Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2184/16.7T8ALM.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS FUTUROS
DANOS PATRIMONIAIS
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
REMUNERAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
ASSISTÊNCIA HOSPITALAR
MATÉRIA DE FACTO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 09/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITO EM JULGADO
Sumário :

I - Em sede de recurso de revista, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode, por regra, ser objeto escrutínio por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

II - Provando-se que o lesado, vítima de acidente de viação, necessitará de manter tratamentos médicos e fisiátricos sempre que existam períodos de agudização das queixas resultantes das sequelas de que é portador, não sendo de excluir a hipótese de poder vir a necessitar tratamento cirúrgico, nomeadamente com vista à colocação de uma prótese, impõe-se a condenação da seguradora a prestar, tal como foi pedido, a correspondente assistência.

III - Apesar de estar desempregado à data do acidente, mas conhecendo-se qual era o salário que ganhava anteriormente o lesado, afigura-se lógico que se atenda a esse rendimento como referencial para a determinação do dano patrimonial futuro, e não ao salário médio tal como publicitado pelo INE.

IV - Tendo o lesado, pessoa de 45 anos de idade, que auferia um salário médio mensal de €680,00, ficado afetado de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado em 15 pontos, mas praticamente impossibilitado para trabalhos que impliquem uma utilização do membro superior direito, afigura-se justa e adequada a indemnização de €145.000,00 a título de dano patrimonial futuro por supressão da capacidade aquisitiva ou de ganho.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 2184/16.7T8ALM.L1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Lisboa

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA demandou, pelo Tribunal Judicial de ... e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, Tranquilidade - Companhia de Seguros, S.A. (agora Seguradoras Unidas, S.A.), peticionando a respetiva condenação:

a) no pagamento de €10.500,00 por perda de vencimentos até 14 de março de 2016;

b) em indemnização a título de IPP, a liquidar a final;

c) no pagamento de €100.000,00 por danos não patrimoniais;

d) no pagamento de €6.390,00 a título de ITA;

e) na prestação de assistência médica futura, tais como consultas, operações, e tratamentos;

Alegou para o efeito, em síntese, que quando circulava de bicicleta na via pública foi embatido pelo veículo automóvel matrícula 00-MP-00. O acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva da condutora desse veículo automóvel, que circulava desatenta e em excesso de velocidade, tendo mudado de direção sem fazer sinal luminoso indicador da sua intenção.

Em consequência do acidente sofreu o Autor os danos patrimoniais e não patrimoniais que descreve.

A responsabilidade civil decorrente da utilização do referido veículo automóvel estava transferida para a Ré, razão pela qual compete a esta reparar o dano advindo ao Autor.

Contestou a Ré.

Disse, em síntese, que assumiu responsabilidade pela produção do sinistro.

 Quanto ao mais, impugnou os alegados danos e a sua quantificação.

Concluiu pela improcedência da ação.

O Autor requereu a ampliação do pedido, liquidando em € 400.000,00 o dano relativo à alegada IPP.

A final foi proferida sentença, onde se decidiu condenar a Ré a pagar ao Autor:

a) € 145.000,00, a título de indemnização pelo dano patrimonial futuro;

b) € 45.000.00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais;

c) Juros de mora sobre as indemnizações, desde a data da sentença.

No mais foi a Ré absolvida do pedido.

Inconformado com o assim decidido, apelou o Autor.

Fê-lo com parcial êxito, pois que a Relação de Lisboa elevou para €190.000,00 a indemnização pelo dano patrimonial futuro, do mesmo passo que condenou a Ré a prestar ao Autor assistência médica e medicamentosa de que este venha a necessitar nos termos referidos no ponto 63 dos factos provados.

É agora a vez da Ré, insatisfeita com o decidido, pedir revista.

Da respetiva alegação extrai as seguintes conclusões:

1. A Apelante pretende, com o presente recurso de revista, a alteração do acórdão o quo, no que respeita aos montantes indemnizatórios arbitrados ao Autor, 1) a título de dano patrimonial futuro, bem como, 2) a decisão do Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto, e consequentemente 3) a condenação em sede de liquidação de sentença da Ré vir a prestar assistência médica e medicamentosa, bem como, a colocação de uma prótese.

