Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1/20.2T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DO RECORRENTE
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PROCESSO EQUITATIVO
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
No caso dos autos, e de acordo com um critério de razoabilidade, a rejeição liminar do recurso de impugnação de facto desrespeita o princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º, n.os 2 e 3, da CRP, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4, da CRP.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. Valart, Lda. e AA intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Auto Manaiacar, S.A., alegando

- Que o A. AA, por intermédio de seu pai, adquiriu à A. side loaders, que se destinavam a ser exportados para ...;

- Que foi necessário adquirir veículos pesados para serem instalados os side loaders;

- Que AA adquiriu um desses veículos à R.;

- Que quando o veículo chegou ao porto de ..., onde teria lugar o embarque, se constatou que o veículo, atenta a sua idade, não poderia ser exportado;

- Que a R. transportou o veículo para as instalações da A.;

- Que volvidos alguns anos, em 2015, o veículo foi vendido à F...; Lda.;

- Que, quando iniciou os procedimentos para legalização da viatura (que ainda tinha matrícula francesa), constatou que os documentos do veículo não estavam no seu interior;

- Que se constatou que os documentos tinham sido enviados pelo despachante à R.;

- Que esta, apesar de saber que o veículo tinha sido, entretanto, vendido, e apesar de várias vezes interpelada para o efeito, não entregou os documentos do veículo, só o tendo feito no âmbito de um processo crime contra si movido;

- Que a F...; Lda. intentou acção contra a Valart, invocando incumprimento e resolução do negócio;

- Que, no âmbito dessa ação, a Valart veio a ser condenada a devolver à F...; Lda. o preço de €20.000,00, a pagar a título de indemnização €5.000,00 e ainda no que se liquidasse;

- Que foi a atuação da R., de não devolução dos documentos ao A. AA, que levou a que o negócio de nova venda do veículo ruísse.

Pedem que a R. seja condenada a pagar à A.:

- Por via do direito de regresso, €25.000,00 liquidados na sentença do processo cível e ainda no que resultar da liquidação, crendo-se que venha a ser pelo menos €125.000,00, e, ainda, em todas as quantias que, eventualmente, se venham a liquidar em montante superior;

- Em juros de mora desde, pelo menos, a data da interpelação para entrega dos documentos.

A R. contestou, arguindo a ineptidão da petição inicial, pelo menos no que se refere ao A. AA, por falta de pedido.

Alegou:

- Que, pelo facto de a viatura se destinar à exportação, estava isenta de IVA;

- Que os documentos se extraviaram, tendo pedido segunda via dos mesmos;

- Que, como a exportação para ... não se veio a concretizar, o comprador teria de liquidar e de lhe entregar o IVA devido;

- Que foi notificada para entrega dos documentos, no âmbito de processo crime, o que fez, requerendo que os documentos só fossem entregues ao A. e comprador AA, contra o pagamento do IVA referente à venda do veículo;

- Que, logo que soube que o direito à liquidação do IVA devido pela R. se encontrava caducado, requereu a entrega dos documentos ao A. AA, sendo que a A. só pediu o seu levantamento cinco meses depois.

Concluiu pedindo que a petição fosse considerada inepta em relação ao A. AA por falta de pedido e que a acção seja julgada improcedente em relação à A. Valart.

A A. apresentou resposta, pugnando pela improcedência da excepção de ineptidão da petição inicial.

Foi apresentada petição inicial aperfeiçoada, sendo que, na contestação apresentada, a R. pediu a condenação da A. como litigante de má fé.

Foi realizada audiência prévia, com elaboração de despacho saneador que julgou procedente a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial no que se refere ao A. AA, absolvendo a R. da instância, nessa parte.

Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente, condenando a R. a pagar à A.:

- €5.000,00, acrescidos de juros legais contados desde a citação até efectivo e integral pagamento;

- A quantia que a A. vier a pagar à F...; Lda., fruto da liquidação a efectuar da sentença proferida no âmbito do processo 1634/17.0..., nos termos descritos no ponto 34 dos factos provados.

Julgou-se não verificada a existência de litigância de má fé.

2. Inconformada, a R. interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão da matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 20-01-2023 foi rejeitado o conhecimento da impugnação da matéria de facto e, a final, proferida decisão de improcedência do recurso e de confirmação da decisão recorrida.

3. Novamente inconformada, interpôs a R. recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando conclusões que, pela sua excessiva extensão (112 conclusões) e pelo seu carácter repetitivo, aqui não se reproduzem.

4. Não foi apresentada resposta.

5. O recurso não foi admitido pelo relator do tribunal a quo com fundamento em verificação do obstáculo da dupla conforme entre as decisões das instâncias.

6. Desta decisão reclamou a Recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do art. 643.º do Código de Processo Civil, a qual, por decisão da relatora deste Supremo Tribunal, veio a ser decida nos termos seguintes:

«1. Ao abrigo do art. 643.º do Código de Processo Civil, Auto Manaiacar, S.A. veio apresentar reclamação do despacho de não admissão do recurso de revista com fundamento na verificação de dupla conforme entre as decisões das instâncias, alegando essencialmente que o recurso deve ser admitido porque o seu objecto não se encontra abrangido pela dupla conformidade de decisões. Alega, mais concretamente, que estão em causa as seguintes questões:

«A) admissibilidade da revista quando se reage contra o não uso ou uso deficiente dos poderes do tribunal da relação sobre a matéria de facto

B) admissibilidade da revista por erro na apreciação da prova por ofensa de Disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova

C) da nulidade da douta sentença por violação do princípio do contraditório (decisão-surpresa)». [negrito nosso]

Termina pedindo que a reclamação seja julgada procedente e, em consequência, seja admitido o recurso de revista interposto pela recorrente.

Não houve resposta.

Cumpre apreciar.

2. Na presente reclamação está em causa saber se a dupla conforme entre as decisões das instâncias, impeditiva da admissibilidade do recurso de revista (cfr. art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), se encontra, no caso concreto, descaracterizada pelo facto de as questões suscitadas pela recorrente, ora reclamante, corresponderem à alegação da violação de disposições processuais no exercício dos poderes do Tribunal da Relação relativamente à reapreciação da decisão de facto, atendendo a que, de acordo com a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, tais questões não se encontram abrangidas pela dupla conformidade, sendo o recurso de revista admissível para efeito de conhecimento das mesmas.

