Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
813/22.2JABRG.G1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
RECURSO RETIDO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
IRRECORRIBILIDADE
NULIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
IN DUBIO PRO REO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Uma decisão interlocutória, objecto de recurso retido, proferida pelo tribunal de 1ª instância, é definitivamente sindicada pela Relação, não cabendo recurso do acórdão deste último tribunal que a apreciou e decidiu.

II. O STJ só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1.ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (dos tribunais de júri ou colectivo) sejam directos para o STJ.

III. A omissão de pronúncia constitui um vício da decisão que se verifica quando o tribunal se não pronuncia sobre questões cujo conhecimento a lei lhe imponha, sejam as mesmas de conhecimento oficioso ou sejam suscitadas pelos sujeitos processuais.

IV. Porém, tal vício só ocorre quando a falta de pronúncia incide sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais.

V. Comete o crime de homicídio qualificado, p.p. pelos artºs 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. b) do Cod. Penal o arguido que, tendo mantido com a ofendida uma relação análoga à dos cônjuges durante 12 anos, escassos 2 meses após o termo da mesma, suspeitando que a ofendida teria nova relação amorosa, a procura em sua casa e a asfixia até à morte, actuando com absoluto desprezo por 12 anos de vida em comum, com evidente insensibilidade perante o sofrimento de alguém a quem, pelo menos até há bem pouco tempo, o ligavam laços de afecto e de entreajuda.

Decisão Texto Integral:

Acordam, neste Supremo Tribunal de Justiça:


I. 1. No PCC nº 813/22.2JABRG, que corre termos no Tribunal Judicial da comarca de Viana do Castelo, o arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi julgado e condenado:

- como autor de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, b), Cód. Penal, e 86.º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão;

- como autor de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;

- em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 19 (dezanove) anos e 2 (dois) meses de prisão.

2. Inconformado, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão proferido em 15/5/2023, negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.

3. Mais uma vez inconformado, recorreu o arguido para este Supremo Tribunal, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):

“1º O Recorrente cumpriu os requisitos legais quanto à impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412º do Código de Processo Penal;

2º - O acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia / falta de fundamentação quanto à questão referente à impugnação da matéria de facto alegada pelo arguido, porque apenas se pronuncia genericamente sobre a mesma, sem se pronunciar quanto aos concretos pontos invocados e sindicados pelo arguido;

3º - Constitui princípio geral do direito processual que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação;

4º - A omissão em causa consubstancia uma inconstitucionalidade, por violação dos artigos 32º n.º 1, 203º e 205º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa;

5º- O Tribunal a quo também não se pronuncia corretamente sobre a questão levantada pelo arguido quanto à violação do Princípio in dúbio pro reu, pois alicerça o seu pensamento no sentido de que não tem aplicação porque não se vislumbra do acórdão condenatório quaisquer dúvidas que o Tribunal de 1ª instância tenha ficado sobre os factos, mas a violação do mencionado Princípio é decorrente da análise efetuada à reapreciação da prova com origem na impugnação da matéria de facto que o arguido invocou;

6º - São nulas todas as diligências levadas a cabo após a detenção (real) do arguido, nomeadamente, indagação levada a cabo no auto de notícia, indagação realizada no âmbito do Relatório de Diligências Iniciais, Reconstituição de Facto, Interrogatório de Arguido perante a Polícia Judiciária, em virtude de o arguido ter sido detido em flagrante delito, ou quase flagrante delito, não ter sido formalmente detido, não lhe terem sido dados a conhecer os seus direitos e deveres enquanto arguido detido, e por não ter sido assistido por defensor nas diligências em causa, quando era legalmente obrigatório;

7º - Mostram-se violados os artigos 64º, 119º c), 123º, 141º, 143º, 249º, 254º, 255º, 256º e 268º todos do CPP.

8º - O meio de prova correspondente às imagens captadas pelo sistema de videovigilância constantes de um DVD junto aos autos, transcrito no auto de fls 268 a 275, é ilícito e não pode ser valorado como prova, uma vez que não foi apreendida nos termos da lei processual.

9º- O Tribunal a quo conheceu de uma questão de que não podia tomar conhecimento, em violação da al. c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP, pelo que não podia a fundamentação que se baseou na referida prova e nas decorrentes da mesma, ser tida em consideração nos concretos pontos que aí elencou, devendo ser desconsiderados.

10º A ilicitude invocada está mencionada no artigo 167º do CPP em conjugação com o artigo 178º do CPP.

11º - É necessário apurar se determinadas provas podem ser valoradas pelo tribunal, não só pela sua validade substancial, mas também pela sua validade processual.

12º A prova em causa porque carreada para o processo como reprodução mecânica via armazenamento em cartão de memória segue os requisitos da prova documental;

13º -Os exemplos padrão tipificados no n.º 2 do artigo 132º do Código Penal são apenas indícios de que uma especial censurabilidade ou perversidade pode existir.

14º Todo o circunstancialismo em que o crime ocorreu não permite concluir pela especial censurabilidade ou perversidade prevista no artigo 132º do CP.

15º O Arguido cometeu um crime de homicídio simples atípico;

16º Além de todo o circunstancialismo prévio, concretamente, que Arguido e vítima se continuavam a relacionar, mutuamente, com chamadas telefónicas e videochamadas pela aplicação Messenger; que o arguido iniciou a sua atividade criminosa por motivos de ciúme, posse e frustração por ter ouvido rumores de que a vítima tinha outra pessoal na sua vida, o que afasta o motivo fútil e torpe, que não existiu uma atuação com calma, frieza e premeditada, que o arguido tomou conhecimento nesse dia de que o individuo que seria o novo companheiro da vítima se encontraria nesse dia com a vítima na sua habitação; que o arguido se deslocou à habitação da vítima com objetivo de surpreender o suposto namorado desta; que o arguido tomou acesso para o quintal da habitação da vítima por um caminho aberto de “entrada livre”; e, por fim, e cremos que seja o ponto fulcral para a desqualificação do crime em causa, ficou igualmente provado que antes da prática do ato delituoso, o Arguido e a vítima confrontaram-se fisicamente, no decorrer do qual, quer um quer outro, ficaram na posse da arma branca melhor identificada nos autos, e, desferiram-se mutuamente, em circunstâncias concretamente não apuradas!

17º - Não tem lógica nem corresponde às regras de experiência comum, se o Arguido tivesse o desígnio de retirar a vida a BB logo que está a deslocar-se para a habitação desta, e se o Arguido alegadamente a surpreendeu, pelas costas, sorrateiramente, munido de uma faca, porque razão não cumpriu logo o seu desígnio esfaqueando-a em locais vitais (o que nunca aconteceu), retirando-lhe a vida, como, alegadamente pretendia.

18º - A vítima adotou uma atitude provocante perante o Arguido;

19º Não existe uma especial perversidade do Arguido, como se pode atender nas qualidades da sua personalidade constantes do relatório social;

20º - O Arguido é um individuo pacato, sociável, integrado na comunidade, respeitador, respeitado pelos seus colegas de trabalho e que sempre proveu à subsistência da sua ex-companheira (vítima) e dos filhos desta;

21º O Arguido foi submetido a um estado emocional particularmente intenso e descontrolado, não tendo tido a necessária clarividência naquele momento, estando envolto num estado de estenia, dominado pelo sentimento de traição e injustiça imensa;

22º - Tudo aponta para que o crime tenha sido um episódio totalmente inesperado e trágico na vida do arguido, em nada condizente com esta e com todos o seu percurso pessoal e social;

23º - O sentimento de amor e ciúme que nutria por BB, acrescido do confronto físico que existiu entre ambos, levara AA a cometer o irreparável, por não saber lidar com a frustração, por não saber gerir os seus sentimentos, tudo, naquele momento, quando confrontado, cara a cara com aquela.

24º - Foi o Arguido que contactou os meios de emergência:

25º - O Arguido não tem antecedentes criminais;

26º - Há que proceder a uma nova operação de determinação da medida da pena, considerando que o crime de Homicídio Simples não é punível com pena igual à do Homicídio Qualificado;

27º Derivado à agravante pelo porte de armas brancas, o limite da pena cabe entre os 10,6 anos e os 21,3 anos de prisão;

28º A pena justa aplicada ao crime de homicídio praticado pelo Arguido deverá ser fixada não superior a 15 anos de prisão

29º Caso não se atenda à desqualificação do crime, o que não se concebe nem se concede, sempre se dirá que os fundamentos invocados para a desqualificação do crime, e todas as atenuantes mencionadas para a aplicação da concreta medida da pena, se fundamentam para uma redução da pena em que foi o Arguido condenado, aplicando—se o disposto no artigo 72º do CP, uma vez que as circunstâncias globais, concretamente, ao circunstancialismo não apurado em volta o confronto físico existente entre o Arguido e a Vítima, exigem essa atenuação, pelo que, sempre deverá o arguido ser condenado numa pena não superior a 15 anos de prisão pelo crime de homicídio;

31º Com o acórdão proferido o Tribunal a quo violou o artigo 24.º, 32º, 203º e 205º da Constituição da República Portuguesa, os artigos 40º, 131.º, 132.º, n.º 1 e 2º, alínea b) do Código Penal; 4º, 64º, 119 c), 123º, 141, 143, 164.º, 167.º, n.º 1 e 2, 171.º, 178.º, 249º, 253.º, 254º, 255º, 256º, e 268º, 379.º n.º 1, alínea c), 410º n.º 2, 412º, n.º 3 e 4, 417º n.º 3, 425º n.º 4, do Código de Processo Penal; e 660º n.º 2 1ª parte e 668 n.º 1 d) do código de processo civil”.

4. Respondeu o Exmº Magistrado do MºPº junto do Tribunal da Relação de Guimarães, pugnando pelo não provimento do recurso e desta forma concluindo:

“1. Inexiste qualquer nulidade processual que importe declarar em recurso porquanto a detenção do arguido recorrente verificou-se na sequência de um mandado de detenção emitido por um órgão de polícia criminal, fora de flagrante delito, e a coberto do previsto no art.º 257 do CPPenal, tendo aquele, na altura, sido constituído arguido, interrogado e informado dos seus direitos e obrigações e, simultaneamente, prescindido da presença de advogado defensor nesse acto e na reconstituição dos factos, diligência de prova esta que teve lugar sob seu expresso consentimento; e em face da regularidade processual na obtenção de tal prova, a mesma podia e devia ser usada para a afirmação da convicção do julgador sobre os factos, não sendo prova proibida – art.º 126 do CPPenal;

2. As imagens captadas pelo sistema de videovigilância constantes de um DVD junto aos autos é um meio de prova plenamente lícito porquanto a alegada ausência de um auto de apreensão e de um despacho a determinar a sua junção aos autos não constitui uma qualquer nulidade pois que, não está prevista como tal, só podendo constituir, nos termos do art.º 118º, nºs 1 e 2, do CPPenal, uma mera irregularidade que, afinal, deveria ter sido suscitada perante o tribunal de 1ª instância no prazo referido no nº 1 do art.º 123º, do mesmo diploma legal, o que o arguido não fez, pelo que é intempestiva a agora apresentada;

3. A concretizada impugnação ampla da matéria de facto pelo arguido não padece de nulidade por omissão de pronúncia pois que a decisão recorrida conheceu expressamente da questão colocada no recurso, fora de qualquer dúvida, constatando que aquela não cumpriu os ónus decorrentes do estatuído no art.º 412, n.º 3, alínea b) e n.º 4 do CPPenal, pois que o arguido recorrente não apresentou provas impositivas de decisão diversa da estabelecida não produzindo menção demarcada às gravações de prova realizadas e demonstrativas daquelas, limitando-se com ela a contrapor a sua leitura da prova à que foi realizada pelo julgador;

4. Também não é nulo o acórdão recorrido, por omissão, como observa o recorrente, porquanto aquele ponderou e decidiu sobre a aplicação do princípio in dubio pro reo arredando-o fundadamente, não se tendo o julgador confrontado com uma dúvida irremovível sobre os factos e mesmo assim tenha decidido contra o arguido;

5. Nulidade que também não se verifica por, afinal, o acórdão recorrido ter examinado a legalidade de um concreto meio de prova – as imagens decorrentes de uma videovigilância, considerando-o plenamente válido, por lícito, por tal prova, como já ficou mencionado, ser uma prova substancialmente válida, não ser ilícita “nos termos da lei penal” como estabelece o art.º 167 do CPPenal;

6. A pretensão do arguido em ver desqualificado o crime de homicídio qualificado em que foi condenado, não encontra fundamento nos factos dados como provados, porquanto as circunstâncias provadas que envolvem o homicídio da sua ex-companheira conduzem à verificação da circunstância prevista na alínea b) do n.º2 do art.º 132 do CPenal, patenteando-se contextos reveladores da especial censurabilidade da conduta do recorrente, afinal denunciadores de uma culpa agravada;

7. A circunstância de ter assassinado a mulher com quem partilhou vida em comum durante um período de vida bastante extenso, à volta de 12 anos, e que só havia cessado há 2 meses atrás, e a circunstância do arguido recorrente se ter mantido inconformado com a manifesta situação de ruptura, alimentando e verbalizando sentimentos de posse relativamente àquela consagrando-se como dono do destino daquela perante notícias, não confirmadas, de que a mesma estaria na iminência de refazer a sua vida junto de outra pessoa, são a expressão incontornável de um feroz egoísmo, de uma abjecta motivação, sendo impositivo o desvalor da sua acção, onde ainda ponteia, como provado ficou, o seu sorrateiro surgimento á vítima, pelas costas, e já munido de 2 facas de cozinha, vindo a tirar-lhe a vida após o uso de uma destas contra o corpo daquela, todavia não à facada, mas com esganadura;

8. Assim, nenhuma censura se pode fazer à decisão recorrida quando julgou verificada a sobredita qualificativa;

9. Não haverá lugar a uma redução do quantum da pena aplicada no quadro de uma autoria do citado crime de homicídio qualificado, o único questionado, tendo em vista a acertada ponderação das circunstâncias a que alude o art.º 71 do CPenal e o que assenta o art.º 40, n.ºs 1 e 2 do mesmo Código, circunstâncias que foram ponderadamente examinadas no achamento da pena agora contestada;

10. A decisão em apreço deverá, por isso, ser totalmente confirmada”.

II. Neste Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso:

“(…)

6 – O acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães resulta irrecorrível, na parte relativa às questões suscitadas no recurso interlocutório interposto pelo arguido AA (em 14.04.2022, cfr. referência Citius .....67), do despacho judicial de 12.03.2022, proferido em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por via do qual foram indeferidas as invocadas nulidades dos actos praticados após a detenção do arguido, nomeadamente a reconstituição dos factos efetuada no dia 11 de Março de 2022 (cfr. referência ......06).