2. No que respeita à indemnização pelo dano patrimonial futuro, que é devida à Apelada em virtude do sinistro em que foi interveniente, e que baseia os presentes autos, o Tribunal da Relação de Guimarães[1], socorreu-se de dois pressupostos: (i) o indicador do ganho médio mensal homem que atinge os 915,00€; (ii) e a situação de desempregado ser equiparada à situação dos jovens.

3. Sucede que, no caso em apreço, temos de nos socorrer dos factos provados, com vista a limitar a incerteza da decisão.

4. A Apelante perfilha do entendimento de que o Tribunal tinha elementos para considerar o valor que auferia o Autor, antes do sinistro e que continuaria a auferir após o sinistro.

5. Dos factos dados como provados resulta, que o Autor ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 15%, sendo que 3% foram arbitrados por força do dano futuro, conforme decorre do relatório pericial efetuado nos autos e do facto provado 26., da sentença.

6. Igualmente, figura dos factos provados que antes do sinistro o Autor trabalhava numa empresa de transportes de mercadorias e auferia uma remuneração média de 680,00€ por mês – Facto Provado 43., da sentença.

7. Assim sendo, não obstante o Autor, estar em situação de desemprego na data do sinistro tinha desempenhado funções anteriormente.

8. Nessa medida, o Tribunal de Primeira Instância, fez uma ponderação de acordo com o trabalho já desenvolvido e o salário médio obtido pelo Autor, que tinha uma formação generalista.

9. Assim, quando temos um valor que nos permita fazer o cálculo de forma mais segura, realista e previsível, não se concebe por que razão se deve alterar e se partir para outros ponderáveis como fez o Tribunal da Relação, considerando ser de “aplicar à situação dos Sinistrados que    à data do acidente se achavam desempregados e ficam afetados de incapacidade absoluta o referencial do salário médio que o STJ vem utilizado no caso dos estudantes.”

10. Deste modo, o critério utilizado no aresto a quo, salvo entendimento em sentido contrário, deve ser alterado dos 915,00€, para os 680,00€, já considerados e bem na sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.

11. Montante que a Apelante considera ser justo, para além de não originar uma situação de desigualdade ou enriquecimento ilegítimo da esfera patrimonial do Apelado, e que por isso deve ser adotado pela instância ad quem.

12. A jurisprudência não constitui fonte de direito no ordenamento jurídico português, mas é comummente aceite pela comunidade jurídica que as suas decisões revestem a forma de verdadeiras linhas de orientação dos tribunais na formulação das suas decisões, em particular quando se trata da jurisprudência dos tribunais superiores.

13. Assim, o valor encontrado pelo Tribunal de Primeira Instância de 145.000,00€ mostrava-se justo e equitativo, ao invés, deste montante agora arbitrado pelo Tribunal da Relação 190.000,00€, que é injusto, desproporcional, excessivo, requerendo-se a alteração da decisão proferida pelo Tribunal da Relação.

14. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal a quo alterou a matéria de facto, nomeadamente o artigo 63.

15. Sucede que, salvo o devido respeito, por entendimento diverso, incorre em manifesto lapso de interpretação e aplicação do direito aos factos.

16. Isto porque, no seu pedido o Autor peticiona, entre outros, “Prestar ao A. assistência médica futura, tais como consultas, operações, tratamentos adequados para repor a situação anterior e tratar lesões do A.”

17. Acontece que, o relatório do IML não fala em artroses, nem em necessidade de colocação de prótese,

18. De igual modo, o médico referiu isso se existissem muitas artroses, não asseverou a necessidade de colocação da prótese no Autor.

19. Pelo que, não se pode inferir de um depoimento e de um relatório pericial uma consequência, porque o juiz ainda que na livre apreciação da prova está limitado ao que resulta do relatório pericial.

20. Requer-se, muito respeitosamente, a Vossas Exas., que seja revogado este segmento do acórdão em crise.

21. Por sua vez, relativamente à assistência médica e medicamentosa, o Autor pediu a condenação da Ré, aqui Recorrente, quanto à parte a liquidar em sede de execução de sentença, no seguinte: “Prestar ao A assistência médica futura, tais como consultas, operações, tratamentos adequados para repor a situação anterior e tratar lesões do A.”

22. Sucede que, não basta um pedido genérico no sentido da ser prestada assistência médica futura como consultas operações e tratamentos adequados para repor a situação anterior e tratar as lesões.

