Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18912/22.9T8LSB.L1-A.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: DESPACHO SOBRE A ADMISSÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO
MOTIVAÇÃO
FALTA DE ALEGAÇÕES
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
INSOLVÊNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
PRESSUPOSTOS
LEI ESPECIAL
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
EXTEMPORANEIDADE
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 10/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :
I- A reclamação deduzida no âmbito do regime do art. 643º do CPC, sendo uma das formas de impugnação de decisões judiciais, deve necessariamente apresentar uma estrutura equivalente à das alegações de recurso e, por isso, mesmo que não apresente Conclusões, tem que ser necessariamente motivada, de forma a nela ser encontrada exposição dos fundamentos que servem para o reclamante pugnar pela revogação do despacho de não admissão do tribunal “a quo”. Não tendo sido cumprido o ónus de formular fundamentos para a revogação do despacho, a reclamação deve ser objecto de rejeição liminar por aplicação extensiva do art. 641º, 2, b), 1.ª parte, do CPC (equivalente à falta de alegações).

II- A admissibilidade da revista fundamentada no regime restritivo e atípico do art. 14º, 1, do CIRE depende de ónus recursivos e de alegação/enunciação (condições primárias de recorribilidade), sob pena de rejeição do recurso de acordo com as pautas gerais de indeferimento previstas nos arts. 637º, 2, 2.ª parte, e 641º, 2, a), do CPC.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 18912/22.9T8LSB.L1-A.S1


Reclamação: Arts. 641º, 6, 643º, CPC; Relação de Lisboa, ... Secção


Reclamação para a Conferência: Arts. 643º, 4, 652º, 3, CPC


Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. AA apresentou Reclamação, a configurar nos termos do art. 643º do CPC, contra o despacho da Senhora Juíza Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), proferido em 13/4/2023, que não admitiu recurso de revista interposto do acórdão desse TRL, prolatado em 28/2/2023.


Tal Reclamação resulta da convolação do Requerimento de (1) Reclamação para a Conferência desse despacho de não admissão (apresentado pela Reclamante em 2/5/2023) e do Requerimento de (2) Reclamação do indeferimento desse requerimento em despacho proferido em 8/5/2023 (apresentado pela Reclamante em 22/5/2023, complementado por “recurso” apresentado em 25/5/2023), tal como operada por despacho proferido em 12/6/2023, autuando como apenso tais requerimentos contra o indeferimento do recurso nos termos da impugnação prevista nos arts. 641º, 6, e 643º do CPC e ordenando a remessa ao STJ.


2. Antes, perante o requerimento da credora «Banco Comercial Português, S. A.» que deu origem à presente acção declarativa com processo especial, o Juiz ... do Juízo de Comércio de ... proferiu sentença (6/10/2022) em que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo a Requerida AA do pedido de declaração de insolvência formulado.


3. Inconformada, a aludida credora interpôs recurso de apelação para o TRL, que conduziu a ser proferido acórdão, na data já referida, julgando improcedente o recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida, substituindo-a por outra de declaração de insolvência da Requerida e Recorrida AA.


4. Sem se resignar, a Requerida interpôs recurso de revista para o STJ, arguindo nulidade decisória do acórdão e visando a revogação do acórdão recorrido tendo em vista a manutenção da decisão proferida em 1.ª instância.


5. No exercício dos poderes atribuídos pelo art. 641º do CPC, o recurso de revista foi objecto do aludido despacho que não admitiu o recurso, assim discorrendo no que aqui importa:


“Inconformada com o acórdão que revogou a sentença recorrida absolutória e ordenou que em sua substituição seja proferida sentença de declaração de insolvência, veio a requerida/apelada apresentar requerimento e alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, com subida imediata nos próprios autos e efeito suspensivo.


Prevê o art. 14º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que “No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.”


De acordo com a norma citada, em regra no processo de insolvência existe apenas um grau de recurso, que se esgota com o recurso de apelação para os tribunais da Relação, constituindo esta a última instância. Neste âmbito processual a exceção à dita regra e consequente admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) depende exclusivamente da existência de oposição de julgados entre o decidido no acórdão recorrido e o decidido por outro de qualquer uma das Relações ou do STJ no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão jurídica - o designado recurso de revista excecional, previsto pelo art. 672º, nº 1, al. c) do CPC.


Para além da violação legal imputada ao acórdão recorrido, os requisitos formais das alegações do recurso de revista em processo de insolvência destacam-se dos recursos normais de revista pelo ónus de identificação dos elementos que determinam a contradição de julgados (art. 672º, nº 2, al. c) do CPC), e, sob pena de rejeição, pelo ónus de junção de cópia do acórdão fundamento da revista com vista à sindicância da exigida oposição (art. 637º, nº 2, 2ª parte do CPC).


