Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7506/18.3T8GMR.G1-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
SEGMENTO DECISÓRIO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
INCONSTITUCIONALIDADE
DIREITO AO RECURSO
Data do Acordão: 11/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA
Sumário :
Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista normal do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (cfr. artigo 671.º, n.º 3, do CPC).
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Reclamante: Humberto Salgado - Imobiliária, Lda.

I. Notificada do despacho proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, que não admitiu o recurso de revista (normal) por si interposto, e não se conformando com o mesmo, vem agora a ré / recorrente Humberto Salgado - Imobiliária, Lda., ao abrigo do artigo 643.º do CPC, reclamar para este Supremo Tribunal.

Conclui a reclamação com as seguintes conclusões:

1.º Inconformada com o provimento parcial do recurso interposto pela Ré, para o Tribunal da Relação de Guimarães, a Reclamante interpôs recurso para esse Supremo Tribunal.

2.º Por despacho do Sr. Relator, Juiz Desembargador do TRG, de 22/04/2023, não foi admitido o recurso de revista (normal) com o fundamento de se verificar a dupla conforme.

3.º Inconformada, a Ré vem reclamar para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando que o recurso de revista deve ser admitido, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, dado que não se trata de dupla conforme, mas sim de duas decisões globalmente diferentes.

4.º Estando em confronto duas posições, como pressuposto negativo de admissibilidade do recurso, quanto à dupla conforme, a posição que defende a dupla conforme plena e irrestrita e a posição que defende a teoria da dupla conforme mitigada ou racional que dividem a jurisprudência, o despacho ora impugnado alavancou-se na teoria da dupla conforme mitigada, fundamentando-se nos AUJ n.º 1/2020, de 27/11/2019 e n.º 7/2022, de 20/09/2022.

5.º Sucede que, na opinião da Reclamante, o despacho de inadmissibilidade do recurso, seguindo a posição da dupla conforme mitigada, na vertente da conformidade de decisões excedeu o preceito legal do artigo 671.º, n.º 3 do CPC, dado que não está em causa, nem a existência de voto vencido, nem a existência de fundamentação essencialmente, mas apenas uma desconformidade decisória, nas apreciações sucessivas da mesma questão, que não são globalmente coincidentes, à qual não deve ser aplicada os AUJ citados uma vez que , exprimem realidades e segmentos decisórios que diferem da questão sub judicie.

6.º Independentemente das posições assumidas ou seguidas, no rigor do caso concreto, não há conformidade decisória, sendo que a interpretação, dada pelo despacho às disposições do artigo 671.º, n.º 3 do CPC, quanto à inadmissibilidade do recurso de revista (normal) é violadora do direito à igualdade de armas, por permitir que, havendo duas partes vencidas, apenas uma delas possa interpor recurso, em violação do princípio da igualdade das partes e da garantia um processo equitativo, consagrada no n.º 4 do artigo 20.º da CRP.

7.º Nesta conformidade, o despacho em apreço viola o princípio da igualdade e da equidade, ex vi de uma interpretação extensiva das regras gerais que conduzem a tratamento desigual de partes vencidas, in casu a Ré, ora reclamante, quanto ao acesso ao terceiro grau de jurisdição que por razões interpretativas lhe é negado.

8.º Considerando, por um lado que os AUJ que serviram de fundamentação ao despacho, do qual aqui se reclama, não gozam de força vinculativa, a não ser no âmbito do processo em que são proferidos, sem prejuízo do seu valor persuasivo e moderador, e que não se infere a sua abrangência para o caso em análise, no sentido de não admitir o recurso como se uma conformidade formal se tratasse; considerando, por outro lado, que o objeto do processo é uno e indivisível, para efeitos de recurso, e que os segmentos decisórios decorrentes do pedido e ínsitos na decisão são “elementos instrumentais” ou parcelares da decisão final, sendo que, em bom rigor, não deveriam ser considerados autónomos para efeitos de admissibilidade de recurso, não há, em concreto, uma conformidade de decisões.

9.º O despacho impugnado coarta o terceiro grau de jurisdição à apelante, partindo de posições doutrinais e jurisprudenciais que não se subsumem no caso sub judicie, dado que apesar de, em sede de recurso, ter obtido uma decisão favorável, continuou parte vencida, mais vencida que a apelada, a quem foi admitido o recurso, violando o princípio da legalidade, e desconsiderando o requisito de admissibilidade previsto no n.º 1 do artigo 629.º.

10.º A decisão singular manifesta-se desajustada com a realidade jurídica do caso concreto, tanto no que se refere à reformatio in melius como à cindibilidade dos segmentos decisórios, para efeitos da aplicação da teoria da dupla conforme mitigada, sendo suscetível de gerar ambiguidade e decisões surpresa.

11.º Tanto a cindibilidade dos segmentos decisórios como a reformatio in melius, ambos subjacentes à teoria da dupla conforme mitigada, ou racional, aqui seguida pelo despacho de inadmissibilidade do recurso, aplicadas ao caso em apreço, têm o resultado negativo de considerar despiciendas as questões suscitadas no recurso relativas às nulidades invocadas.