23. Até porque, salvo melhor, opinião não existiu essa condenação, na primeira instância por foi considerado o dano futuro, no Défice Permanente.

24. Pelo que, não existe a necessidade imperativa de colocar uma prótese.

25. Nessa conformidade, a decisão do Tribunal da Relação, nomeadamente, alínea b) ii do Acórdão em crise, deverá ser revogado, por este Supremo Tribunal, o que expressamente, se requer.

26. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 8.º, 562.º e 564.º, do C.C., artigo 413.º do C.P.C. a contrario, e artigo 13.º da C.R.P.

27. Em face de tudo o que foi aqui exposto deverá o presente recurso ser considerado procedente, alterando-se o Acórdão em crise nos termos supramencionados.

                                                           +

A parte contrária não contra-alegou.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes (após a modificação introduzida pelo tribunal recorrido):

1. No dia 14.08.2015, no cruzamento entre a Rua ... e a Rua ..., em ..., concelho do ..., distrito de ..., ocorreu uma colisão entre o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 00-MP-00 e a bicicleta conduzida pelo A.

2. O lesado ia na bicicleta na Rua ..., em direção ao ....

3. O veículo com a matrícula 00-MP-00 circulava na mesma rua, no sentido oposto.

4. A colisão ocorreu quando, no cruzamento entre a Rua ... e a Rua ..., a condutora do veículo com a matrícula 00-NP-00, sem fazer sinal de mudança de direção, virou para a Rua ..., não deixando passar a bicicleta.

5. A condutora do veículo com a matrícula 00-MP-00 não parou, nem reduziu a velocidade, não conseguindo evitar embater no A..

6. A condutora do veículo com a matrícula 00-MP-00 não viu o A., por conduzir de forma desatenta.

7. Na altura do acidente o tempo estava bom.

8. A responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo com a matrícula 00-MP-00 estava transferida, à data do sinistro, para a Tranquilidade, Companhia de Seguros, S.A., pela apólice nº 0000000000.

9. Em 17.08.2015 a R. foi interpelada para indemnizar o A. e fazer um adiantamento de €10.000,00.

10. Posteriormente veio a R. assumir a responsabilidade pelo sinistro.

11. Na sequência do embate, o A. foi projetado para o chão e a roda do carro passou por cima do seu braço.

12. In albis

13. O A. ficou com hematomas no corpo e na cabeça.

14. O A. recebeu os primeiros socorros no local, pelos Bombeiros Voluntários de ..., e foi depois transportado ao Hospital ..., EPE.

15. O A. sofreu luxação do ombro direito.

16. E foi submetido a imobilização do ombro com suspensão braquial.

17. Até ao dia 16.09.2015 o A. esteve de baixa médica.

18. No dia 16.09.2015 a seguradora fez uma consulta ao A. no Hospital ....

19. No dia 13.10.2015 o A. foi internado no Hospital ... e operado.

20. O A. esteve internado no Hospital ... até ao dia 16.10.2015, e até agora está de baixa médica pela seguradora.

21. Em 26.04.2016 o A voltou a ser submetido a uma intervenção cirúrgica, para realização de capsuloplastia.

22. Após esta cirurgia a evolução foi desfavorável, pelo que em 31.05.2016 o A. voltou a ser tratado cirurgicamente, e de seguida a realizar reabilitação.

23. A evolução do estado do A. resultou na rigidez do ombro direito.

24. Com o decorrer do tempo as sequelas do ombro direito sofrerão, seguramente, um agravamento, com repercussão não só para a função, como no agravamento das queixas álgicas.

25. Em consequência do acidente, o A. sofreu as seguintes incapacidades:

a) Défice Funcional Temporário Total, de 12.08.2015 até 14.11.2015 e de 26.04.2016 até 31.06.2016, correspondendo ao período imediato ao acidente e aos períodos correspondentes às posteriores intervenções cirúrgicas a que o A. foi submetido, e ao período que se lhe seguiu, em que necessitou de ajuda de terceira pessoa, que foi de 67 dias;

b) Défice Funcional Temporário Parcial, que corresponde ao período desde 15.11.2015 até 25.04.2016 e desde 01.07.2016 até 30.09.2016, que foi de 253 dias.

26. O A. ficou com um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 15 pontos, sendo 12 pontos por força da rigidez do ombro direito (Ma 0205), e 3 pontos de dano futuro, sequelas estas que são incompatíveis com a atividade profissional específica de ..., bem como com todas as atividades que impliquem esforços com os membros superiores.