Ora, do requerimento apresentado pela recorrente não consta qualquer referência ao art. 14º, nº 1 do CIRE nem aos pressupostos de recurso por esta norma especialmente exigidos; em rigor, a recorrente sequer identifica o recurso como de revista mas, como este decorre juridicamente do facto de vir dirigido ao STJ, assim se considera. Porém, dúvida não há que o recurso ora apresentado pela requerida, vencida na apelação, não corresponde ao recurso de revista especial previsto pelo art. 14º, nº 1 do CIRE: não invoca qualquer conflito jurisprudencial, não identifica ou concretiza qualquer contradição entre os fundamentos e sentido do acórdão recorrido e os fundamentos e sentido de outro acórdão, e limita-se a manifestar a sua discordância com o julgamento realizado pelo acórdão recorrido.


Neste contexto, sem outras considerações por desnecessárias, rejeita-se o requerimento de recurso de revista interposto pela recorrente por legalmente inadmissível (art. 14º, nº 1 do CIRE).”





Em complemento, o TRL proferiu acórdão, em conferência (2/5/2023), no qual se julgou improcedente a Reclamação por inexistência da invocada nulidade do acórdão recorrido.


6. A Reclamante não se resignou com esse despacho de não admissão da revista, sem no entanto aduzir razões nos seus requerimentos para contestar a argumentação do despacho reclamado.


Não houve pronúncia nos termos admitidos pelo art. 643º, 2, do CPC.


Subidos os autos ao STJ, foi proferida Decisão Singular de confirmação da decisão reclamada e de não admissão do recurso.


7. Inconformada, a Recorrente e Reclamante deduziu Reclamação para a Conferência, nos termos admitidos pelos arts. 643º, 4, e 652º, 3, do CPC, visando a admissão do recurso e a sua procedência.





Foram dispensados os vistos legais.


Cumpre apreciar e decidir da bondade da pretensão.


II) APRECIAÇÃO DA RECLAMAÇÃO E FUNDAMENTOS


1. A questão a decidir é a de saber se o despacho de não admissão deve ou não proceder tendo em conta a aplicação do regime especial do art. 14º, 1, do CIRE, assim como, preliminarmente, do regime da Reclamação proporcionada pelo art. 643º do CPC.


Seguindo a decisão reclamada, nos seus pontos 6. e 7., vejamos como resolver.


1.1. Em primeiro lugar, verifica-se que a Reclamante não enunciou qualquer fundamento para a revogação do despacho de não admissão do recurso.


Sendo a Reclamação prevista no art. 643º do CPC uma das formas de impugnação de decisões judiciais, deve necessariamente apresentar uma estrutura equivalente à das alegações de recurso e, por isso, mesmo que não apresente Conclusões, tem que ser necessariamente motivada. Ou seja, nela deve ser encontrada a exposição dos fundamentos que servem para o reclamante pugnar pela revogação do despacho de não admissão do tribunal “a quo”, ainda que de forma sumária e abreviada, para serem eles a base de reapreciação por parte do tribunal superior.


Assim sendo, não tendo observado o ónus de formular fundamentos para a revogação do despacho, a Reclamação deve ser objecto de rejeição liminar por aplicação extensiva do art. 641º, 2, b), 1.ª parte, do CPC.


1.2. Para além disso, é de sufragar sem reservas o entendimento do despacho reclamado.


1.2.1. A revista da Requerida/Recorrente e aqui Reclamante visa a revogação do acórdão recorrido, que inverta a decisão de decretamento da insolvência da Requerida.


A sentença proferida em 1.ª instância e reapreciada pela Relação integra-se em processo especial de insolvência.


Sendo esta decisão tramitada endogenamente nos próprios autos de insolvência, rege-se pela disciplina recursiva, atípica e restritiva, prevista no artigo 14º, 1, do CIRE, e por isso delimitadora da susceptibilidade do recurso de revista dos acórdãos proferidos pela Relação (sem aplicação de qualquer outra disciplina, como seja a da revista extraordinária contemplada no art. 629º, 2, ou da revista excepcional consequente ao impedimento da “dupla conforme”, de acordo com os arts. 671º, 3, e 672º, sempre do CPC).


1.2.2. O regime dos recursos previsto no art. 14º, 1, do CIRE («No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme) tem sido objecto de uma apurada e fundamentada aplicação por parte deste Supremo Tribunal e nesta 6.ª Secção.


Dessas sucessivas pronúncias resulta que o regime, atípico e restrito, do art. 14º, 1, do CIRE, estribado em conflito jurisprudencial, apenas não se aplica aos apensos do processo de insolvência, excepção feita ao previsto expressamente nesse normativo.


1.2.3. Assim, para avaliação da sua admissibilidade, um juízo positivo depende preliminarmente do preenchimento dos requisitos gerais estatuídos no art. 629º, 1, do CPC: «O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (…)».


