Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2245/19.0T8ACB-A.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: EXECUÇÃO FISCAL
AÇÃO EXECUTIVA
PENHORA
BEM IMÓVEL
CASA DE HABITAÇÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
VENDA JUDICIAL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 10/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
“I- A razão de ser da norma do art. 794º, nº 1 do CPC implica que se verifique a prossecução normal da execução em que a penhora for mais antiga;
II- Essa prossecução não se verifica se, na execução em que a penhora é mais antiga, esta incide sobre a casa de habitação própria e permanente do executado, pois não é possível nessa execução a venda de um tal bem, mesmo a requerimento de um credor, por força do disposto no art. 244º do CPPT;
III- Nessas circunstâncias, deve prosseguir a execução comum, em que a penhora incidente sobre o bem foi posterior”
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:

*



A Caixa Geral de Depósitos, com sede em ..., intentou execução contra AA e BB, residentes no ..., referindo que os executados lhe devem a quantia total €195.533,00 referente à soma dos valores apurados nos dois contratos que com ela celebraram acrescido das despesas de cobrança, ao qual acrescem os respectivos juros e despesas até integral e efectivo pagamento.

Entretanto veio a Hefesto STC, S.A., ao abrigo do disposto no DL n.º 42/2019, de 28/03, requerer a sua habilitação como adquirente do crédito exequendo., tendo a mesma sido considerada habilitada na posição de exequente, por despacho do seguinte teor:

“…Considerando a documentação apresentada, o silêncio da parte contrária e afigurando-se estarem reunidos os requisitos do procedimento simplificado previsto nos arts. 2.º e 3.º do DL n.º 42/2019, de 28/03, quanto à invocada cessão de créditos em massa, abrangendo o crédito exequendo (entre outros), a requerente considera-se habilitada na posição de exequente, nos termos do art. 3.º, n.º 1, do aludido diploma. Notifique. DN.”.

No mesmo despacho foi decidido arquivar os autos, porquanto se entendeu, que a execução cível nunca poderá prosseguir enquanto a penhora anterior se mantiver registada, atenta a sua prevalência sobre as posteriores – art.º 822.º do C. Civil e o disposto no art.º 794.º, n.º 1, do C. P. C. que não permite que o credor com penhora anterior reclame o seu crédito no processo onde foi efectuada a penhora posterior, do teor que se transcreve:

“Importa assinalar, em primeiro lugar, que resulta dos autos que se encontra registada uma penhora anterior sobre o imóvel penhorado (ref. 6371764), o que determinou a sustação da execução quanto ao imóvel, nos termos do art. 794º, n.º 1, do CPC, e a subsequente extinção nos termos do art. 794.º, n.º 4, do CPC (ref. 8002368), sem prejuízo da renovação.

Mesmo que a situação dos autos se subsuma ao art. 244.º, n.º 2, do CPPT, face à natureza do imóvel e atenta a informação da AT no doc. 1 anexo à ref. 8587604, tendo presente as razões invocadas a respeito da Lei n.º 13/2016, de 23/05, cabe salientar, conforme defende Delgado Carvalho, “As alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2016, de 23/5, no Código de Procedimento e de Processo Tributário e na Lei Geral Tributária e as suas repercussões no concurso de credores”, disponível em blog.ippc.blogspot.pt, que “o impedimento legal [de venda no processo de execução fiscal] se aplica, não em função da natureza do processo onde se realiza a venda, mas antes de acordo com a natureza da garantia real invocada pela administração fiscal”, ou seja, “se houver concurso do crédito fiscal com os créditos dos outros credores do executado, seja qual for a natureza (fiscal ou não fiscal) do processo executivo em que for admitido o concurso de credores, a venda daquele imóvel pode realizar-se”.

Consequentemente, “Isto significa também que os credores comuns cujos créditos tenham sido reclamados ficam no mesmo plano que o Estado sob o ponto de vista dos poderes processuais. Podem aqueles credores, por isso, requerer o prosseguimento da execução fiscal para realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente na hipótese de o funcionário da administração fiscal decidir não proceder à venda, mesmo que este aja no cumprimento de orientações funcionais do serviço de finanças”, “Em suma, podendo a execução comum continuar a ser sustada nos termos do art. 794.º, n.º 1 do CPC, não existe alteração do critério para a determinação do processo no qual se realiza a venda: a venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo se encontrar primeiramente penhorado no âmbito de processo de execução fiscal, continua a realizar-se na execução fiscal por ser o processo em que a penhora é mais antiga”. Portanto, com o devido respeito por opinião contrária e sabendo-se que a questão se mostra controversa, entende-se que não pode a presente execução prosseguir (salvo cancelamento da penhora anterior), devendo antes a exequente, enquanto credor reclamante (ainda que espontâneo, se for caso disso art. 240.º, n.º 4, do CPPT), diligenciar em conformidade pela venda no processo de execução fiscal, sendo que se surgir eventual decisão impeditiva do prosseguimento no âmbito do processo de execução fiscal, caberá à exequente reagir nessa sede, incluindo através do recurso aos TAF, consoante possa caber ou seja, não se verifica um impedimento à venda no âmbito da execução fiscal uma vez que se entende que o credor reclamante, ora exequente, pode impulsionar ou promover essa venda, o que, por sua vez, significa que a execução fiscal pode retomar a sua dinâmica processual sendo que, aliás, conforme inicialmente referido, a presente execução (civil) não se encontra a correr, nem suspensa, estando antes extinta, sem prejuízo da sua renovação.

Neste sentido, entre outros, o Ac. da RC de 25/05/2020, disponível em www.dgsi.pt: “A aparente desarmonia do regime em causa criada pelo n.o 2 do art.º 244º do CPPT resulta da interpretação deste preceito que, forçosamente não pode ser literal, sendo manifesto que nada nos indica que o legislador tenha querido criar um entrave ao prosseguimento das ações executivas cíveis. Mantendo-se a penhora anterior efectuada na execução fiscal não dúvida que é que o agora Exequente/recorrente terá que reclamar o seu crédito e o direito a vê-lo pago pelo produto da venda do bem penhorado. Assim, a solução para a questão há-de encontrar-se na interpretação que se faça do citado art.º. 244º, n.º 2, que tem de ser no sentido de que a Administração Fiscal não pode promover, nessa situação penhora de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar –, a venda desse bem, mas não impede que um credor que nesse processo tenha reclamado o seu crédito promova essa venda, dado que se encontra em situação similar à prevista no art.º 850º, n.º 2, do C. P. Civil, normativo que deve ser aplicado com as adaptações necessárias. Tal interpretação reduz, pois, o âmbito de aplicação daquele preceito 244º, n.º 2, do CPPT aos casos em que a Administração Fiscal seja o único credor interveniente no processo. Tanto mais que a execução cível nunca poderá prosseguir enquanto a penhora anterior se mantiver registada, atenta a sua prevalência sobre as posteriores art.º 822º do C. Civil e o disposto no art.º 794º, n.º 1, do C. P. C. que não permite que o credor com penhora anterior reclame o seu crédito no processo onde foi efectuada a penhora posterior”.