27. O A. sofreu dores por causa da luxação do ombro direito, sofrendo-as também nos tratamentos a que teve de submeter-se, sendo o seu quantum doloris de grau 5 numa escala de 1 a 7 graus de gravidade crescente.

28. Apresenta um dano estético de grau 2, numa escala idêntica, atentas as cicatrizes e a alteração funcional do membro superior esquerdo, que determina um dano estético dinâmico.

29. A data de Consolidação Médico-Legal das lesões é fixável a 30.09.2016.

30. O A. tem dor no ombro direito com irradiação à face lateral direita do pescoço, e ao longo do membro superior direito até à mão, a qual se agrava com os esforços.

31. O A. não consegue ficar deitado para o lado direito, devido às dores no ombro e ao facto do membro superior ficar dormente.

32. O A. tem dificuldade em dormir, só conseguindo dormir em decúbito dorsal.

33. O A. não consegue levantar o membro superior direito, por causa das dores no ombro direito.

34. O A. tem dificuldade em fazer a sua higiene, em vestir e despir.

35. Não consegue conduzir, por ter dificuldade em colocar as mudanças.

36. Não voltou a andar de bicicleta a pedais.

37. Não consegue pegar e transportar objetos pesados com a mão direita.

38. Sente diminuição da força no membro superior direito.

39. In albis

40. Ficou com cicatriz operatória, vertical, ligeiramente deprimida, na face anterior do ombro direito, que mede 3cm; vestígio de quatro pequenas cicatrizes operatórias, com diferentes direções, na transição da face anterior do ombro direito para a região peitoral, medindo cada uma delas 0,5cm; e vestígio de duas cicatrizes operatórias na face posterior do ombro direito, medindo cada uma delas 0,5cm; e vestígio de cicatriz de ferida operatória na face externa do ombro direito, medindo 0,5cm.

41. Tem as seguintes limitações dos movimentos do ombro direito: elevação - 90°; retropulsão - 50°, adução - 70°, abdução - 90º, rotação interna - 40º, rotação externa - 20°.

42. In albis

43. O A. trabalhava na empresa ..., como ..., auferindo uma remuneração média de € 680,00 por mês.

44. Na altura do acidente o A. estava desempregado; o A. pretendia ir trabalhar para os transportes internacionais com a mulher, onde cada um poderia ganhar cerca de € 1.500,00 por mês.

45. In albis

46. In albis

47. O A. não pode retomar o seu trabalho, pois o mesmo implica bastantes esforços, nomeadamente subir e descer escadotes e bancos, nem pode fazer as operações de carga e descarga.

48. O A. não consegue arranjar trabalho de ..., ou efetuar trabalho manual na ....

49. O A. era a principal fonte de rendimento do agregado familiar, nada tendo contribuído desde que foi vítima do sinistro.

50. O A. era independente e trabalhador antes do acidente.

51. O A. tem dificuldade em agachar-se para aceder aos armários/espaços de arrumação mais baixos.

52. Após o acidente o A. ficou sem conseguir ajudar em casa ou andar de bicicleta.

53. O A. é destro.

54. O A. sentiu-se um peso, pois teve que depender de outros.

55. O A. chorava, ficou deprimido.

56. O A. anda sempre tristonho e irritadiço e com dores.

57. O A. sofria de ..., a qual se agravou em consequência do estado de nervos em que ficou por causa do acidente.

58. Por isso, o A. foi tratado em Dermatologia no Hospital ..., a expensas da R..

59. O A. teve necessidade de realizar numerosos tratamentos de fisioterapia, para recuperação de alguma mobilidade, força muscular e para alívio das dores.

60. Tem desgosto e angústia por ter ficado, de forma irreversível, fisicamente diminuído, e por sofrer uma incapacidade para o exercício da sua profissão habitual, bem como de todas as atividades que impliquem esforços com os membros superiores.

61. O A. nasceu a 27.06.1971.

62. A capacidade de afirmação pessoal do A. encontra-se comprometida por sentimentos de inibição e menor valia, sentindo-se afastada da satisfação de aspirações no plano da realização pessoal, sexual, afetiva, familiar e profissional, com repercussões a nível das atividades sociais e de lazer, nomeadamente andar de bicicleta, prejuízo que se situa no grau 2 numa escala de 1 a 7 graus de gravidade crescente.

