Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1077/22.3JAPRT.P1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CORREIO DE DROGA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :

I- Embora formalmente admissível para o STJ nos termos do 410º nº1, alínea f) do CPP recurso de acórdão do Tribunal da Relação que confirma decisão da 1ª instância, em que foi aplicada pena de prisão por mais de 8 anos (homicídio qualificado e pena unitária) em que é invocado vicio de erro notório e excesso na medida da pena, a invocabilidade de vícios (erro notório) por si,não é admissível face à dupla conforme e o STJ apenas conhecer de direito.

II- Na sequência das alterações introduzidas pela Lei 94/2021 incidentes na reconfiguração do aumento de poderes de revista alargada pelo STJ através da nova redacção do artº 434º do CPP (que se atém apenas aos casos das decisões das relações proferidas em 1.ª instância, e de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos) nada resulta em como, nos casos de dupla conforme, se tenha alterado a posição já dominante na jurisprudência do STJ em como em nova via de recurso a invocabilidade de vícios e nulidades, sobretudo já analisados em via de recurso para a Relação não era admitida como fundamento de recurso em si.

III- Assim, em casos de dupla conforme e recurso admissível para o STJ ex vi do artº 410º nº 1 alinea f) do PP,, deverá entender-se ser inadmissível a invocação e conhecimento de vícios ou nulidades nos termos do artº 410º nºs 2 e 3 do CPP a não ser que o STJ, oficiosamente, entenda poder e dever deles conhecer.

IV- Com a nova redacção introduzida no artº 434º do CPPº, a não ser que se entenda ter havido lapso do legislador (o que é tudo menos manifesto) terá sido reforçada a ideia de excluír a “revista alargada” em caso de dupla conforme e em que o recurso seja admissível por ter havido condenação em pena (parcelar e/ou +única) superior a 8 anos de prisão, pois agora o STJ conhece apenas em sede de direito, só o fazendo em revista alargada nos casos das alíneas a e c) do artº 432º do CPP, o que manifestamente não abrange as decisões em dupla conforme em que tenha sido aplicada pena superior a 8 anos de prisão. Podendo o legislador não ter distinguido, o mesmo distinguiu, não abrangendo hipóteses como a dos autos para conhecimento também de vícios.

V- Deste modo, com a nova configuração do recurso para o STJ conferida pela L. 94/2021, não se permite em recurso do acórdão da Relação proferido em recurso invocação de erro-vício pois algum sentido e efeito útil se há de retirar da remissão pela parte final do artigo 434º para as alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 432º e da correspetiva falta de remissão para a alínea b) do mesmo dispositivo.

VI- O tribunal a quo, na motivação, pode usar do poder de livre apreciação apelando a todos os restantes dados probatórios disponíveis no processo, nomeadamente os pedaços de vida de convivência e de agressão à vítima (companheira) pelo arguido para concluir uma causa de morte (asfixia) que o relatório pericial (de autópsia) não concluíu, mas sobre a qual este já apontava (excluindo todas as outras como morte por traumatismo ou a difícil probabilidade de morte por causa natural ou por efeito de consumo de substâncias tóxicas)com uma elevada probabilidade.

VII- Dessa forma, o tribunal complementa-o aproximando as circunstâncias do caso, o comportamento violento do arguido, as paradoxais explicações que deu sobre o sucedido na data dos factos e o paradeiro daquela, a sua errática acção após a morte da vítima culminando com o abandono do cadáver no terreno onde veio a ser encontrado posteriormente em elevado estado de decomposição, concatenando todas essas circunstâncias na conclusão a que chegou, a qual se assume lógica, verosímil, não fere regras da experiência nem sequer contrapõe ao parecer argumentos com diferente valor científico.

VIII- A ausência de antecedentes criminais e a inserção laboral valerá factor que deverá ser tido por inerente e comum a qualquer pessoa adulta bem integrada, mas tendo ficado provado o arguido possuir uma personalidade “que não respeita os valores humanos, dominadora, o que intensifica as exigências de prevenção, a culpa intensa, com dolo de grau muito elevado, o sofrimento da vítima que culminou na sua morte, sem qualquer razão ou motivo, arrastado por longo tempo em cenários múltiplos de violência doméstica, o grau muito elevado de ilicitude (crime de violência doméstica e de homicídio qualificado), revelado distanciamento, grande frieza e crueldade, acontecendo após haver tido com a vítima relações sexuais e sem haver sido antecedido sequer por qualquer desavença que tivesse eventualmente desencadeado reação por parte daquele a qualquer eventual provocação da vítima, ocultando o corpo, pensadamente, tentando até justificar com desculpas falsas o desaparecimento da vítima a pena de 19 anos de prisão mostra-se adequada e proporcional.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 5ª SECÇÃO CRIMINAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - RELATÓRIO