Compulsado o teor das conclusões formuladas pela recorrente, confirma-se que as questões suscitadas foram correctamente elencadas em sede de reclamação, de acordo com a transcrição feita no ponto 1. da presente decisão. Verifica-se ainda que a primeira das questões enunciadas (reacção contra «o não uso ou uso deficiente dos poderes do tribunal da relação sobre a matéria de facto») corresponde às conclusões recursórias 1) a 13), nas quais a recorrente se insurge contra o acórdão recorrido na parte em que o tribunal a quo entendeu «que o recurso de apelação não cumpriu os ónus exigidos para a impugnação da decisão da matéria de facto previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil».

Ora, das três questões enunciadas, essa primeira questão corresponde, efectivamente, à alegação da violação de disposição processual no exercício dos poderes do Tribunal da Relação relativamente à reapreciação da decisão de facto, descaracterizando a dupla conforme entre as decisões das instâncias.

Porém, nem a invocação da violação de normas legais de direito probatório nem a invocação da violação pela 1ª instância do princípio do contraditório, sendo questões que não respeitam especificamente ao exercício dos poderes do Tribunal da Relação, permitem que se considere descaraterizada a dupla conforme.

Assim sendo, a reclamação deve ser deferida, sendo o recurso de revista de admitir, circunscrito, porém, à apreciação da questão da correcção do acórdão recorrido ao interpretar e aplicar as exigências do art. 640.º do CPC.

3. Pelo exposto, e de acordo com a referida orientação da jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, o recurso é admissível, circunscrito, porém, à apreciação da questão da correcção do acórdão recorrido ao interpretar e aplicar as exigências do art. 640.º do Código de Processo Civil.».

7. Do despacho da relatora acima transcrito, veio a Recorrente impugnar para a conferência, invocando que o recurso seja admitido para conhecimento de todas as questões suscitadas pela Recorrente.

Por acórdão da conferência de 14.09.2023 a impugnação foi indeferida.

II – Objecto do recurso a apreciar

De acordo com o decidido anteriormente, a única questão a apreciar é a seguinte:

• Da violação por parte do tribunal recorrido do regime adjetivo consagrado no art. 640.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC, ao ter rejeitado o recurso da matéria de facto interposto pela R. apelante com fundamento em incumprimento dos ónus previstos em tais disposições.

III – Fundamentação de facto

1 - A Ré Auto-Manaiacar vendeu a viatura Volvo, matrícula ....TQ.. a AA

AA, pelo preço de € 35.000,00, venda esta que ocorreu a 19/05/2010.

2 - Tal viatura destinava-se a ser exportada para ....

3 - Na data da venda a Auto-Manaiacar entregou ao comprador AA os documentos do veículo.

4 - Que os remeteu ao despachante para que a viatura fosse exportada para ....

5 - Não tendo o veículo sido exportado para ..., o negócio de aquisição do mesmo passou

a ser tributado com IVA.

6 - Após a frustração da exportação do veículo adquirido, AA, que não tinha qualquer interesse no veículo, decidiu vender o mesmo, pedindo à Valart que intermediasse a venda.

7 - Assim, ficou aquele veículo nas instalações da Autora Valart a aguardar que aparecesse alguém interessado.

8- Em data não concretamente apurada, a F...; Lda. negociou com a Valart a aquisição do veículo automóvel referido em 1 que destinava a rebocar uma máquina de trituração de resíduos para produção de biomassa e retirar o produto dessa máquina e colocá-lo em veículos de transporte, de que necessitava para o seu comércio.

9 - A F...; Lda. e a Valart acabaram por acertar a compra e venda desse veículo pelo preço de 20.000 €, pagamento que a Autora fez integralmente entregando à Ré, em Junho de 2015, cheques, sacados sobre o Banco Popular, cada um no valor de 5.000 €, que a Ré descontou em Junho, Julho, Agosto e Setembro desse ano, com os números ........94, ........91, ........88 e ........85.

10 - A F...; Lda. adquiriu uma grua para manuseamento e carregamento do material para produção de biomassa, abastecimento da máquina de trituração e acondicionamento e mandou montá-lo no veículo pesado que adquirira

11 - Após a realização do negócio referido em 8 e 9, no decurso de 2015, a Valart iniciou diligências para a transferência da propriedade da viatura verificando, então, que os documentos não se encontravam dentro da mesma.

12 - Pelo que os solicitou ao AA que lhe havia entregue a viatura.

13 - Foi informado por este que os documentos se encontravam com o despachante, pois, tal viatura tinha sido adquirida por si para ser exportada para ..., pelo que remetera os documentos para um despachante.

14 - O legal representante da Valart contactou com a empresa despachante, tendo a mesma transmitido que, como o veículo não tinha sido exportado para ..., os documentos do mesmo tinham sido enviados para a Sociedade Auto-Manaiacar, Lda, por ser esta a vendedora da viatura.

15 - O legal representante da Autora contactou a Auto-Manaiacar, Lda., para proceder à entrega dos documentos do veículo.

16 - Esta informou que não tinha quaisquer documentos daquele veículo, e, mais tarde, disse que poderia obter uma segunda via daqueles em ....

17 - Finalmente, informou que apenas entregaria os documentos contra o pagamento do valor de 5.000,00 €.

18 - O AA, através do seu pai, que em seu nome intermediara o negócio referido em 1, informou a Autora de que todo o preço de aquisição da viatura fora por si liquidado.

19 - O pai do Autor AA dirigiu-se em data não concretamente apurada às instalações da Auto-Manaiacar, onde foi atendido pelo funcionário BB que lhe transmitiu que iriam entregar os documentos à Ré numa semana.

20 - Também o próprio representante da F...; Lda., sabendo que os documentos se encontravam nas instalações da Manaiacar lá se deslocou, solicitando a entrega dos documentos.

21 - A Auto-Manaiacar, Lda nunca entregou tais documentos à Ré, entregando-os apenas nas circunstâncias descritas em 25.

22 - A Ré sabia que a Valart tinha vendido a viatura à F...; Lda..

23 - A Valart nunca entregou à F...; Lda., a documentação da viatura apesar das inúmeras insistências desta.