Este recurso depois de, num primeiro momento, ter sido admitido com subida imediata, e em separado, para o Tribunal da Relação de Guimarães por despacho de 18.04.2022 (cfr. referência ......84), acabou por ser conhecido e decidido conjuntamente com o recurso interposto do acórdão condenatório de 04.01.2023, depois de, por decisão sumária de 01.07.2022, ter sido decidido nesse Tribunal alterar o regime de subida fixado e determinado que o mesmo subisse diferidamente, nos próprios autos, com o que eventualmente viesse a ser interposto da decisão que pusesse termo à causa (cfr. referência .....16 de 2022-07-01).

Ora, dispõe o artigo 432.º do C.P.P., com a epígrafe Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e no que ora releva:

1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

(…)

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

(…)

Por seu turno, o artigo 400.º do C.P.P., estabelece o seguinte regime relativo a decisões que não admitem recurso, sua epígrafe, também no que ora importa considerar:

1 - Não é admissível recurso:

(…)

c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º;

(…)

In casu, o acórdão de 15.05.2023 do Tribunal da Relação de Guimarães de que foi interposto o recurso em análise encontra-se abrangido pela causa de irrecorribilidade a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do C.P.P., na parte relativa à decisão tomada sobre o recurso interlocutório.

Com efeito, nesse segmento, esse acórdão não aplicou ao arguido qualquer pena, não conheceu, a final, do objecto do processo, não conheceu, enfim, do mérito da decisão condenatória.

«Conhecer do objecto do processo», que, em processo penal, é balizado pela acusação e ou pronúncia e a pertinente defesa, é afinal, conhecer do mérito ou fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido, conforme o caso.

Assim, cairão no âmbito da irrecorribilidade, as decisões colegiais da relação, em recurso, que, pondo, ou não, fim ao processo, fiquem aquém do conhecimento final do objeto da acusação e ou pronúncia – Conselheiro Pereira Madeira, em anotação ao artigo 400.º, in Código de Processo Penal Comentado, pág. 1228.

Como se escreveu no acórdão de 23.03.2022 deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 729/08.5TABGC.G1.S1, da 3ª Secção, Relatora: Conselheira Conceição Gomes, (…) a decisão que conhece, a final, do objeto do processo é a que, apreciando uma acusação ou uma pronúncia, profere uma condenação ou uma absolvição. Ou seja, «do mérito do fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido, conforme o caso.

Nestes termos, é de entender que a questionada decisão de 15.05.2023 do Tribunal a quo, na parte a que se tem vindo a aludir, porque não conheceu, a final, do objecto do processo, não conheceu em concreto do mérito da decisão condenatória, não é passível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não obstante o ter intentado o recorrente (cfr. conclusões 6º e 7º da motivação de recurso ), vedando-o as normas conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alínea c), e 432.º, n.º 1, alínea b), do C.P.P.

7 – Finalizando, acompanham-se as considerações tecidas na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público no Tribunal da Relação de Guimarães, as quais, pela propriedade, rigor e acerto, suscitam a mais completa adesão, entendendo-se, como aí, que não se verificam as invocadas nulidades e inconstitucionalidade, nem ocorrem razões que justifiquem a redução de qualquer das penas, parcelares e única, a que foi condenado o recorrente, as quais se configuram justas, por adequadas e proporcionais à gravidade dos factos e à perigosidade do agente, e conformes aos critérios definidores dos artigos 40.º, n.º 1 e 2, 71.º e 77.º, do Código Penal.

8 – Pelo exposto, emite-se parecer, no sentido de dever ser rejeitado, parcialmente, nos sobreditos termos, o recurso interposto pelo arguido AA, recurso que deverá ser julgado improcedente, no que respeita às demais matérias nele questionadas”.

Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não houve resposta.

III. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

São as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito dos recursos - artº 412º, nº 1 do CPP.

Uma questão prévia, aliás suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal de Justiça, no seu douto parecer:

O recorrente suscita, neste recurso, a questão de saber se são nulas todas as diligências levadas a cabo após a detenção do arguido, em virtude de este não ter sido formalmente detido, não lhe terem sido dados a conhecer os seus direitos e deveres enquanto arguido detido, e por não ter sido assistido por defensor nas diligências em causa, quando tal era legalmente obrigatório.

Essa questão foi inicialmente suscitada pela defensora do arguido, no termo do seu 1º interrogatório judicial de arguido detido, que teve lugar em 12/3/2022 e objecto de conhecimento em despacho ditado para a acta, indeferindo as arguidas nulidades.

O arguido interpôs recurso dessa decisão em 14/4/2022, tendo o recurso sido admitido, por despacho proferido em 18/4/2022, para subir de imediato, em separado e com efeito devolutivo. Contudo, por decisão sumária proferida no Tribunal da Relação de Guimarães em 1/7/2022, foi alterado o regime de subida do recurso, “determinando-se que o mesmo suba diferidamente, nos próprios autos, com o que eventualmente venha a ser interposto da decisão que puser termo à causa, em consonância com o disposto no Artº 407º, nº 3, do C.P.Penal”.

E com efeito, o recurso em causa viria a subir com o interposto do acórdão final e conhecido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no acórdão ora recorrido.

Ora,

Estatui-se no artº 432º, nº 1 do CPP que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º”.

E, nos termos do artº 400º, nº 1 do CPP, não é admissível recurso:

“(…)

c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196º.

(…)”.

A decisão em causa, que indeferiu arguidas nulidades suscitadas pelo ora recorrente, não conheceu “a final, do objeto do processo”.

Como bem se explicita no Ac. STJ de 19/6/2019, Proc. 881/16.6JAPRT-A.P1.S1, rel. Pires da Graça 1,

“I – (…)

É irrecorrível, conforme estabelece a al. c) do n.º 1 do art. 400.º, por referência à al. b) do art. 432.º, ambos do CPP, a decisão da Relação tomada em recurso que, tendo absoluta autonomia relativamente às demais questões suscitadas, não pôs termo à causa por não se ter pronunciado sobre a questão substantiva que é o objecto do processo.

II - Mostra-se indiferente a forma como o recurso foi processado e julgado pela Relação, isto é, se o recurso foi processado autonomamente ou se a decisão se encontra inserida em impugnação da decisão final. De acordo com o entendimento já expresso por este Supremo Tribunal, decisão que põe termo à causa é aquela que tem como consequência o arquivamento, ou encerramento do objecto do processo, mesmo que não se tenha conhecido do mérito.

Os recursos interlocutórios versavam exclusivamente decisão de natureza interlocutória e não uma decisão que pusesse fim à causa.

III - O STJ só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1.ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (do tribunal do júri ou do tribunal colectivo) sejam directos para o STJ e não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas Relações”.

Ora, seguindo de perto o Ac. STJ de 23/2/2022, Proc. 2808/13.8TAVNG.P1.S1, com o mesmo relator do presente acórdão, a decisão recorrida e objecto do recurso retido, proferida pelo tribunal de 1ª instância, porque interlocutória, foi definitivamente decidida pela Relação, não cabendo recurso do acórdão deste último tribunal que a apreciou e decidiu.

Como bem se decidiu no Ac. STJ de 12/03/2015, Proc. nº 724/01.5SWLSB.L1, “I - O STJ só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1.ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (dos tribunais de júri ou colectivo) sejam directos para o STJ e não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas Relações. II - A circunstância do recurso interlocutório ter subido com o interposto da decisão final não altera em nada a previsão legal, como não a altera a circunstância de ter sido apreciado e julgado na mesma peça processual em que o foi o principal”.

E é esta a orientação uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça, nesta matéria, que se acolhe e subscreve.

Assim e por exemplo:

- Decidiu-se no Ac. STJ de 30/9/2020, Proc. 195/18.7GDMTJ.L1:

“VII. As decisões interlocutórias caem sob a alçada do art. 400, n.º 1, al. c), do CPP, e, como tal, não podem sustentar um recurso para o STJ (cfr. art. 432, n.º 1, al. b), do CPP). E sem qualquer situação em que possa considerar-se haver inconstitucionalidade, já que foi assegurada a reapreciação da questão pelo Tribunal da Relação (art. 32, n.º 1 CRP), não garantindo a CRP um duplo grau de recurso ou terceiro grau de jurisdição (conferindo um certo grau de discricionariedade ao legislador na determinação dessas matérias).

De decisão de índole interlocutória, não é admissível o recurso.

(…)

X. A irrecorribilidade acarreta a impossibilidade do STJ conhecer de qualquer questão suscitada a propósito do segmento do recurso inadmissível, designadamente as inconstitucionalidades suscitadas (…)”.

- Também no Ac. STJ de 19/9/2019, Proc. 806/17.1PWLSB.L1.S1 se abordou a mesma questão, desta forma se concluindo:

«II - Nesta parcela, o recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação não é admissível, em vista do disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. c) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que consentem tão-apenas o conhecimento, pelo STJ, de recursos de decisões interlocutórias da 1.ª instância (que devam subir com o recurso interposto da decisão final) quando se esteja em presença de recursos interpostos directamente para o STJ (dito recurso per saltum), e já não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas relações».

- Também no Ac. STJ de 19/6/2019, Proc. 881/16.6JAPRT-A.P1.S1, se concluiu do mesmo modo:

«Verifica-se, assim, sem margem para dúvidas que os recursos interlocutórios versavam exclusivamente decisão de natureza interlocutória e não uma decisão que pusesse fim à causa. Consequentemente, por inadmissibilidade do respectivo recurso, não pode, nem deve, o STJ apreciar qualquer patologia concernente ao mesmo. (v. Ac. deste Supremo e desta Secção de 16-5-08, P 899/08, 3ª)).

Inexistindo recurso para o Supremo de tais despachos, decisões interlocutórias, precludidas ficam as questões que os integram por terem sido objecto de decisão pela Relação, e constituírem caso julgado sobre as mesmas.

Óbvio é que as questões que lhe subjazem, sejam elas de constitucionalidade, processuais e substantivas, enfim das questões referentes às razões de facto e direito assumidas, não poderá o Supremo conhecer, por não se situarem no círculo jurídico-penal legal do conhecimento processualmente admissível, delimitado pelos poderes de cognição do Supremo» 2.

E assim sendo, resta concluir pela irrecorribilidade do acórdão da Relação de Guimarães, na parte em que conheceu e decidiu – definitivamente – o recurso interposto da decisão interlocutória que apreciou e indeferiu as nulidades suscitadas no 1º interrogatório judicial de arguido detido.

No demais:

As questões a decidir são, então, as seguintes:

A) O acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia/falta de fundamentação quanto à questão referente à impugnação da matéria de facto alegada pelo arguido?

B) É, ainda, nulo por omissão de pronúncia sobre a violação do princípio in dubio pro reo, suscitada pelo recorrente?

C) As imagens captadas pelo sistema de videovigilância constantes de um DVD junto aos autos não podem ser valoradas como prova, uma vez que não foram apreendidas nos termos da lei processual? E tendo o acórdão recorrido valorado prova ilícita, conheceu de questões que não podia ter conhecido, em violação da al. c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP?

D) Qualificação jurídica dos factos apurados: a conduta do recorrente integra a prática de um crime de homicídio simples, e não qualificado?

E) Deve ser reduzida a pena de prisão aplicada ao recorrente?

IV. As instâncias consideraram fixada a seguinte matéria de facto:

(Da acusação)

1. O arguido e BB, respectivamente de 38 e 53 anos à data dos factos, iniciaram uma relação amorosa em 2010, que mantiveram ao longo de cerca de doze anos, em comunhão de mesa, leito e habitação, na residência desta, no Lugar de ..., Rua ..., ...,..., relacionamento que veio a cessar no início de 2022, com a saída do arguido dessa casa.

2. No entanto, porque aquele se mantivesse vinculado psiquica e emocionalmente à vítima e não aceitasse aquele desfecho, e aquela continuasse a não corresponder aos seus anseios e pedidos de contacto pessoal, o arguido iniciou sentimentos de desconfiança, de ciúme e posse, que redundaram em frustração que não conseguiu debelar.

3. Escutando rumores na freguesia que aludiam à existência de um novo namorado de BB, e que essa pessoa estaria na freguesia no dia … de Março de 2022, o arguido formulou o propósito de surpreender o alegado novo namorado com a ex-companheira e de pôr termo à vida desta.

4. Nesse dia, cerca das 15h, o arguido saiu da sua residência sita na Estrada ...,..., ..., munido de duas facas de cozinha que meteu dentro de um saco plástico de cor branca – uma com cabo preto e lâmina de cerca de 22 cm de comprimento e 2,5 cm de largura (junto ao cabo), e outra com cabo em madeira, de cor clara e lâmina de um só gume, com 15 cm de comprimento e 3,8 cm de largura (junto ao cabo), com a inscrição “Tramontina”.

5. Dali, determinado em dar curso à execução do plano referido em 3., o arguido seguiu de bicicleta em direcção à habitação sita em ... onde residia a sua ex-companheira e, pelo caminho, parou no café em ... e na casa da mãe de BB, a qual, a pedido do arguido, informou este que a sua filha já estaria em casa.

6. Uma vez chegado a casa desta, após deixar a bicicleta em sítio por forma a não ser captado pelo sistema de videovigilância instalado por cima da porta da entrada principal da residência de BB, o arguido deslocou-se apeado em direcção à zona dos anexos e quintal, onde encontrou esta a estender roupa.

7. Aproveitando o momento em que BB se encontrava de costas para o arguido, este abordou-a sorrateiramente, posicionando-se imediatamente atrás daquela, com a faca de cabo preto na mão.

8. Aí, iniciou-se um envolvimento físico entre ambos, no desenrolar do qual o arguido, prosseguindo no seu propósito, reinvestia a sua força física sobre o corpo de BB sempre que esta se debatia para se libertar dele; no decurso da refrega, arguido e BB ficaram, em momentos distintos, na posse da dita faca, e ambos desferiram golpes no corpo um do outro.

9. Tal confronto físico precipitou a queda de BB em posição de decúbito dorsal, onde o arguido, por cima dela e com força, apertou-lhe o pescoço, inicialmente com uma das mãos e depois com ambas, sem largar ou afrouxar, até lhe cortar a respiração e lhe tirar a vida, o que conseguiu.

10. Na sequência de contacto telefónico estabelecido pelo arguido pelas 16.25h, a partir do seu n.º .......69 para o n.º 112, dando a notícia de que matara a sua mulher, ao local da ocorrência acederam, primeiro, o INEM e depois a GNR; enquanto aguardou, o arguido entrou na habitação de BB, tirou duas cervejas “Super Bock Mini” do frigorífico da cozinha e bebeu-as, deixando as garrafas vazias em cima do depósito das botijas de gás junto à porta de entrada da habitação.

11. À chegada daquelas entidades, o arguido apresentava ferimentos em ambas as mãos e na perna direita, e ostentava na sua roupa e calçado manchas de sangue.

12. O INEM, após executar manobras de reanimação, veio a certificar o óbito pelas 17.10h.

13. A GNR apreendeu, para além do mais, as facas de cozinha aludidas em 4.:

- a primeira já partida, com o cabo separado da lâmina, ambos com manchas hemáticas e a centímetros do corpo de BB;

- a segunda num saco plástico pousado junto aos anexos da habitação.