1.1-Historial do caso e recursos interpostos

O arguido e ora recorrente AA foi condenado em 1ª instância pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, pela prática dos seguintes crimes e nas penas adiante indicadas:

• um crime de violência doméstica agravado, previsto e punível pelo artigo 152º, n.ºs 1, b) e 2, a) do Código Penal, na pena de 3 anos e 10 meses de prisão;

• um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 26º, 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, b) do Código Penal, na pena de 19 anos de prisão;

• um crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, previsto e punível pelos artigos 14º, 26º e 254º, n.º 1, a) do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão;


Em cúmulo jurídico de penas, ficou condenado na pena única de 21 anos de prisão.

Inconformado com essa decisão dela recorreu o arguido para o Tribunal da Relação do Porto - impugnando a matéria de facto quanto ao crime de homicídio qualificado (pontos 66, 67, 90, 98, 99, 100, 103 e 104), alegando violação do princípio in dubio pro reo e, subsidiariamente, a medida da pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado.

Na verdade o Tribunal da Relação do Porto, olhando às conclusões de recurso, retirou as seguintes questões a decidir:

-impugnação da matéria de facto quanto ao crime de homicídio qualificado (pontos 66, 67, 90, 98, 99, 100, 103 e 104);

-violação do princípio in dubio pro reo e subsidiariamente,

-a medida da pena do crime de homicídio qualificado.

Finalmente, por acórdão de 17 de maio de 2023 aquele Tribunal decidiu negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente AA, e em consequência confirmar integralmente a decisão a quo recorrida.

Novamente inconformado, vem agora o arguido recorrer desse acórdão para este Supremo Tribunal de Justiça, por entender, em suma, que o Tribunal da Relação incorreu em omissão de pronúncia sobre questão de que deveria ter conhecido e, subsidiariamente, por considerar que a pena que lhe foi aplicada pela prática do crime de homicídio é excessiva. Adiante se especificarão as conclusões do recurso.

Por via daquela decisão ficou definida a seguinte matéria de facto:

II FUNDAMENTAÇÃO

De relevante para a decisão da causa, o tribunal considerou provada a seguinte matéria de facto:

Da acusação

1) BB e o arguido AA viveram como se de marido e mulher se tratassem desde o ano de 2020, residindo na mesma habitação e aí partilhando cama e mesa diariamente.

2) BB tem dois filhos menores, de 13 anos e 10 anos, fruto do seu casamento com CC, de quem se divorciou, os quais estão aos cuidados do progenitor.

3) O arguido é de nacionalidade …, tendo também uma filha que está aos cuidados da progenitora e residente em ….

4) BB conheceu o arguido em … no início do ano de 2020, na cidade de ..., num espaço de restauração e bebidas.

5) Passaram a partilhar cama, mesa e habitação em..., ..., em morada não concretamente apurada.

6) Em meados de Outubro de 2020, mudaram-se para ..., visto que o arguido tinha a avó que lá morava e que precisava de apoio familiar por estar com a saúde debilitada.

7) Em data não concretamente apurada, mas em meados de Novembro de 2020, no interior do hotel onde estavam a pernoitar, após uma discussão entre ambos, o arguido deu uma bofetada no rosto de mão aberta do lado esquerdo da BB.

8) De seguida, agarrou-lhe os braços, atirou-a para o chão, colocou-se em cima dela e agarrou o pescoço desta com as duas mãos e apertou-o.

9) Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido dizia: “Sua vaca, sua puta!”, tendo terminado quando um funcionário do hotel entrou no quarto devido a outros clientes terem alertado na receção do que se estava a passar.

10) BB foi assistida no local e transportada para uma unidade hospitalar e o arguido foi transportado pela polícia local onde permaneceu detido pelo menos uma noite, tendo no dia seguinte sido presente a um Juiz.

11) Na unidade hospitalar onde deu entrada, BB foi informada que tinha perdido o feto, motivo pelo qual ficou bastante transtornada.