24 - O legal representante da Valart apresentou, na qualidade de representante de AA, a 28 de Janeiro de 2016 participação criminal contra o legal representante da Auto-Manaiacar imputando-lhe a recusa de entrega desses documentos.

25 – A Auto-Manaiacar foi notificada, na pessoa do seu Administrador, para entregar os documentos do veículo no processo-crime que corre os seus termos sob o nº 142/16.0... da 2ª Secção do DIAP de ..., tendo procedido a tal entrega a 15 de Março de 2017 e requerendo que os documentos só fossem entregues ao denunciante e comprador AA contra o pagamento do IVA referente à venda do veículo, correspondente a 23% de € 35.000,00, que perfaz a quantia de € 8.050,00.

26 - Correu termos entre a F...; Lda. como Autora e a Valart Lda, como Ré, a acção 1634/17.0..., e em que interveio acessoriamente a aqui Ré Auto-Manaiacar Lda, pedindo a resolução do contrato referido em 8 e 9 e uma indemnização pelos prejuízos sofridos.

27 - Tal acção foi interposta a 16 de Maio de 2017.

28 - A 16 de Janeiro de 2018 encontrava-se marcada audiência prévia, no âmbito do processo identificado em 1, tendo a mesma sido suspensa, a requerimento das partes, tendo em vista um eventual acordo.

29 - No dia 17 de Abril de 2018, ocorreu nova audiência prévia, com elaboração de despacho saneador e marcação de julgamento

30 - No dia 17 de Abril de 2018, a Auto Manaiacar, SA endereçou ao processo 1634/17.0... um requerimento com o seguinte conteúdo, do qual deu conhecimento à ilustre mandatária da aí Ré (Valart): “Auto Manaiacar, SA, interveniente nos autos à margem referenciados, tendo tomado conhecimento, hoje mesmo, na audiência prévia dos presentes autos, que a Autoridade Tributária informou o processo de inquérito n.º 142/16.0..., a correr termos pela 2º secção do DIAP junto deste Tribunal que o direito à liquidação sobre o IVA devido pela Auto Manaiacar, SA, já se encontra caducado, (…) vem, para os devidos efeitos, informar os presentes autos que requereu ao Digníssimo Representante do Ministério Público a entrega dos documentos ao denunciante, por já não subsistirem as razões cautelares anteriormente alegadas pelo interveniente.

31 - No dia 17 de Abril de 2018, CC, administrador da Manaiacar endereçou ao processo de inquérito 142/16.0..., onde era arguido um requerimento com o seguinte conteúdo: “(…) tendo tomado conhecimento, hoje mesmo, do ofício da Autoridade Tributária em que declara que o direito à liquidação sobre o IVA devido pela Auto Manaiacar já se encontra caducado (…), vem dizer que, face à posição assumida pela Autoridade Tributária, requer a V. Exa que proceda à entrega dos documentos ao denunciante, por já não subsistirem as razões cautelares anteriormente alegadas pelo signatário”

32 - A Direcção Distrital de Finanças de ..., por intermédio do Exmo Sr Dr DD, informara o processo crime de inquérito referido em 24 que o direito à liquidação do IVA devido pela Ré, por força da venda do veículo dos autos, já se encontrava caducado, por ofício que deu entrada no referido processo crime a 07 de Março de 2018.

33 - Por requerimento de 18 de Setembro de 2018 AA veio requerer, no processo de inquérito 142/16.0..., que os documentos relativos à viatura lhe fossem entregues, o que foi ordenado por despacho de 25 de Outubro de 2018.

34 - Na identificada acção n.º 1634/17.0..., por sentença de 20 de Outubro de 2018 foi:

a) Declarada a resolução do contrato de compra e venda do veículo pesado com a matrícula 8159TQ73 celebrado entre a F...; Lda. e a Valart Lda e condenadas:

i. A Valart a devolver à F...; Lda. o respectivo preço de 20.000,00 €

ii. A F...; Lda. a devolver à Valart o referido veículo sem a grua que nele acoplou

Condenada a Valart a pagar à F...; Lda. a título de indemnização:

i. a quantia de 5.000,00€ destinados a custear o desmonte da grua;

ii. a quantia a liquidar em execução de sentença destinada a indemnização pela desvalorização da referida grua decorrente do seu não uso desde a sua colocação no veículo adquirido à Valart em Outubro de 2015 e até ao trânsito em julgado da sentença proferida;

iii. quantia a liquidar em execução de sentença destinada a indemnização por gastos acrescidos que a F...; Lda. teve de suportar na sua actividade, desde Outubro de 2015 e até ao trânsito em julgado dessa sentença e que não teria tido caso pudesse ter usado o veículo adquirido com a respectiva grua acoplada, sendo que caso essa quantia seja superior a 20.000 € terá de ser deduzida deste valor.

35 - Neste momento a Autora Valart, Lda. já pagou os montantes correspondentes ao preço de 20.000,00€ e de 5.000,00€, por via do processo executivo que correu termos pelo Juiz 1 do Juízo de Execução de ..., Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro sob o n.º 2374/19.0...

Não se provou que:

a) Fosse a Ré, por intermédio de um seu funcionário, a realizar o transporte do veículo referido em 1 dos factos provados do Porto de ... para as instalações da Valart.

b) Os documentos se tenham extraviado e que a ré não tivesse recebido da despachante, em 2013 os documentos da viatura.

c) Os documentos entregues no âmbito do processo crime sejam uma segunda via dos documentos do veículo.

d) Em reunião realizada na Direcção de Finanças após a audiência prévia de 16 de Janeiro de 2018 fosse referido pelo Sr. Dr. DD que o IVA, caso o veículo não fosse exportado para ... era, face à lei, devido e não mencionasse o facto de o mesmo estar caducado.

III – Fundamentação de direito

1. A Recorrente discorda do acórdão proferido na parte em que este considerou não cumpridos os ónus exigidos para a impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no art. 640.º do CPC.

Segundo o que preceitua o art. 640.º do CPC:

«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».

2. Antes de mais, assinale-se que a jurisprudência deste Supremo Tribunal, na aferição do cumprimento dos ónus consagrados no art. 640.º do CPC, tem adoptado um critério de proporcionalidade e de razoabilidade, propugnando que aqueles ónus pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso.