Dito isto, importa ressalvar que se afigura que o prosseguimento da presente execução cível, mantendo-se a penhora anterior no âmbito da execução fiscal, poderá ser eventualmente equacionado se a ora exequente não lograr obter o prosseguimento da execução fiscal após esgotar todos os meios ao seu dispor para tal efeito (ou seja, se tal pretensão for formalmente indeferida pelo órgão da execução fiscal e não for possível obter a sua revogação judicial, nos competentes Tribunais), para assim, face à ausência de alternativa, possibilitar o ressarcimento do crédito exequendo. Neste contexto, se e quando se verificar o esgotamento e frustração dos mecanismos legais para prosseguimento da execução fiscal, caberá então à exequente, com certidão da decisão final pertinente, vir aos presentes autos suscitar a questão para o eventual prosseguimento (renovação) desta execução (e nessa hipótese de renovação da execução poderá eventualmente relevar a matéria atinente à Lei n.o 1-A/2020, de 19/03, a qual, por isso, ora não cabe apreciar).

Notifique e oportunamente, nada obstando, arquivem-se novamente os autos”. (sublinhados nossos)

Inconformada com tal despacho dela recorreu a exequente - Hefesto STC, S. A., E – tendo o Tribunal da Relação de Coimbra julgado improcedente o recurso de apelação mantendo o despacho proferido pela primeira instância que determinou a sustação da execução e o arquivamento dos autos de execução.

Novamente inconformada, a Hefesto STC, SA interpôs recurso do revista excepcional em que invocou como fundamento a relevância jurídica da questão que se discutia nos autos. Ao mesmo tempo, invocou a contradição de julgados entre o acordão recorrido e diversos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelos Tribunais da Relação.

Porém, a Formação, entendendo o que o recurso da revista execepcional não era admissível, remeteu o processo ao relator para aferir da contradição de julgados ao abrigo dos art. 854º, nº 1, 629º, nº 2 e 671º, nº 2, al. b) do CPC.

Tendo a recorrente indicado como acórdão fundamento o acórdão da Relação de Lisboa de 22.10.2019, proc. 2270/07.4TBVFX-B.L1-7, o relator considerou verificada a referida contradição e admitou o recurso.

O recurso mostra-se rematado com as seguintes conclusões:

“I. Com o devido respeito que é muito, o Acórdão em recurso viola a lei substantiva por erro de interpretação e aplicação das normas jurídicas concretamente aplicáveis, assim como se encontrará em contradição com os Acórdãos que se enumeram infra, já transitados em julgado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

II. No âmbito dos autos de execução sumária supra melhor id., em que a recorrente assume a qualidade de exequente, com crédito garantido por hipoteca sobre imóvel penhorado a fls…, foi a execução extinta nos termos do artigo 794.º n.º 4 do Código de Processo Civil, por sustação integral por força da pendência de penhoras anteriormente registadas sobre aquele bem.

III. De facto, sobre o bem imóvel penhorado encontram-se, anteriormente, registadas duas penhoras a favor da Fazenda Nacional para pagamento da quantia exequenda total global de € 51.395,96.

IV. Ora, cf. documento junto aos autos por requerimento da exequente em 04/04/2022, segundo informação do serviço de finanças, o primeiro dos referidos processos de Execução Fiscal está findo e o segundo está pendente desde 2017, e assim continuará, encontrando- se a presente execução impedida de prosseguir os seus regulares trâmites desde o início por esse motivo e o ora Exequente impedido de ver o seu crédito ressarcido.

V. Acresce que, no referido processo de execução fiscal, não se encontra agendada a venda do imóvel, nem tão pouco irá ser agendada, uma vez que o imóvel se trata de casa de morada de família, conforme informação do próprio serviço de finanças junta e caderneta predial junta aos autos.

VI. A Autoridade Tributária encontra-se, no caso em concreto, impedida de prosseguir com a venda do imóvel ao abrigo do nº 2 do art. 244º do CPPT, ou seja, a venda do imóvel nunca será agendada/concretizada, impedimento esse que não existe no âmbito do processo executivo.

VII. Pelos motivos referidos nos artigos que antecedem, a ora recorrente requereu, por requerimento de 04/04/2022, a renovação da execução, com o prosseguimento da acção, tendo em vista as necessárias diligências de venda do imóvel penhorado, cumprindo o disposto no artigo 786º do CPC, nomeadamente citando a Autoridade Tributária e Aduaneira para vir reclamar os seus créditos.

VIII. O referido requerimento foi indeferido pelo Meritíssimo Juiz do tribunal a quo e bem assim pelo Tribunal da Relação de Coimbra, com fundamentos com os quais não se concorda, por erro na interpretação das normais legais, como se demonstra de seguida.

IX. Dispõe o art. 794º, nº 1, do Código de Processo Civil (de ora em diante designado de CPC) que, “pendendo mais de uma ação sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga”.

X. Por sua vez, o nº 3 do mesmo preceito estabelece que o Exequente pode desistir da penhora relativa aos bens apreendidos no outro processo e nomear outros em sua substituição.

XI. Significa isto que o Exequente pode seguir uma de duas vias: reclama o seu crédito no processo em que a penhora seja mais antiga, dentro do prazo fixado no nº 2 do Art.º 794º do CPC; ou desiste da penhora relativa ao bem apreendido no outro processo e nomeia outros bens em sua substituição.

XII. Analisando o espírito da lei, quanto ao disposto no Art.º 794º do CPC, o preceito “não se inspira em razão de economia processual, visto que não se manda atender ao estado em que se encontram os processos com penhora prévia; susta-se o processo em que a penhora se efetuou em segundo lugar, ainda que a execução respetiva tenha começado primeiro e ainda que esteja mais adiantada do que aquela em que precedeu a penhora. O que a lei não quer é que em processos diferentes se opere a adjudicação ou a venda dos mesmos bens; a liquidação tem de ser única e há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar” – Alberto dos Reis, in Processo de Execução, Vol. II, pág 287.

XIII. Ora, resulta da ratio legis do preceito que, de modo a este ter conteúdo útil, a primeira execução deve estar, senão em movimento, pelo menos em fase processual onde a sua prossecução seja possível.

XIV. Ou seja, só se demonstra utilidade no regime do Art.º 794º do CPC se ambas as execuções se encontram a correr termos, pois só assim é que o Exequente e/ou Reclamante podem atingir os fins através do pagamento dos seus créditos pela via executiva.

XV. Ora, se é assim no momento da reclamação de créditos, também deve entender-se, de idêntico modo, nos casos em que se reclamou o crédito na execução cuja penhora é anterior e depois por qualquer razão – não interessa o motivo – esta “parou”.

XVI. Se assim não fosse, ficariam bloqueadas ambas as execuções; a originária porque vigorava o despacho de sustação de acordo com o Art.º 794º do CPC; a outra por estar “parada” e sem que o reclamante aí pudesse processualmente impulsionar, frustrando-se, assim, o espírito do Art.º 794º a que supra se faz referência.

XVII. Tal é o entendimento vertido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/01/2005, in Base de Dados no M. J, sob o nº J200506090013587, bem como do Acórdão do STJ relativo ao processo 1303/17.0T8AGD-B.P1, assim como no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30/10/2006 (Processo 8559/2006-8):“Sustada a execução nos termos do artigo 871º do Código de Processo Civil, se a execução, onde houve penhora anterior e onde foi reclamado o crédito da execução sustada, vier a ficar suspensa, interrompida ou por qualquer modo “parada”, pode prosseguir a instância na execução sustada para, assim, se evitar o impasse em ambas as execuções”.