12) Em meados de Janeiro de 2021, BB deslocou-se na companhia do arguido a Portugal, para estar presente no velório de um primo, que tinha sido vítima de homicídio.

13) Durante esta pequena estadia em Portugal, o arguido e BB acordaram vir viver para Portugal, tendo o pai desta encontrado uma empresa de construção civil para o arguido trabalhar, e, por isso, em meados de Fevereiro de 2021, mudaram-se ambos para Portugal, ficando a residir durante três a quatro meses na habitação do pai de BB, sita na Rua ..., ..., ....

14) Em 26 de Abril de 2021, BB começou a trabalhar para a empresa G… e como a maior parte dos colegas de trabalho eram de sexo masculino, o arguido, sabendo disso, começou a controlar e a questionar, via SMS, “Onde estás?”, “Onde andas?”, “Com quem estás?” e a ligar constantemente.

15) Uns dias depois, BB resolveu ir passar uns dias a casa de um amigo, sita no centro da cidade de ..., onde passou dois dias.

16) Quando voltou a casa do seu pai no dia 28 de Abril de 2021, ao início da noite, constatou que o arguido tinha queimado toda a sua roupa numa fogueira que o próprio fez na horta da casa do pai de BB onde então residiam.

17) Na verdade, no referido dia 28.04.2021, o arguido fez uma fogueira no quintal da habitação do progenitor de BB, onde então residiam, nela queimando quase todas as roupas dela, inclusive os pijamas.

18) Em inícios de Junho de 2021, BB e o arguido mudaram-se ambos para uma habitação, sita na Avenida ..., em..., neste concelho de... e no dia 1 de Outubro de 2021 BB e o arguido mudaram-se para a habitação sita na Rua ..., em ..., ....

19) A BB foram prescritos medicamentos para a epilepsia, para dormir e relaxantes musculares.

20) Pelo menos nessa última habitação, o arguido, por várias vezes, em diferentes datas, quando se ausentava para o trabalho, obrigava BB a tomar medicamentos além dos prescritos por forma a que BB ficasse em casa a dormir até o mesmo chegar ao fim do dia.

21) Quando saía de manhã, o arguido trancava a porta de acesso ao exterior, levando a chave com ele, impossibilitando que BB se ausentasse de casa, já que a mesma não tinha chave de casa.

22) No dia 03.12.2021, pelas 22:00 horas, quando estavam na sala, na companhia de DD, a dado momento, o arguido começou a discutir com BB, elevando ambos o tom de voz.

23) Após esta perguntar ao arguido “Que foi? Vais bater-me?”, o mesmo levantou-se e abeirou-se dela para logo encostar a cabeça dele à cabeça dela.

24) No dia 7 de Dezembro de 2021, cerca das 24:00 horas, BB deslocou-se ao estabelecimento “A.. Café”, em... (...) com o arguido, a fim de assistirem a um espetáculo de karaoke.

25) Após terminar tal espetáculo, BB convidou DD, amigo deles e promotor do espetáculo, para ir a casa de ambos, para conviverem um pouco.

26) Pela 01:00 hora do dia 08.12.2021 já na referida habitação, sita na Rua ..., em ..., ..., encontrando-se na companhia de DD e no espaço da casa dedicado à cozinha, o arguido envolveu-se em discussão com BB, por esta o ter questionado por que motivo o telefone de casa se encontrava com as chamadas a serem reencaminhadas para o telefone do arguido.

27) No decurso de tal discussão e após BB dizer “Tens medo que ande com amantes ou és tu que andas com alguma amante?”, o arguido pegou num telemóvel e no telefone de casa e partiu ambos contra a mesa da cozinha, deixando-os completamente inutilizados.

28) Ato contínuo, o arguido abeirou-se de BB e desferiu-lhe uma bofetada na cara do lado esquerdo, que a atingiu na bochecha e na orelha, provocando de imediato uma hemorragia no ouvido, de onde começou logo a sangrar de forma algo abundante.

29) Ao mesmo tempo, aos gritos, o arguido, dirigindo-se àquela, apelidou-a de “filha da puta”, “vaca” e “puta”. 30) Isto mesmo na presença de DD.

31) Como o arguido estava na cozinha a preparar uma refeição, mantinha na mão uma faca de cozinha com cerca de 20 a 25 centímetros de comprimento.

32) A troca de palavras continuou e, a dado momento, BB acusou o arguido de noutras ocasiões já a ter agredido, dizendo: “Tu bateste-me. Bate-me agora. Bate-me mais. Está aqui o DD”.