Esta asserção é comprovada através da consulta dos seguintes acórdãos, que se indicam a título exemplificativo e cujos sumários se transcrevem na parte relevante:

- Acórdão de 04-06-2020 (proc. n.º 1519/18.2T8FAR.E1.S1), disponível em www.jurisprudencia.csm.org

«III - O art. 640.º do CPC estabelece que o recorrente no caso de impugnar a decisão sobre a matéria de facto deve proceder à especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, dos concretos meios probatórios que imponham decisão diversa e da decisão que deve ser proferida, sem contudo fazer qualquer referência ao modo e ao local de proceder a essa especificação.

IV - Nesse conspecto tem-se gerado o consenso de que as conclusões devem conter uma clara referência à impugnação da decisão da matéria de facto em termos que permitam uma clara delimitação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, e que as demais especificações exigidas pelo art. 640.º do CPC devem constar do corpo das alegações.

V - Vem-se, também, defendendo que a apreciação das exigências estabelecidas no art. 640.º do CPC se efectue segundo um critério de rigor que vise impedir que a impugnação da decisão da matéria de facto se banalize numa mera manifestação de inconsequente inconformismo sem, porém, se transmutar num excesso de formalismo que redunde na denegação da reapreciação da decisão da matéria de facto.

VI - A apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no art. 640.º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco.

VII - Tendo o recurso por objecto a impugnação da matéria de facto, não está o recorrente obrigado a proceder, nas conclusões, à reprodução textual do que se impugna, mostrando-se suficiente a mera indicação dos números sob os quais se encontram vertidos os factos impugnados.».

- Acórdão de 10-12-2020 (proc. n.º 274/17.8T8AVR.P1.S1), acessível em www.dgsi.pt:

«I - Na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no art. 640.º do CPC, os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal.

II - Tendo a recorrente identificado, no corpo das alegações e nas conclusões, os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, identificando e transcrevendo parcialmente os depoimentos das testemunhas, em conjugação com a prova documental, que, no seu entender, impõem decisão diversa e retirando-se da leitura das alegações e conclusões, qual a decisão que deve ser proferida a esse propósito, mostra-se cumprido, à luz da orientação atrás referida, o ónus de impugnação previsto no art. 640.º do CPC.».

- Acórdão de 16-12-2020 (Processo n.º 8640/18.5YIPRT.C1.S1), disponível em www.dgsi.pt:

«I - No âmbito do recurso de apelação visando a impugnação da decisão da matéria de facto podem distinguir-se dois ónus que incidem sobre o recorrente: - um ónus principal, consistente na delimitação do objecto da impugnação (indicação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados) e na fundamentação desse erro (com indicação dos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação que impunham decisão diversa e o sentido dessa decisão) – art. 640.º, n.º 1, do CPC; e - um ónus secundário, consistente na indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC.

II - Este ónus secundário não visa propriamente fundamentar e delimitar o recurso, mas sim facilitar o trabalho da Relação no acesso aos meios de prova achados relevantes.

III - O controlo do cumprimento deste ónus secundário deve ser feito pela Relação em termos funcionalmente adequados e em conformidade com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

IV - Não respeita este princípio a decisão da Relação que rejeita a apreciação do recurso sobre a matéria de facto quando – apesar da indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevantes na localização pelo tribunal dos excertos de gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento – como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, tal indicação é complementada com a indicação do início e termo dos depoimentos, com a indicação do início das passagens dos depoimentos com a referência ao tempo de gravação e ainda com a transcrição de excertos desses depoimentos.».

- Acórdão de 08-07-2020, Processo n.º 4081/17.0T8VIS.C1-A.S1, acessível em www.jurisprudencia.csm.org.pt:

«I - A rejeição injustificada da impugnação da matéria de facto pela Relação, com fundamento em inobservância do ónus do art. 640.º do CPC, é uma violação da lei processual que, por ser imputada à Relação, descaracteriza a dupla conforme entre as decisões das instâncias.

II - O critério relevante para apreciar a observância ou inobservância dos ónus enunciados no art. 640.º do CPC há-de ser conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

III - A impugnação da matéria de facto em que o recorrente indica que pretende que sejam dados como provados factos que o tribunal de 1.ª instância dera como não provados, ou em que o recorrente indica que pretende que sejam dados como não provados factos que o tribunal da 1.ª instância dera como provados é uma impugnação que indica a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto suscitadas.

IV - Em tais circunstâncias, a rejeição da impugnação, como fundamento na inobservância do ónus de indicar a decisão que deve ser proferida, não seria adequada, proporcionada ou razoável.».

- Acórdão de 05-02-2020 (proc. n.º 3920/14.1TCLRS.S1), disponível em www.jurisprudencia.csm.org.pt:

«I - O critério relevante para apreciar a observância ou inobservância dos ónus enunciados no art. 640.º do CPC há-de ser um critério adequado à função e conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

II - Os ónus enunciados no art. 640.º do CPC pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido.

III - Face aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a gravidade da consequência prevista no art. 640.º, n.os 1 e 2 do CPC – rejeição do recurso ou rejeição imediata do recurso – há-de ser uma consequência adequada, proporcionada e razoável considerando a gravidade da falha do recorrente.

IV - A rejeição do recurso por inobservância do ónus secundário de facilitação do acesso aos meios de prova gravados deve restringir-se aos casos em que a inobservância do ónus secundário dificulta gravemente a actuação ou exercício do contraditório pelo recorrido ou a decisão do recurso pelo tribunal.».

- Acórdão de 11-02-2021 (proc. n.º 4279/17.0T8GMR.G1.S1), acessível em www.dgsi.pt:

«I - O respeito pelas exigências do n.º 1 do art. 640.º do CPC tem de ser feito à luz do princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, princípio que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4, da Constituição.

II - No caso dos autos, afigura-se que o fundamento de rejeição da impugnação de facto é excessivamente formal, já que a substância do juízo probatório impugnado se afigura susceptível de ser apreendida, tendo sido, aliás, efectivamente apreendida pelos apelados ao exercerem o contraditório de forma especificada.