14. Com a prática dos factos supra descritos, o arguido originou, de forma directa e necessária para BB, as seguintes lesões, nomeadamente:

a) ao nível do hábito externo: um corte/incisão no dedo mínimo da mão esquerda; um corte na palma da mão esquerda; uma laceração na palma da mão direita; dois cortes no polegar da mão esquerda; equimoses no cotovelo direito; uma laceração no braço esquerdo; múltiplas marcas avermelhadas no pescoço (equimoses), envolvendo as faces anterior, laterais e posterior, compatíveis com quadro de asfixia por compressão extrínseca dessa zona com recurso a mãos (esganadura);

b) ao nível do hábito interno: sufusões hemorrágicas dispersas pela mucosa da cavidade oral e da glótica, e dispersas pelo lobo inferior de ambos os pulmões; múltiplas áreas de infiltração sanguínea envolvendo o tecido subcutâneo cervical, os músculos do pescoço e o lobo esquerdo da glândula tiróide, lesões compatíveis com quadro de asfixia por compressão extrínseca dessa zona com recurso a mãos (esganadura).

15. As lesões traumáticas na zona anterior e posterior do pescoço provocaram, em consequência de asfixia mecânica por compressão extrínseca do pescoço (esganadura), de forma directa e necessária, a morte de BB.

16. O arguido agiu com a intenção de tirar a vida à sua ex-companheira, como conseguiu, visando oprimir, a ponto de cortar por completo, a respiração da vítima, atingindo órgãos que bem sabia serem vitais.

17. Actuou apenas movido por ciúmes e sentimentos de frustração e de posse sobre a pessoa de BB.

18. Mais reflectiu no caminho que a contenda levava, decidindo empregar um meio que, actuando naquela zona vital, sabia ser suficiente para consumar a morte de BB, assumindo a resolução de matar.

19. O arguido conhecia as características das facas que possuía, sabia que as detinha fora do local do seu normal emprego e que a única justificação para a sua posse era serem destinadas nos termos em que o foram; não obstante, não se absteve de agir do modo descrito, o que quis e fez.

20. Sabia ainda o arguido que lhe estava vedada por lei a prática de todas as condutas descritas e que as mesmas eram punidas, agindo sempre de forma livre, voluntária e consciente.

(Da discussão da causa)

21. O arguido não tem antecedentes criminais.

22. Oriundo do estado de..., Brasil, o arguido cresceu com os pais (agricultores, vendiam arroz, café e milho que cultivavam) e quatro irmãos em contexto socioeconómico modesto; cabia à mãe a gestão do orçamento familiar e o acompanhamento dos filhos, num ambiente funcional e solidário. O arguido abandonou a escola após a conclusão do 4.º ano, aos 10 anos, para ajudar os pais no cultivo das terras, o que fez até aos 22 anos. Na sua cidade natal, no decurso de uma relação de namoro e de uma gravidez precoce, foi pai aos 18 anos; o casal viveu em união de facto dois anos após o nascimento do filho, separando-se em seguida. O arguido não tem contacto com o filho, actualmente com 17 anos. Desde que veio para Portugal ...) com um amigo, aos 22 anos, o arguido nunca mais voltou ao Brasil, mantendo contactos com o agregado de origem por via telefónica. Começou por trabalhar em duas empresas de limpeza/manutenção de ruas e caminhos, seis e oito meses, respectivamente; em busca de melhor salário, o arguido passou a ser … (cortando madeira …), numa empresa onde esteve 11 anos, com um percurso regular e responsável. Em 2010, iniciou a relação afectiva com BB, que manteve durante cerca de 12 anos, e com quem viveu na casa desta; era a única fonte de rendimento do agregado, canalizando todos os seus rendimentos para a compra de materiais de construção para melhorar as condições habitacionais (não tinham casa de banho nem saneamento e o chão era em terra batida). O arguido caracteriza o relacionamento como equilibrado e gratificante. O seu quotidiano era no trabalho, sobrando o domingo para estar em casa ou conviver com a companheira e vizinhos no café da localidade, onde detinha uma imagem positiva. À data dos factos, o arguido tinha deixado de residir com BB há cerca de dois meses, depois desta lhe ter comunicado que queria que ele saísse de casa por não querer manter o relacionamento, decisão que o arguido recebeu com surpresa e desagrado. Com o apoio do patrão e outros amigos, o arguido arrendou casa na freguesia de..., que mantinha à data dos factos; o seu salário era de € 800,00 mensais. Nos tempos livres, o arguido continuou a conviver com amigos e colegas de trabalho; foi neste contexto que referiu ter sabido que a sua ex-companheira teria outro namorado, facto confirmado pelo filho desta, de quem o arguido era próximo. Esta situação repercutiu-se nos consumos de álcool por parte do arguido que, outrora moderados, se intensificaram e tornaram problemáticos, com faltas ao trabalho e embriaguez nos cafés, assumindo um discurso de revolta e injustiça pela traição de que refere ter sido vítima. O arguido circunscreve os consumos de álcool ao período entre a sua saída da habitação e a data dos factos, considerando não ter necessidade de acompanhamento nessa área. Nas localidades onde residiu, o arguido é visto como humilde, trabalhador e socialmente integrado; nas relações sociais, não existem referências a comportamentos desadequados do arguido, com excepção do período referido supra. Quando em liberdade, o arguido diz pretender regressar ao Brasil e reorganizar a sua vida pessoal e laboral; aponta, como principal impacto, a perda da sua liberdade, conformado com a sua constituição como arguido. Perante a natureza dos factos, o arguido tem juízo crítico, reconhece a sua ilicitude, o dano e sofrimento da vítima. A situação de reclusão levou a mãe do arguido, pela natureza do crime em causa e pela sua forte religiosidade, a manifestar que não estará disponível para o apoiar qualquer que seja o desfecho do processo. No estabelecimento prisional, o arguido assume comportamento adequado.

(Do pedido de indemnização civil)

23. CC nasceu a ... de ... de 1988, DD nasceu a ... de ... de 1990 e EE nasceu a ... de ... de 1991, sendo todos filhos de FF e de BB.

24. BB nasceu a ... de ... de 1968 e, à data do óbito, era viúva.

25. Apesar de BB ter lutado com o arguido, da forma descrita em 8., foi sentindo a sua impotência perante a superioridade física do arguido.

26. Até perder os sentidos, BB teve plena consciência que ia morrer, o que lhe causou angústia, sofrimento físico, ansiedade e medo.

27. BB era saudável, alegre, amiga, mãe dedicada, trabalhadora e cuidava dos seus pais.

28. Os demandantes perderam o pai quando eram ainda menores, sendo a mãe, além da restante família, a suprir essa falta.

29. BB e os filhos eram unidos e afectuosos entre si.

30. Os demandantes são pacíficos e foram criados num ambiente de solidariedade.

31. Os demandantes ficaram tristes com a morte da mãe, que lhes causou desgosto.

V. E decidindo:

A) O acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia/falta de fundamentação quanto à questão referente à impugnação da matéria de facto alegada pelo arguido?

Entende o recorrente que, no recurso que interpôs do acórdão da 1ª instância, impugnou devidamente a decisão proferida sobre matéria de facto, dando cumprimento às exigências contidas nos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP e que, contudo, o tribunal a quo pronunciou-se “genericamente sobre a impugnação da matéria de facto invocada pelo arguido, mencionando que foram escutadas as passagens das provas gravadas indicadas, mas sendo completamente omisso quanto à restante prova indicada pelo Arguido, nomeadamente, prova documental”.

Vejamos o que, a este propósito, consta do acórdão recorrido:

“Embora não o expresse de forma direta, depreende-se do recurso interposto que o recorrente acaba por, ao abrigo do disposto no art.412º, n.º 3, do Código Processo Penal, convocar não ter sido feito o uso adequado do princípio de livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º Código de Processo Penal, e o princípio in dubio pro reo (este sob invocação direta), previsto no art.32º da C.R.P., impugnando a decisão recorrida sobre a matéria de facto.

Como é sabido a matéria de facto pode ser sindicada de dois modos:

1º no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art. 410º, nº 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento, a chamada revista alargada;

2º) na impugnação ampla, com base em erro de julgamento, nos termos do art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.

Vejamos, pois, este modo de sindicância da matéria de facto.

Nos termos do art. 428º, nº 1, do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”

Sucede que a impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412º, do C.P.P., tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus nºs 3, 4 e 6.

Exige-se ao recorrente a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.

Para além disso, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado.

O recorrente terá, pois, de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.

O recorrente deverá referir o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.

Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artº 430º, do CPP).

Ainda quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, resulta do nº 4 do dispositivo legal em análise que havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).

Saliente-se que a remissão para os suportes técnicos não é a simples remissão para a totalidade das declarações prestadas, mas para os concretos e precisos locais da gravação, que suportam a tese do recorrente, só assim se dando cumprimento à especificação das “concretas provas” que é dizer do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida.

Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares e precisas passagens, nas quais ficam gravadas, que se referem ao facto impugnado.

Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente”, de acordo com o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência de 8/3/2012 (AFJ nº3/2012), publicado no DR - I - Série, nº77, 18/4/2012.

Assim, quanto ao cumprimento do ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal), com o AFJ (STJ) nº 3/2012, foi fixada a seguinte jurisprudência:

- Se a ata contiver a referência ao início e termo das declarações, basta a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal); – Ou, alternativamente, se a ata não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).

Ora, no caso vertente, o recorrente não deu satisfação cabal aos ónus previstos no normativo processual acabado de citar.

Concretamente, o arguido especificou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, indicando os pontos 1 a 3, 7, 8, 11, 17 e 19, que constam do acórdão recorrido e que considera indevidamente julgados.

Porém, o recorrente não indica as concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida. Quer na motivação, quer nas conclusões, o recorrente indica, por referência ao consignado na ata, e por transcrição parcial, as provas que, na sua perspetiva, deveriam ter conduzido a decisão diversa da impugnada.

Concreta, e essencialmente, embora tivesse indicado as declarações de arguido, que no seu entender, deveriam levar a decisão diferente da recorrida, certo é que não indicou outras provas ou depoimentos com virtualidade de fazer inverter a decisão proferida sobre a matéria de facto – a alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º reporta-se a provas que imponham decisão de facto diversa. Sendo certo que caiu por terra a sua impugnação de alguns dos meios probatórios recolhidos em sede de inquérito, que, na sua visão, justificariam uma diferente redação a conferir a parte dos factos impugnados, e essa impugnação de facto se limita à manifestação de que o tribunal recorrido perante esses meios de prova, designadamente declarações e depoimentos, cuja veracidade não questiona, deveria ter ficado em dúvida sobre a forma como tudo ocorreu, fazendo funcionar o principio do in dubio pro reo.

Ou seja, os meios probatórios que indica não impõem verdadeiramente uma resposta diferente aos pontos da matéria de facto provada impugnados, pura e simplesmente justificariam uma diferente versão, numa redação que propõe, dos mesmos, com consequências que acaba por retirar ao nível da forma concreta como o episódio que resultou na morte da vítima ocorreu, e dos motivos que determinaram a sua conduta e que culminaram naquele decesso.

Repare-se que o arguido não nega a sua participação nesse episódio, e que acabou por causar a morte da vítima. Apresenta sim, um enquadramento ou cenário fáctico e motivacional algo diferente do que foi dado como assente, designadamente razões para a sua presença no local e um conjunto de circunstâncias que resultaram num envolvimento físico com aquela e que redundou num resultado que não previra, nem desejara, mas que acabou por acontecer.

Ora, a impugnação da matéria de facto por o Tribunal a quo ter efetuado uma incorreta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, não pode confundir-se com discordância na apreciação da prova que invada o espaço da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127º do C.P.P., que é de estrito domínio do julgador.

Assim, verifica-se que o legislador consagrou no Código de Processo Penal o princípio da livre apreciação da prova que consubstancia, por um lado, em inexistirem critérios ou cânones legais pré-determinados no valor a atribuir à prova e, por outro lado, em não haver uma apreciação discricionária ou arbitrária da prova produzida.

Tal liberdade está intimamente ligada quer ao dever de tal apreciação assentar em critérios objetivos de motivação, quer ao dever de perseguir a verdade material.

Por isso, quando se refere que a valoração da prova é segundo a livre convicção da entidade competente (in casu, o juiz), a convicção há de ser pessoal, objectivável e motivável, logo, vinculada e, assim, capaz de conseguir a adesão razoável da comunidade pública. Donde resulta que tal existirá quando e só quando o Tribunal se tenha convencido, com base em regras técnicas e de experiência, da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (cf. Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, págs. 198-207).

Do exposto resulta que o juiz deve apreciar a prova testemunhal segundo os critérios de valoração racional e lógica, tendo em conta as regras normais de experiência, julgando segundo a sua consciência e convicção.

Assim, o juiz é livre, no sentido mencionado de formar a sua convicção com base no depoimento de uma testemunha (ainda que familiar do arguido ou do ofendido) em detrimento de testemunhos contrários (v.g. de pessoas sem quaisquer ligações ao arguido ou ao ofendido).

Daí que, de acordo com a jurisprudência, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras de experiência comum ou o princípio in dúbio pro reo, como alvitrado pelo recorrente.

O princípio in dúbio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção de inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32º, n.º 2 da CRP), constitui, pois, um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.

Como pode ler-se no Ac. do TRP de 17.09.2003 (processo 0312082, disponível em www.dgsi.pt) “(…) o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no artigo 127º do C.P.P. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal” – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, ed. 1974, pág. 204). Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do principio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal” (Código Processo Civil Anotado, Vol. IV, págs. 566 e ss. (…)”.

O artigo 127º do C.P.P. indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Isto equivale a dizer que, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador.

A impugnação da matéria de facto prevista no citado artigo 412º, n.º 3 do C.P.P. consiste na apreciação, tal como sustentou o Ac. do TRE, de 26.03.2019 (acessível in www.dgsi.pt) “que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412º do C.P.Penal.”

Como se diz no Ac. do TRL, de 29.03.2011 (acessível in www.dgsi.pt) “A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso de matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se o permitirem [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412º]”.

Como salienta o STJ no Ac. de 12.06.2008 (acessível in www.dgsi.pt) a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:

- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;

- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;

- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita à indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;

- a que tem a ver com o facto de ao Tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º 3 do citado artigo 412º).

Com efeito, o Ac. do TRP de 12.05.2021 (processo 6098/19.0JAPRT.P1, proferido no âmbito do processo 6098/19.0JAPRT que correu termos no JC Criminal de Vila Nova de Gaia-J2) escreveu que: “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de factos impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.

Não basta assim ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para que o tribunal de recurso tenha que fazer “um segundo julgamento”, com base na gravação da prova. O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação.”

De facto, “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstrem esses erros (cfr., neste sentido, Acs. do STJ de 15.12.2005 e de 09.03.2006, ambos acessíveis in www.dgsi.pt).

Regressando ao caso vertente.