12.º A decisão de inadmissibilidade do recurso, como resultado de considerar uma conformidade decisória entre a decisão da 1.ª Instância e o acórdão da Relação, para preencher o terceiro requisito da dupla conforme, ao considerar os segmentos decisórios autónomos, abstém-se de conhecer a questão essencial do dissídio e do objeto do recurso, por via de uma decisão singular, numa questão jurídica que, apesar dos AJU, emanados desse Venerando Tribunal, ainda não se afigura uniformizada, nem por via das alterações legislativas, nem na jurisprudência.

13.º In extremis, há que reiterar que o douto despacho, na interpretação dada às disposições do artigo 671.º, n.º 3 do CPC, quanto à dupla conforme, é violador do princípio da legalidade e da igualdade no que se refere à delimitação do conceito de conformidade decisória de duas decisões diferentes para efeitos de determinação do requisito negativo de admissão de recurso de revista (normal)”.

II. Os autores / recorridos (e também recorrentes) AA e Outros responderam à reclamação.

Alegam, no essencial, que é manifesto que se verifica uma situação de dupla conforme e que, tendo a reclamante configurado o seu recurso como de revista (normal), nos termos do disposto no artigo 671.º, n.º 1, do CPC, sem ter feito qualquer referência às situações de revista excepcional constantes do artigo 672.º do citado diploma legal, o recurso é inadmissível, devendo, portanto, ser mantido o despacho de não admissão.

III. Apreciando a reclamação, proferiu a presente Relatora um despacho indeferindo a presente reclamação e mantendo o despacho reclamado.

IV. Humberto Salgado - Imobiliária, Lda., vem agora reclamar para a Conferência desta decisão, formulando as seguintes conclusões:

1.º O objeto da presente reclamação consiste em impugnar a decisão de inadmissibilidade do recurso de revista (normal), interposto pela ré/recorrente, ora reclamante, para esse STJ.

2.º O referido recurso de revista interposto pela recorrente/reclamante não foi admitido, ao abrigo do disposto no artigo 671.º, n.º 3 do CPC, com fundamento de que se verifica uma situação de dupla conforme, por o acórdão recorrido ser mais favorável às pretensões da recorrente, e dada a cindibilidade dos segmentos decisórios, ser confirmatório da sentença proferida na 1ª instância, por unanimidade, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente.”

3.º Não se conformando com o teor da decisão singular que considerou inadmissível o recurso, a recorrente veio reclamar para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando que o recurso de revista deve ser admitido, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, dado que não se trata de dupla conforme, mas sim de duas decisões globalmente diferentes.

4.º Face à decisão de indeferimento da suprarreferida reclamação que manteve o despacho reclamado, na esteira da teoria da dupla conforme mitigada ou racional, no âmbito do AUJ de 20/09/2022, proc. 545/13.2TBLSD.P1.S1-A, desse STJ e ao abrigo do artigo 671.º. n.º 3 do CPC, a recorrente, ora reclamante, vem impugnar a decisão, quanto à cindibilidade dos elementos decisórios e quanto ao pressuposto de a apelante ter retirado benefício em relação 1.ª decisão, (reformatio in mellius), daí decorrendo a inadmissibilidade do recurso, por se considerar a sobreposição caracterizadora da conformidade decisória,.

5.º Neste contexto, remetendo para as conclusões da referida reclamação, a reclamante reitera a sua discordância em relação à decisão impugnada, desde logo pela exiguidade da sua fundamentação.

6.º A decisão ora impugnada decorre de uma interpretação da lei cuja linha orientadora jurisprudencial é suscetível de criar situações de complexidade que, in extremis, podem vedar o acesso ao terceiro grau de jurisdição, gerando, inclusive, decisões decorrentes de arbitrariedade do julgador.

7.º Neste ensejo, não visando extrapolar os argumentos já aduzidos por se revelar desnecessário ou despiciendo, vimos, todavia, reiterá-los numa tentativa que o thema decidendum seja abordado à luz de uma interpretação que vá para além da teoria ora defendida pelo AUJ em causa.

8.º A teoria da dupla conforme mitigada nos moldes da decisão ora reclamada é suscetível de suscitar dúvidas quanto à existência da dupla conforme a respeito da totalidade ou determinados segmentos decisórios, que no caso em apreço não são desvanecidas.

9.º O que se reitera, nesta reclamação, é que o recurso de revista deve ser admitido, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, dado que não se trata de dupla conforme, mas sim de duas decisões globalmente diferentes, cujo segmentos decisórios devem ser considerados incindíveis, para efeitos de admissibilidade do recurso de revista (normal).

10.º O despacho de inadmissibilidade do recurso, seguindo a posição da dupla conforme mitigada, quanto à conformidade das decisões, excede o preceito legal do artigo 671.º, n.º 3 do CPC, dado que não está em causa, nem a existência de voto vencido, nem a existência de fundamentação essencialmente diferente.