XVIII. Com efeito, esta corrente, que se apresenta como maioritária, e que, tal como nos dá conta o recente Acórdão da Relação de Lisboa, de 22.10.2019 (processo nº 2270/07.4TBVFX-B.L1)[20], assenta, fundamentalmente, nos seguintes argumentos:

« i.- A ratio legis da norma do art.º 794º, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de proteção tanto do devedor executado, como dos credores exequentes, postula que ambas as execuções se encontrem numa situação de dinâmica processual;

ii.- Atento o teor taxativo do nº 2 do art. 244º do CPPT (“não há lugar à realização de venda”), o credor reclamante não pode prosseguir com a execução fiscal sustada, nomeadamente requerer o prosseguimento da execução e diligências de venda, a qual está legalmente impedida no âmbito desse processo fiscal, independentemente de ser requerida por qualquer credor comum;

iii.- O CPPT não prevê o prosseguimento da execução fiscal por impulso dos credores reclamantes, não tem norma equivalente ao art. 850º, nº 2, do Código de Processo Civil;

iv.- Estando suspensa a execução fiscal, não pode funcionar o regime previsto no art.º 794º, nº1, que tem como pressuposto a ausência de qualquer impedimento legal ao prosseguimento normal da execução fiscal e venda do bem penhorado;

v.- O art.º 244º do CPPT encontra-se inserido na Secção VIII, sob a epígrafe “Da convocação dos credores e da verificação dos créditos”, o que constitui um elemento sistemático de interpretação que não pode ser ignorado, donde se infere que nada vale reclamar na execução fiscal o crédito se a sua satisfação só poderia ser obtida pela venda do imóvel hipotecado, venda que está expressamente interdita na execução fiscal.

vi.- A regra da preferência resultante da penhora (art. 822º do Código Civil) não pode impedir a venda do imóvel no processo onde a penhora é posterior, visto que a Autoridade Tributária pode reclamar o seu crédito nesta execução (art. 786º), sendo o seu crédito graduado no lugar que lhe competir».

XIX. Subscreveram esta tese, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26.09.2017 ( processo nº 1420/16.4T8VIS-B.C1); da Relação de Évora, de 12.07.2018 (processo nº 893/12.9TBPTM.E1); da Relação de Guimarães, de 17.01.2019 (processo nº 956/17.4T8GMR-C.G1); da Relação de Lisboa, de 07.02.2019 (processo nº 985/15.2T8AGH-A.L1); da Relação de Guimarães, de 23.05.2019 (processo nº 2132/17.7T8VCT-B.G1); da Relação de Évora, de 30.05.2019 (processo nº 402/18.6T8MMN.E1); da Relação de Guimarães, de 30.05.2019 (processo nº 2677/10.0TBGMR.G1); da Relação de Lisboa, de 12.09.2019 (processo nº 1183/18.9T8SNT.L1) e da Relação do Porto, de 22.10.2019 (processo nº 8590/18.5T8PRT-B.P1).

XX. Tem de fazer-se uma interpretação restritiva do mencionado art.º 794.º n.º 1 do C.P.C. no sentido em que a sustação da execução apenas tem lugar quando o bem penhorado foi objecto de penhora anterior noutro processo executivo que possa prosseguir com a sua venda, sob a pena de se estar a comprimir de forma desproporcionado o direito do credor, que encontra no património do devedor a garantia do seu crédito e tem a expectativa da tutela do seu direito através do mesmo, com a possibilidade de submeter à execução todos os bens do devedor que nos termos da lei substantiva respondem pela dívida exequenda, conforme estabelece o art.º 735.º n.º 1 do C.P.C..

XXI. Não deixaremos de perfilhar, de harmonia com o disposto no art. 9º do C. Civil, a interpretação que melhor se coaduna com o espírito da lei e melhor garante a unidade do sistema jurídico e satisfaz os interesses protegidos por cada uma das normas dos arts. 244º, nº 2 do CPPT e 794º, nº1 do CPC.

XXII. É que se é certo que, ao facto de o CPPT não conter uma norma idêntica à prevista no nº 2 do art. 850º do CPC, sempre se poderia contrapor o argumento de que, estando-se perante um caso omisso, seria de aplicar aquela norma, visto dispor o art. 2º , al. b) do CPPT, que ao procedimento e processo judicial tributário, são aplicáveis, subsidiariamente, « as disposições do Código de Processo Civil »,estabelecendo, expressamente, o art. 246º, nº 1 do mesmo código que « na reclamação de créditos observam-se as disposições do Código de Processo Civil, excepto no que respeita à reclamação da decisão de verificação e graduação, que é efetuada exclusivamente nos termos dos artigos 276º a 278º deste código», a verdade é que já se decidiu nos Acórdãos do STA, de 27.06.2007 (recurso nº 0446/07) e de 03.02.2016 (processo nº 087/15) [22] que, não tendo a venda dos bens penhorados, o credor reclamante, não pode requerer o prosseguimento da execução ao abrigo do art. 920º, nº 2 (atual art. 850, nº 2 ), do Código de Processo Civil, por tal faculdade, no caso concreto, não ser aplicável ao processo de execução fiscal.

XXIII. Acresce que, tal como se dá conta no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 30.05.2019 (processo nº 2677/10.0TBGMR.G1), não deixa de ser defensável o entendimento de que constitui «uma flagrante ilegalidade a Autoridade Tributária proceder à venda na execução-fiscal do imóvel que constitua casa de morada de família ainda que a coberto do concurso de credores (cfr. art. 8º, nº 2, al. e) da LGT)».

XXIV. Mas, mesmo pondo de parte estas dificuldades, que, na prática, podem comprometer ou, pelo menos, tornar muito onerosa a possibilidade de cobrança do respetivo crédito por parte dos credores comuns reclamantes, e cientes de que o impedimento da Autoridade Tributária em realizar, no processo de execução fiscal, a venda da casa de morada de família do devedor de créditos fiscais, previsto no art. 244º, nº 2 do CPPT, é inoponível aos credores comuns, julgamos que a chave para a resolução da questão colocada nos presentes autos, radica na interpretação a dar ao art. 794º, nº1 [23], do CPC, que estabelece que: «Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga ».

XXV. Assim, recaindo sobre o mesmo bem duas ou mais penhoras concretizadas em processos executivos diferentes, susta-se o processo em que a penhora se efetuou em segundo lugar, ainda que a execução respetiva tenha começado primeiro e ainda que esteja mais adiantada do que aquela em que precedeu a penhora.

XXVI. No mesmo sentido, refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.10.2004 (processo nº 0454742 ) [25], que « a razão de ser do preceituado no normativo citado, filia-se no facto de a liquidação do património do executado ser única, tendo por base o processo executivo instaurado em primeiro lugar, pois de outro modo, correr-se-ia o risco de poder haver dupla venda ou adjudicação dos mesmos bens».

XXVII. Sublinha, todavia, este mesmo acórdão que «da “ratio legis” do preceito, a que subjazem razões de certeza jurídica e protecção, quer do devedor executado, quer do(s) credor (es) exequente (s), resulta que, para que o preceito tenha conteúdo útil, a 1ª execução deva estar, senão em movimento (…), pelo menos em fase processual de onde a sua prossecução seja possível, à luz da tramitação processual prevista », pelo que «a execução mais antiga [ onde o credor-exequente que instaurou a 2ª execução, deve ir reclamar os seus créditos em virtude da sustação] tem de estar em posição de poder prosseguir ».