III - Trata-se de uma acção relativamente simples, com um reduzido número de factos provados e de factos não provados, em que a pretensão dos réus justificantes é facilmente apreensível e reconduzível aos factos por si alegados para demonstrarem a usucapião e que encontram evidente ou imediato reflexo nos factos não provados que pretendem que sejam reapreciados, factos esses correspondentes, em grande medida, à matéria objecto da escritura de justificação.

IV - Assim sendo, a necessidade de respeitar o referido princípio, constitucionalmente fundado, da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual determina a anulação do acórdão recorrido, devendo os autos baixar ao tribunal a quo para apreciação da impugnação da matéria de facto, de acordo com os parâmetros enunciados, e subsequente julgamento de direito em conformidade.».

3. No caso sub judice, mostra-se oportuno trazer à colação a distinção que tem sido realizada entre a exigência de preenchimento dos requisitos previstos nas alíneas do n.º 1 do art. 640.º do CPC, que integram o que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem denominado de ónus primário, «na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto», e «a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do n.º 2 do mesmo art. 640.º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida» (na formulação do acórdão de 21-03-2019, proc. n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2), disponível em www.dgsi.pt.

Como se explicita neste último aresto, «enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.».

Na situação em apreço, o acórdão recorrido começou por apreciar se, no âmbito da análise da impugnação da decisão da matéria de facto, seria de dar como não provado o segmento final do facto n.º 20 (que apresenta a seguinte redacção: «Também o próprio representante da F...; Lda., sabendo que os documentos se encontravam nas instalações da Manaiacar lá se deslocou, solicitando a entrega dos documentos»), segmento esse atinente à “solicitação da entrega dos documentos”.

A este propósito, após fazer menção de que a aí apelante alegou «que o depoimento de parte e os depoimentos das testemunhas: EE, FF, GG, HH, BB, II, bem como os documentos juntos sob os nºs 4, 5 e 12 com a petição inicial, impunham decisão diversa», o tribunal a quo entendeu que não foram cumpridos os formalismos relativos à impugnação da matéria de facto, já que a apelante se cingiu «a remeter genericamente para os depoimentos das testemunhas, identificando-os no seu todo, e para os documentos, sem qualquer análise crítica e sem sopesar a prova indicada pelo tribunal a quo como tendo constituído o fundamento da decisão».

É certo que, depois destas considerações, o Tribunal da Relação tomou em consideração o depoimento da testemunha HH, considerando que a mesma «depôs de forma inequívoca. Esta testemunha afirmou ter enviado os documentos para a R., por correio registado, que não foi devolvido e confirmou o teor do documento correspondente». Ora, não obstante ter omitido uma expressa declaração no sentido da rejeição do recurso atinente à matéria de facto, do ponto de vista material tal rejeição não deixou de ocorrer quanto à integralidade da impugnação, considerando que o Tribunal da Relação não examinou, tal como prescrito pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC, os meios de prova indicados pela apelante como aptos a fundar uma decisão probatória diversa.

Equivale isto a dizer que a Relação recusou a reapreciação da decisão proferida a respeito do ponto 20) da factualidade assente com base em dois fundamentos: (i) omissão de indicação das passagens relevantes de cada depoimento (o que se reconduz ao incumprimento do ónus consagrado no art. 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC); e (ii) omissão de análise crítica dos meios de prova indicados para sustentar a impugnação (o que corresponde ao inadimplemento do ónus a que respeita a alínea b) do n.º 2 daquela disposição).

Ora, compulsado o teor das conclusões das alegações de recurso de apelação, constata-se que a recorrente, no que concerne ao segmento do ponto 20) dos factos provados, indicou qual a decisão que, em seu entender deveria ser proferida quanto à matéria impugnada, assim como os concretos meios probatórios – depoimento de parte, depoimentos das testemunhas EE, FF, GG, HH, BB e II e documentos n.ºs 5 e 12 da petição inicial – que impunham decisão diversa da adoptada pela sentença apelada (cfr. pontos 9) a 11) das conclusões).

Não se prestando a controvérsia que a apelante deu cumprimentos aos ónus, de natureza primária, constantes das três alíneas do n.º 1 do art. 640.º do CPC, apreciemos se a mesma deu cabal cumprimento aos ónus qualificados como sendo de natureza secundária.

Ainda em sede de conclusões de recurso, os depoimentos testemunhais em causa foram identificados com indicação do dia da sessão de julgamento em que foram prestados, do ficheiro de que consta a respectiva gravação e das horas e tempo de duração, tal como ficou exarado em acta.

No corpo das suas alegações, a apelante indicou o início e o termo, no que se refere às gravações efectuadas, de cada depoimento testemunhal, descreveu o conteúdo dos documentos n.ºs 5 e 12 juntos com a petição inicial e tentou infirmar o juízo probatório efectuado pela decisão da 1.ª instância ao tecer as seguintes considerações: «Entende a recorrente, com o devido respeito, que muito é, que este facto não devia ter sido dado como provado. O Tribunal a quo fundou a sua convicção no depoimento de FF, legal representante da F...; Lda. que relatou a sua deslocação à Auto Manaiacar, referindo ter falado com um funcionário dessa empresa que identificou como Sr BB. Ora, do depoimento de FF não resulta que ele tenha pedido a entrega dos documentos. Resulta, parece-nos, que se deslocou à Auto Manaiacar para saber se os documentos lá se encontravam, mas em momento algum referiu que tinha pedido que lhe entregassem os documentos. Na verdade, das concretas passagens das declarações da testemunha, não consta qualquer concreto pedido de entrega de documentos».

Neste seguimento, a apelante deslocou o seu prisma de análise para o teor das declarações de FF, indicando com exactidão as passagens da gravação do depoimento desta testemunha que, em seu entender, se mostravam relevantes (do minuto 2:20 a 7:13, do minuto 7:15 a 9:19, do minuto 9:22 a 9:33) e efectuando um resumo, em nove pontos, dos aspectos de tal depoimento que considerou mais pertinentes para a defesa da sua posição. Após, a apelante contrapôs tal depoimento às declarações da testemunha BB, cuja gravação foi também identificada na parte relevante (passagens do minuto 30:21 a 32:05) e transcrita parcialmente neste segmento. Por fim, a apelante circunstanciou a razão pela qual não se poderia extrair a conclusão de que o representante da F...; Lda., FF solicitara a entrega dos documentos, analisando criticamente a prova, através do cotejo do depoimento deste com o depoimento da testemunha BB e com prova documental, de molde a abalar a credibilidade do primeiro depoimento, à luz das regras da lógica e da normalidade do acontecer. Ora, como se fez notar no acórdão deste Supremo Tribunal de 15-02-2018 (proc. n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1), consultável em www.dgsi.pt, versando a impugnação sobre a credibilidade de depoimentos, há que atentar da «metodologia ou do modo concreto como os depoimentos foram prestados e colhidos em audiência», o que poderá levar ao afastamento da exigência de um minucioso parcelamento das passagens da gravação.