11.º A conformidade decisória propalada pelas decisões singulares impugnadas e que sustentam a inadmissibilidade do recurso de revista (normal), ao abrigo das disposições do artigo 671.º, n.º 3 do CPC, é violadora do direito à igualdade d’armas, por permitir que por via de interpretações jurisprudenciais, apenas uma das partes vencida dela possa interpor recurso, em violação do princípio da igualdade das partes e da garantia a um processo equitativo, consagrada no n.º 4 do artigo 20.º da CRP.

12.º Não sendo atribuída aos AUJ força vinculativa, afigura-se que a decisão singular (as duas) se manifestam desajustadas com a realidade jurídica do caso concreto, tanto no que se refere à reformatio in mellius como à cindibilidade dos segmentos decisórios, não devendo ser considerada despicienda a complexidade atribuída à teoria seguida e às decisões surpresa dela decorrentes.

13.º A confirmação da decisão, quanto à inadmissibilidade do recurso, na interpretação dada às disposições do artigo 671.º, n.º 3 do CPC, e sustentada pelos AUJ, que, por via de considerar os segmentos decisórios autónomos, defende a conformidade decisória entre a decisão da 1.ª Instância e o acórdão do TRG, viola o princípio da legalidade e da igualdade.

14.º Consequentemente, a decisão em apreço, sustentada pelas linhas orientadoras do AUJ, de 20/09/2022, sem prejuízo do valor persuasivo e moderador que pode ser atribuído àquele aresto uniformizador, denotando uma ténue força jurídica, para ser aplicado ao caso em apreço, ex vi de uma interpretação extensiva das disposições do artigo 671.º, n.º 3 do CPC, suscetível de desembocar em situações de tratamento desigual de partes vencidas, veda à ré, aqui reclamante, que sofreu maior sucumbência, o acesso ao terceiro grau de jurisdição”.

V. AA e Outros responderam à reclamação.

No essencial, defendem o acerto da decisão reclamada e pugnam pela sua manutenção.


*


Aprecie-se.

*


1. Verifica-se que, na sentença, a acção foi julgada procedente, sendo o dispositivo o seguinte:

Face ao exposto, julgo a presente ação procedente, por provada, e, em consequência:

- condeno a Ré HUMBERTO SALGADO - IMOBILIÁRIA, LDA. a reconhecer que os prédios rústicos dos Autores AA e BB, denominados Campo ..., Lameiro do ..., Campo da V1, Campo da V2, Campo da V3 e Campo do ... ou Lameiro de ..., dispõem de água para rega e lima, proveniente da denominada "Poça do Casal do Pedro", onde são represadas águas de nascente aí existente e ainda as águas que à mesma afluem de montante e que seguiam nos termos descritos nos factos provados .18 a 22, e que os Autores sempre usaram às 2.ªs (segundas) e 5.ªs (quintas) feiras, todo o dia, durante todo o ano, com exceção do período que vai entre o dia 24 de Junho (dia de S. João) e o dia 15 do mês de Agosto, em que, usavam meio dia às 2.as (segundas) feiras.

- Condeno ainda a Ré a reconhecer que se encontra constituída servidão de presa e aqueduto nos prédios da Ré, identificados nos factos provados .18 a 22, onde se encontram a Poça da ..., os canais, pilheiros e bifurcações, que conduzem esta água para os prédios dos Autores, com o consequente direito de acesso para vigilância, manutenção e utilizações estritamente necessárias ao aproveitamento da água, nomeadamente para limpeza da própria "Poça da ...", incluindo a manutenção da parede de represamento de águas e tampa em pedra para a abertura e fecho da mesma, designadamente entre os dias 24 de junho e o final do mês de novembro de cada ano.

- Condeno a Ré, no prazo de 20 dias, repor a "Poça da ..." ao estado em que se encontrava antes da sua compra, recolocando a pedra de represamento de águas, a parede e pedra padieira existentes, abstendo-se da prática de quaisquer atos que obstem ou dificultem o seu exercício destes direitos dos Autores.

- Condeno a Ré a reconhecer a constituição de servidão de passagem a pé, animais e com trator, para a ligação entre os prédios rústicos que fazem parte da "Quinta da L...", propriedade dos autores, e que se encontram integrados na inscrição da atual matriz rústica sob o artigo 250 e sob o artigo 253, através de uma passagem com a largura de cerca de 2 metros, situada na estrema sul do prédio dos autores denominado "Lameiro do ...", que atravessava o denominado "Campo da L..." da Ré, ao longo de cerca de 6 metros no sentido poente-nascente, atravessando o ribeiro, prosseguindo até ligar ao caminho denominado de "Caminho ..." no qual se percorriam mais cerca de 50 metros, passando pela frente da casa que faz parte da "Quinta da ...", da sociedade ré; aí, para acederem ao denominado “Campo do J...”, fletia no sentido norte-sul, atravessando o prédio rústico denominado "Lameiros do...", ao longo de cerca de mais 26 metros e para os restantes prédios rústicos propriedade dos autores, nomeadamente, os denominados “Campo do J1”, “Campo da M...”, “Mata da ...”, “Sorte do R...”, “Sorte de M...” e “Coutada da...”, prosseguia-se pelo denominado "Caminho ...", na configuração existente descrita supra.