63. O A. necessitará de manter tratamentos médicos e fisiátricos sempre que existam períodos de agudização das queixas resultantes das sequelas de que é portador, não sendo de excluir a hipótese de poder vir a necessitar tratamento cirúrgico, nomeadamente com vista à colocação de uma prótese, se a evolução clínica assim o determinar.

Foram considerados não provados os factos seguintes:

- O A. bateu com a cabeça no chão.

- O A. desmaiou.

- Permaneceu no Hospital ..., EPE.

- Sofreu um quantum doloris de grau 2.

- O A. está limitado nas relações sexuais.

- E era uma pessoa sem antecedentes patológicos ou traumáticos.

- Auferia uma remuneração de € 750,00.

- O A viu-se impossibilitado de trabalhar, juntamente com a sua mulher, como ..., como pretendiam antes do acidente.

- O A. e a mulher têm carta de ....

- O agravamento da ... fê-la surgir na zona da barriga.

De direito

Quanto à matéria das conclusões 1º (pontos 2) e 3)) e 14ª a 25ª

Nestas conclusões a Recorrente insurge-se contra a modificação feita operar pelo tribunal recorrido ao acervo factual do ponto 63, bem como se insurge contra as respetivas consequências indemnizatórias. Mais propriamente, o que a Recorrente contesta é, por um lado, o aditamento feito pelo acórdão recorrido no sentido do Autor poder vir a necessitar de tratamento cirúrgico com vista à colocação de uma prótese, e, por outro lado, a indemnização pelo dano identificado em tal ponto.

Mas, segundo bem cremos, a Recorrente carece de razão.

O aditamento feito operar pelo tribunal recorrido resolve-se em pura matéria de facto, submetida à regra do livre julgamento das instâncias, cujo escrutínio escapa por completo à competência deste Supremo em sede (como é o caso) de recurso de revista. É o que resulta dos art.s 674.º, n.º 3 e 682.º, n.ºs 1 e 2 do CPCivil[2].

Por outro lado, o tribunal recorrido não incorreu na violação de qualquer norma legal reguladora da impugnação da matéria de facto, limitando-se, como lhe competia, a emitir o seu pronunciamento acerca do facto em questão, pois que foi impugnado.

E fê-lo, como resulta claro do texto do acórdão recorrido, em face da convicção que formou a partir do depoimento de uma testemunha (Dr. BB), conjugado com o relatório pericial. Qualquer uma destas provas é de livre apreciação pelo tribunal, sendo infundamentado o que se afirma na conclusão 19ª.

O que significa que é patentemente irrazoável a afirmação da Recorrente, vertida algures no corpo da alegação, no sentido de que “O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu violou de forma grosseira o previsto na lei, nomeadamente, no artigo 413.º do C.P.C.”

Ora, face ao facto do ponto 63 (“O A. necessitará de manter tratamentos médicos e fisiátricos sempre que existam períodos de agudização das queixas resultantes das sequelas de que é portador, não sendo de excluir a hipótese de poder vir a necessitar tratamento cirúrgico, nomeadamente com vista à colocação de uma prótese, se a evolução clínica assim o determinar”) há um dano futuro, cuja reparação se impõe.

Donde, tendo o tribunal recorrido condenado nessa reparação (sendo para o caso indiferente que o tenha feito sob a forma de uma prestação de facto, tanto mais que foi nessa base que foi formulado o pedido do Autor), não vemos onde reside a ilegalidade da condenação.

Acresce observar que, diferentemente do que parece sugerir a Recorrente, a circunstância do défice funcional permanente (15 pontos) atribuído ao Autor comtemplar 3 pontos a título de dano futuro não colide com essa condenação.

É que estamos perante danos diversos, que exigem reparações também diversas.

Num caso estamos perante a reparação do dano que para a vida do lesado advém do grau de limitação da sua integridade físico-psíquica, no outro estamos perante a reparação inerente a tratamentos médicos, fisiátricos e cirúrgicos.

Improcedem pois as conclusões em destaque.

Quanto à matéria das conclusões 1ª (ponto 1)) e 2ª a 13º

Nestas conclusões está em causa o quantum indemnizatório devido ao Autor a título da sua limitação funcional de 15 pontos (dano patrimonial futuro).