De resto, e ainda que a autora apelada haja alegado o incumprimento pela apelante do ónus de impugnação previsto na alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC, constatamos pela leitura das suas contra-alegações (cfr. pontos 9) a 13) das respectivas conclusões) que o exercício do contraditório quanto à impugnação da decisão proferida a respeito da demonstração da última parte do facto n.º 20 não foi afectado, tendo a mesma afirmado que «o que manifestamente resulta das Doutas alegações da recorrente, é uma distorcida interpretação das provas, centrando-se apenas em alguns trechos descontextualizados, omitindo as partes que se mostram desfavoráveis ao seu juízo de valor, não identificando nenhum erro manifesto de julgamento, mas antes numa diversa opinião (da Recorrente) sobre a apreciação das provas feita pelo Tribunal, ou seja, pretende substituir a convicção formada pelo Tribunal pela convicção que a própria entende que deveria ser a retirada da prova produzida, com base na sua interpretação e na valoração pessoal da mesma». A apelada, no ponto 33.º das suas alegações de recurso, chega mesmo a proceder à transcrição da parte do depoimento da testemunha FF quanto à entrega dos documentos para concluir pela manutenção do teor do ponto 20) no elenco dos factos provados, demonstrando ter apreendido a intenção da apelante de abalar a credibilidade do depoimento de tal testemunha.

Acresce que, no caso, se mostra exígua a latitude da matéria fática visada pela impugnação (tão-só parte de um ponto de facto), não se afigurando longos os depoimentos das testemunhas indicadas – que apresentarão uma duração média de 30 minutos –, pelo que a reapreciação da prova a empreender pelo Tribunal da Relação não avulta como especialmente exigente.

Por conseguinte, a interpretação da norma constante da alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC, na parte em que a mesma exige, sob pena de imediata rejeição do recurso, a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos testemunhais nas quais a apelante fundou a sua impugnação, à luz da sua intencionalidade específica que directamente se funda nos princípios da proporcionalidade e do contraditório, leva-nos a concluir que o tribunal recorrido, através da leitura das conclusões de recurso, de modo integrado com o corpo das respectivas alegações, dispõe dos elementos necessários a, sem esforço inexigível, proceder à localização dos excertos dos depoimentos gravados em que a recorrente fundou o cerne da impugnação da decisão de facto, por forma a decidir o objecto do recurso. Isto, claro está, sem prejuízo dos poderes de indagação oficiosa legalmente atribuídos ao tribunal pelos arts. 5.º, n.º 2, alínea a), 640.º, n.º 2, alínea b), 1.ª parte, e 662.º, n.º 1, todos do CPC (sublinhando este aspecto, cfr. o já referido acórdão deste Supremo Tribunal de 15-02-2018).

Em sentido coincidente ao propugnado, cfr. o acórdão do STJ de 21-03-2019 (proc. n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2), disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado:

«IV -Tendo o recorrente, indicado, nas conclusões das alegações de recurso, o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou indicado o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico e complementado estas indicações com a transcrição, no corpo das alegações, dos excertos dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso, tanto basta para se concluir que o recorrente cumpriu o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos no art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC, nada obstando a que o tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto».

Deste modo – e na linha do que constitui a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal a respeito dos casos análogos (cfr., sem pretensões de exaustividade, os acórdãos do de 01-07-2014 (proc. n.º 1825/09.7TBSTS.P1.S1), de 19-02-2015 (proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1), de 01-10-2015 (proc. n.º 6626/09.0TVLSB.L1.S1), de 09-07-2015 (proc. n.º 284040/11.0YIPRT.G1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt, assim como de 16-11-2017 (proc. n.º n.º 234/14.0TBTVR.E1.S1) e de 16-06-2020 (proc. n.º 8670/14.6T8LSB.L2.S1), ambos não publicados –, é de considerar que a recorrente deu suficiente cumprimento ao núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, em conformidade com o comando normativo consagrado no art. 640.º, n.º2, alínea a), do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso neste particular.

Já no que se refere à observação do Tribunal da Relação de que a impugnante se absteve de proceder a uma análise crítica da prova e de “sopesar a prova indicada pelo tribunal a quo como tendo constituído o fundamento da decisão”, subjacente à mesma parece estar o raciocínio, não expressamente declarado, de que a exigência, contida na alínea b) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, de especificação pelo recorrente dos meios probatórios conducentes a solução diversa da adoptada inclui o ónus de levar a cabo uma valoração crítica da prova. Ora, não se afigura ser de retirar tal conclusão dos elementos literal ou teleológico da norma em causa.

Neste sentido, ver o acórdão deste Supremo Tribunal de 17-12-2019 (proc. n.º 363/07.7TVPRT-D.P2.S1), disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado, na parte relevante:

«II - O argumento expressamente avançado pelo acórdão recorrido para rejeitar conhecer parte da impugnação da matéria de facto não foi o incumprimento do ónus de alegação, dito primário, de especificação dos concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados (al. a) do n.º 1), nem dos concretos meios probatórios determinantes de decisão diversa (al. b) do n.º 1), nem ainda da decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (al. c) do n.º 1), nem até mesmo do ónus, dito secundário, da indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso (al. b) do n.º 2), mas antes a omissão das razões pelas quais aqueles meios de prova conduzem à alteração pretendida.

III - Na interpretação da referida norma legal não se vislumbra que tal sentido interpretativo, de acrescida exigência, encontre suporte nos elementos literal, sistemático ou teleológico da interpretação, entendimento que se afigura inteiramente consonante com a orientação consolidada da jurisprudência do STJ no sentido da atenuação do excessivo formalismo no cumprimento dos ónus do art. 640.º do CPC, designadamente em todos aqueles casos em que o teor do recurso de apelação se mostre funcionalmente apto à cabal identificação da impugnação da matéria de facto e ao respectivo conhecimento sem esforço excessivo (…).».