- Condeno a Ré, no prazo de 20 dias, repor este caminho, de forma a permitir a passagem entre os prédios, abstendo-se da prática de quaisquer atos que obstem ou dificultem o seu exercício destes direitos dos Autores.

- Condeno a Ré HUMBERTO SALGADO - IMOBILIÁRIA, LDA. a pagar aos Autores AA e BB a peticionada indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, no montante de € 7.000,00 (sete mil euros), acrescida dos juros moratórios legais contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento e na que se liquidar em sede de execução de sentença, por todos os prejuízos patrimoniais causados por esta situação, desde 2019 e até à reposição da Poça da ... ao estado em que se encontrava.

- Condeno a Ré HUMBERTO SALGADO - IMOBILIÁRIA, LDA. no pagamento da quantia de € 50 (cinquenta Euros), a título de sanção pecuniária compulsória, por dia em que se verifique a infração à condenação supra.

Custas pela Ré (artigo 527.º, n.º1 do C.P.C.). Registe e notifique”.

2. Verifica-se que o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, o recurso da ré foi julgado parcialmente procedente, sendo o dispositivo o seguinte:

“- Anular a sentença na parte em que condenou «a Ré, no prazo de 20 dias, repor a "Poça da ..." ao estado em que se encontrava antes da sua compra, recolocando a pedra de represamento de águas, a parede e pedra padieira existentes, abstendo-se da prática de quaisquer atos que obstem ou dificultem o seu exercício destes direitos dos Autores» (...), e, em sua substituição, condenar a Ré a repor a pedra de represamento de águas.

- Anular a sentença na parte em que condenou «a Ré, no prazo de 20 dias, repor este caminho, de forma a permitir a passagem entre tais prédios, abstendo-se da prática de quaisquer atos que obstem ou dificultem o seu exercício destes direitos dos Autores", e, em sua substituição. condenar a Ré a abster-se da prática de quaisquer atos que obstem ou dificultem o exercício dos direitos (de passagem entre os prédios) dos Autores.

- Quanto ao mais, manter e confirmar a sentença recorrida”.

3. Verifica-se que o recurso de revista é interposto ao abrigo dos artigos 638.º, n.º 1, e 671.º, n.º 3, a contrario, do CPC, mais se precisando, no requerimento de interposição de recurso, que “[o] Recurso é de Revista – cfr. art. 671.º, n.º 1 e n.º 3, do CPC”, e que, a terminar, a recorrente enuncia as seguintes conclusões:

“1.º O objeto do presente recurso de revista delimitado à matéria de direito e como tal vedado à reapreciação da matéria de facto, nos termos do artigo 674. °, n.° 2 e 3 do CPC, tendo como objeto a violação da lei substantiva, sem prejuízo das disposições dos artigos 615." e 666. °, respeitantes a nulidades, tem como o objeto a impugnação do douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09-02-2023, na parte da decisão julgada improcedente, à exceção das questões relacionadas com a serventia de águas.

2.º Impugna-se a fundamentação, por violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, previsto nos artigos 154.", 615."e 607.°do CPC, com imposição legal no artigo 205." n." 1 e 20." da CRP, por impossibilitar a Ré de entender as verdadeiras razões da decisão naquele sentido, consubstanciando nulidade, nos termos dos artigos 607." n.°4 e 615.°, n.° 1 alíneas c) e d) do CPC, por omissão de fundamentação em relação facto essencial não provado.

3.º Impugna-se a falta de clareza e obscuridade (imprecisão) na motivação que lhe está subjacente, na enunciação dos factos não provados cuja cominação é também a nulidade, nos (ermos do artigo 615.°, n." I, alínea b) e c) e artigo 684.", n.°2 do CPC.

4.º Tem ainda como objeto a violação da lei substantiva quanto à decisão que julga que entre os prédios dos A A e da Ré se constitui uma servidão de passagem, a pé, com animais e (rator, por usucapião, bem como a decisão que considerou terem sido verificados os pressupostos da responsabilidade civil e arbitrou uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais aos AA.

(Da fundamentação)

5.º O acórdão recorrido viola o dever de fundamentação ao aderir à convicção da 1." instância, quanto a um facto essencial relativo à morfologia do terreno, orografia e linhas de água, configurando fundamentação insuficiente e omissão de pronúncia, remeter para a inspeção judicial, sem daí retirar conclusões substanciais

6.º Sem prejuízo de o objeto do presente recurso ser adstrito exclusivamente à matéria de direito decorre das questões invocadas a violação da lei processual quanto às disposições dos artigos 615. ° n. ° 1, alínea c) e 666 " do CPC.

7.º Impõe-se decisão diversa, nos termos do artigo 662", n " 7, 663." n.° 2, 607." e 666.° explicitando a motivação critica da prova, e não simplesmente remeter para o ato processual da 1." instância, "abdicando" dos poderes de investigação oficiosa, adstritos ao tribunal, ao abrigo do artigo 640." n.92t alínea b) do CPC.