Tendo o recorrente procedido, como se disse, à indicação das concretas passagens das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas referidas em que funda a impugnação (artigo 412º, n.º 4 do C.P.P.), está este tribunal apto a apreciar a discordância manifestada de acordo com as regras infra estabelecidas.

A decisão do julgador, na apreciação dos meios de prova, encontra-se supra descrita.

A avaliação da prova em primeira instância, feita de forma direta, oral e imediata, obedece a uma forma de procedimento que coloca o juiz do julgamento em melhores condições para a decisão da matéria de facto do que a avaliação feita com base na audição do registo, meramente parcial (porque despido de expressões faciais, comportamentos físicos), de provas de produção pretérita.

Reiteramos que a reapreciação da prova em recurso não pode e não deve, por isso, equivaler a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes, mas apenas garante que o interessado pode obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame parcial da prova.

Vejamos, então, se a formação da convicção do tribunal em relação aos factos impugnados padece de erro.

Escutamos integralmente as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas CC, GG, HH, II, que naturalmente conjugamos com toda a demais prova produzida, e não encontramos, mesmo limitados por esta atividade de pura audição, qualquer motivo, plausível ou razoável, para dele não extrair o significado compreendido pelos julgadores no acórdão sob escrutínio. Dito de outra forma, porventura mais clara, apenas pelo depoimento em causa (despida de toda a contextualização visual, apenas percetível pelos julgadores) não encontramos qualquer motivo suscetível de desmontar a valoração conferida em primeira instância.

Assim, entendemos não merecer qualquer tipo de censura a valoração efetuada pelos julgadores dos referidos meios de prova.

Por fim, quanto a este tipo específico de recurso (da decisão sobre a matéria de facto: cfr. artigo 412º, n.º 3 do C.P.P..) cumpre ainda esclarecer que “a censura” quanto à formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.

“Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” - acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de24.3.2004, DR, II Série, n.º 129, de2 de junho.

Ora, no caso vertente, o recorrente pretende impor a apreciação que ele próprio faz das suas próprias declarações, e nelas se estriba essencialmente a sua impugnação de facto, e dos depoimentos das referidas testemunhas (compreensível e necessariamente parcial) sem que alegue outras provas concretas que impusessem decisão da matéria de facto distinta, oposta da que foi tomada pelos julgadores, isto é, que tornassem, face às regras da experiência comum e da lógica, insustentável a apreciação operada pelo Tribunal a quo.

Salientando-se, ainda, que nem sequer foi questionado o teor do que foi afirmado, que o que foi dito não corresponda à verdade, ou que seja infirmado por qualquer outro meio de prova, limitando-se a conferir uma outra roupagem interpretativa, a sua, a essas declarações e depoimentos. Não sendo apontadas disparidades, divergências, incongruências ou até contradições entre os vários depoimentos e declarações, ou entre estes e a demais prova produzida.

Também não questiona que em 1ª instância tenha sido infringida qualquer das regras que prevalecem na apreciação e valoração da prova, da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

Revelando-se o julgamento de facto estribado numa convicção possível, diria mesmo que a única que o material probatório consente, sem margem para dúvidas, e explicável à saciedade pelas regras da experiência comum. Pelo que não poderia deixar de acolher-se a opção do julgador recorrido.

Sendo certo que se procedeu à indagação dos específicos pontos impugnados, da existência, ou não, dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, e não encontramos quaisquer motivos para proceder à sua correção e conferir a cada um deles a redação pretendida pelo recorrente.

Não olvidando que, em relação à impugnação invocada pelo recorrente, sempre se repetirá que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso. E erros procedimentais não foram encontrados, e os decisórios limitaram-se à invocação da violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, que também não se descortinaram.

Como se referiu, com a impugnação da matéria de facto suscitada pelo recorrente, os pontos de facto que considera incorretamente julgados são aqueles vertidos nos pontos 1 a 3, 7, 8, 11, 17 e 19, os quais deviam, em seu entender, ter sido julgados de forma diferente.

A este respeito, no acórdão recorrido fez-se constar: “(…)

As declarações do arguido em julgamento serviram para 1. a 5. (a parte final deste corroborada pelo depoimento de II, mãe de BB), 6. (a localização da bicicleta resulta das fotografias de fls. 22 e 78, não aparecendo nas imagens do DVD – auto de fls. 268 a 275 – captadas por uma câmara imóvel na residência de BB), 7., 8. (complementados, na parte final, pelo auto de exame ao cadáver a fls. 11, pelas fotografias de fls. 44 a 46 e por fls. 593 a 595 do relatório de autópsia, quanto aos cortes nas mãos e, relativamente aos ferimentos do arguido, pelas fotografias de fls. 81 a 87, 192 a 196 e 198 a 205 – também úteis para 11., assim como o auto de apreensão de fls. 37 – e pelas fichas de urgência de fls. 298/299 e 121), 9. (corroborado pelas fotografias de fls. 41/42, 47 a 50, 55, 206 a 209, quanto à posição de BB, e pelo relatório de autópsia de fls. 585 a 601 – decisivo para 14. e 15.), 10. (confirmado pela informação das operadoras de fls. 614 e 563, pela fotografia do ecrã do telemóvel de fls. 197, pela transcrição da segunda chamada do arguido para o INEM – fls. 292 a 294, em CD junto aos autos –, pelos registos do INEM de fls. 247 a 265, pelo visionamento das imagens de videovigilância da casa de BB – maxime fls. 272 e 273 – e pelas fotografias de fls. 36, 70 a 72 e 74/75) e 17. (o arguido assumiu ter ciúmes do alegado namorado de BB, acrescentando “na minha cabeça, nós os dois ainda estava junto”).

O teor de 12. resulta de fls. 118.

A intenção que norteou o arguido (parte final de 3., 16. e 18.) resulta inequívoca de um conjunto de indícios:

- o arguido saber que a sua ex-companheira se preparava para ir para … (facto confirmado pela testemunha – e patrão – GG, a quem o arguido o disse quer uns dias antes dos factos quer na própria manhã de … de Março), o que a levaria para longe dele (na mente do arguido, tal não era compatível com o referido supra a propósito de 17.);

- a circunstância de o arguido se ter previamente munido de duas facas de cozinha, objectos potencialmente letais (apreendidas a fls. 13, sendo a primeira fotografada a fls. 41 a 44 e 207 a 209 e a segunda a fls. 55 a 57 – o que também serviu para 13. e 19.);

- o tipo de abordagem que o próprio arguido admite ter feito a BB, pelas costas e com uma das facas na mão;

- apesar da resistência oferecida por BB (provocando ferimentos no arguido, inclusive nas mãos), o recurso do arguido a estas como arma;

- o período de tempo decorrido – de pelo menos 7 minutos, conforme registo de imagens (dois primeiros vídeos de fls. 268, que não permitem concluir pelos 20 minutos alegados no pedido de indemnização civil) – entre os primeiros gritos de BB, pedindo “socorro” (gritos que o arguido confirmou), e o momento em que esses gritos se deixam de ouvir (sinal de perda de consciência ou morte), período que, fosse outro o seu desígnio, permitiria ao arguido cessar a sua conduta, em vez de nela persistir;

- a descontracção, à-vontade e total desassombro demonstrados pelo arguido no comportamento imediatamente posterior aos factos (conforme supra referido em 10)., bem como nos contactos telefónicos estabelecidos com o INEM (o de fls. 292 a 294 e o anterior, fls. 269/270) – pronto para dar indicações e detalhar o seu comportamento (fls. 269), afirmando até “então eu hoje decidi, vim cá matá-la eu” (fls. 270) –, com a testemunha HH (que confirmou a existência da chamada, audível nos registos da câmara de vigilância de casa de BB e transcrita a fls. 270/271, onde o arguido se preocupa com o destino do seu gato e de ter cigarros na cadeia, se refere a BB com insultos – “puta” – e diz “não dava para viver assim, não estava conseguindo (…) gozaram comigo, isso não se faz”), com o aludido patrão GG (fls. 272) – “eu fui dar uma facada nela (…) A puta está ali, está morta, até a língua está para fora (…) Não ia fazer pouco de mim assim” – e até com a sua mãe (fls. 274), a quem comunica de forma factual (e reiterada) o que acaba de fazer, ainda tentando minorar a sua conduta (“ela me deu três facadas”).

Perante estes elementos, é inócua a não assunção, por parte do arguido, da intenção de matar a ex-companheira: as (alegadas) afirmações do arguido de que, no envolvimento físico entre ambos, por duas vezes disse a BB, “calma, BB, não te vou matar”, além de não constarem das gravações da aludida câmara de vigilância, são absolutamente contraditórias com a sua actuação; por outro lado, apesar de dizer que a sua vontade era apenas lutar com o alegado namorado da sua ex-companheira, ou mesmo matá-lo, o arguido, quando confrontado, não conseguiu explicar de forma cabal porque não foi embora no momento em que percebeu, ainda fora da casa, que esse homem não estava lá. A comoção e o choro do arguido ao longo das suas declarações são obviamente insusceptíveis de apagar o que se passou no dia dos factos, única matéria relevante para apurar a sua intenção para com a vítima.

O teor de 20. é do conhecimento de qualquer cidadão imputável, como é o caso do arguido. Para 21., serviu o certificado de registo criminal (ref.ª ......97), sendo o relatório social (ref.ª .....78) útil para 22., além dos depoimentos do aludido patrão do arguido, da sua mulher JJ (também funcionária da empresa) e do citado amigo (e colega de trabalho) HH.

Ex abundantiae, há ainda a registar a análise dos telemóveis de arguido e de BB (de que resulta terem ambos falado por essa via pela última vez a 6 de Março de 2022, por iniciativa do primeiro – fls. 474 e 493), o ADN masculino encontrado no exame biológico ao pescoço de BB (fls. 578 a 584), bem como idêntico exame à roupa do arguido, à faca e ao cabo (7.), que não permitem excluir nem arguido nem vítima dos respectivos vestígios (fls. 635/636), o que é natural dada a luta entre ambos.

KK, cabeleireira frequentada por BB, apenas sabia da sua intenção de ir para … no dia seguinte aos factos, o que foi confirmado pela irmã de BB, LL (conhecedora dos receios daquela de que o arguido lhe fizesse mal). (…)

Como resulta da análise desta fundamentação de facto, verificamos que no tribunal a quo foi feita uma proficiente e aprofundada apreciação, valoração da prova produzida, que motivou de forma lógica e compreensível

Por todo o exposto, o recorrente não logrou demonstrar que a convicção do tribunal de primeira instância sobre a veracidade dos factos descritos é inadmissível (não é sustentada em dados objetivos) e que os meios de prova impunham uma convicção diferente.

Sendo certo que, na situação dos autos, o tribunal formou grande parte da sua convicção nas declarações prestadas pelo arguido, que admitiu a essencialidade dos factos apurados, valorados pelo tribunal na parte que se mostrou séria e credível, tendo sido explicitadas as razões do seu convencimento, aferidas segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), e inteiramente suportada pelos aludido, e colocado em causa, princípio in dubio pro reo.

Finalmente, acrescenta-se, para além da confissão do arguido, mas que nesta parte tentou justificar a sua conduta e negar a intenção de matar, a prova do seu dolo fez-se, como habitualmente acontece, de forma indireta, com recurso a inferências lógicas e presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência retiradas de todo o cenário circunstancial apurado que rodeou a prática do crime em questão”.

Aqui chegados:

Estatui-se no nº 3 do artº 379º do CPP que é nula a sentença “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

A omissão de pronúncia, como é sabido, constitui um vício da decisão que se verifica quando o tribunal se não pronuncia sobre questões cujo conhecimento a lei lhe imponha, sejam as mesmas de conhecimento oficioso ou sejam suscitadas pelos sujeitos processuais.

Porém, como vem sendo entendimento uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça, “a falta de pronúncia que determina a existência de vício da decisão incide sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão. Por isso, como defende este Supremo Tribunal 3, apenas a total falta de pronúncia sobre as questões levantadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso constitui omissão de pronúncia e, mesmo assim, desde que a decisão de tais questões não esteja prejudicada pela solução dada a outra ou outras” – Ac. STJ de 26/10/2016, Proc. 122/10.OTACBC.GI-A.S 4.

Ora, como resulta claro da leitura do acórdão recorrido, particularmente do excerto supra transcrito, é mais do que evidente que o tribunal a quo se pronunciou sobre a questão suscitada pelo recorrente (impugnação ampla da matéria de facto).

Fê-lo, aliás, de forma exaustiva e esclarecedora.

Efectivamente, não na forma e com o resultado pretendidos pelo recorrente. Porém, a discordância do recorrente quanto ao resultado da apreciação efectuada pelo Tribunal da Relação de Guimarães à questão por si suscitada, sendo naturalmente legítima, não se traduz nem significa ausência de apreciação e pronúncia.

Nos termos do disposto no artº 431º do mesmo diploma, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada se a prova tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do artigo 412º (al. b)).

E conforme disposto neste último dispositivo legal, “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas”.

Quer dizer:

Impugnando a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente há-de especificar “as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”. Que impõem e não que apenas permitam.

Ora, o tribunal a quo entendeu que aquilo que o recorrente pretendia era, tão simplesmente, questionar o processo decisório dos Mºs juízes da 1ª instância em matéria de facto.

Porém, o recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.

Em matéria de apreciação da prova, manda o artº 127º do CPP que, salvas as excepções previstas na lei, aquela seja apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.

Este sistema de livre apreciação da prova aí consagrado (por contraposição ao sistema de prova legal) manifesta-se sob dois prismas:

- de um lado, o juiz há-de decidir de acordo com a sua íntima convicção, formada do dinâmico confronto das provas arroladas pela acusação e pela defesa e daquelas que, ele próprio e oficiosamente, entender por bem produzir e conhecer;

- de outro, tal convicção há-de ser formada com base em regras técnicas e de experiência (e bom senso) comum sem, contudo, qualquer sujeição a critérios de valoração de cada um dos meios probatórios, legalmente pré-determinados.

Como esclarecidamente se afirma no Ac. Trib. Const. nº 464/97, de 1/7/97, www.tribunalconstitucional.pt., “este princípio da prova livre ou da livre convicção do julgador não é contrário às garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Em oposição a um sistema segundo o qual o valor da prova é dado por critérios legais-abstractos que o predeterminam, dotados de um carácter de generalidade [que é o sistema da prova legal], o princípio da prova livre evidencia a dimensão concreta da justiça e reconhece que a procura da verdade material não pode prescindir da consideração das circunstâncias concretas do caso em que essa verdade se recorta”.

E porque assim é, não custa aceitar que os mesmos elementos de prova, exibidos em audiência, mereçam apreciações diversas por banda do julgador, por um lado, e do arguido (ou do Ministério Público ou do assistente) por outro.

Isso, porém, não acarreta qualquer vício para a sentença assim proferida nem, necessariamente, se traduz em erro de julgamento (na apreciação da prova).

A livre convicção do juiz, posto que justificada, ponderada e, por isso, não arbitrária, aliada às regras da experiência, é o modo como, no nosso sistema processual penal, deve ser apreciada a prova.