XXVIII. Ou seja, «ao conferir a possibilidade de reclamação do seu crédito, por via da execução ter sido suspensa», ao abrigo do art. 794º, nº1 do CPC, «a lei pretende que se pondere a relação dinâmica das execuções ou, quando muito, a possibilidade do dinamismo da mais antiga»

XXIX. Dito ainda de outro modo e nas palavras do Acórdão do STJ, de 09.06.2005 (processo nº 05B1358) [26], pretendeu o legislador «aproveitar o decurso de duas execuções em plena actividade na sua tramitação e onde foi penhorado o mesmo bem, remetendo o modo de pagamento coercivo da obrigação para aquele processo que maior funcionalidade e maior comodidade concede ao exequente e sem causar dano ao executado.

XXX. Por isso é que só se justificará a reclamação do crédito exigido na execução sustada, desde que a execução para onde se remete a reclamação desse crédito esteja em condições de poder efectivar, com a usual normalidade, esta assinalada prerrogativa do credor exequente»

XXXI. Daí que, nesta perspetiva, seja de entender, por um lado, que só se verifica utilidade no regime do citado art. 794º, nº1, se ambas as execuções se encontram a correr termos, pois só assim é que o exequente/ reclamante pode obter o pagamento dos seus créditos por via executiva.

XXIII- E, por outro lado, que suspensa ou por qualquer modo “parada” a execução na qual o credor exequente deve ir reclamar o seu crédito, por força do art. 794º, nº1 do CPC, deve prosseguir a instância da execução que havia sido sustada, nos termos deste mesmo artigo.

Ora, a verdade é que, encontrando-se a execução fiscal “parada” em consequência do regime previsto no art. 244º, nº 2 do CPPT, que impede a Autoridade Tributária de promover a venda, nesse processo, do imóvel penhorado por o mesmo ser a casa de morada de família do executado, não se vê razão para interpretar o citado art. 794º, nº1 de modo diferente, pelo que, em face da situação concreta verificada, não há lugar no caso à sustação da execução, nos termos do art.º 794.º n.º 1 do C.P.C., devendo a mesma prosseguir os seus termos com a venda do imóvel penhorado, dando-se a possibilidade à Fazenda Nacional de reclamar os seus créditos na execução comum, se assim o pretender, para deles ser paga no lugar em que venham a ser graduados.

XXXIV.Evidencie-se o relevo que a interpretação legal patente na decisão de que se recorre atribui a execuções definitivamente inviabilizadas, como as execuções fiscais que, por força do estabelecido no n.º 2 do artigo 244.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, não são aptas, ab initio, a atingirem a sua finalidade última, a promoção da venda do imóvel penhorado.

XXXV. Tal é o entendimento vertido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/01/2005, in Base de Dados no M. J, sob o nº J200506090013587, assim como no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30/10/2006 (Processo 8559/2006- 8):“Sustada a execução nos termos do artigo 871º do Código de Processo Civil, se a execução, onde houve penhora anterior e onde foi reclamado o crédito da execução sustada, vier a ficar suspensa, interrompida ou por qualquer modo “parada”, pode prosseguir a instância na execução sustada para, assim, se evitar o impasse em ambas as execuções”.

XXXVI. Veja-se, ainda, o entendimento jurisprudencial do Tribunal da Relação de Lisboa mais recente, e que tem vindo a decidir que: «O disposto no n.º 1 do artigo 794º do Código de Processo Civil deve ser lido como referindo a pendência de execuções efetivas, com potencialidade de atingirem o seu fim último de materialização coerciva de direitos, incidentes sobre os mesmos bens, o que afasta do seu âmbito as execuções definitivamente inviabilizadas antes de atingirem a sua finalidade última ao abrigo do estabelecido no n.º 2 do artigo 244.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário»

E

“Sustada a execução comum por existência de penhora registada anteriormente em sede de execução fiscal e encontrando-se esta última suspensa (art. 244/2 CPPT), nada impede o prosseguimento daquela (execução comum), com vista à venda do bem imóvel, podendo a Fazenda Nacional reclamar nesta (execução comum) o seu crédito, que será objecto de verificação e graduação de créditos, com vista ao ressarcimento do crédito do credor (s) exequente, afastando-se a aplicação do art. 794/1 CPC.”

E

“I - Pelo facto de se encontrar registada penhora sobre imóvel inscrita a favor da Autoridade Tributária, com registo anterior à efetuada numa execução comum, não obsta ao prosseguimento desta execução com a venda desse bem, quando naquela execução tal venda não possa ocorrer, por força do disposto no art. 244º, nº 2 do CPPT, por o imóvel constituir a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar.

II – O art. 244º, nº 2 do CPPT, apenas proíbe a venda do imóvel afeto à habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar, desde que essa venda ocorra no âmbito de uma execução fiscal.

III – Não podendo a penhora ser levantada no âmbito da execução fiscal, a não ser que a dívida seja paga ou anulada, e nem podendo prosseguir a impulso dos credores reclamantes, não tem aplicação na execução civil, o estatuído no art. 794º, nº 1, do CPCivil.” – Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/07/2019 (processo 985/15.2T(AGH-A.L1-6), de 05/21/2020 (processo 19356/18.2T8SNT-B.L1-8), de 06/04/2020 (13361/19.9T8SNT-A.L1- 2), de 21-05-2020 (processo 19356/18.2T8SNT-B.L1-8), do Tribunal da Relação de Évora de 12-07-2018 (processo 893/12.9TBPTM.E1), do Tribunal da Relação de Guimarães de 23-05-2019 (processo 2132/17.7T8VCT-B.G1).

XXXVII- É contrário ao princípio do aproveitamento dos actos processuais, sustar uma penhora/execução em curso em virtude da existência de uma penhora prévia em processo impedido, à partida, de promover a venda de casa de morada de família.

XXXVIII- O entendimento que nada impede que o credor, que já deu início a um processo de execução comum, elaborando o respectivo requerimento inicial (executivo), com os respectivos custos, vá ainda, reclamar créditos e impulsionar processo em que é exequente um terceiro (a Fazenda Nacional), é ofensivo daquele princípio e lesivo dos interesses do credor por implicar repetição de actos e não ser célere a respectiva tramitação.

XXXIX. Evidencie-se quanto ao especificamente referido na douta decisão que os credores podem impulsionar os processos de execução fiscal, é consabido que estes têm uma tramitação substancialmente mais morosa que os processos de execução comum, chegando a decorrer anos para se concretizar a venda, ou para ser elaborada a respectiva sentença de graduação de créditos e posterior pagamento aos credores que, assim, demoram mais anos a ver-se ressarcidos dos seus créditos,

XL. Com claro prejuízo para si mas também para os devedores/executados que vêm aumentar os valores em dívida, atento o vencimento diário dos juros até efectivo e integral pagamento.

XLI. É, ainda, dificultado o acesso aos processos de execução fiscal que não são tramitados em plataformas informáticas como a plataforma citius a que se recorre para tramitar os processos comuns.

XLII. Para além de que os processos de execução fiscal não avançam com a tramitação processual para ressarcimento de outro credor, por impulso deste, pois continua a tratar-se de processo de execução fiscal e esse prosseguimento não garante o ressarcimento da AT, razão pela qual não acontece, ainda mais tendo o outro credor garantia hipotecária.

XLIII. Acresce ainda que só desconhecendo totalmente a realidade do que se passa nas execuções fiscais se pode afirmar a Lei 13/2016 não veda a possibilidade de o Reclamante impulsionar a execução fiscal.

XLIV. O Credor Reclamante está impedido de prosseguir com a execução fiscal, pois, nos termos do artigo 265º do CPPT, o apenso de verificação e graduação de créditos só prosseguirá se houver venda dos bens penhorados – veja-se neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 3 de Fevereiro de 2016 (in wwwdgsi.pt), onde se decidiu: “O artº. 265º, n.º 2 do Código de Processo e Procedimento Tributário apenas admite a não sustação do apenso de credores quando haja venda dos bens penhorados”.