33) Ato contínuo, o arguido começou a agredi-la com vários murros, atingindo-a com violência na face, o que levou DD a intervir para tentar pôr cobro às agressões, mas sem sucesso, até porque, a dado momento, BB caiu para o chão e, nessa altura, o arguido começou a agredi-la com vários pontapés na zona da barriga e das costas.

34) Após tal agressão, DD conseguiu auxiliar BB a levantar-se do chão, mas logo após a mesma ter dito que ia chamar a polícia, o arguido voltou a abeirar-se dela, agarrou com a mão direita e apertou com força o pescoço da mesma, forçando-a a deitar-se no sofá da sala enquanto continuava a agarrar-lhe e apertar-lhe o pescoço.

35) BB voltou a dizer que ia chamar a polícia e o arguido voltou novamente a abeirar-se dela e agarrou-a com a mão direita na zona da boca (o polegar sobre a bochecha direita e os restantes dedos sobre a bochecha esquerda), apertando com uma violência tal que quase instantaneamente BB começou a sangrar pela boca.

36) Já com BB muito abalada e quase a perder os sentidos, a mesma tentou em desespero alcançar e fugir pela janela da sala (localizada num rés-do-chão), mas quando estava a abrir a persiana, o arguido correu atrás dela e puxou-a com força por trás pelos cabelos, provocando com tal gesto a queda dela para o chão.

37) Seguidamente, o arguido deslocou-se para a cozinha, regressando instantes depois à sala, trazendo com ele uns comprimidos que queria que BB ingerisse, ao que a mesma logo reagiu dizendo: “Ele quer-me drogar. Ele anda-me a drogar. Ele dá-me medicamentos de manhã e à noite”.

38) Ato contínuo, o arguido agarrou-a pelos maxilares para a forçar a ingerir esses comprimidos.

39) Instantes depois, EE, vizinho de BB e do arguido, bateu à porta e o arguido foi abrir a porta e quando ele abriu a porta, o mesmo perguntou-lhe o que se estava a passar, ao que o mesmo respondeu: “Ela está tola da cabeça outra vez. Tenho que lhe dar uns comprimidos para a acalmar”.

40) DD aproveitou esse momento para se encaminhar para a porta e se dirigir para o exterior, mas assim que BB se agarrou ao braço dele para também ela sair daquele local, o arguido agarrou-a pelos cabelos e atirou-a para o chão, começando de seguida a agredi-la outra vez com vários murros por várias partes do corpo.

41) Assim que DD saiu da referida habitação, o arguido fechou-lhe a porta e este nada mais viu.

42) Encontrando-se sozinho com BB, o arguido pegou nela ao colo e levou-a para a cama, de seguida desferiu-lhe bofetadas, fazendo-a cair ao chão, tendo nessas circunstâncias partido a cama de casal.

43) No dia 9 de Dezembro de 2021, de manhã, antes de se ausentar de casa para o trabalho, o arguido trancou mais uma vez a porta, deixando a companheira BB mais uma vez fechada em casa sem poder sair pela porta para o exterior.

44) Porque se tivesse queixado a DD que estava com muitas dores devido às agressões que tinha sofrido, BB foi por este auxiliada a sair pela janela da cozinha e, após se deslocar ao Posto da Guarda Nacional Republicana de ..., foi receber tratamento médico-hospitalar ao Centro Hospitalar …, E.P.E, onde deu entrada no respetivo Serviço de Urgência pelas 15:30 horas do referido dia 09.12.2021 e de onde teve alta pelas 18:14 horas do mesmo dia.

45) Pelas 18:45 horas do dia 09.12.2021, após ter recebido tratamento médico no Centro Hospitalar …, E.P.E..

46) Por temer voltar a ser agredida pelo arguido, BB já não regressou para junto do denunciado e foi morar com o pai.