É na conjugação destes dois factores (livre apreciação do julgador e regras da experiência) que a prova há-de ser apreciada (a não ser, naturalmente, que se trate de prova tarifada ou vinculada).

Naturalmente, liberdade (de apreciação) não se confunde com arbitrariedade.

O juiz não pode ignorar os depoimentos produzidos em audiência ou a prova documental existente e decidir como lhe aprouver, de forma imotivada.

Porém, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, ed. 1974, 204, a decisão do juiz há-de ser sempre e necessariamente uma “convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais”.

Perante uma determinada situação em concreto, produzidos em audiência depoimentos de sentido contrário, é natural que sejam lícitas e possíveis várias soluções, na decisão da matéria de facto.

Se aquela que é assumida pelo juiz é uma das soluções admissíveis, à luz das regras da experiência comum (e se, para além disso, tal solução se mostrar suficientemente motivada e esclarecida), então estamos perante decisão inatacável no plano fáctico, pois que produzida em estrita obediência ao estatuído no artº 127º do Cod. Proc. Penal.

Como bem se refere no acórdão recorrido, em caso de impugnação da matéria de facto, o tribunal de recurso não procede a um novo, a um segundo julgamento, agora pela audição das gravações dos depoimentos oralmente prestados em audiência.

Como lapidarmente referiu o Prof. Germano Marques da Silva (com a autoridade que lhe advém do facto de ser um dos principais obreiros da revisão do CPP, operada pela L. 59/98, de 25/8), “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” - Forum Justitiae, Maio/99.

Muito menos se destina a limitar (ou mesmo arredar) o princípio da livre apreciação da prova consignado no artº 127º do CPP.

Em suma: se perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável. O recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova.

Só assim não será quando as provas produzidas imponham decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido. E isto sucederá quando o tribunal decide ao arrepio e contra a prova produzida (v.g., se dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e, ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição se constata que a dita testemunha se não pronunciou sobre tal facto ou, pronunciando-se, disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida) ou quando o tribunal valora a prova produzida contra as regras da experiência, as tais que, no dizer de Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, II, 30, se traduzem em “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade”.

Fora destes casos, “quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia numa opção do julgador, assente na imediação e na oralidade, intrínsecas ao julgamento, o tribunal de recurso só estará devidamente habilitado a exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende patentemente as regras da experiência comum”.

E neste sentido vem apontando, de modo uniforme, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, do que constitui demonstração o Ac. STJ de 14/4/2011, Proc. 117/08.3PEFUN.L1.S1, rel. Souto de Moura: “IV - Ora, ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no art. 127º do CPP, ou seja, assenta (fora das excepções relativas a prova legal que não interessam ao caso), na livre convicção do julgador e nas regras da experiência. Por outro lado, também não pode esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá, e o julgamento da Relação não permite. Basta pensar, naquilo que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir. V - Serve para dizer, que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado”.

E foi nesta linha de raciocínio que o tribunal a quo apreciou e decidiu a impugnação da matéria de facto.

Daí que, como nos parece claro, se não verifique qualquer omissão de pronúncia ou falta de fundamentação, improcedendo assim esta pretensão, suscitada pelo recorrente.

B) É nulo o acórdão recorrido, por omissão de pronúncia sobre a violação do princípio in dubio pro reo, suscitada pelo recorrente?

Afirma o recorrente que “o Tribunal a quo também não se pronuncia corretamente sobre a questão levantada pelo arguido quanto à viol(aç)ão do Princípio in dúbio pro reu, pois alicerça o seu pensamento no sentido de que não tem aplicação porque não se vislumbra do acórdão condenatório quaisquer dúvidas que o Tribunal de 1ª instância tenha ficado sobre os factos, mas a violação do mencionado Princípio é decorrente da análise efetuada à reapreciação da prova com origem na impugnação da matéria de facto que o arguido invocou”.

Em boa verdade, até pela forma como o recorrente suscita esta questão se mostra evidente que, efectivamente, o mesmo reconhece a inexistência de qualquer omissão de pronúncia.

Aquilo que o recorrente afirma, ao cabo e ao resto, é que o tribunal a quo abordou a questão por ele suscitada; não o fez, porém, “corretamente” (sic). E isto, como é óbvio e dispensa grandes considerações, não se traduz em qualquer omissão de pronúncia, antes numa errada decisão sobre uma questão suscitada.

Mas nem por este prisma assiste alguma razão ao recorrente.

A este propósito, pode ler-se no acórdão recorrido:

“Violação do in dubio pro reo

Resta, finalmente, voltar a acrescentar que não descortinamos que tenha sido foi violado o princípio in dubio pro reo, ou seja, se perante a dúvida insanável, séria e fundada a respeito dos factos impugnados, o tribunal a quo decidiu contra o arguido.

Ora, o certo é que o tribunal de 1ª instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação da factualidade impugnada pelo recorrente, que pudesse ter resolvido de forma favorável ao mesmo.

Conforme já se fez notar, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e in dubio pro reo.

Ora, este princípio in dubio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (art. 32º, nº 2 da CRP), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.

O convocado princípio in dubio pro reo constitui efetivamente uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.

O aludido princípio impõe, pois, uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.

Daqui se retira que a sua preterição exige que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.

Saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto, que não cabe num recurso restrito à matéria de direito.

Donde, a apreciação da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.

Ora, o recorrente limita-se a concluir, de forma algo simplista que, em relação aos propalados factos por si impugnados, face à prova produzida, houve violação do princípio in dubio pro reo.

No entanto, não resulta da decisão recorrida relativamente aos assinalados factos provados por si impugnados que o Tribunal a quo se defrontou com dúvidas que resolveu contra o arguido recorrente ou demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, se impunha que a devesse ter tido.

Emerge da motivação da decisão recorrida que o tribunal não teve quaisquer dúvidas quanto ao cometimento pelo arguido dos factos nucleares respeitantes à imputação efetuada, que se baseiam em prova legal, escorreita e consistente.

A alegação do recorrente, no sentido de que foram dados como provados factos sem prova bastante, e dessa forma violado o princípio in dubio pro reo, é baseada numa determinada perspetiva da defesa sobre a prova produzida, de todo não coincidente com aquela que foi a do tribunal recorrido e que está detalhadamente explanada no texto da decisão condenatória.

Da análise da decisão recorrida não emerge qualquer dúvida insuperável e razoável sobre a valorização da prova concernente à factualidade impugnada, antes uma análise criteriosa da mesma, de modo a permitir a compreensão da razão pela qual os factos em causa foram dados como provados, num adequado e pleno exercício da livre apreciação da prova, carecendo, pois, totalmente de fundamento a invocação de violação do princípio in dubio pro reo.

Assim, improcedem os argumentos aduzidos pelo recorrente para pugnar pela violação do princípio in dubio pro reo”.

E por aqui se vê, de um lado, que apreciada foi a questão (violação do princípio in dubio pro reo) suscitada pelo recorrente e, de outro, que o foi de forma correcta e isenta de reparos.

Com efeito, o princípio in dubio pro reo é uma decorrência natural, em matéria probatória, da presunção de inocência do arguido, de consagração constitucional (artº 32º, nº 2 da CRP), que se traduz na regra seguinte: em caso de dúvida sobre a verificação de determinado facto, o tribunal decide da forma mais favorável ao arguido.

Pressuposto de tal actuação é, pois, que o tribunal se tenha quedado perante uma dúvida.

Porém, a dúvida que não pode ser resolvida contra o arguido, não é aquela que ele tem ou que ele entende que o tribunal, não tendo, deveria ter tido. É, isso sim, aquela que assalta o tribunal, no processo de formação da sua convicção.

E tal dúvida há-de ressaltar de qualquer elemento objectivo, máxime da própria sentença/acórdão e, concretamente, da fundamentação da convicção dos julgadores quanto à matéria de facto apurada.

Ora, o tribunal recorrido não encontrou, no acórdão da 1ª instância, qualquer elemento indiciador de que os julgadores se tenham quedado perante dúvida, razoável ou não, sobre a verificação dos factos essenciais constantes da acusação.

E, por isso, arredou a reclamada violação do princípio in dubio pro reo, em decisão que, também aqui, se mostra isenta de censura.

C) As imagens captadas pelo sistema de videovigilância constantes de um DVD junto aos autos não podem ser valoradas como prova, uma vez que não foram apreendidas nos termos da lei processual? E tendo o acórdão recorrido valorado prova ilícita, conheceu de questões que não podia ter conhecido, em violação da al. c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP?

Esta questão foi suscitada pelo recorrente no recurso que interpôs do acórdão da 1ª instância para o Tribunal da Relação de Guimarães.

E é reeditada neste recurso, com roupagem pretensamente diferente, mas com o mesmo fundamento.

Assim a decidiu o tribunal a quo:

“Prova proibida - Videovigilância

Em sede de recurso do acórdão proferido, vem o recorrente alegar que no tribunal recorrido foi valorado um meio de prova proibido, referindo-se concretamente às imagens captadas pelo sistema de videovigilância existente na casa da vítima, constantes de um DVD junto aos autos, transcritos no auto de fls. 268 a 275.

Coloca em questão a validade processual dessa prova, que teria sido obtida de forma inválida, e, por isso, não poderia ser atendido como meio probatório, como foi. Para além disso, tendo o tribunal recorrido conhecido de uma questão de que não podia tomar conhecimento, pronunciou-se sobre questão que não devia apreciar, in casu, conheceu, analisou e valorou prova nos autos, invalidamente obtida, produzida em sede de inquérito e atendida em audiência de julgamento, e cuja admissão, valoração e exame crítico para formar a sua convicção não poderia ser considerada.

“Assim, deixando de considerar prova válida junta aos autos e incluída na Acusação, concretamente os vídeos e fotogramas das imagens do sistema de videovigilância, dela não se pronunciando, a sentença recorrida padece do vício de omissão de pronúncia, previsto na 1.a parte, da alínea c), do n.º 1, do artigo 379.º do Código de Processo Penal, motivo pelo qual é nula a sentença proferida”.

Afirmando: “Contudo, não podia, como o foi, a mencionada prova ser carreada para o processo sem ter sido devidamente apreendida.

Isto porque, a prova em causa foi operada pela via da solicitação/injunção, conforme melhor se atesta pelo referido Auto de Inquirição da Testemunha.

Ora, tendo existido solicitação/injunção para a apresentação ou concessão da prova a quem tinha disponibilidade ou controlo dos mencionados dados, não existiu voluntariamente uma disponibilização, mas sim, foi fornecida mediante uma ordem.

Não tendo sido apreendida, a obtenção da referida prova por reprodução mecânica não cumpriu os requisitos de licitude exigidos pelo artigo 167º do CPP, e, em consequência, como a própria lei culmina, não podem ser valoradas como prova.

Tendo o acórdão recorrido valorado prova ilícita, proibida, conheceu de questões que não podia ter conhecido, em violação da al. c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP.

Pelo que, não pode a fundamentação que se baseou na prova proibida ser tida em consideração.”

Vejamos.

Quanto ao alegado excesso e omissão de pronúncia

O recorrente veio arguir a nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia (artigo 379.º n.º1, alínea c) por virtude de o tribunal ter conhecido oficiosamente uma questão de que não podia tomar conhecimento.

Vejamos.

O artigo 164.º, do CPP, quanto à prova documental, consagra:

(…)

Prescreve o artigo 165.º, do CPP:

(…)

Por sua vez, o artigo 167.º, do mesmo diploma legal dispõe:

(…)

Relativamente às apreensões, o art. artigo 178.º, dispõe:

(…)

A propósito da questão colocada a este título pelo recorrente, vamos reproduzir o que muito bem foi dito pelo Srº Procurador Geral Adjunto no seu parecer, que, com a devida vénia, subscrevemos:

“(…)

No que concerne à primeira questão, trata-se da validade de uma concreta prova, a resultante de uma videovigilância.

Observa o arguido recorrente, expressamente, que as imagens de videovigilância constantes do processo não poderão ser utilizadas para firmarem a livre convicção do julgador por constituírem prova inválida, pela singular razão de que, como expressamente menciona, a obtenção daquelas “não cumpriu os requisitos de licitude exigidos pelo artigo 167º do CPP”. Todavia, incumpriu, assim o afirma, porque aquela prova não foi apreendida, como prevê o art.º 178 do mesmo CPPenal.

Posta a questão desta forma pelo arguido, necessariamente que este não assenta a invalidade da obtenção daquela prova, da videovigilância, como prevê o art.º 167, n.º 1 daquele Código, afinal na sua ilicitude penal - “nos termos da lei penal”, diz este preceito, mas sim numa ilicitude adjectiva. A invalidade daquela prova decorre, assim o afirma, por ela ter sido “carreada para o processo sem ter sido devidamente apreendida” (fls.9 da motivação), não tendo o órgão de polícia criminal (OPC) formalizado a apreensão, que “Os OPC devem elaborar um Auto de Apreensão que deve ser assinado pelo OPC e pelo detentor dos objetos apreendidos.”.

A sem razão do recorrente é por demais evidente, pois que, neste particular, não avança uma qualquer situação que revele que a prova em causa tenha sido obtida através de um método proibido de prova, na previsão do art.º 126 do CPenal. Em momento algum afirma o recorrente que tal prova tenha sido obtida através de tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa, ou através de intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do titular respectivo.

Afinal, a ilicitude que o arguido avança não reveste natureza penal a única aqui relevante, assumindo-se claramente processual e a existir ela configuraria não uma qualquer nulidade art.ºs 119 e 120 do CPPenal, mas sim uma mera irregularidade que, aliás, nunca arguiu no tempo oportuno, ou seja, em conformidade com o previsto no art.º 123 do CPPenal.

Em todo o caso, não se deverá olvidar que “Não previu expressamente o legislador, como meio de obtenção de prova os meios electrónicos de vigilância.” acórdão do TRG, de 29/03/2004, proc. 168003-2, com a relatora desembargadora Maria Augusta. Mas tal meio de obtenção de prova tinha de ser assegurado pelo órgão de polícia criminal de acordo com o previsto no n.º 2 do art.º 55 do CPPenal. Não se olvidará que mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente, é da competência dos órgãos de polícia criminal “praticar os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova” n.º1 do art.º 249 do dito CPPenal.

Então, a prova em causa é plenamente admissível e válida art.º 125 do CPPenal.

2.2 Decorre do exposto que não qualquer fundamento para afirmar, como faz o arguido recorrente, que o acórdão é nulo por excesso de pronúncia. A expressa alusão que faz ao art.º 379, n.º1, al. c) do CPPenal não deixa qualquer dúvida sobre tal. É que, como aquele afirma, afinal tal excesso de pronúncia decorre da circunstância daquele haver “valorado prova ilícita, proibida, conheceu de questões que não podia ter conhecido, em violação da al. c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP”.

O acórdão em causa, valorou, como devia, a citada prova e não conheceu de uma qualquer questão de que não lhe era lícito conhecer por não estar compreendida no seu objecto.