XLV. Na mesma senda, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 09-02-2020, processo 0307/20.0BESNT, que decidiu que “O imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim, não pode ser vendido na execução fiscal porque o proíbe o artigo 244.º, n.º 2 do CPPT”.

XLVI. Assim, estando a execução fiscal numa situação de suspensão quanto ao imóvel em causa, não sendo ordenada a venda do imóvel sobre o qual o Recorrente/Exequente tem hipoteca, não pode obter a cobrança coerciva dos seus créditos, o que significa, na prática, uma clara denegação de Justiça, insustentável num Estado de Direito.

XLVII. Analisando o artigo 218º do actual Código de Procedimento e Processo Tributário, vemos que, em termos práticos, apesar de o Recorrente/Exequente poder reclamar o seu crédito na execução fiscal, a verdade é que o seu direito enquanto credor está praticamente anulado.

XLVIII. É que, mesmo reclamando o seu crédito, se a execução fiscal se mantiver parada ou suspensa o Estado mantém a sua garantia, sem que o credor (que até tem hipoteca) possa, de algum modo, impulsionar o andamento daquela mesma execução.

XLIX. O credor reclamante, neste caso credor hipotecário não pode requerer o prosseguimento da execução fiscal em circunstância alguma.

L. Fica, assim, perante uma situação de impasse, pois o Código de Procedimento e Processo Tributário não prevê a possibilidade de a execução prosseguir por impulso do Reclamante em situação deste tipo.

LI. Estando os referidos autos de execução fiscal suspensos, como comprovadamente estão, não se verifica, neste caso concreto, o circunstancialismo do artigo 794º, nº 1, do CPC - pendência de duas ou mais execuções dinâmicas sobre o mesmo bem.

LII. E, se os presentes autos prosseguirem, é citada a Fazenda Nacional, como credor e como titular inscrito de um ónus registado sobre o imóvel em questão, para reclamar os seus créditos.

LIII. E, assim, nem aquele órgão, nem o Recorrente ficariam prejudicados, pois ambos poderiam obter o pagamento do seu crédito na presente execução, se for o caso.

LIV. Mais, não tem o credor hipotecário outro meio para se fazer valer, pois fica impedido de cobrar os seus créditos só lhe restando a hipótese de requerer a insolvência dos devedores.

LV. A não se admitir o prosseguimento da execução nestes casos, em que há um impedimento legal à venda do imóvel nas execuções fiscais, são postos em crise os princípios constitucionais da proporcionalidade de e da garantia do direito à previstos propriedade privada, nos artigos 18º, n.º 2 e 62º, n.º 1 da Constituição, isto na medida em que o Recorrente fica sujeito a uma intolerável compressão do exercício dos seus direitos, nomeadamente do seu direito à satisfação do seu crédito, indelevelmente ligado ao direito à propriedade privada, sendo que, por outro lado, sempre ficaria sujeito às vicissitudes próprias da suspensão da execução fiscal, determinada pelo impedimento legal à venda do imóvel, sem que, quanto a essas, tenha a possibilidade de, por via dos competentes mecanismos legais, promover ou requerer o prosseguimento.

LVI. Com efeito, tem sido entendimento dos tribunais superiores de que o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra é espelho que: “não resta alternativa ao levantamento da sustação da execução comum para que se providencie pela actuação conducente à realização da venda no processo executivo cível, distribuindo-se o produto da venda em conformidade com o que for determinado na sentença de graduação.

Entendimento contrário, cremos, postergaria os mais elementares princípios do processo executivo e afrontaria, necessariamente, o direito de propriedade privada constitucionalmente garantido e a garantia do credor à satisfação do seu crédito (art.º 62.º, n.º 1 da CRP), tornando, pelo menos, desproporcionadamente mais difícil ou onerosa a satisfação do direito do exequente (com violação do art.º 18.º da CRP).”

LVII. Perfilhamos tal entendimento, pois que, de facto os bens jurídicos lesados com a impossibilidade de venda do imóvel pela Autoridade Tributária, sobrepõem-se àquele que supostamente a norma do n.º 2 do art.º 244.º do CPPT, tenta proteger, até porque a norma salvaguarda a venda da casa de morada de família apenas em atenção às pequenas dívidas fiscais, limitando a força do aparelho do estado, mas já assim não é, quando a divida fiscal atinge valor correspondente à taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano – cifra art.º 244.º n.º 3 do CPPT.

LVIII. Nesse sentido, cfr. Ac. TRÉvora, de 12/07/2018, proc. n.º 893/12.9TBPTM.E1 (disponível em www.dgsi.pt), para o qual se remete, pois versa sobre a mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação.

LIX. Assim, e conforme decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/12/2019, proc. n.º 1183/18.9T8SNT.L1-2 (disponível em www.dgsi.pt): “Se o processo fiscal, em que foi feita uma penhora anterior de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar, não pode levar à venda do imóvel, por força do impedimento do art.244/2 do CPPT na redacção dada pela Lei 13/2016, o processo comum onde foi feita a penhora posterior não deve ser suspenso, mas sim prosseguir para a venda, notificando-se a AT para reclamar os créditos fiscais na execução comum.”

LX. Também nesse sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19-05-2020, processo n.º 2342/16.4T8AGD-B.P1, que decidiu que: “I - Quando sobre o imóvel penhorado em execução cível incide penhora com registo anterior, no âmbito de uma execução fiscal onde o imóvel penhorado não pode ser vendido por se tratar de casa de morada de família do executado (Lei 13/2016), não deve ser sustada a execução cível, nos termos do artigo 794.º, n.º 1, CPC.

II - Sendo impossível a venda do imóvel na execução fiscal por força do disposto no artigo 244.º, n.º 2, CPPT, por se tratar de casa de morada de família, cessa a razão de ser do artigo 794.º, n.º 1, Código de Processo Civil, devendo a AT reclamar o seu crédito na execução comum, após a citação prevista no artigo 786.º, n.º 1, alínea b), para ser graduado no lugar que lhe competir.”

Termos em que, e nos demais de direito que V. Exas suprirão, deve o presente Recurso ser julgado procedente, revogando-se o douto Acórdão Recorrido e sendo o mesmo substituído por outro que ordene o levantamento da sustação da execução e admita o prosseguimento dos autos com as diligências de venda do imóvel penhorado, com a citação da AT para, querendo, vir reclamar créditos, prosseguindo os autos os seus normais trâmites processuais.”

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir, tendo por base os factos constantes no relatório supra.

No despacho proferido em 1ª instância (que acima se transcreveu) foi decidido arquivar os autos, porquanto se entendeu que a execução cível nunca poderá prosseguir enquanto a penhora anterior se mantiver registada, atenta a sua prevalência sobre as posteriores – art.º 822.º do C. Civil e o disposto no art.º 794.º, n.º 1, do C. P. C. que não permite que o credor com penhora anterior reclame o seu crédito no processo onde foi efectuada a penhora posterior.

Como assim, o despacho fez uma interpretação restritiva do art. 224º, nº 2 do CPPT no sentido de que a Administração Fiscal não pode promover nessa situação – penhora de imóvel destinada exclusivamente à habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar- a venda desse bem, mas nada impede que um credor que nesse processo tenha reclamado o seu crédito promova essa venda, dado que se encontra em situação similar à prevista no art. 850º, nº 2 do CPC, normativo que deve ser aplicado com as adaptações necessárias, sem prejuízo do prosseguimento da execução cível, se o exequente não lograr obter o prosseguimento da execução fiscal.