8.º O acórdão recorrido viola o dever de fundamentação previsto no artigo 154. °, n.° 1 do CPC e consagrado no artigo 205.", n." 1 da CRP, no que se refere à motivação dos factos não provados, incorrendo na omissão parcial da sua enunciação ao referir que "Com interesse para a boa decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos acima não descritos ou com estes em contradição ..."

9.º Na fundamentação da matéria de facto considerada não provada, não indica os meios de prova que levaram àquela decisão e à convicção do julgador com clareza, objetividade e discriminadamente, não enunciando que factos não descritos estão em contradição com os que foram provados, dando lugar a uma ambiguidade que impossibilita que a recorrente saiba, in extremis, que outros factos julgou não provados.

10.º Não lhe estando implícitos os requisitos de clareza e precisão na enunciação da matéria de facto não provada, para além da omissão de fundamentação, a decisão enferma de nulidade, nos termos dos artigos 615.°, n.° 1, alínea b) e c), 607.°t n.*4, devendo o douto acórdão baixar à Relação, afim de se fazer a reforma da decisão anulada, nos termos do artigo do 684.", n." 2, do CPC.

(Da usucapião)

11.º A decisão que considerou que entre os prédios dos AA e os da Ré se constituiu uma servidão de passagem, tratando-se de uma servidão não aparente que não pode ser constituída por usucapião cujos sinais não se mostram visíveis, nem permanentes, viola a regra de acumulação dos requisitos exigidos na lei, nos termos do artigos do 1548. '3do CC, quanto ao uso reiterado, e permanente, para efeitos dos artigos 1251. * 1287 *e 1296.' ou dos artigos 1261,°, 1262."e 1297.", limitando-se a citar disposições genéricas, expressas naquelas disposições legais, sem enunciar que atos materiais, concretizados no tempo e no espaço, estão na base da servidão por usucapião.

12.º Não sendo o prédio dominante (dos AA) um prédio encravado, nem absolutamente, nem relativamente encravado, existindo comunicação suficiente para lhe aceder e para efeitos da sua normal fruição, o douto acórdão, ao manter a decisão da 1." instância, no que à servidão de passagem por aquisição originária se refere, atribui-lhe um direito ex-novo, que nunca existiu, em ofensa ao direito de propriedade e aos critérios da proporcionalidade e da necessidade, ao abrigo do artigo 1305.", 1548.", ambos do CC e artigo 62.", n.° 1 da CRP, não ponderando as vantagens para o referido prédio dos AA (dominante) e o sacrifício para o prédio da Ré (serviente), nem ponderando a constituição da servidão de passagem, por usucapião, ao abrigo daqueles requisitos cumulativos.

13.º A decisão de improcedência da apelação que constituiu uma servidão de passagem, a pé, com animais e trator, por usucapião manifesta-se infundada, quanto à verificação dos pressupostos nos termos do artigo 1548°, no que concerne à verificação da sinaletica visível e permanente, não respeitando o princípio da proporcionalidade, nem ponderando a imperiosa satisfação das necessidades do prédio, alegadamente dominante, violando as disposições do artigo 1564." Do CC.

14.º Os prédios dos recorridos têm autonomia de acesso, sem necessitar de qualquer servidão, tanto no passado como no presente, independentemente de quaisquer atos materiais, alegadamente exercidos em permanência, não lhes estando subjacentes quaisquer direitos, suscetíveis de enquadrarem e de se subsumirem às disposições dos artigos 1251.°, 1261.°, 1262.°, em conformidade com os artigos 1293.", alínea a) e 129~?.", todos do CC.

15.º A conclusão do douto acórdão manifesta-se infundada, na asserção de não se ter verificado qualquer causa de suspensão ou interrupção do prazo para que a constituição da servidão pela usucapião, ao abrigo das disposições legais citadas, não preenchendo os requisitos dos artigos 318°e seguintes e 323° e seguintes, por remissão para o artigo 1392." do CC, tratando-se de um erro quanto à verificação dos requisitos da usucapião, e.g. "animus, corpus", prática reiterada e ininterrupta, sinais visíveis e permanentes, que na realidade não se verificam no terreno, não se verificaram no passado, não se encontrando preenchidos os requisitos legais da posse usucapiativa, ao abrigo das disposições dos artigos 1251.° e seguintes do CC.

16.º Nesta conformidade, o acórdão emanado do Tribunal da Relação de Guimarães viola a lei substantiva, quanto à subsunção do preenchimento daqueles requisitos cuja ausência manifesta foi sobejamente debatida na inspeção judicial, a qual se por hipótese processual tivesse sido gravada, claramente a sua audição levaria a conclusões diferentes e evitaria presunções iuris tantum, que não obstante admitam prova em contrário, tendo em vista rebater e alterar a convicção dos julgadores, inquinada por nulidades, pela prevalência da convicção da meritíssima julgadora da !." instância e da convicção da 2." instância ainda que, eventualmente em desconformidade com a lei substantiva subsumível ao caso em apreço, prevalece processualmente.

(Da responsabilidade civil)

17.º O arbitramento da indemnização, nos moldes do dispositivo do acórdão recorrido violou as disposições dos artigos 483. °, n. ° 1, artigo 562. ° e artigo 563. °, do CC, na avaliação dos pressupostos e respetivo nexo de causalidade.