O tribunal recorrido entendeu que esse quantum devia ser estabelecido em €190.000,00.

A Recorrente pugna pela repristinação do quantum estabelecido na 1ª instância (€145.000,00).

Cremos que a Recorrente tem razão.

Isto pelo seguinte:

O acórdão recorrido aceitou como boa a metodologia adotada na sentença da 1ª instância para cálculo da indemnização.

E a bondade dessa metodologia não vem discutida no presente recurso.

O que levou o acórdão recorrido a modificar o montante da indemnização foi apenas a retribuição mensal que usou como referencial. Pois que enquanto a 1ª instância entendeu que havia que levar em linha de conta o valor médio da retribuição que o Autor (que, recorde-se, estava desempregado) auferira anteriormente (€680,00), o tribunal recorrido entendeu que era adequado usar como referencial “o salário médio que o STJ vem utilizando no caso dos estudantes”.

Na perspetiva do acórdão recorrido, não existiria razão suficiente “para tratar de forma diferente os jovens que ainda não iniciaram atividade profissional e os sinistrados que à data do acidente se achassem desempregados e ainda não tenham atingido a idade da reforma, e que por força do acidente fiquem afetados de incapacidade absoluta”.

E assim, como no ano de 2016 (segundo dados do INE) o salário médio dos homens foi de €915,00, é este o valor de referência que, na perspetiva do acórdão recorrido, deve ser levado em linha de conta.

Embora por certo respeitável, afigura-se-nos que não é de subscrever esse entendimento do acórdão recorrido.

Efetivamente, no caso vertente conhece-se qual era o rendimento médio mensal do Autor, pelo que manda a lógica que se parta desse rendimento (que, como é óbvio, é apenas uma base de trabalho). Temos aqui um dado objetivo de onde partir, não sendo por isso adequado, por desinserido do real padrão remuneratório do Autor, ficcionar outro qualquer rendimento (e isto, note-se, tanto vale para um rendimento superior, como é o caso, como valeria para um rendimento inferior). Outra forma de ver as coisas levaria à introdução de uma distorção, originando-se depois uma situação de desigualdade ou de enriquecimento ilegítimo.

Sendo assim, como nos parece que é, então chega-se necessariamente ou inevitavelmente (na medida em que não é objeto do presente recurso apreciar a bondade da metodologia que foi usada para chegar a esse valor) à conclusão que a indemnização achada pelo tribunal de 1ª instância - €145.000,00 - é justa e adequada ao caso, reparando condignamente a severa limitação de que o Autor ficou afetado para trabalhos que impliquem esforços do membro superior direito.

Procedem pois as conclusões em destaque.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcialmente a revista, revogando o acórdão recorrido na parte em que estabeleceu em €190.000,00 a indemnização a título de dano patrimonial futuro, repristinado nessa parte o decidido na sentença da 1ª instância.

No mais é a revista negada e confirmado o acórdão recorrido.

Regime de custas:

Custas do presente recurso e da instância recorrida por ambas as partes, na proporção de ¾ para o Autor (sem prejuízo do apoio judiciário) e de ¼ para a Ré.

                                                           +

Lisboa, 7 de setembro de 2020

José Rainho (Relator)

Graça Amaral (1º adjunto; tem voto de conformidade, não assinando por impossibilidade prática e técnica de o fazer. O relator atesta, nos termos do art. 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, essa conformidade)

Henrique Araújo (2º adjunto; tem voto de conformidade, não assinando por impossibilidade prática e técnica de o fazer. O relator atesta, nos termos do art. 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, essa conformidade)

                                                           ++

Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).