Inexiste, pois, a convocada nulidade.

Efetivamente, cumpre referir que a alegada ilegalidade processual invocada pelo recorrente, relativa à obtenção do meio de prova (DVD contendo registo da câmara de videovigilância instalada na casa da vítima) nunca integraria qualquer nulidade.

Com efeito, mesmo que se entendesse que a apreensão e junção desse meio de prova havia sido indevidamente efetuada, e não legalmente validada, tal apreensão, redução a auto e validação constituiriam pressupostos dessa junção, e consequente apreciação e valoração como tal, a verdade é essa omissão traduziria mera irregularidade, há muito sanada.

A alegada ausência de auto, e posterior validação por parte da autoridade judiciária competente, de apreensão a determinar a junção aos autos do DVD onde constam os registos retirados da câmara de vigilância, preencherá um vício estritamente processual, vício que, não estando previsto como nulidade, só pode, nos termos do art. 118º, nºs 1 e 2, do CPP, constituir irregularidade. Por isso, para ser conhecida, tinha de ser arguida perante o tribunal de 1ª instância no prazo referido no nº 1 do art. 123º, do mesmo diploma legal. Nunca em sede de recurso.

Recurso só poderia haver de decisão que apreciasse a arguição da irregularidade. Assim, não se tendo seguido esse caminho, o vício, a ter existido, mostra-se sanado.

E, assim sendo, o tribunal recorrido não tinha de pronunciar-se sobre uma questão que não lhe foi colocada, como teria de ser, e tinha caminho aberto para tomar em consideração esse elemento probatório, apreciar, ponderar e valorar essa prova, fazendo uso do princípio da livre apreciação da prova, constante do art. 127º, do CPP, sem que daí resulte a apontada nulidade por excesso de pronúncia.

Sendo certo que, nos termos da alínea c) do n.º1 do artigo 379º do Código de Processo Penal a sentença é nula “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento.”

(…).

Repare-se que o DVD com gravação das imagens e som do sistema de videovigilância, junto a fls. 306 dos autos, consta dos meios de prova apresentados pelo Ministério Público na sua acusação (Cfr: ref. 49161732), e o recorrente não deduziu qualquer oposição a que esse meio de prova fosse visionado ou atendido pelo tribunal, ou seja, não suscitou uma eventual proibição de valoração do vídeo face ao disposto no art.º 199.º do Código Penal, e tendo sido indicado na acusação pelo M.P., tal meio de prova tinha de ser apreciado pelo Tribunal no âmbito da fundamentação da sentença, em obediência ao ditame do artigo 374.º, n.º2 do CPP para, na conjugação dos demais meios probatórios, serem extraídas as devidas ilações para os fins da decisão a proferir.

Como se escreveu num recente aresto deste Tribunal:

«É óbvio que se autoridade judiciária a quem a apreensão é apresentada não a validar por considerar que a mesma não satisfaz os pressupostos legais, o meio de prova obtido constitui prova proibida e o apreensor incorre em responsabilidade disciplinar e criminal.

No caso em apreço a apreensão não foi declarada inválida. Importa não confundir a declaração de invalidade com a omissão de validação.

Por isso que a referida citação doutrinal para além de truncada nunca teria, manifestamente, aplicação ao caso sub judice.

Acresce que alguma jurisprudência vem assinalando que a exigência de validação pela autoridade judiciária não passa necessariamente pela prolação de uma decisão expressa e autónoma acerca da validade da apreensão. Como se decidiu no Ac. da Rel. de Lisboa de 6-11-2007, "sempre que houver no processo elementos que demonstrem, de forma inequívoca, que o Ministério Público fiscalizou a legalidade das apreensões efectuadas pelos órgãos de polícia criminal e que, embora de uma forma tácita, as considerou válidas, deve considerar-se cumprido o disposto no n.º5 do artigo 178.º”. No mesmo sentido se pronunciaram os Acs. da Rel. do Porto de 6-2-2013, proc.º n.º 6/07.9GABCL.Pl, rel. Eduarda Lobo e de 30-5-2007, proc.º n.º 0741160, rel. António Gama, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

No caso em apreço, mesmo que o Ministério Público não tivesse validado expressamente a apreensão do punhal sempre se poderia afirmar, parafraseando o citado Ac. da Rel. do Porto de 6-2-2013, que o Ministério Público fiscalizou a sua legalidade e considerou de forma tácita, mas inequívoca, que essa apreensão havia sido válida uma vez que ao deduzir a acusação a incluiu nos meios de prova (cfr. fls. 76).

Por outro lado, de acordo com a doutrina e a jurisprudência mais autorizadas a falta (omissão) de validação da apreensão efectuada pelos OPC encerra ou uma nulidade sanável prevista no artigo 120.º, n.º2, alínea d) do CPP (Santos Cabral, in Henriques Gaspar e outros, Código de Processo Penal Comentado, 2ªed., Coimbra 2016, pág. 702, Pinto de Albuquerque, Comentário do Processo Penal, 4ªed, Lisboa, 2011, pág. 505, Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, vol. II, Coimbra, 2019, pág. 635 e Ac. do STJ de 27-8-2021, proc.º n.º 1/20.2F1PDL.S1, rel. Nuno Gonçalves) ou uma mera irregularidade (Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, Coimbra, 2017, pág. 302 e Acs. do STJ de 17-5-2007, proc.º n.º 07P1231, rel. Cons.º Pereira Madeira, da Relação do Porto de 30-5-2007, proc.º n.º 0741160 rel. António Gama, todos in www.dgsi.pt e da Relação de Coimbra de 8-10-2008, Col. de Jur., ano XXXIII, tomo 4, pág. 51).

Ora em qualquer destas vertentes a referida nulidade/irregularidade muito estaria sanada pelo decurso do tempo (cfr. artigos 120.º, n.º3 e 123.º, n.º1 , ambos do CPP).» (Cfr. Ac. da Rel. de Guimarães, de 22/02/2023, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho, não editado, que aqui seguimos de muito perto)

De qualquer forma

O facto da decisão recorrida ter considerado o conteúdo de um vídeo obtido através de uma câmara existente na moradia da vítima, não deve considerar-se meio de prova proibida, nos termos do referido art. 126º, n.º 3, do CPP, porquanto a captação de imagens por ela efetuada não constitui a prática de um crime de fotografias ilícitas, tal como p. e p. pelo art. 199º, n.º 3, do Código Penal citado.

Conforme constitui jurisprudência praticamente uniforme e reiterada não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, constituindo o único limite a esta justa causa a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral do visado.

Como justamente se salientou no douto Ac. do STJ de 20-6-2001, Col de Jur-Acs do STJ, ano IX, tomo 2, pág. 221:

“I.- As proibições de gravação de vídeo mesmo que com o consentimento das pessoas visadas, na medida em que o legislador constitucional e o ordinário pretendem defender a vida, actividade privada das pessoas, pressupõe, v.g., que as imagens tomadas o foram em algum local privado, total ou parcialmente restrito, no qual, segundo as concepções morais vigentes, uma pessoa não deve ser retratada, abrindo-se uma excepção sempre que exigências de polícia ou dos tribunais exigirem ou necessitarem de tais gravações para proteger direitos ou garantias fundamentais que, por exemplo, a vida ou a integridade física exigem.

Aliás, o próprio artigo 79.º, n.º 2 do Código Civil prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem exigências de polícia ou de justiça, o que, naturalmente, face à sua natureza fragmentária e ao seu princípio de intervenção mínima, também deve ser considerado como extensível ao direito penal. E, consagrando-se neste âmbito, o princípio de que o ordenamento jurídico deve ser encarado no seu conjunto, dispõe o artigo 31º/1 C Penal, que o facto não é criminalmente punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.

No que concerne às exigências de justiça, entende-se que a produção e a utilização, como prova, em processo penal, de fotografias e/ou vídeos poderão, em situações excecionais, ser admissíveis quando em causa esteja a necessidade de prevenção de perigos, obedecendo se sempre ao princípio da proporcionalidade como baluarte da colisão de direitos fundamentais.

Uma outra figura jurídica que procede à redução teleológica do tipo é o denominado pensamento vitimo dogmático que preconiza que aquele que comete um ato ilícito vê caducar a sua tutela jurídica de tal modo que se a vítima de um crime capta a imagem criminosa não é responsabilizada. Em termos impressivos Paulo Pinto de Albuquerque assevera que podem ser valoradas como prova, nos termos do art. 167.º do CPP, as retratações da materialidade da imagem do crime, ou seja, as imagens relativas aos atos preparatórios e de execução de crimes, ainda que adquiridas de forma oculta, desde que esse seja o único meio prático e eficaz de garantir ao ofendido o seu direito de proteção contra a vitimização e se deixe salvaguardado o núcleo do direito constitucional à privacidade, uma vez que o art. 26.º , n.º 1, da CRP e o art. 199.º , n.º 2, do CP, não protegem a imagem criminosa.

Como justamente se conclui no Ac da Relação de Coimbra de 18-5-2016, proc.º n.º 148/12.9PBLMG.C1, rel. Maria Pilar de Oliveira, após análise da jurisprudência até então produzida:

« (…) a utilização de câmaras de vigilância por particulares no sentido da protecção de pessoas e bens é licita desde que não abranja espaços destinados à vida estritamente privada dos cidadãos (caso em que poderia estar em causa o cometimento do crime de devassa da vida privada do artigo 192º do CP e que constitui o limite da licitude de da captação de imagens por particulares) sendo lícita a utilização das imagens assim obtidas como meio de prova de ilícito criminal, independentemente de terem sido captadas com o conhecimento do visado, de autorização do mesmo, ou de esses sistemas de vigilância terem sido aprovados pela CNDP”.

“Aliás, os argumentos traçados permitem ir mais longe e concluir pela licitude de imagens colhidas mesmo que em espaços destinados à vida estritamente privada, como o interior de habitações, pelos legítimos utilizadores de tais espaços no sentido da defesa dos seus bens pessoais e patrimoniais, desde que as imagens não digam respeito ao núcleo duro da vida privada e mais sensível de cada pessoa, como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, o que nunca estará em causa quando as imagens documentam a prática de crimes por agentes estranhos ao espaço e que nele se introduziram ilegitimamente».

Consequentemente, nestes casos em que está em causa a utilização, necessária adequada e proporcional, de imagens como meio de prova de ilícito criminal, a existência da referida justa causa apenas será afastada pela inviolabilidade dos direitos humanos, designadamente a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral das pessoas, nomeadamente ao núcleo duro da vida privada como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita.

De acordo com o que foi apurado no âmbito da audiência e decorre do acórdão recorrido, a câmara em causa encontrava-se na moradia da vítima e virada para o terreno circundante da mesma, tudo pertencente a essa moradia, ou seja, num espaço particular desta.

Por conseguinte, a mesma câmara não se destinava a obter imagens que pudessem afetar o núcleo duro da vida privada de qualquer pessoa que entrasse no recinto dessa casa (onde se inclua a intimidade, sexualidade, saúde, vida particular e familiar mais restrita), mas tão somente, a captar a identidade das pessoas que acedam à mesma.

Na situação em apreço ocorre, pois, a referida causa justificativa, qual seja, a proteção dos bens patrimoniais e privacidade da moradora daquela casa, sendo que as gravações - não afetam “o núcleo duro da vida privada da pessoa visionada (onde se inclua a sua intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas)”, isto é, a “área nuclear inviolável da intimidade”.

Consequentemente a prova resultante do vídeo em causa não é uma prova proibida.

Parafraseando Milene Viegas Martins, “A admissibilidade de valoração de imagens captadas por particulares como prova no processo penal” in Revista de Concorrência e Regulação, Coimbra, Ano 4, nº 14/15, Abril-Setembro 2013, pág. 193, a utilização das imagens, obtidas pelo sistema de videovigilância da vítima, como prova, no processo penal são admissíveis, dado que não representam qualquer ilícito penal. Isto porque a utilização das imagens que materializam a prática do crime é idónea à identificação do arguido e ao afastamento da agressão da propriedade mediante a perseguição criminal, sendo, também, razoável, uma vez que não houve exposição arbitrária da imagem do arguido e conota-se pelas superiores vantagens para o interesse geral, máxime a proteção da propriedade e segurança de bens, bem como o funcionamento eficaz da justiça material.

E porque a sua reprodução não é ilícita nos termos da lei penal (artigo 167.º n .º 1 do CPP) podia e devia ter sido valorada. (Ibidem Ac. da Rel. Guim, de 22/02/2023, supra citado)

Improcede, por conseguinte, a posição assumida pelo recorrente no que concerne à apreensão do DVD e valoração da prova contida no mesmo, bem como a invocada nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.

Nesta parte, improcedendo também o recurso”.

Aqui chegados:

Lidas as conclusões do recurso interposto do acórdão proferido na 1ª instância e comparadas com as ora extraídas da motivação do recurso que interpôs para este Supremo tribunal, há que concluir pela identidade das mesmas, no que a esta concreta questão diz respeito.

Tudo isto como se, entretanto, não tivesse sido proferido – pelo Tribunal da Relação de Guimarães – um acórdão apreciando e decidindo essa questão, sendo certo que é este acórdão – o proferido pelo tribunal da Relação – que aqui se mostra recorrido, que não o proferido pela 1ª instância.

A ausência de novidade argumentativa justificará, no caso, alguma contenção nesta matéria.

Como se refere no Ac. STJ de 15/3/2012, Proc. 236/07.3GEALR.E1.S1, 3ª sec., em entendimento que partilhamos:

“(…) II - Como se disse no Ac. do STJ de 07-11-2007, Proc. n.º 3990/07 - 3.ª, “Quando a questão objecto do recurso interposto para o Supremo seja a mesma do recurso interposto para a Relação, tem o recorrente de alegar (motivando e concluindo) como fundamento do recurso, as razões específicas que o levam a discordar do acórdão da Relação: é que o acórdão recorrido é o acórdão do tribunal superior – o Tribunal da Relação –, que decidiu o recurso interposto e não o acórdão proferido na 1.ª instância.

III - Não aduzindo o recorrente discordância específica relativamente ao acórdão da Relação, que infirme os fundamentos apresentados pela Relação, no conhecimento e decisão da mesma questão já suscitada no recurso interposto da decisão da 1.ª instância, há manifesta improcedência do recurso assim interposto para o STJ.

