, 48.º-30 e nota 8), Op. Cit, anotação 5 ao artigo 1.º, pág. 15. 17 – Por outro lado, só a lei é objeto de publicação e determina a obrigatoriedade do seu cumprimento pela generalidade dos sujeitos jurídicos, o que, manifestamente, não ocorre com o Código Deontológico, desenhado e dirigido para um conjunto específico de destinatários, os à data Técnicos Oficiais de Contas, hoje Contabilistas Certificados, e com características marcadamente profissionais, nomeadamente normas de conduta profissional com relevância disciplinar. 18 -Mesmo que assim não fosse e se entendesse, por absurdo, que aquele Código Deontológico afinal é uma lei, em sentido amplo, sempre se dirá, ao abrigo da última parte do artigo 220.º do Código Civil, que, ainda assim, esse Código Deontológico não comina com nulidade a falta da forma prevista. 19 - De facto, nos termos do artigo 18.º do Código Deontológico, sob o título “infração deontológica”, a conduta contrária às regras deontológicas é equiparada a infração disciplinar, ou seja, a violação da forma prevista apenas acarretaria, de acordo com aquele Código, sanções disciplinares. 20 - Esta matéria tem vindo a ser tratada de forma uniforme pelos tribunais superiores, resultando, dos vários arrestos analisados, por um lado, que a liberdade de forma estabelecida legalmente só cede perante uma disposição legal, o que não é o caso do Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas; por outro lado, que o Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas não comina com nulidade a inobservância da forma escrita mas apenas sanções de natureza disciplinar. 21 – A este propósito veja-se, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14/02/2008, com o n.º convencional JTRP00041092, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26/06/2008, com o n.º convencional JTRP00041572 e Acórdão n.º TRP 464/07.1TBVCD.P1, de 04-05-2009”.
* Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a única questão a decidir, in casu, é a de saber se o Tribunal, ao decidir pela improcedência da excepção de nulidade do contrato, decidiu em conformidade com a lei aplicável.
* II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS Os factos relevantes para a presente decisão são os apresentados no Relatório que antecede e que se dão aqui por reproduzidos.
O DIREITO Como se viu acima, a única questão a apreciar neste recurso respeita à validade do contrato celebrado verbalmente entre a autora e o réu em Janeiro de 2004. O réu foi contratado pela autora na sua qualidade de técnico oficial de contas (TOC), o que convoca, desde logo, a interpretação do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (ECTOC) vigente à data (aprovado pelo DL n.º 452/99, de 5 de Novembro)[1]. Perscrutando as disposições constantes do ECTOC, não se vislumbra nenhuma que verse sobre exigências de forma dos contratos a celebrar por estes profissionais com os seus clientes. A norma do artigo 7.º, n.º 1, al. d), prevê que os TOC exerçam a sua actividade “no âmbito da prestação de um contrato de trabalho individual celebrado com (…) uma pessoa colectiva ou um empresário em nome individual” e nada mais diz. É certo que, como se sublinha na sentença, na sequência do ECTOC e antes da celebração do contrato dos autos, havia entrado em vigor, em 1 de Janeiro de 2004, o Código Deontológico dos TOC[2]. Aí se prevê, na norma do artigo 9.º, subordinada à epígrafe “contrato escrito”, que “[o] contrato entre os Técnicos Oficiais de Contas e as entidades a quem prestam serviços deve ser sempre reduzido a escrito” (cfr. artigo 9.º, n.º 1). Sucede, porém, que, diversamente do que sustenta o Tribunal de 1.ª instância, e em linha com o que entende o Tribunal a quo, esta norma não pode considerar-se aplicável ao contrato dos autos, contrato este tendente a vincular o réu, TOC, e a autora, sua cliente, uma vez que o Código Deontológico é um regulamento com alcance meramente interno, contendo normas de conduta que vinculam apenas os seus destinatários, ou seja, os TOC, relevando, designadamente, para efeitos disciplinares, mas que não vinculam não terceiros, como as entidades a quem os TOC prestam serviço[3]. De facto, o Código Deontológico não é uma lei para os efeitos do artigo 1.º, n.º 2, do CC. De acordo com esta norma: “[c]onsideram-se leis todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes (…)”; ora, o Código Deontológico não é uma disposição genérica provinda dos órgãos estaduais. Considerando, em particular a fundamentação do Tribunal de 1.ª instância (de que o ECTOC conferiria força normativa ao Código Deontológico), há que atentar no disposto no artigo 112.º, n.º 5 da CRP: “Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”. Quer isto dizer que, em suma, que não é possível dizer-se que o Código Deontológico se qualifica como lei nem que integra o ECTOC ou comunga da sua força normativa[4]. Daqui decorre que a falta de redução a escrito do contrato entre a autora e o réu não afecta a validade do contrato pela simples razão de que, à data (2004), a lei não impunha aquele requisito de forma para este tipo de contratos. Postas as coisas de outro modo, dir-se-ia que seria preciso uma disposição legal para afastar a liberdade de forma estabelecida legalmente[5]. Veja-se, no mesmo sentido, o Acórdão desta 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça de 27.04.2017 (Proc. 638/13.6TVLSB.L1.S1) onde pode ler-se: “Vem provado o seguinte: 1 - As Autoras e a firma EE - Contabilidade, Lda. acordaram por forma verbal, na prestação de serviços de contabilidade externa, em regime de avença mensal, a partir dos anos de 2003/2004 (…). A [ ] exigência [de forma escrita para a celebração do contrato de prestação de serviços] não é aplicável ao contrato de prestação de serviços dos autos, celebrado no ano 2003 ou 2004”. Poder-se-ia acrescentar que a redução a escrito dos contratos prevista na norma do artigo 9.º, n.º 1, do Código Deontológico visava apenas facilitar aos TOC a futura prova e por isso constituía uma formalidade ad probationem e não uma formalidade ad substantiam, disposta a favor dos clientes dos TOC[6]. Tudo visto, não há como não confirmar a decisão do Tribunal recorrido, que julgou improcedente a excepção de nulidade com base em vício de forma e determinou o prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido formulado pela autora.
* III. DECISÃO Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.
* Custas pelo recorrente.
* Lisboa, 22 de Junho de 2023
Catarina Serra (relatora)
Rijo Ferreira
Cura Mariano ____ [1] Este sucedeu ao Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovado pelo DL n.º 265/95, de 17 de Outubro, revogando-o (cfr. art. 10.º do DL n.º 452/99). |