                                                           ++


[1] Há aqui um óbvio lapso, visto que o tribunal recorrido é o da Relação de Lisboa.
[2] Veja-se, a este propósito, concordantemente (e se dúvidas houvesse, que não há), alguns sumários de acórdãos deste Supremo (disponíveis em www.stj/jurisprudência/sumários):
- Acórdão de 08--03-2018, Revista n.º 2183/14.3TBPTM.E2.S1 -2019, Revista n.º 3696/16.T8VIS.C1.S1:
I - O STJ é um tribunal de Revista ao qual compete aplicar o regime jurídico que considere adequado aos factos fixados pelas instâncias, n.º 1 do art. 674.º do CPC, sendo a estas e, designadamente à Relação, que cabe apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo este tribunal, em regra, alterar a matéria de facto por elas fixada.
II - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, a não ser nas duas hipóteses previstas no n.º 3 do art. 674.º do CPC, isto é: quando haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova
III - A revista, no que tange à decisão da matéria de facto, só pode ter por objecto, em termos genéricos, situações excepcionais, ou seja quando o tribunal recorrido tenha dado como provado determinado facto sem que se tenha realizado a prova que, segundo a Lei, seja indispensável para demonstrar a sua existência; o tribunal recorrido tenha desrespeitado as normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos no sistema jurídico; e ainda, quando o STJ entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada ou ocorram contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, caso específico do normativo inserto no art. 682.º, n.º 3, do CPC.
IV - Se o segundo grau fundamenta a alteração efectuada à materialidade impugnada fazendo apelo aos elementos de prova indicados pelo impugnante, cumpre desta sorte, de pleno, a função de reponderação que sobre si impende de harmonia com o disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, exercendo as suas plenas competências na reapreciação da materialidade factual posta em causa, através de uma análise crítica dos depoimentos prestados acerca da mesma, conjugados com os elementos documentais.
V - A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição, sendo incorrecta a asserção de o tribunal da Relação apenas poder alterar a decisão da matéria de facto, quando esta enferme de erro grosseiro ou manifesto.
VI - Se os recorridos, recorrentes na apelação, indicaram naquele seu recurso, para além dos pontos de facto que, no seu entender, mereceriam resposta diversa, como também quais os elementos de prova que no seu entendimento levariam à alteração proposta, tendo inclusivamente feito transcrever as declarações do autor, da ré e das testemunhas, deram cabal cumprimento ao preceituado no art. 640.º, n.º 1, als. a) e b), do CPC.
- Acórdão de 22-03-2018 , Revista n.º 2183/14.3TBPTM.E2.S1:
III - Na vertente adjetiva, cabe ao STJ o controlo dos parâmetros formais ou balizadores a seguir pela Relação na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância, nos termos do arts. 640.º, e 662.º do CPC, i.e., averiguar se, ao manter ou alterar a decisão da matéria transitada da 1.ª instância, a Relação violou, ou não, a lei processual que estabelece os pressupostos e os fundamentos em que se deve mover a reapreciação da prova; já na vertente substantiva, cabe ao STJ, no domínio do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais relevantes, sindicar se a Relação violou alguma regra de direito probatório material ou se aquela apreciação ostenta juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade nos termos dos arts. 682.º, n.º 2, e 674.º, n.º 3, ambos do CPC. 
IV - Constitui entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência que a finalidade ou função dos recursos é a revisão ou reexame das decisões da instância recorrida e não criar decisões sobre matéria nova, não sendo lícito às partes invocar, nessa sede, questões que não tenham suscitado perante o tribunal recorrido, nem sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer delas. 
- Acórdão de 24-11-2015, Revista n.º 661/13.0TBPFR-F.P1.S1:
I - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, a não ser nas duas hipóteses previstas no n.º 3 do art. 674.º do NCPC (2013): (i) quando haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou (ii) haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova. 
II - Enquanto segundo o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, o julgador tem plena liberdade de apreciação das provas, de acordo com o princípio de prova legal ou vinculada, aquele tem de sujeitar a apreciação das provas às regras ditadas pela lei que lhes designam o valor e a força probatória, designadamente, no caso da prova por confissão, da prova por documentos autênticos ou autenticados e particulares devidamente reconhecidos (arts. 358.º, 364.º e 393.º do CC). 
III - Os poderes correctivos do STJ, quanto à decisão da matéria de facto, circunscrevem-se em verificar se estes princípios legais foram, ou não, no caso concreto, violados, não lhe competindo averiguar se a convicção firmada pelos julgadores nas instâncias em relação a determinado facto, em prova de livre apreciação, se fez no sentido mais adequado. 
IV - Se a alteração da matéria de facto levada a cabo pelo tribunal da Relação, decorreu, não por recurso a presunções judiciais, mas mediante apreciação da prova segundo critérios de valoração racional e lógica dos julgadores, não tem o STJ poder de correcção, o que não sucederia se fosse caso da primeira hipótese, por não poderem as presunções incidir sobre os factos concretos sujeitos e objecto de prova a produzir pelas partes.