IV - Porém, se nos afastarmos dessa perspectiva um tanto redutora ou restritiva, de ordem processual formal, poderá dizer-se que embora o recorrente reedite no presente recurso para o Supremo, as mesmas conclusões apresentadas no recurso interposto para a Relação – e, por isso, as questões ventiladas no recurso são as mesmas, embora não aduza discordância específica relativamente ao acórdão da Relação, não explicitando razões jurídicas novas perante o acórdão da Relação, que infirmem os fundamentos apresentados pela Relação no conhecimento e decisão das mesmas questões –, não significa, contudo, que fique excluída a apreciação dessas mesmas questões, mas agora relativamente à dimensão constante do acórdão recorrido, o acórdão da Relação, no que for legalmente possível em reexame da matéria de direito – e sem prejuízo do disposto no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, nos termos do art. 434.º, ambos do CPP – perante o objecto do recurso interposto para o Supremo, pois que o recurso enquanto remédio jurídico, é expediente legal para eventual correcção da decisão recorrida (não seu mero aperfeiçoamento), como meio de impugnar e contrariar a mesma, e, sem prejuízo de, se nada houver, de novo a acrescentar relativamente aos fundamentos já aduzidos pela Relação na fundamentação utilizada para o julgamento dessas mesmas questões, e que justifique a alteração das mesmas, é de concluir por manifesta improcedência do recurso, pois que caso concorde com a fundamentação da Relação, não incumbe ao Supremo que justifique essa fundamentação com nova argumentação (subl.nosso).

Porque assim é, mostrando-se decidida, pelo tribunal a quo, a questão ora em apreço, em termos e com fundamentação que, no essencial, merecem a nossa concordância, pouco resta acrescentar.

Está em causa saber da (in)validade das “imagens de videovigilância constantes de DVD junto aos autos, e respetivo auto de transcrição a fls. 268 e 275, bem como todas as decorrentes destas”, as quais “não podem ser valoradas, por não ter sido, aquela, apreendida, nos termos conjugados do disposto nos artigos 167º n.º 1 e 2 e 178º e ss do CPP”.

É assim que o recorrente enquadra a sua pretensão, motivo pelo qual razão assiste ao Exmº Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Guimarães quando afirma que o arguido «não assenta a invalidade da obtenção daquela prova, da videovigilância, como prevê o art.º 167, n.º1 daquele Código, afinal na sua ilicitude penal - “nos termos da lei penal”, diz este preceito, mas sim numa ilicitude adjectiva. A invalidade daquela prova decorre, assim o afirma, por ela ter sido “carreada para o processo sem ter sido devidamente apreendida” (fls.9 da motivação), não tendo o órgão de polícia criminal (OPC) formalizado a apreensão, já que “Os OPC devem elaborar um Auto de Apreensão que deve ser assinado pelo OPC e pelo detentor dos objetos apreendidos”».

E percebe-se que o recorrente não tenha suscitado a ilicitude penal, substantiva, das imagens recolhidas pela câmara de vigilância colocada na propriedade da vítima, antes se ancorando numa pretensa ilicitude processual, adjectiva, resultante do facto de não ter sido formalizada qualquer apreensão dessas imagens.

E percebe-se porque, como nos parece manifesto, a defesa da ilicitude penal de tais imagens seria tarefa destinada ao insucesso.

Como explica o Cons. Santos Cabral 5, “o artigo 167º do CPP faz depender a validade da prova produzida por reproduções mecânicas da sua não ilicitude face ao disposto na lei penal. Significa o exposto que a exclusão deste tipo de prova depende da sua configuração como um acto ilícito em função da integração de tipos legais de crime que visam a tutela de direitos da personalidade, como é o caso do direito à intimidade”.

O crime de gravação e fotografias ilícitas vem previsto e sancionado no artº 199º do Cod. Penal.

O ora recorrente jamais afirmou – ou, sequer, sugeriu – a verificação dos elementos típicos de tal crime, na situação em apreço, em ordem a concluir pela ilicitude das imagens recolhidas, “nos termos da lei penal”, para fazer uso da expressão contida no artº 167º do Cod. Penal.

E, na verdade, não tinha razão para o fazer: “Quando os valores jurídicos protegidos pela estatuição penal – artigo 199º - e relativos à imagem ou palavra, estão a ser instrumentalizados na ofensa de outros direitos, ou quando a não protecção concreta do direito à imagem, ou à palavra, é condição de eficácia do Estado na protecção de outros valores, situados num patamar qualitativo superior, não se vislumbra a possibilidade de afirmação de prevalência daquela protecção contra tudo e contra todos” – Cons. Santos Cabral, op. e loc. cit..

Daí que, como bem se refira no acórdão recorrido, a pretensão do recorrente tenha sido formulada em razão de uma pretensa invalidade processual, decorrente da não apreensão – formal – das imagens em causa pelo órgão de polícia criminal, tendo sido integradas nos autos na sequência de uma entrega das mesmas, voluntária, efectuada pelo filho da vítima.

Porém, a inexistência de um acto formal de apreensão e subsequente validação pelo magistrado titular do inquérito não se traduz em qualquer nulidade insanável, por não obter guarida na previsão legal do artº 119º do CPP.

E entendendo-se verificada a existência de uma invalidade, sempre a mesma constituiria nulidade dependente de arguição – artº 120º, nº 2, al. d) do CPP - ou mera irregularidade – artº 123º do CPP – o que, como se refere no acórdão da Relação de Guimarães transcrito no acórdão recorrido, não é pacífico na doutrina e jurisprudência, sendo certo que em qualquer dos casos há muito que decorrera o prazo legal para as suscitar – artº 120º, nº 3, al. c) e 123º, nº 1, ambos do CPC, respectivamente, devendo considerar-se sanada tal nulidade/irregularidade.

E porque assim é, não existe qualquer prova ilícita valorada pelo tribunal de 1ª instância.

E, de outro lado e como nos parece claro, também aqui se não vislumbra qualquer nulidade do acórdão recorrido e, nomeadamente, a suscitada pelo recorrente, a este propósito: o tribunal a quo não conheceu de questão de que não pudesse tomar conhecimento; conheceu, isso sim, de questão suscitada pelo recorrente na sua motivação de recurso. O facto de o ter feito de modo desconforme à vontade do recorrente não inquina o acórdão proferido de qualquer nulidade, nomeadamente a prevista no artº 379º, nº 1, al. c) do CPP.

Improcede, assim, mais esta questão suscitada pelo recorrente.

D) Qualificação jurídica dos factos apurados: a conduta do recorrente integra a prática de um crime de homicídio simples, e não qualificado?

O arguido foi condenado, em 1ª instância, como autor de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos artºs 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. b), ambos do Cod. Penal e artº 86º, nºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/2, decisão que foi confirmada no acórdão ora recorrido.

Dispõe-se no artº 131º do Cod. Penal que “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos”.

E acrescenta-se no artigo 132º:

“1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2. É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

(…)

b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1º grau;

(…)”.

Resulta do factualismo apurado que, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidas na matéria assente, o arguido se dirigiu a casa da vítima, munido de duas facas e com o propósito de lhe tirar a vida. Abordou-a sorrateiramente, aproveitando o facto de a mesma se encontrar de costas e colocou-se por trás dela, com uma faca na mão. Na sequência do confronto físico que então teve lugar e que precipitou a queda da vítima em posição de decúbito dorsal, o arguido colocou-se por cima dela e, com força, apertou-lhe o pescoço, inicialmente com uma das mãos e depois com ambas, sem largar ou afrouxar, até lhe cortar a respiração e lhe tirar a vida.

Arguido e vítima mantiveram uma relação análoga à dos cônjuges durante 12 anos, a qual havia cessado cerca de dois meses antes destes factos.

Ora, perante este factualismo, assim se decidiu no acórdão recorrido:

“(…)

o conjunto da matéria de facto provada revela várias circunstâncias que tornam o homicídio em causa, não obstante se apresentar como mais ou menos frequente ou comum, merecedor de ser considerado como de especial censurabilidade ou perversidade.

Por um lado, a circunstância de ter assassinado a mulher com quem partilhou vida em comum durante um período de vida bastante extenso, à volta de 12 anos, e que só havia cessado há 2 meses atrás;

Por outro, o espírito egoísta, revanchista, de inconformismo perante uma situação de rutura dessa relação, que jamais aceitou, e que, alimentado por um sentimento manifestamente possessivo relativamente à pessoa da BB, perante notícias, não confirmadas, de que a mesma estaria na iminência de refazer a sua vida junto de outra pessoa, o levou a assumir a atitude que culminou na morte daquela.

Como bem se salienta no acórdão recorrido: “Um casamento ou qualquer outra ligação da mesma índole, ainda que sem vínculo legal, como era o caso dos autos, é um acto de vontade mútua, com suporte afectivo particularmente forte; se uma das pessoas sente não ter condições para continuar essa relação, isso pode causar desgosto à outra, e até trazer-lhe uma mágoa profunda e duradoura. Mas, seguramente, não lhe dá o direito de agir baseado no primitivo princípio “se não és para mim, não hás-de ser para mais ninguém”, que foi precisamente o que o arguido fez, ainda por cima baseado em rumores que ouviu na freguesia! Não se conformava com a possibilidade de BB poder ter refeito a sua vida, ficou frustrado, achava que ela era sua (como se uma pessoa fosse susceptível de propriedade), tinha ciúmes, e não encontrou melhor saída do que…matá-la.

Por fim, também não podemos deixar de relevar a violência atroz, a forma bárbara como o arguido matou a BB, colocando-a numa situação de agonia e sofrimento durante vários minutos, com certeza percecionando que iria morrer, período durante o qual poderia perfeitamente ter cessado a agressão e desistido dos seus intentos.

Assim não aconteceu, persistiu na intenção de retirar a vida à vítima, comprimindo as suas mãos à volta do pescoço desta até que deixou de respirar, estrangulando-a.

Nenhuma censura merece, pois, a decisão encontrada no que se refere à qualificação do crime, sendo certo que as apuradas circunstâncias que rodearam o episódio que culminou na morte da vítima são de tal modo graves que refletem uma atitude de total distanciamento do arguido às regras que norteiam a vida em sociedade, em relação a uma determinação normal de acordo com os valores vigentes e de respeito para com os outros, ainda mais relativamente a uma pessoa com quem manteve uma relação de vida em comum, em família, durante tanto tempo, o que lhe conferia ainda maior dever de respeito. Ou seja, todo este cenário envolvente conduz a um juízo de que estamos perante uma conduta altamente censurável e perversa.

(…)”.

E efectivamente assim é.

O legislador português, em matéria de qualificação do crime de homicídio, seguiu um critério original, como refere Figueiredo Dias 6: “a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão (…).Por outras palavras, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a ‘especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no nº 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no nº 2”.

Dito de outro modo: “trata-se aqui de um tipo de culpa agravada de homicídio por força da cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade, concretizada de acordo com um elenco de circunstâncias não automático e não taxativo”, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque 7.

O aditamento, aos exemplos-padrão, da circunstância de o facto ser praticado contra cônjuge, ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, foi introduzido pela Lei 59/2007, de 4/9.

Na Proposta de Lei nº 98/X, que está na origem desse diploma, a propósito do aditamento de novas circunstâncias ao crime de homicídio qualificado, afirma-se que “a relação conjugal (presente ou passada) ou análoga (incluindo entre pessoas do mesmo sexo) (…) passam a constar do elenco de circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade. No entanto, a técnica utilizada na tipificação do crime mantém-se inalterada. As circunstâncias não são definidas de forma taxativa, correspondendo antes a exemplos padrão, e não são de funcionamento automático, estando sujeitas a uma apreciação em concreto”.

Ora, arguido e vítima mantiveram uma relação análoga à dos cônjuges, que perdurou cerca de 12 anos.

Esta relação cessou cerca de dois meses antes dos factos a que estes autos se reportam terem ocorrido, na sequência de uma decisão da vítima, que comunicou ao arguido que não pretendia manter tal relação e que ele deveria abandonar a casa.

O arguido terá ouvido, posteriormente, que a sua ex-companheira teria novo namorado e, como provado ficou, agiu com a intenção de tirar a vida àquela, movido apenas por ciúmes e sentimentos de frustração e de posse sobre aquela.

E perante os factos assim apurados, dúvidas não restam de que a apurada conduta do recorrente integra a prática, por ele, do crime de homicídio qualificado, por cuja autoria foi condenado.

Com efeito, uma relação de 12 anos, em tudo idêntica à do casamento, baseada no afecto e ajuda mútua, impunha ao arguido um outro comportamento, ainda que perante uma cessação dessa relação, por si não desejada.

Como se refere no acórdão proferido em 1ª instância, o desgosto que naturalmente lhe terá provocado a decisão de separação comunicada pela sua ex-companheira não lhe conferia o direito de agir baseado no «primitivo princípio “se não és para mim, não hás-de ser para mais ninguém”, que foi precisamente o que o arguido fez».

E fê-lo com absoluto desprezo por 12 anos de vida em comum, com evidente insensibilidade perante o sofrimento de alguém a quem, pelo menos até há bem pouco tempo, o ligavam laços de afecto e de entreajuda.

Mais: fê-lo em execução de decisão previamente assumida, como provado ficou: na sequência de rumores sobre a existência de um novo homem na vida amorosa da sua ex-companheira e que aquele se encontraria em casa desta no dia 11/3/2022, “o arguido formulou o propósito de surpreender o alegado novo namorado com a ex-companheira e de pôr termo à vida desta”. Dirigiu-se a casa da ex-companheira munido de duas facas, abordou sorrateiramente a vítima, com ela se envolveu em confronto físico e, aproveitando uma queda desta, apertou-lhe o pescoço até a sufocar, matando-a.

Como se afirma no Ac. deste STJ de 15/2/2023, Proc. 1964/21.6JAPRT.P1.S1, rel Lopes da Mota, «alargada ao cônjuge ou ex-cônjuge da vítima ou àquele que, ainda que do mesmo sexo e sem coabitação, com ela mantém ou manteve relação análoga à dos cônjuges, a especial censurabilidade ou perversidade resulta da “particular energia criminosa revelada na ultrapassagem de especiais deveres ético-sociais de respeito inerentes a tais tipos de relacionamento” (Teresa Quintela de Brito, op.cit., pág. 215-7). Conforme acentua Fernando Silva (Direito Penal Especial – Crimes contra as Pessoas 3, pág. 72 seg.): “A relação matrimonial assenta a sua vinculação na comunhão de vida, que pressupõe, principalmente, uma união pessoal. Os cônjuges, pelo enlace matrimonial, assumem um conjunto de poderes-deveres que os coloca numa especial relação, pressupondo um respeito e cooperação mútuos. A comunhão de vida que caracteriza a relação conjugal faz emergir uma nova realidade, a de um casal que vive em comunhão afectiva. Aos cônjuges exige-se uma especial e recíproca protecção, pelo que a atitude de actuar, lesando a vida do outro, é reveladora de uma energia criminal susceptível de um elevado grau de censura. A decisão de matar o cônjuge traduz, desde logo, a manifestação de um comportamento especialmente grave, próprio de quem vence contramotivações acrescidas, manifestando um elevado grau de culpa, na medida em que o agente, ao cometer tal facto, contraria, em absoluto, aquela que deveria ser a sua atitude perante o seu cônjuge”».

Como é certo que “o facto de o arguido se relacionar com a vítima como se de marido e mulher se tratasse e de todo o circunstancialismo que rodeou os factos assentar na comprovada intenção da vítima pretender pôr termo a essa mesma relação, mostra a maior carga de censura que a actuação do recorrente merece, verificando-se que com a sua actuação o arguido incorreu na prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos termos dos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, do CP” – Ac. STJ de 23/2/2023, Proc. 531/21.9JAVRL.C1.S1, rel. Leonor Furtado.