47) Como consequência direta e necessária da atuação do arguido acima descrita, a mencionada BB sofreu dores, desconforto e lesões, concretamente:

— Fenómenos dolorosos: referidos na face, pescoço, costelas à direita, necessitando de medicação analgésica; — Outras queixas a nível funcional: não consegue comer adequadamente;

— Face: equimose periorbital bilateral, arroxeada; escoriação no dorso do nariz à esquerda, com 0,5 centímetros de comprimento; dor à palpação da mandíbula bilateralmente e na ATM, com dificuldade em abrir a boca; dor ao toque na orelha esquerda, que apresenta vestígios de sangue seco no seu interior, com aspeto avermelhado em comparação com a orelha contrária;

— Pescoço: múltiplas equimoses avermelhadas dispersas na face anterior e lateral esquerda do pescoço, ténues, dolorosas à palpação;

— Ráquis: contractura paracervical à direita, condicionando diminuição de mobilidade cervical;

— Tórax: Dor à palpação da grelha costal lateral à direita, não se observando lesão traumática; pela observação por raio X da grelha costal, fraturas do 7.º ao 9.º arcos costais direitos;

— Membro superior esquerdo: equimose avermelhada na face posterior do cotovelo esquerdo, com mobilidades mantidas;

Lesões pelas quais teve necessidade de receber tratamento médico e que demandaram 35 dias para a consolidação médico-legal, sendo a data da consolidação médico-legal das lesões fixável em 12.01.2022, tendo as lesões descritas resultado de traumatismo contundente, não tendo resultado quaisquer consequências permanentes.

48) No sábado, dia 11 de Dezembro de 2021, cerca das 11:30 horas, após ter voltado a manter contacto com o arguido, BB aceitou voltar para a casa que ambos partilhavam em..., ....

49) Para o efeito, o arguido chamou o táxi conduzido por FF, que a levou à residência comum do casal, tendo ambos voltado a viver juntos na referida Rua ..., ...,..., ....

50) Quando ali chegaram, o arguido ajudou BB a sair do táxi, tendo pegado nela ao colo, após pagar ao taxista o valor do serviço de táxi, no montante de €23,00.

51) Quando entraram naquela habitação, o arguido transportou-a ao colo até à cama, deitou-a e deu-lhe dois comprimidos para as dores.

52) De seguida, o arguido saiu de casa, deixando mais uma vez a porta de entrada fechada à chave e levando a chave com ele.

53) Quando o arguido regressou e ali se dirigiram o vizinho EE e GG a indagar se BB ali se encontrava com ele, o arguido respondeu-lhes que não, que desconhecia o seu paradeiro e que a mesma se encontraria em casa do pai.

54) Por ter sido contactada, a Guarda Nacional Republicana deslocou ali uma patrulha, tendo os militares da Guarda Nacional Republicana HH e II abordado o arguido, o qual, inicialmente, referiu a estes desconhecer o paradeiro de BB.

55) Após aqueles militares da Guarda Nacional Republicana terem questionado se poderiam ali entrar, o arguido respondeu que sim, acabando por dizer que BB se encontrava no quarto a dormir.

56) Questionada por aqueles militares da Guarda Nacional Republicana se ali pretendia ficar, BB disse que não, que queria ir para casa do pai, tendo sido então de imediato transportada para casa do pai por GG, onde esteve a residir durante algum tempo.

57) Todavia, poucos dias depois, BB voltou para a residência do casal, sita na Rua..., em ..., ..., onde residiu até à data da sua morte, no dia 17.02.2022.

58) Os desentendimentos entre ambos mantiveram-se, uma vez que BB consumia habitualmente substâncias estupefacientes e bebidas alcoólicas em excesso e, para angariar quantias em dinheiro, mantinha relações sexuais com outros indivíduos, nomeadamente com JJ, factos que eram do conhecimento do arguido.

59) No dia 16.02.2022, à noite, o arguido e BB deslocaram-se ao restaurante ..., sito na Rua ..., em..., ..., sendo que ali também se encontrava KK.

60) Cerca das 21:16 horas, BB encaminhou KK para a casa de banho das mulheres do referido estabelecimento, onde manteve relações sexuais com aquele a troco da quantia de €20,00, tendo ali permanecido até às 21:22 horas.

61) Enquanto BB estava na casa de banho do referido estabelecimento com KK, o arguido dirigiu-se mais do que uma vez à zona da casa de banho, chegando a bater à porta e chamando por ela, tendo esta respondido “estou a cagar”.

62) Após BB sair da casa de banho, cerca das 21:30 horas, esta e o arguido foram para casa no veículo de LL.

63) Ali chegados, BB ainda se dirigiu a casa dos seus vizinhos LL e MM, tendo-se esta apercebido que aquela se encontrava alcoolizada.

64) Nessa ocasião, BB disse a MM que lhe queria dar um anel como forma de agradecimento, tendo esta aceitado, por ver BB alcoolizada, pensando devolvê-lo no dia seguinte.