Insistiu a recorrente, na apelação, no sentido de que o despacho recorrido devia ser revogado e substituído por acórdão que ordenasse o levantamento da sustação da execução e admitisse o prosseguimento dos autos com as diligências de venda do imóvel penhorado, com a citação da AT para, querendo, vir reclamar créditos, prosseguindo os autos os seus normais trâmites processuais.

Porém, a Relação julgou o recurso improcedente e manteve a decisão recorrida, sem fundamentação essencialmente diferente.

Fê-lo com base no disposto no art. 794º, nº 1 do CPC e na mesma interpretação restritiva do art. 224º, nº 2 do CPPT, como segue:

“(…) No caso presente o exequente/recorrente é um credor com garantia real sobre o bem penhorado na execução fiscal, logo foi citado para os termos da mesma, nos termos dos art.ºs 239.º e 240.º do CPPT, pelo que, se for reclamado o crédito, dúvidas não temos de que a autoridade fiscal terá de dar início ao procedimento de venda do bem penhorado, por força do n.º 1 do art.º 244.º do CPPT, embora esteja impedida de ter, com tal venda, o objectivo de pagamento coercivo dos créditos fiscais, mas não poderá ignorar o legítimo pagamento dos créditos reclamados e que venham a ser verificados, reconhecidos e graduados conforme lhes competir.

É certo que o CPPT não contém uma norma idêntica à prevista no n.º 2 do art.º 850.º do C.P.Civil, todavia trata-se de uma lacuna que terá de ser suprida por interpretação analógica, até porque segundo o disposto no art.º 246.º, n.º 1 do CPPT “Na reclamação de créditos observam-se as disposições do Código de Processo Civil, excepto no que respeita à reclamação da decisão de verificação e graduação, que é efectuada exclusivamente nos termos dos artigos 276.º a 278.º deste código”.

Assim sendo, a resposta há-de encontrar-se na interpretação que se faça do citado art.º 244º, n.º 2, que tem de ser no sentido de que a Administração Fiscal não pode promover, nessa situação, a venda da penhora de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar, mas, quanto a nós, não impede que um credor que nesse processo tenha reclamado o seu crédito promova essa venda dado que se encontra em situação similar à prevista no art.º 850º, n.º 2, do C. P. Civil, normativo que deve ser aplicado com as adaptações necessárias.

Tal interpretação reduz, pois, o âmbito de aplicação daquele preceito – 244º, n.º 2, do CPPT – aos casos em que a Administração Fiscal seja o único credor interveniente no processo.

Esta é a interpretação que entendemos ser a adequada é a única que respeita o estatuto do exequente que se apresenta como reclamante na execução prioritária por ter sido forçado, em razão de pendência de uma execução com penhora anterior sobre o mesmo bem, a exercer os seus direitos nessa outra execução, tanto mais que a execução cível nunca poderá prosseguir enquanto a penhora anterior se mantiver registada atenta a sua prevalência sobre as posteriores – art.º 822º do C. Civil e o disposto no art.º 794º n.º 1, do C. P. C. que não permite que o credor com penhora anterior reclame o seu crédito no processo onde foi efectuada a penhora posterior.

Face ao exposto a pretensão da recorrente terá de improceder.” (destaques nossos)

Insurge-se agora a recorrente Hefesto, indicando como acórdão fundamento o Ac. da Relação de Lisboa, de 22.10.2019, proc. 2270/07.4TBVFX-B.L1-7, cujo sumário se transcreve:

“I.–No que tange à articulação entre o disposto no art. 794º, nº1, do Código de Processo Civil, com o art. 244º, nº2, do CPPT, existem duas posições em confronto.

II.–Segundo uma, o art. 244º, nº 2, do CPPT, deve ser interpretado restritivamente no sentido de que a impossibilidade legal de venda do imóvel penhorado só ocorre nos casos em que a Autoridade Tributária seja o único interveniente no processo fiscal, nada obstando a que se proceda a essa venda na execução fiscal por impulso do credor comum.

III.–A esta posição contrapõe-se outra, segundo a qual o credor reclamante não pode prosseguir com a execução fiscal sustada, nomeadamente requerer o prosseguimento da execução e diligências de venda, a qual está legalmente impedida no âmbito desse processo fiscal pelo art. 244º, nº2, do CPPT, devendo prosseguir a execução comum, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos.

IV.–Os argumentos que sustentam a segunda tese são mais impressivos e pertinentes, sendo que esta segunda tese foi sancionada pelo Tribunal Constitucional que, nos Acórdãos nºs. 610/2017 e 329/2019, bem como na decisão sumária nº 728/2018, considerou que o artigo 244.º, n.º 2, do CPPT, configura um impedimento à venda judicial do imóvel penhorado no âmbito do processo de execução fiscal, mas não nos autos de execução comum.”

No acórdão fundamento, a exequente veio requerer o levantamento da sustação da execução e consequente prosseguimento das diligências atinentes à venda do imóvel penhorado, com o fundamento de que a execução fiscal em que foi efectuada a penhora prioritária estava inactiva, levantamento que foi indeferido pelo juiz de 1ª instância. Todavia, perfilhado a segunda tese a que se refere o sumário, ou seja, a de que o credor reclamante não pode prosseguir com a execução fiscal sustada, nomeadamente requerer o prosseguimento da execução e diligências de venda, a qual está legalmente impedida no âmbito desse processo fiscal pelo art. 244º, nº2, do CPPT, devendo prosseguir a execução comum, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos, a Relação, naquele acórdão, julgou procedente a apelação e revogou o despacho impugnado, determinando que este fosse substituído por outro despacho que ordenasse o levantamento da sustação da execução tendo em vista a venda do imóvel penhorado, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos.

Também aqui nestes autos a questão se reconduz a saber se a sustação da execução a que alude o disposto no artigo 794º do CPC pode ocorrer numa situação em que o bem penhorado o tenha sido igualmente no âmbito do processo de execução fiscal que não prosseguiu para a venda do bem atenta a sua natureza (habitação própria e permanente do executado) ou se pelo contrário, como propugna a recorrente, o despacho recorrido que a ordenou deve ser revogado e substituído, por decisão que ordene o levantamento da sustação da execução e admita o prosseguimento dos autos com as diligências de venda do imóvel penhorado, com a citação da AT para, querendo, vir reclamar créditos, prosseguindo os autos os seus normais trâmites processuais.

A controvérsia nos Tribunais da Relação (no Supremo não existe) sobre a questão tem como eixo central a interpretação do art. 794º do CPC e do art. 244º, nº 2 do CPPT.

Dispõe o art. 794º do CPC:

“1 - Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga. [destaque nosso]

2 - Se o exequente ainda não tiver sido citado no processo em que a penhora seja mais antiga, pode reclamar o seu crédito no prazo de 15 dias a contar da notificação de sustação; a reclamação suspende os efeitos da graduação de créditos já fixada e, se for atendida, provoca nova sentença de graduação, na qual se inclui o crédito do reclamante.

3- Na execução sustada, pode o exequente desistir da penhora relativa aos bens apreendidos no outro processo e indicar outros em sua substituição.

4 - A sustação integral determina a extinção da execução, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 850.º.”

Por sua vez, o art. 244º do CPPT, na redacção introduzida pela Lei n.º 13/2016, estabelece:

«1 - A venda realiza-se após o termo do prazo de reclamação de créditos.