No mesmo sentido e em situação similar já se havia pronunciado o STJ, no seu Ac. de 12/11/2020, Proc. 163/18.9GACDV.C1.S2, rel. Helena Moniz: «II - A qualificação com base no art. 132.º, n.º 2, al. b), do CP, baseia-se na “exigência intensificada de respeito pela vida do outro com quem se resolveu constituir família ou formar uma comunhão de vida. A morte dolosa do cônjuge (...) comporta, em regra, uma quebra radical da solidariedade que é em princípio devida pelo agente à vítima”. É esta quebra de solidariedade e respeito mútuo que indicia uma culpa qualificada decorrente da especial censurabilidade do comportamento do agente, dado que os especiais laços existentes entre o agente e a vítima deveriam ter tido um efeito inibitório acrescido; e tendo sido ultrapassado revela uma especial censurabilidade e perversidade do comportamento. III - Tendo em conta os vínculos especiais de respeito e solidariedade entre o arguido e a vítima, tendo em conta o local do crime — a casa que devia ser um local de refúgio e intimidade entre ambos num ambiente de respeito pelas regras básicas —, o momento em que foi cometido — quando ambos se encontravam sós e quando se encontravam no quarto — e a forma como foi praticado — por estrangulamento — não se pode deixar de concluir pela especial censurabilidade do comportamento do agente» 8.

E daí, pois, que mais não reste do que concluir pelo acerto do acórdão recorrido, ao confirmar a condenação do ora recorrente pela prática de um crime de homicídio doloso, p.p. pelos artºs 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. b), ambos do Cod. Penal, e 86º, nºs 3 e 4 da Lei n.º 5/2006, de 23/2, assim improcedendo mais esta questão por ele suscitada.

E) Deve ser reduzida a pena de prisão aplicada ao recorrente?

Pela prática do crime de homicídio qualificado, previsto nos artºs 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. b) do Cod. Penal e artº 86.º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/2, foi o arguido e ora recorrente condenado na pena de 19 anos de prisão.

E a este propósito, assim se decidiu no acórdão recorrido, que confirmou tal condenação:

“(…)

Na fixação da pena há, assim, parâmetros de análise imperativos, que constam do art. 71º do Código Penal, relativos à culpa, à prevenção especial e geral e às demais circunstâncias que rodearam o crime -passadas, contemporâneas ou posteriores -, que têm que ser considerados. Percorridos os itens da lei a medida da pena é-nos dada pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente surge a culpa, que indica o limite máximo da pena.

No entanto, o julgador goza de alguma margem de liberdade, de modo que o que há que analisar, quando o recurso se dirige contra a pena aplicada, é se aqueles critérios foram considerados e se a pena encontrada é inadequada ou desajustada quanto à duração.

Tida como boa a pena aplicada, para se proceder a qualquer alteração na sua duração a pena terá que surgir como desproporcionado face à culpa e exigências de prevenção que se façam sentir, pois é susceptível de revista a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação.

Ora, a quantificação decidida pelo tribunal é adequada ao caso, por todas as razões expostas na decisão recorrida, com as quais concordamos inteiramente.

Tendo presentes os princípios e critérios que imperam neste domínio, e que de resto o tribunal recorrido explanou em termos proficientes, a fixação daquela pena, ante a respetiva moldura abstrata, não se nos afigura exagerada como defende o recorrente.

Perscrutada a fundamentação da decisão recorrida quanto à determinação da sobredita pena, são perfeitamente inteligíveis os fatores atendidos e de resto relevantes em sede de determinação da medida concreta e ali claramente evidenciados.

Dessa ponderação resultam sensíveis as exigências de prevenção especial, num domínio criminal onde são muito intensas exigências de prevenção geral, atenta a sua frequência, suscitando generalizada convicção comunitária de insegurança e fraqueza do sistema jurídico penal.

Sendo de relevar que os factos provados são inexoráveis contra as pretensões do arguido. Realçamos o grau da ilicitude e do dolo.

Depois, se é verdade que as necessidades de prevenção especial a satisfazer não são consideráveis, já as necessidades de prevenção geral, como se disse, são muito elevadas.

As relações entre os casais são um tema premente a que toda a sociedade está atenta, nomeadamente porque a conflitualidade é grande e, não poucas vezes, assume consequências dramáticas. Todos os dias surgem notícias sobre estes temas e, muitas das vezes, têm a morte associada. Este problema traz a sociedade, que está muito atenta e tem manifestado uma preocupação crescente pelo tema, em constante sobressalto.

Portanto, esta é uma problemática com muita visibilidade social. Esta visibilidade é acrescida devido ao facto de as decisões dos tribunais não lograrem colocar um freio neste flagelo social e familiar, não terem até hoje conseguido contribuir eficazmente para se alcançar a paz social que todos almejam, apesar da severidade das sanções que têm sido aplicadas em situações deste jaez.

A comunidade está atenta ao problema e ao modo como se gerem estas questões, designadamente em termos de prevenção e na reação aos atos ilegais que deles derivam.

Toda esta realidade vem causando um cada vez maior alarme social.

Repare-se que a pena aplicada a esse crime de homicídio qualificado se situa algo abaixo do ponto médio da respetiva moldura abstrata, ligeiramente acima do seu limite mínimo.

Deste modo, e em suma, atenta a modalidade do dolo com que o recorrente atuou, a ilicitude dos factos, e as exigências de prevenção geral, que aqui tem de ser bem salientadas, sem descurar as importantes necessidades de prevenção especial, nenhum reparo merece a decisão recorrida, a qual em sede de medida da penas do crime analisou e ponderou equilibradamente as circunstâncias relevantes in casu, sendo aquela de manter.

Tanto mais que nesta matéria existe sempre alguma margem de subjetividade do julgador, pelo que a(s) pena(s) só poderão ser alteradas nos casos em que, apesar de respeitados os subjacentes critérios legais, é ostensivo o seu exagero ou desproporção, o que aqui não se verifica, havendo, por isso, de manter-se”.

Entende o recorrente que é excessiva e deve ser reduzida a pena de 19 anos de prisão em que foi condenado, invocando – um pouco à semelhança do que já havia feito aquando da pretendida desqualificação do crime de homicídio – factualidade que ele entende estar verificada mas que, contudo, não consta do rol dos factos apurados.

E é assim que invoca, a esse propósito, um estado de emoção que, dominando-o, desencadeou uma reação agressiva, determinando-o a agir, estado esse que, contudo, não resulta da matéria de facto apurada.

Que o arguido não aceitara a separação, que nutria um sentimento de posse relativamente à vítima, que sentiu ciúmes face a um rumor de que a sua ex-companheira tinha um novo namorado, são factos que se mostram apurados. Que os mesmos lhe tenham provocado um estado de emoção tal (“estado afeto esténico”, assim se lhe refere o recorrente) que o determinasse à prática do crime é, contudo, um salto de raciocínio que a matéria de facto não consente, em termos minimamente objectivos.

Como, aliás – e agora a propósito da medida concreta da pena -, não resulta do factualismo apurado qualquer atitude de arrependimento activo do recorrente nem, tão-pouco, qualquer “atitude provocatória e de ataque que a vítima tomou perante o Arguido”, contrariamente ao por si alegado em sede de motivação de recurso.

O arguido pretende ver tal arrependimento numas manobras de reanimação que terá esboçado, quando se apercebeu que a vítima se encontrava morta.

Da factualidade apurada resulta, porém, que enquanto aguardava a chegada do INEM, o arguido (ponto 10 da factualidade apurada) entrou na habitação de BB, tirou duas cervejas “Super Bock Mini” do frigorífico da cozinha e bebeu-as, deixando as garrafas vazias em cima do depósito das botijas de gás junto à porta de entrada da habitação.

E daí – mas não só por isso – que o tribunal de 1ª instância não tenha vislumbrado o reclamado arrependimento do arguido e, ao invés, assim tenha referido na fundamentação da matéria de facto, no que concerne aos motivos que presidiram à sua conduta:

“(…) - a descontracção, à-vontade e total desassombro demonstrados pelo arguido no comportamento imediatamente posterior aos factos (conforme supra referido em 10)., bem como nos contactos telefónicos estabelecidos com o INEM (o de fls. 292 a 294 e o anterior, fls. 269/270) – pronto para dar indicações e detalhar o seu comportamento (fls. 269), afirmando até “então eu hoje decidi, vim cá matá-la eu” (fls. 270) –, com a testemunha HH (que confirmou a existência da chamada, audível nos registos da câmara de vigilância de casa de BB e transcrita a fls. 270/271, onde o arguido se preocupa com o destino do seu gato e de ter cigarros na cadeia, se refere a BB com insultos – “puta” – e diz “não dava para viver assim, não estava conseguindo (…) gozaram comigo, isso não se faz”), com o aludido patrão GG (fls. 272) – “eu fui dar uma facada nela (…) A puta está ali, está morta, até a língua está para fora (…) Não ia fazer pouco de mim assim” – e até com a sua mãe (fls. 274), a quem comunica de forma factual (e reiterada) o que acaba de fazer, ainda tentando minorar a sua conduta (“ela me deu três facadas”)”.

Convenhamos:

Uma coisa é aquilo que o recorrente entende que devia ter sido provado, quer através do seu próprio depoimento, quer através dos depoimentos das testemunhas, quer através da prova documental junta aos autos.

Outra, completamente distinta, é aquilo que as instâncias deram como provado e que este Supremo Tribunal de Justiça, conhecendo apenas de direito – artº 434º do CPP – há-de ter por assente.

E é perante a matéria tida por assente nas instâncias que há que averiguar se a pena concretamente aplicada se mostra excessiva e, por isso, deve ser reduzida.

Aqui chegados:

A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artº 40º, nºs 1 e 2 do Cod. Penal.

No que concerne à determinação da medida da pena, estatui-se no artº 71º do Cod. Penal que a mesma é feita “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente (nº 2) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências (al. a)), a intensidade do dolo ou da negligência (al. b)), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c)), as condições pessoais do arguido (al. d)), a sua conduta anterior e posterior ao facto (al. e)) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, quando a mesma deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f)).

Como refere Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português”, III, 130, “a determinação definitiva e concreta da pena é a resultante de um sistema pluridimensional de factores necessários à sua individualização. Um desses factores, fundamento, aliás, do próprio direito penal e consequentemente da pena, é a culpabilidade, que irá não só fundamentar como limitar a pena. (…) Mas para além da função repressiva, medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas – de protecção de bens jurídicos – e de reintegração do agente na sociedade”.

Presentes os critérios de determinação da medida concreta da pena enunciados no artº 71º do Cod. Penal, todos haveremos de concordar que o arguido agiu com dolo directo, daí que intenso. É intenso o grau de ilicitude dos factos, traduzido desde logo no seu modo de execução. As consequências da conduta do arguido são, naturalmente, de uma extrema gravidade.

De outro lado,

O crime de homicídio constitui objecto de manifesta reprovação geral e gera um compreensível sentimento de insegurança, sendo certo que a frequência com que vem ocorrendo eleva as necessidades de prevenção geral.

Como correctamente se assinala no Ac. deste STJ de 13/12/2018, Proc. 83/17.4GAARC.P1.S1, da 5ª secção, “a criminalidade contra a vida tem um efeito devastador e potencialmente desestruturante da tranquilidade social comunitária. Os crimes de homicídio constituem um dos factores que maior perturbação e comoção social provocam, designadamente em face da insegurança que geram e ampliam na comunidade. As exigências de prevenção geral são pois de acentuada intensidade”.

E a vida – como todos, por certo, o reconhecemos - é o bem jurídico mais valioso, aquele de cuja preservação dependem todos os outros.

Simas Santos e Leal-Henriques, “Noções Elementares de Direito Penal”, 2ª ed., 169, escrevem:

“(…) a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa, de intimidação, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da regra infringida”.

No ensinamento de Taipa de Carvalho, “Direito Penal, Parte Geral”, Publicações Universidade Católica, 87 - na determinação da medida e espécie da pena o “critério da prevenção especial não é absoluto, mas antes duplamente condicionado e limitado: pela culpa e pela prevenção geral. Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca o limite máximo da pena pode ser superior à medida da culpa, por maiores que sejam as exigências preventivo-especiais (…). Condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca o limite mínimo da pena (ou a escolha de uma pena não detentiva) pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores juridíco-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima. Em síntese: a prevenção geral constitui o limite mínimo da pena determinada pelo critério da prevenção especial”.

O arguido/recorrente estava profissionalmente inserido.

Não tem antecedentes criminais.

Posto isto:

O crime de homicídio qualificado, p.p. pelos artºs 131º, 132, nºs 1 e 2, al. b) do Cod. Penal e 86º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, é punível com prisão de 16 a 25 anos.

Ponderado todo o circunstancialismo supra enunciado, uma pena de 19 anos de prisão, situada ainda no primeiro terço da pena abstractamente aplicável, não é seguramente excessiva, antes se mostra justa, equitativa e adequada a satisfazer as necessidades de prevenção geral e especial, razão pela qual deve ser mantida.

VI. Por tudo quanto exposto fica e em conclusão, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando inteiramente o douto acórdão recorrido.

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justice em 8 (oito) UC´s – artº 513º, nº 1 do CPP e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 11 de Outubro de 2023 (processado e revisto pelo relator)

Sénio Alves (relator)

Teresa de Almeida (1ª adjunta)

Ana Brito (2ª adjunta)

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1. Acessível, como os restantes, relativamente aos quais não for indicada fonte diversa, em www.dgsi.pt.

2. Ainda no mesmo sentido, cfr. Ac. STJ de 11/12/2014, Proc. 33/06.3JAPTM.E2.S1.

3. Cf. entre outros, o acórdão de 14.04.29, proferido no Processo n.º 92/13.2YFLSB.

4. No mesmo sentido, cfr., a título meramente exemplificativo, os Acs. deste STJ de 10/12/2020, Proc. 936/18.2PBSXL.S1 e de 6/11/2019, Proc. 30/16.0T9CNT.C2-A.S1.

5. “Código de Processo Penal comentado”, 3ª ed. revista, de Henriques Gaspar, Santos Cabral e outros, 651.

6. Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 25.

7. Comentário do Código Penal, 3ª ed., 509.

8. Ainda no mesmo sentido, cfr. Ac. STJ de 27/11/2019, Proc. 323/18.2PFLRS.L1.S1, rel. Lopes da Mota: «Estando provado que o arguido e a vítima viveram em coabitação, numa situação de comunhão de vida, durante cerca de 4 anos, que a morte da vítima resulta dessa vivência pessoal, em quebra brutal da relação, por ciúme, deve concluir-se que se mostra preenchida a circunstância prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, com o efeito indiciador de especial censurabilidade ou perversidade do facto homicida, requerendo punição com fundamento na qualificação do crime de homicídio nos termos do n.º 1 deste preceito».