Este entendimento, que foi retomado no acórdão deste Supremo Tribunal de 27-04-2023 (proc. n.º 1342/19.7T8AVR.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt, tem sido reiteradamente sufragado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça como se depreende da leitura das passagens dos seguintes acórdãos:

- Acórdão de 19-02-2015 (proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1), disponível em www.dgsi.pt): «a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação»;

- Acórdão de 26-01-2021 (proc. n.º 399/18.2T8PNF.P1.S1), acessível em www.dgsi.pt: «os requisitos que o impugnante da decisão de facto tem de satisfazer são os indicados no art. 640º do CPC, como acima se referiu, e nestes não se inclui a aludida análise crítica das provas, pelo menos com a amplitude e desenvolvimento exigidos no acórdão recorrido, pois é certo que o recorrente não deixa de proceder a uma, ainda que mínima, análise crítica, ao partir de determinados meios de prova e, com base neles, defender que estes deveriam ter conduzido a decisão diferente da proferida”, concluindo o aresto que “tendo a recorrente especificado os pontos da matéria de facto que considera mal julgados; indicado os concretos meios de prova, documental e testemunhal, que, em seu entender, impunham decisão diversa sobre esses pontos de facto; indicado com exactidão as passagens da gravação em que se funda (o início e o termo de cada um dos depoimentos), apresentando até a respectiva transcrição; e indicado a decisão que deveria ter sido proferida sobre os pontos de facto impugnados, tanto basta para se poder afirmar que a recorrente cumpriu os ónus que sobre si impendiam quanto à fundamentação da impugnação da decisão de facto»;

- Acórdão de 09-02-2021 (proc. n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1) publicado em www.dgsi.pt: «o legislador não exige, no art. 640.º, n.os 1, al. b), e 2 do CPC, que os Autores/Recorrentes se pronunciem sobre a valoração alegadamente correta dos meios de prova por si indicados, ou seja, sobre as razões pelas quais cada um deles deverá conduzir a decisão diversa da impugnada»;

- Acórdão de 07-07-2021 (proc. n.º 682/19.0T8GMR.G1.S1), acessível em www.dgsi.pt., assim sumariado:

«I - A fim de evitar, na apreciação do cumprimento dos ónus do art. 640.º do CPC, os efeitos dum excessivo formalismo, tem o STJ procurado estabelecer uma separação entre os requisitos formais de admissão da impugnação da decisão de facto e os requisitos ligados ao mérito ou demérito da pretensão, afirmando que “a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro de reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade e consistência daquela fundamentação”.

II - Em todo o caso, há sempre um “mínimo” a cumprir, sem o qual ainda estaremos no âmbito do requisito formal do ónus de impugnação.

III - Tal “mínimo” não é atingido/concretizado quando o apelante se limita a dizer que os pontos de facto identificados devem ser modificados porque duas testemunhas disseram coisa diversa da que foi dada como provada, mas não indica exatamente o que disseram (ou sequer o momento dos seus depoimentos em que o disseram, antes se limitando a dizer que os depoimentos estão gravados do “Lado A da fita da Cassete”).IV - A forma não deve prevalecer sobre o conteúdo, razão pela qual pequenas imprecisões sobre a identificação das passagens da gravação não serão fundamento para o tribunal da Relação rejeitar a reapreciação da decisão de facto, porém, para alterar um facto, de provado para não provado (ou vice versa), não basta dizer que “não foi produzida prova” (ou o contrário).».

Ainda que se considerasse que o impugnante deverá, para efeitos de cumprimento do ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, valorar criticamente os meios de prova, sempre se terá de concluir que, no caso sub judice – como se deixou já antever – a apelante, no corpo das alegações de recurso, não deixou de levar a cabo esse exercício, não se furtando a uma análise crítica dos meios de prova indicados para fundar a sua pretensão impugnatória quanto à solicitação da entrega dos documentos. Com essa finalidade, analisou o teor do depoimento da testemunha FF e confrontou-o com o da testemunha BB e com prova documental (o e-mail enviado pela Valart a 8 de Setembro de 2015), de molde a afastar, à luz das regras da lógica, a credibilidade que ao mesmo foi atribuída pela 1.ª instância.

Conclui-se, pois, pela ofensa, pelo acórdão recorrido, do regime normativo previsto no art. 640.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC, ao ter rejeitado a impugnação da decisão proferida a respeito da parte final do ponto 20) dos factos provados.

4. Idêntica conclusão deve ser formulada quanto à impugnação dirigida aos factos que foram dados como não provados sob a alínea b) («Os documentos se tenham extraviado e que a ré não tivesse recebido da despachante, em 2013 os documentos da viatura») e sob a alínea c) («Os documentos entregues no âmbito do processo crime sejam uma segunda via dos documentos do veículo») e que a apelante pretende que transitem para a matéria de facto dada como provada.

A respeito da factualidade descrita sob a alínea b), considerou o acórdão recorrido o seguinte: “Como já se referiu a propósito desta matéria encarada pela positiva, o tribunal alicerçou essencialmente a sua convicção a este respeito no depoimento da testemunha HH, funcionária do despachante. A apelante, uma vez mais, não explicita em que medida os meios de prova por si enumerados deveriam conduzir a conclusão diversa, sendo certo que, à semelhança do tribunal, invoca o depoimento da testemunha HH e a cópia da carta a remeter os documentos e do talão de aceitação dos CTT - o que, à luz do seu desiderato, carece inclusivamente de sentido” [sublinhado nosso].

Quanto a estes pontos, voltou a indicar a apelante, em sede de conclusões de recurso, qual a decisão que, em seu entender, deveria ser proferida no que concerne à matéria impugnada, assim como os concretos meios probatórios – depoimento do representante legal da autora EE, declarações das testemunhas HH, BB e II e documento n.º 4 junto com a petição inicial – que impunham decisão diversa da adoptada pela sentença apelada, encontrando-se os meios probatórios gravados identificados com indicação do dia da sessão de julgamento em que foram prestados, do ficheiro de que consta a respectiva gravação e das horas e tempo de duração, tal como ficou consignado em acta (cfr. pontos 9, 12 e 13 das conclusões).