65) Pelas 22:30 horas do dia 16.02.2022, o arguido e BB regressaram à sua residência.

66) De regresso a casa, na noite de 16 para 17 de Fevereiro de 2022, o arguido e BB mantiveram relações sexuais, no decurso das quais o arguido decidiu tirar a vida e matar a sua companheira BB.

67) De facto, nessa madrugada, no interior da referida residência, o arguido usando a sua superior força física ocluiu totalmente a boca e o nariz de BB por forma não concretamente apurada, até que a mesma deixasse de respirar, conseguindo, assim, tirar-lhe a vida, o que quis e conseguiu.

68) Após a ter matado, o arguido retirou toda a roupa que BB possuía em casa e nos seus objetos pessoais (à exceção do desodorizante, escova de cabelo, escova dos dentes, champô e gel de banho que eram de uso exclusivo da vítima) e foi despejá-los no contentor do lixo que se situa a cerca de 50 metros da habitação onde ambos residiam.

69) O arguido pegou ainda no corpo desnudado de BB e envolveu-o numa manta de cor cinzenta, colocando-o em cima da cama do segundo quarto da referida habitação em posição de decúbito dorsal.

70) O arguido desligou o telemóvel que habitualmente usava, com o n.º ... ... .06, pela 01:03 horas do dia 17.02.2022.

71) Cerca das 06:45 horas do dia 17.02.2022, o arguido foi trabalhar para a zona de ..., tendo levado consigo o telemóvel de marca Samsung Galaxi Gio, com o IMEI ... ... ... ... .00, com o cartão de telemóvel com o n.º ... ... .77, utilizado habitualmente por BB.

72) Após a morte da BB, o arguido resolveu engendrar um plano para encobrir a sua morte, relatando a quem conhecia que ela tinha abandonado a residência levando todos os seus pertences.

73) Assim, quando chegou a casa vindo do trabalho, no dia 17.02.2022, o arguido dirigiu-se à sua residência e um ou dois minutos depois, deslocou-se à casa dos seus vizinhos MM e LL (também seu colega de trabalho) dizendo “Ó LL, a BB se foi, a BB marchou”, tendo-lhes pedido que entrassem na sua residência e levou-os ao quarto onde lhes mostrou o guarda-fatos sem roupa de mulher, não tendo levado aqueles nem à sala nem ao outro quarto da referida residência, onde ainda se encontrava o corpo sem vida de BB.

74) Porque instado pelos seus vizinhos nesse sentido, o arguido não ligou para o telemóvel da BB, dizendo que “não tinha saldo ou ela a ele não lhe atendia”, tendo a testemunha MM tomado a iniciativa de ligar para o número ... ... .77, que não deu sinal.

75) Porque os referidos vizinhos insistiam que tentasse ligar para BB, o arguido, utilizando o telemóvel desta acima referido, fingiu ligar-lhe, dando sinal de desligado.

76) Às diversas pessoas a quem comentava o desaparecimento da BB, o arguido foi dando justificações diferentes para o seu desaparecimento, ora dizendo que sabia que a mesma tinha voltado para … para um anterior companheiro, ora dizendo que a mesma estava em casa da sua mãe em ..., ora dizendo que tinha inclusivamente pago a quantia de €450,00 para esta ir a um “bruxo”, para fazer um tratamento.

77) Posteriormente, o arguido veio a dizer às diversas pessoas que o contactavam que BB se tinha ido embora sem levar o seu telemóvel, que, aliás, se encontrava na sua posse, logo na manhã do dia 17.02.2022 e que consigo levou para o seu local de trabalho.

78) Como o arguido não tinha qualquer veículo na sua posse, desde logo resolveu engendrar um plano para se conseguir desfazer do corpo da sua companheira.

79) No dia 19.02.2022, sábado, o arguido esteve a trabalhar e no final do dia de trabalho, pediu ao seu patrão, NN, que lhe emprestasse um veículo porque precisava de ir buscar uns móveis, tendo este acedido, emprestando-lhe uma carrinha de marca Ford, modelo Transit, com a matrícula ..., que tinha as particularidades de ter a matrícula na parte traseira do lado esquerdo, os vidros de trás escurecidos, a luz de travão traseira do lado direito fundida e não tinha o tampão do local de abastecimento de combustível.

80) Nesse dia, pelas 17:30 horas, o arguido ficou na posse do referido veículo.