18.º A determinação do quantum indemnizatório, nos termos em foi determinado, a partir do depoimento dos filhos dos AA, agora também partes, diretamente interessadas na causa, por via meramente alegatória, sem relatórios periciais, ou quaisquer elementos objetivos ou até indiciários afigura-se virtual e apenas adstrito ao hipotético circunstancialismo, violando a lei substantiva, na medida em que, em concreto, não foi apurado.

19.º Para além de enfermar desse vício,(omissão do apuramento em concreto) resulta de um incoerente raciocínio na atribuição da responsabilidade pela quebra de produção agrícola à Ré, contrapondo, incongruentemente, que os AA foram impedidos de utilizar a água a que tinham direito e da qual necessitavam para regar as culturas, atribuindo as responsabilidades à Ré, porém admitindo, por outro lado, que os rendimentos agrícolas são sempre dependentes de muitas variáveis, algumas não controláveis pelo Homem, todavia atribuindo à Ré (ação ou omissão da Ré) responsabilidade pelo alegado dano, conforme peticionado pelos AA, sem cuidar de saber se a água que por lá brota é suficiente para ao A A e consortes sendo certo que a Ré dela prescinde em absoluto.

20.º No tocante à condenação da Ré ao pagamento efetivo e integral na quantia que se liquidar em sede de execução de sentença, por todos os prejuízos patrimoniais causados por esta situação, desde 2019 e até à reposição da Poça da ... ao estado em que se encontrava", afigura-se haver ambiguidade, suscetível de configurar uma irregularidade que urge ser sanada, acautelando interpretações dúbias naquela sede, no caso de se manter a decisão naquele sentido, uma vez que por ter sido a anulada a sentença, a Ré foi condenada a repor a pedra e não a repor a poça ao estado em que encontrava em 2019.

21.º Em síntese, inexiste, no caso em apreço o nexo de causalidade propalado nas decisões. baseadas num juízo de prognose infundado, incompatível com o principio da equidade cujo regime se adequa a situações cujo cômputo é impossível de determinar e não se deveria aplicar a situações de mera inércia ou insuficiência de prova cujo ónus está adstrito aos AA.

22.º Em face do circunstancialismo supra invocado, o douto acórdão ao recorrer à equidade para acolher a teoria da causalidade adequada, para fixação dos danos patrimoniais e não patrimoniais, enceta uma hipotética subsunção ao direito, que embora por hipótese, não colida com os padrões jurisprudenciais, em geral, no caso em apreço viola as disposições do artigo 563. ° do CC, na medida em que. para efeitos do quantum indemnizatório, apenas lhe estão subjacentes as auspiciosas prognoses, alegadas pelos AA.”.

4. Verifica-se que o recurso não foi admitido por despacho do Exmo. Relator do Tribunal da Relação de Guimarães, com fundamento na ocorrência da dupla conforme.

5. Dos elementos coligidos e acima expostos resulta que ocorre uma situação de dupla conforme impeditiva da admissibilidade do recurso.

Se não, veja-se.

O Tribunal de 1.ª instância decidiu (abreviadamente):

1.º) condenar a ré a reconhecer que os prédios rústicos dos autores dispõem de água para rega e lima, proveniente da denominada “Poça da ...”;

2.º) condenar a ré a reconhecer que se encontra constituída servidão de presa e aqueduto nos prédios da Ré onde se encontra a Poça da ...;

3.º) condenar a ré a repor a Poça da ... ao estado em que se encontrava antes da sua compra, recolocando a pedra de represamento de águas, a parede e pedra padieira existentes, abstendo-se da prática de quaisquer actos que obstem ou dificultem o seu exercício destes direitos dos autores;

4.º) condenar a ré a reconhecer a constituição de servidão de passagem a pé, animais e com tractor, para a ligação entre os prédios rústicos que são propriedade dos autores;

5.º) condenar a ré a, no prazo de 20 dias, repor este caminho, de forma a permitir a passagem entre os prédios, abstendo-se da prática de quaisquer actos que obstem ou dificultem o seu exercício destes direitos dos autores;

6.º) condenar a ré a pagar aos autores a indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por todos os prejuízos patrimoniais causados por esta situação, desde 2019 e até à reposição da Poça da ... ao estado em que se encontrava; e

7.º) condenar a ré a pagar uma sanção pecuniária compulsória, por dia em que se verifique a infração à condenação supra.

Entretanto, o Tribunal recorrido decidiu:

- anular a sentença na parte em que condenou a ré a repor a Poça da ... ao estado em que se encontrava antes da sua compra, recolocando a pedra de represamento de águas, a parede e pedra padieira existentes, abstendo-se da prática de quaisquer actos que obstem ou dificultem o seu exercício destes direitos dos autores e, em sua substituição, condenar a ré (somente) a repor a pedra de represamento de águas1.