2 - Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim. [destaque nosso]

(…)”

Em conformidade, o art. 219º, nº 5, do CPPT, na mesma redacção introduzida pela Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, dispõe:

“A penhora sobre o bem imóvel com finalidade de habitação própria e permanente está sujeita às condições previstas no artigo 244.º.”

Encurtando razões, não vemos motivos para divergir da orientação até agora consensual do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que a venda do bem (casa de habitação própria e permanente) prioritariamente penhorado em execução fiscal (parada por motivo legal) deve ser feita, a requerimento do credor, em execução comum, onde o bem foi posteriormente penhorado.

Para melhor esclarecimento, transcreve-se o seguinte excerto do acórdão deste Supremo de 2.6.2021, proc. 5729/19.7T8LRS-A.L1.S1, a cujos argumentos se adere:

“(…) No acórdão recorrido, alinhando-se as teses em confronto sobre esta matéria, optou-se por aquela que é adoptada no citado Ac. do STJ de 23/01/2020 e que no respectivo sumário, vem sintetizada pela seguinte forma:

«II. A ratio legis da norma do artigo 794º, nº 1 do Código de Processo Civil, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de proteção tanto do devedor executado como dos credores exequentes, postula que ambas as execuções se encontrem numa relação de dinâmica processual ou, pelo menos, a possibilidade do dinamismo da execução em que primeiramente ocorreu a penhora sobre o mesmo bem e em que o credor deve fazer a reclamação do seu crédito.

III. Não está nessa situação de dinamismo processual a execução fiscal em que a Autoridade Tributária está impedida, nos termos do disposto no artigo 244º, nº 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, de promover a venda do imóvel penhorado por este constituir a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar.

IV. Tendo sido suspensa, nos termos do disposto no artigo 794º, nº1 do Código de Processo Civil, a execução comum em que foi penhorado imóvel do executado destinado exclusivamente a sua habitação própria e permanente e do seu agregado familiar e sobre o qual incide penhora com registo anterior realizada em execução fiscal e encontrando-se esta execução parada por a Autoridade Tributária não poder promover a venda deste imóvel, em virtude do impedimento legal constante do artigo 244º, nº 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, impõe-se determinar o levantamento da sustação da execução comum, que deve prosseguir os seus termos, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos na execução comum.» [negrito nosso]

À tese que defende que, não contendo o CPPT uma norma idêntica à prevista no nº 2 do art. 850º do CPC (no qual se estabelece que o credor reclamante, cujo crédito esteja vencido e haja reclamado para ser pago pelo produto de bens penhorados que não chegaram entretanto a ser vendidos nem adjudicados, pode requerer, no prazo de 10 dias contados da notificação da extinção da execução, a renovação desta para efetiva verificação, graduação e pagamento do seu crédito), deverá a lacuna ser suprida por interpretação analógica, de modo a possibilitar que o credor comum promova a venda do bem na execução fiscal, responde-se, no citado Ac. do STJ de 23-01-2020, com outra, que se considera mais sustentada e cujos argumentos vêm resumidos no Ac. da Rel. de Lisboa de 22-10-2019, Proc. nº 2270/07.4TBVFX-B.L1-7, Rel. Luís Filipe Pires de Sousa, publicado em www.dgsi.pt, pelo seguinte modo:

«i.- A ratio legis da norma do art.º 794º, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de proteção tanto do devedor executado, como dos credores exequentes, postula que ambas as execuções se encontrem numa situação de dinâmica processual;

ii.- Atento o teor taxativo do nº2 do art. 244º do CPPT (“não há lugar à realização de venda”), o credor reclamante não pode prosseguir com a execução fiscal sustada, nomeadamente requerer o prosseguimento da execução e diligências de venda, a qual está legalmente impedida no âmbito desse processo fiscal, independentemente de ser requerida por qualquer credor comum;

iii.- O CPPT não prevê o prosseguimento da execução fiscal por impulso dos credores reclamantes, não tem norma equivalente ao art. 850º, nº 2, do Código de Processo Civil;

iv.- Estando suspensa a execução fiscal, não pode funcionar o regime previsto no art.º 794º, nº 1, que tem como pressuposto a ausência de qualquer impedimento legal ao prosseguimento normal da execução fiscal e venda do bem penhorado;

v.- O art.º 244º do CPPT encontra-se inserido na Secção VIII, sob a epígrafe “Da convocação dos credores e da verificação dos créditos”, o que constitui um elemento sistemático de interpretação que não pode ser ignorado, donde se infere que nada vale reclamar na execução fiscal o crédito se a sua satisfação só poderia ser obtida pela venda do imóvel hipotecado, venda que está expressamente interdita na execução fiscal.

vi.- A regra da preferência resultante da penhora (art. 822º do Código Civil) não pode impedir a venda do imóvel no processo onde a penhora é posterior, visto que a Autoridade Tributária pode reclamar o seu crédito nesta execução (art. 786º), sendo o seu crédito graduado no lugar que lhe competir.» [negrito nosso]

No dito Ac. do STJ de 23-01-2020, considera-se que:

«(…) no confronto destas duas correntes, temos por certo ser na primeira das teses que se erguem maiores obstáculos no alcance de um maior equilíbrio entre a salvaguarda do direito à habitação do cidadão (devedor fiscal) e da respetiva família, consagrado no art. 65º da Constituição da República Portuguesa e a tutela dos direitos dos credores comuns deste devedor a obterem a satisfação dos seus créditos, decorrente do direito de propriedade privada constitucionalmente garantido no art. 62º, nº 1 da CRP.

E estas dificuldades surgem dadas as especificidades da reclamação de créditos no processo de execução fiscal.»

E, entre o mais que aqui se dá por reproduzido, nele se cita o Ac. da Rel. De Guimarães de 30-05-2019, proc. 2677/10.0TBGMR.G1, Rel. Alcides Rodrigues, publicado em www.dgsi.pt, aresto no qual se observa, a dado passo, que:

«(…) a prática vivenciada nas execuções fiscais contraria o sentido útil do entendimento que pugna pela imposição da reclamação de créditos no processo de execução fiscal (com penhora prioritária), posto que tem vindo a ser defendido que constituiria uma flagrante ilegalidade a Autoridade Tributária proceder à venda na execução-fiscal do imóvel que constitua casa de morada de família, ainda que a coberto do concurso de credores (cfr. art. 8º, n.º 2, al. e) da LGT)». [realce nosso]

Encontra-se, ainda no referido Acórdão do STJ de 23-01-2020, a chave para a resolução da questão na interpretação a dar ao nº 1 do art. 794º do CPC, com recurso aos ensinamentos de Alberto dos Reis, que explicava, a propósito do 871º do anterior Código de Processo Civil, que «o que a lei não quer é em processos diferentes se opere a adjudicação ou a venda dos mesmos bens; a liquidação tem de ser única e há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar» (Processo de Execução, Vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 287). E mais se vinca, com apoio do Ac. da Rel. do Porto de 11-10-2004, Proc. 0454742, Rel. Fonseca Ramos, em www.dgsi.pt, que:

«(…) da ratio legis do preceito, a que subjazem razões de certeza jurídica e protecção, quer do devedor executado, quer do(s) credor(es) exequente(s), resulta que, para que o preceito tenha conteúdo útil, a 1ª execução deva estar, senão em movimento (poder-se-á, por exemplo, questionar se a 1ª execução, parada por inércia do exequente, admite a reclamação), pelo menos, esteja em fase processual de onde a sua prossecução seja possível, à luz da tramitação processual prevista.