Em sede de corpo das alegações, a apelante, no que respeita ao facto descrito na alínea b), fez uma súmula da parte relevante do depoimento de parte do representante legal da autora EE, das declarações das testemunhas HH e BB, procedendo, muitas vezes, à indicação dos minutos da gravação pertinentes aos excertos salientados dos depoimentos e, não raro, à sua transcrição (entendida como reprodução objectiva, desprovida de qualquer subjectividade, filtro ou juízo apreciativo – cfr., a este respeito, o acórdão deste Supremo Tribunal de 18-06-2019 (proc. n.º 152/18.3T8GRD.C1.S1), acessível em www.dgsi.pt). Após, a impugnante apreciou conjuntamente os depoimentos prestados e a prova documental, afirmando:

«Dos depoimentos acabados de referir, com a indicação concreta da gravação, dúvidas não restam que a carta enviada à recorrente pelo despachante [A..., Lda], por correio, a 8 de Maio de 2013, contendo os documentos do veículo dos autos, foi registada com aviso de recepção. Tal facto também decorre da cópia do Talão de Aceitação junto com a douta petição inicial sob o doc. nº 4. Como também decorre do depoimento prestado pela testemunha HH, que afirmou não ter o aviso de recepção da carta registada enviada à recorrente, assinado por esta, não sabendo se o mesmo se extraviou, ou não, sabendo apenas que não o tem, como aliás consta da gravação do seu depoimento ao minuto 16:11. Acresce que a recorrente sempre assumiu que nunca recebeu os documentos do veículo, como se poderá ver do depoimento do legal representante da autora, acima transcrito, bem como do depoimento da testemunha BB, prontificando-se, inclusive, a recorrente a pedir segundas vias a França, como efectivamente veio a suceder. Perante esta factualidade, ou seja, não tendo o despachante o aviso de recepção assinado pela recorrente não se pode dar como provado que a recorrente recebeu os documentos do veículo. Na verdade, o aviso de recepção, devidamente assinado, serve precisamente para provar que o destinatário da carta registada, in casu a recorrente, recebeu tal carta».

Uma metodologia idêntica foi adoptada pela apelante no que respeita à impugnação da matéria constante da alínea c) dos factos dados como não provados, sendo que, no corpo das alegações, partindo do percurso argumentativo do tribunal de 1.ª instância quanto à factualidade em causa, a apelante, elencando os segmentos da gravação relevantes (com indicação precisa dos respectivos minutos) dos depoimentos das testemunhas BB e II, procedeu à sua transcrição parcial ou súmula subjectiva. Após, a apelante procurou desconstruir a tese que afirmou encontrar-se subjacente ao juízo probatório efectuado pelo tribunal de 1.ª instância – no sentido de que teria de constar dos documentos o vocábulo “segunda via” –, através da referência à legislação pertinente ao registo automóvel, não sem indicar com exatidão as passagens das declarações da testemunha BB e do depoimento do representante legal da autora onde tal matéria foi suscitada, concluindo, de modo crítico:

«Perante este regime legal - da não inscrição no documento do vocábulo “segunda via”, aliás, à semelhança do Cartão de Cidadão e anteriormente do Bilhete de Identidade, que se se requisitasse segunda via por extravio do primeiro, nunca dizia, nem diz, que trata-se de uma segunda via -, claudica o raciocínio levado a cabo pela Meritíssima Juíza a quo para dar como não provado que os documentos se extraviaram e que os documentos entregues no âmbito do processo crime sejam uma segunda via dos documentos do veículo».

Conclui-se, pois, que, além de indicar, no corpo das alegações, as passagens concretas da gravação em que fundou o recurso quanto à prova gravada – sendo certo que, também aqui, se trata de um universo limitado de dois factos e que os depoimentos testemunhais não se revelam extensos –, a apelante não deixou de realizar uma valoração, mais ou menos perfunctória, dos meios de prova por si indicados.

Por outro lado, também não se vislumbra que o exercício do contraditório esclarecido pela parte contrária quanto ao segmento da impugnação sob escrutínio tenha resultado dificultado, uma vez que, nas suas alegações de resposta (cfr. pontos 35) e 36) da motivação), a apelada procedeu à transcrição do depoimento da testemunha HH e fez alusão ao depoimento de parte de EE, da testemunha GG e ao documento n.º 4 junto com a petição inicial para refutar a tese da recorrente de que o facto inserido na alínea b) deveria ser considerado provado.

Idêntica conclusão vale para a resposta à impugnação dirigida ao ponto c) dos factos não provados, já que a autora apelada teceu extensas considerações com vista a contrariar o mérito da mesma (pontos 37) a 45) das contra-alegações), chegando mesmo a referir-se à transcrição do depoimento da testemunha BB realizada pela apelante (cfr. ponto 38) das contra-alegações) para corroborar a sua posição no sentido de que os documentos em causa são documentos originais.

Extrai-se do exposto que, igualmente quanto aos apontados pontos, e independentemente do mérito subjacente à impugnação da decisão de facto, a mesma, numa leitura concertada da motivação com as conclusões de recurso, foi realizada de modo suficientemente circunstanciado, não impedindo uma análise cabal por parte do Tribunal da Relação nem o exercício esclarecido do contraditório pela contraparte.

Julga-se, assim, que, de acordo com um critério de razoabilidade, a rejeição liminar do recurso de impugnação de facto, e utilizando a formulação do acórdão do STJ de 27-04-2023 (proc. n.º 1342/19.7T8AVR.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt, proferido pelo presente colectivo, «desrespeita o princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º, n.os 2 e 3, da CRP, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4, da CRP.».

V – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar o recurso parcialmente procedente, revogando-se o acórdão recorrido, e determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para, se possível pelos mesmos Senhores Juízes Desembargadores, se apreciar a impugnação da matéria de facto apresentada pela aí apelante, extraindo-se as pertinentes consequências ao nível do recurso sobre a matéria de direito apresentado em caso de procedência (total ou parcial) daquela impugnação.

Custas do recurso e da acção a final.

Lisboa, 12 de Outubro de 2023


Maria da Graça Trigo (relatora)

Catarina Serra

João Cura Mariano