- anular a sentença na parte em que condenou ré, no prazo de 20 dias, repor este caminho, de forma a permitir a passagem entre tais prédios, abstendo-se da prática de quaisquer actos que obstem ou dificultem o seu exercício dos direitos de passagem entre os prédios dos autores, e, em sua substituição, condenar a Ré (somente) a abster-se da prática de quaisquer actos que obstem ou dificultem o exercício dos direitos de passagem entre os prédios dos autores2.

- quanto ao mais, manter e confirmar a sentença recorrida.

Ou seja: o Tribunal recorrido alterou a sentença apenas quanto aos pontos 3.º e 5.º (alteração, aliás, meramente parcial) e confirmou a sentença em todos os restantes pontos.

Seguindo de perto a formulação que a ré e recorrente / ora reclamante adopta nas alegações de recurso, é possível dizer que as questões por ela suscitadas são as seguintes:

a) nulidade do Acórdão recorrido por vícios quanto à fundamentação (cfr. conclusões 5.ª a 10.ª);

b) violação de lei substantiva relativamente à decisão que condena a ré no reconhecimento de uma servidão de passagem, por usucapião (cfr. conclusões 11.ª a 16.ª): e

c) violação da lei substantiva relativamente à decisão que condena a ré ao pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais (cfr. conclusões 17.ª a 22.ª).

A ré e recorrente / ora reclamante impugna, portanto, o Acórdão recorrido, essencialmente, na parte em que este confirma os pontos 4.º e 6.º da sentença, respeitantes à condenação da ré no reconhecimento da servidão de passagem e na obrigação de indemnização.

Ora, é manifesto, em primeiro lugar, que o que é impugnado pela recorrente através daquelas questões são duas decisões ou segmentos decisórios autónomos – são duas decisões ou segmentos decisórios autónomos porquanto se referem a pretensões autónomas formuladas na causa, incidentes sobre matérias que não estão numa relação de “incindibilidade” ou de “irremediável ligação3 com outras matérias objecto de decisão.

É manifesto, em segundo lugar, que relativamente a tais decisões ou segmentos decisórios existe uma convergência absoluta das instâncias, no sentido do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, o que significa que o recurso se depara relativamente a tais decisões ou segmentos decisórios com o obstáculo da dupla conforme.

Como é sabido, a dupla conforme deve ser aferida, separadamente, em relação a cada decisão ou segmento decisório autónomo.

Pode ilustrar-se com o exemplo da acção em que o objecto é um pedido de condenação na restituição do capital mutuado e um pedido acessório de condenação nos juros respectivos, calculados segundo certa taxa: se ambas as instâncias decidirem a condenação na obrigação de restituição do capital mutuado, divergindo apenas quanto à taxa de juro aplicável aos juros, fica vedada a revista normal quanto à condenação na obrigação de restituição no capital mutuado4.

Existe manifesto paralelismo entre este caso e o caso presente.

No caso presente, e no que releva para a decisão impugnada através da questão b), é visível que, considerando verificados os pressupostos da constituição da servidão de passagem por usucapião, o Tribunal de 1.ª instância condenou a ré a reconhecer a servidão de passagem e que o Tribunal a quo confirmou – sem fundamentação essencialmente diferente – esta decisão, tendo dado, também ele, por verificados os pressupostos da constituição daquela servidão.

Pode ler-se no Acórdão recorrido:

De facto, perante o enquadramento fáctico e jurídico, não restam dúvidas de que a actividade dos AA. sobre os prédios em causa corresponde à situação jurídica possessória vocacionada à aquisição do direito de servidão de passagem, a pé, com animais e com tractor, e que já decorreu o prazo necessário para a constituição do direito, por usucapião. Resulta, por conseguinte, que entre os mencionados prédios se constituiu uma servidão de passagem, a pé, com animais e tractor, por usucapião. Improcede, por conseguinte, este fundamento da apelação”.

No que releva para a decisão impugnada através da questão c), é visível que, considerando verificados os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, o Tribunal de 1.ª instância condenou a ré no pagamento de uma indemnização e que o Tribunal a quo confirmou – sem fundamentação essencialmente diferente – esta decisão, tendo igualmente dado por verificados os pressupostos da responsabilidade civil geradora da obrigação de indemnizar.

Pode ler-se no Acórdão recorrido:

Nesta conformidade, provados que se mostram todos os pressupostos em que assenta a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos da recorrente, improcede este fundamento da apelação”.

Finalmente, no que releva para a decisão impugnada através da questão a) (nulidade do Acórdão recorrido por vícios quanto à fundamentação), cumpre apenas recordar que, como vem sendo repetidamente afirmado na jurisprudência deste Supremo Tribunal, as nulidades referidas no artigo 615.º, n.º 1, do CPC só podem ser apreciadas quando o recurso é admissível e como fundamento acessório do recurso5; no caso contrário, só podem ser apreciadas pelo Tribunal a quo (cfr. artigo 615.º, n.º 4, a contrario, do CPC)6.

Significa isto, in casu, que, sendo o recurso, como é, inadmissível, a apreciação da nulidade fica reservada ao Tribunal recorrido.

A verdade é que este já se pronunciou, e por Acórdão de Conferência, como impõem, em leitura conjugada, os artigos 617.º, n.º 1, e 666.º, n.º 2, do CPC.