Assim, a execução mais antiga, [onde o credor-exequente que instaurou a 2ª execução, dever ir reclamar os seus créditos em virtude da sustação] tem de estar em posição de poder prosseguir.»

Na mesma linha, no Ac. do STJ de 09-06-2005, Proc. 05B1358, Rel. Araújo de Barros, publicado em www.dgsi.pt, escreveu-se:

«Na verdade, o preceituado no art. 871º "não se inspira em razão de economia processual, visto que não se manda atender ao estado em que se encontram os processos; susta-se o processo em que a penhora se efectuou em segundo lugar, ainda que a execução respectiva tenha começado primeiro e ainda que esteja mais adiantada do que aquela em que precedeu a penhora. O que a lei não quer é que em processos diferentes se opere a adjudicação ou a venda dos mesmos bens; a liquidação tem de ser única e há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar". (…)

Ora, da ratio legis do preceito, a que subjazem razões de certeza jurídica e protecção, quer do devedor executado, quer do credor exequente, resulta que, para que o preceito tenha conteúdo útil, a execução em que foi efectuada a penhora mais antiga deva estar, senão em movimento, pelo menos em fase processual de onde a sua prossecução seja possível, à luz da tramitação processual prevista.

Consequentemente, essa execução (onde o credor/exequente que instaurou a execução em que se procedeu à penhora mais recente deve ir reclamar os seus créditos em virtude da sustação) tem de estar em posição de poder prosseguir, já que a lei, ao conferir a possibilidade de reclamação do crédito, ao abrigo do artigo 871º, nº 1, do Código de Processo Civil, na execução em que primeiramente ocorreu a penhora sobre os mesmos bens, pretende que se pondere a relação dinâmica de ambas as execuções ou, quando muito, a possibilidade de dinamismo daquela em que ocorreu a penhora mais antiga. (…)

Pretendeu o legislador, em nosso entender, aproveitar o decurso de duas execuções em plena actividade na sua tramitação e onde foi penhorado o mesmo bem, remetendo o modo de pagamento coercivo da obrigação para aquele processo que maior funcionalidade e maior comodidade concede ao exequente e sem causar dano ao executado.

Por isso é que só se justificará a reclamação do crédito exigido na execução sustada, desde que a execução para onde se remete a reclamação desse crédito esteja em condições de poder efectivar, com a usual normalidade, esta assinalada prerrogativa do credor exequente.»

Não podendo proceder-se à venda na execução fiscal, dado o disposto no art. 244º, nº2, do CPPT, por estar em causa a casa de morada de família do Executado, não estando, pois, essa execução em condições de salvaguardar o direito do exequente comum a ver aí efectivado o seu crédito, considera-se que deve prosseguir a execução que havia sido sustada, na qual poderá a Fazenda Pública reclamar os seus créditos, a serem graduados no lugar que lhes competir. (…) “[destaque nosso]

Condensando os argumentos atrás expostos, o relator do acórdão de 2.6.2012 elaborou o respectivo sumário da seguinte forma:

“I. De acordo com o disposto no nº 2 do art. 244º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), não ocorrendo alguma das excepções previstas nos nºs 3 e 6 do mesmo artigo, não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efectivamente afecto a esse fim.

II. Se um imóvel, nessas condições, tiver sido objecto de penhora, primeiro numa execução fiscal e depois numa execução comum, esta não deve ser suspensa, nos termos do n.° 1 do art.° 794.° do CPC, sendo a Fazenda Pública citada para nela reclamar os seus créditos.

III. A ratio legis da norma do artigo 794º, nº 1 do Código de Processo Civil, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de protecção tanto do devedor executado como dos credores exequentes, vai no sentido de que ambas as execuções se encontrem numa relação de dinâmica processual ou, pelo menos, que se verifique a possibilidade de prossecução daquela em que a penhora for mais antiga, o que não acontece com a execução fiscal, face ao impedimento decorrente do mencionado art. 244º, nº 2, do CPPT.”

Dentro da mesma orientação, pode ver-se o Ac. STJ de 14.12.2021, proc.906/18.0T8AGH.L1.S1, em www.dgsi.pt:

“I- Por força do disposto no nº 2, do art.º 244º, do CPPT (Código de Processo e de Procedimento Tributário), quando a penhora incidiu sobre imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar, a Administração Fiscal não pode promover a venda desse bem.

II - Assim como não pode promover a venda nesse processo, um credor (exequente em execução comum sustada nos termos do art. 794º do CPC) que nesse processo tenha reclamado o seu crédito. [destaque nosso]

III - Verificar-se-á um cerceamento dos direitos do credor exequente o “obrigá-lo” a reclamar o seu crédito em execução (comum ou fiscal) que se encontra suspensa por período temporal superior a 10 anos, na sequência de acordo de pagamento.

IV - A razão da norma do artigo 794º, nº 1 do CPC, prevenindo a certeza jurídica de que apenas se verifica uma adjudicação ou venda relativamente ao mesmo bem, também implica que se verifique a possibilidade de prossecução normal da execução em que a penhora for mais antiga, o que não acontece em execução suspensa por longo período temporal como o é um período de mais de 10 anos, assim como não acontece em execução fiscal, quando se verifica o impedimento decorrente do art. 244º, nº 2, do CPPT. “

E o Ac. STJ de 13.10.2022, proc. 639/21.0T8SRE-A.C1.S1:

“I:-O disposto no art.º 244.º n.º2 do CPPT, na redacção introduzida pela Lei n.º 13/2016 de 23 de Maio, aplicável exclusivamente à execução fiscal, estabelece que não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afecto a esse fim.

II – Conjugando a norma em causa com a do art.º 794.º n.º1 do CPCiv, “execução pendente”, para efeitos do disposto nesse art.º 794.º n.º1 do CPCiv, é aquela que se encontra a correr os seus termos normais, opondo-se à execução que não chegou ao pagamento da quantia exequenda, nem se perspectiva que o possa ser, na vigência da lei que lhe é aplicável – designadamente, a execução fiscal parada, por impossibilidade de venda do bem, enquanto habitação própria e permanente do devedor.

III - O art.º 794.º n.º1 do CPCiv não é de aplicar à execução onde, num primeiro momento, se verificou a penhora de bem idêntico, mas que, posteriormente, ficou parada pela proibição, imposta por lei, da venda do bem penhorado – nesse caso, a execução que ficou sustada, à luz da norma do art.º 794.º n.º1 do CPCiv, deve prosseguir os respectivos termos.”

Esta orientação jurisprudencial, a que se adere, tem, também, a concordância de Lebre de Freitas e outros, em CPC anotado, volume 3º, 3ª edição, pág. 721 e Abrantes Geraldes e outros, em CPC anotado, volume II, 2020, págs 208 a 210.

Considerando-se, assim, que o acórdão recorrido não fez a adequada interpretação do art. 794º, nº 1, do CPC, em conjugação com o disposto no art. 244º, nº 2 do CPPT, é de concluir pela procedência da revista,

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível em conceder a revista, revogar o acórdão recorrido e determinar o levantamento da sustação da execução, admitindo-se o prosseguimento dos autos com as diligências de venda do imóvel penhorado, com a citação da AT para, querendo, vir reclamar créditos.

Sem custas.


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Lisboa, 31 de Outubro de 2023

António Magalhães

Pedro Lima Gonçalves

Maria João Vaz Tomé