Depois, depende tal admissibilidade do cumprimento por parte do recorrente de ónus recursivos e de alegação:


- identificação e junção de (um só) acórdão fundamento da oposição, com certidão comprovativa e nota do trânsito em julgado (art. 637º, 2, 2ª parte, CPC);


- enunciação e demonstração de que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários, sob pena de rejeição ou não admissibilidade do recurso do acórdão recorrido e apreciação do seu mérito.


Assim é uma vez que os tribunais da Relação são, em regra, a última instância em decisões judiciais proferidas em processos de insolvência, dada a natureza urgente do processo em causa (art. 9º do CIRE), sendo necessário concluir, para que o STJ seja chamado a pronunciar-se, orientando a jurisprudência em tais tipos de processos, num juízo preliminar, que existe uma oposição de entendimentos (por regra, frontal e expressa) em dois acórdãos sobre a aplicação de determinada solução legal e, ademais, que tal divergência se projecta decisivamente no modo como os casos foram decididos.


Ora, é de julgar sem reservas que tais ónus não foram cumpridos pela Recorrente, que não observou de todo o regime que permitiria ser admitido e apreciado o recurso de revista para o STJ, falecendo, por isso, a sua pretensão recursiva.


1.3. Logo, não se vislumbram razões para alterar estes fundamentos usados na Decisão Singular, em todas as vertentes analisadas e na mobilização do regime legal aplicável, conducente à rejeição da revista.


Importa, pois, agora colegialmente em conferência, sublinhar a sua adequação e decidir em acórdão pela sua confirmação, o que se fará como epílogo.


Em acrescento.


2. A Reclamante aduz na presente Reclamação (como antes fizera no requerimento atravessado em 22/5 e no recurso interposto em 25/5) que a decisão de indeferimento do recurso não poderia ter sido proferida sem um prévio convite da parte ao aperfeiçoamento (cfr. itens 12. a 30.).


Sem razão.


Tal expediente, previsto em especial para o suprimento de vícios das conclusões (v. art. 639º, 3), não se aplica às situações de falta de alegações ou de conclusões, que impõe a imediata rejeição do recurso, sem que se admita despacho de aperfeiçoamento, tendo em conta o ordenado pela al. b) do art. 641º, 2, do CPC.


No caso, a falta de motivação do requerimento de Reclamação ao abrigo do art. 643º é equivalente à falta de alegações e, como tal (enquanto violadora do art. 637º, 2, 1.ª parte), foi tratada e configurada como base de aplicação extensiva do art. 642º, 1, b), 1.ª parte, o que se reitera (neste sentido, v. ABRANTES GERALDES, “Artigo 643º”, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 191-192 e nt. 297).


Sem prescindir.


3. Por fim, a Reclamante acrescenta que a sua argumentação recursiva é apoiada por um Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães em face de “julgados contraditórios” com o acórdão recorrido (cfr. itens 31. e ss).


No entanto, tal indicação e explanação do sumário não serve para satisfazer os ónus de alegação recursiva impostos pelo regime do art. 14º, 1, do CIRE e superar a rejeição do recurso de acordo com as pautas gerais de indeferimento previstas nos arts. 637º, 2, 2.ª parte, e 641º, 2, a), do CPC.


E – mais importante e decisivo – mesmo que os cumprisse neste passo da tramitação, tal indicação de “oposição jurisprudencial” relevante para fazer actuar a impugnação do art. 14º, 1, do CIRE é absolutamente inoportuna e intempestiva, uma vez que tal deveria ter sido feito no prazo de interposição e no requerimento da revista.


A reclamação para a conferência permitida pelo art. 643º, 4, do CPC não é meio processual legítimo para suprir ou corrigir os fundamentos aduzidos para a não admissão do recurso pela instância recorrida e não é de todo adequada processualmente para interpor um novo recurso ou fazer substituir o recurso interposto, configurado no prazo e requisitos que lhe são próprios.


O que é objectivo e claro – para concluir – é, desde logo e sem mais, a total ausência na interposição da revista da enunciação da ou das questões jurídicas que foi/foram resolvida ou resolvidas de forma contraditória pelo acórdão recorrido e da indicação de um acórdão para fundamento da contradição legitimadora da revista – sendo estas as condições de recorribilidade primária para o art. 14º, 1, do CIRE.


III) DECISÃO


Pelo exposto, acorda-se em indeferir a Reclamação, mantendo-se a Decisão reclamada que confirmou o despacho de não admissão do recurso.


Custas da Reclamação a cargo da Recorrente e Reclamante, que se fixa em taxa de justiça no montante equivalente a 3 (três) UCs.


STJ/Lisboa, 17 de Outubro de 2023


Ricardo Costa (Relator)


Graça Amaral


Ana Resende (após redistribuição)


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).