Tudo visto, não resta senão confirmar a decisão reclamada, de inadmissibilidade da revista.


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A terminar, deixem-se algumas considerações especiais sobre o teor da presente reclamação.

Nela, a reclamante não apresenta qualquer argumento susceptível de abalar e alterar a decisão reclamada, limitando-se, no essencial, a reiterar a ideia de que, a seu ver, estão em causa “duas decisões globalmente diferentes” (cfr., por exemplo, conclusões 3.ª e 9.ª), o que, como disse, não corresponde à realidade.

Não assiste ainda razão à recorrente / reclamante quando diz que a decisão reclamada padece de “exiguidade da fundamentação” (cfr conclusão 5.ª), estando as razões que justificam a inadmissibilidade do recurso aí clara e desenvolvidamente expostas.

Tão-pouco assiste razão à recorrente / reclamante quando diz que “[a] decisão ora impugnada decorre de uma interpretação da lei cuja linha orientadora jurisprudencial é suscetível de criar situações de complexidade que, in extremis, podem vedar o acesso ao terceiro grau de jurisdição, gerando, inclusive, decisões decorrentes de arbitrariedade do julgador” (cfr. conclusão 6.º), “é violadora do direito à igualdade d’armas, por permitir que por via de interpretações jurisprudenciais, apenas uma das partes vencida dela possa interpor recurso, em violação do princípio da igualdade das partes e da garantia a um processo equitativo, consagrada no n.º 4 do artigo 20.º da CRP” (cfr. conclusão 11.ª) ou “viola o princípio da legalidade e da igualdade” (cfr. conclusão 13.ª).

A decisão ora impugnada acolhe uma solução que decorre da lei (cfr. artigo 671.º, n.º 3, do CPC), na interpretação mais adequada, alicerçada na jurisprudência que se foi consolidando, ao longo do tempo, nomeadamente neste Supremo Tribunal de Justiça.

As restrições ao direito de recurso legalmente previstas são conformes à Constituição da República Portuguesa. Como tem sido recordado em numerosos Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça7, é o próprio Tribunal Constitucional quem afirma que elas não eliminam nem limitam de modo desproporcionado ou intolerável, o direito de recurso.

Com efeito, o Tribunal Constitucional vem-se pronunciando desde há tempo no sentido de que “a Constituição, maxime, o direito de acesso aos tribunais, não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos8, pelo que “o legislador ordinário tem liberdade para alterar as regras sobre a recorribilidade das decisões judiciais, aí se incluindo a consagração, ou não, da existência dos recursos, conquanto, como tem sustentado parte da doutrina […] não suprima em bloco ou limite de tal sorte o direito de recorrer de modo a, na prática, inviabilizar a totalidade ou grande maioria das impugnações das decisões judiciais, ou, ainda, que proceda a uma intolerável e arbitrária redução do direito ao recurso […]9.


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Pelo exposto, confirma-se o despacho reclamado e mantém-se a decisão de inadmissibilidade da revista.

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Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

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Lisboa, 16 de Novembro de 2023

Catarina Serra (relatora)

Isabel Salgado

Fernando Baptista

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1. Sublinhado nosso para destacar a parte inalterada.

2. Sublinhado nosso para destacar a parte inalterada.

3. Usam-se as expressões do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29.10.2015 (Proc. 258/09.0TBSCR.L1.S1).

4. Cfr. Carlos Lopes do Rego (coord.), Cadernos do STJ – Secções Cíveis – A dupla conforme, Supremo Tribunal de Justiça, 2021 (1.ª edição), pp. 24 e s.

5. Cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.12.2017, Proc. 22388/13.3T2SNT-B.L1-A.S1, onde se diz: “[a]pesar do artigo 674.º, n.º 1, alínea c), do CPC, estabelecer que a revista pode ter por fundamento as nulidades previstas nas alíneas b) a e) do artigo 615.º do CPC, aquela norma não pode deixar de ser conjugada com o preceituado no n.º 4 deste mesmo artigo, segundo o qual, tais nulidades só são arguíveis por via recursória quando da decisão reclamada caiba também recurso ordinário, ou seja, como fundamento acessório desse recurso”.

6. Cfr., por exemplo, neste sentido, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 22.02.2020, Proc. 1284/09.4TMPRT-B.P1.S1. Cfr. ainda Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição), p. 419 e pp. 460-462 (respectivamente em comentário ao artigo 671.º e ao artigo 674.º do CPC). Resulta do que diz o autor que se não for interposto ou não for admissível o recurso de revista as nulidades de acórdãos podem ser autonomamente arguidas– mas apenas perante a Relação, nos termos do artigo 615.º, n.º 4, do CPC.

7. Cfr. só para um exemplo, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10.11.2022 (Proc. 6798/16.7T8LSB-C.L1-A.S1).

8. Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 431/02, de 22 de Outubro de 2002.

9. Cfr. Acórdão Tribunal Constitucional n.º 100/99, de 10 de Fevereiro de 1999, cuja doutrina foi confirmada, recentemente, por exemplo, pelo Acórdão n.º 657/2013, de 8 de Outubro de 2013.