81) No dia seguinte de manhã, entre as 11:20 e as 11:26 horas, dando execução àquele plano previamente traçado de se desfazer do cadáver da falecida BB, pegou no seu corpo envolvido na manta de cor cinzenta, colocou-o no lugar de carga da referida viatura, tendo-se dirigido com a mesma até a um trilho existente junto à Rua..., em ...,..., depositando o cadáver da vítima numa zona de mato florestal.

82) Nesse percurso, o arguido ainda danificou a referida viatura que apenas devolveu pelas 23:00 horas do referido dia 20.02.2022 ao funcionário do seu patrão que lha havia emprestado.

83) Para ali chegar o arguido percorreu cerca de 16 quilómetros, passando pelo Posto de Abastecimento de Combustível … sito na Rua ..., em ... e na Avenida ..., em ..., onde a referida viatura foi vista a passar nas câmaras de vídeo-vigilância da sociedade “R…, Lda.”.

84) Tanto assim foi que o corpo da falecida apenas foi encontrado pela testemunha OO no dia 28.02.2022.

85) Quando o cadáver da vítima foi encontrado, ao nível do hábito externo verificou-se que, depois de aberta a manta, o cadáver apresentava já sinais evidentes de putrefação com uma exuberante mancha esverdeada que se estendia das fossas ilíacas para o abdómen. As pontas dos dedos estavam bastante desidratadas e as unhas cianosadas, sendo que as da mão esquerda estavam, aparentemente, mumificadas e existia uma grande massa larvar na zona genital, indiciando que a vítima estivesse morta há vários dias. A rigidez cadavérica estava já totalmente desinstalada constatando-se, logo de imediato, que os livores não eram compatíveis com o posicionamento em que o corpo foi encontrado. Observados os livores que se encontravam fixados, verifica-se que o seu assentamento teria decorrido encontrando-se o cadáver da vítima numa posição de decúbito dorsal. Existiam também marcas de compressão na parte posterior do cadáver (Zona lombar e nádegas) que são coincidentes com o assentamento dos livores numa posição de decúbito dorsal e, muito possivelmente, quando já envolto ou em cima da manta, considerando que as marcas de compressão existentes na zona lombar parecem ter sido produzidas por pregas de tecido. Para além disso, o cadáver da vítima apresentava poucas escoriações que indiciassem o arrastamento do corpo, apresentando-se os pés desnudados também eles íntegros, o que, considerando a flora autóctone existente no local onde o cadáver foi depositado, com várias plantas com espinhos punctiformes, tal não seria possível, tendo o mesmo sido carregado e não arrastado e pousado de forma cuidadosa no local onde foi encontrado. Voltado o corpo, verificou-se que o mesmo apresentava sinais de putrefacção especialmente revelados nas duas manchas esverdeadas que se estendiam das fossas ilíacas até à região abdominal, na cavidade oral e grande massa larvar na zona genital. A cabeça não apresentava lesões ao nível do crânio verificando-se duas manchas equimóticas por cima da sobrancelha esquerda na região frontal da cabeça. A cavidade oral também apresentava sinais de putrefacção encontrando-se a língua no interior da arcada dentária. Os globos e os lábios encontravam-se já bastante desidratados, sendo que a pele dos lábios estava já a escamar. Era visível uma pequena escoriação de forma circular no lábio inferior do lado esquerdo e uma ténue escorrência nasal da narina esquerda. Ao nível do pescoço verificavam-se de ambos os lados ligeiras equimoses de tom avermelhado, assim como na zona frontal mas mais ténues. Os membros superiores apresentavam duas escoriações na parte anterior do braço direito. O antebraço da mão direita e a palma da mão estava limpo, verificando-se uma pequena escoriação no dorso da mão e o que aparenta ser uma pequena infiltração sanguínea no polegar da mão direita. As unhas desta mão estão cianosadas e a pele interior muito desidratada. Na zona posterior do braço esquerdo eram visíveis várias manchas e aparência equimótica, assim como uma escoriação já com alguma massa larvar. Na parte interna do antebraço verificavam-se três cicatrizes.

86) Do exame ao hábito externo da vítima, foram observadas as seguintes lesões:

— Equimoses avermelhadas ao nível da cabeça (fronte e região infra-ocular), áreas de coloração rosada no pescoço, equimose rosada figurada no tórax (perimamilar, compatível com mordedura), escoriações avermelhadas no dorso da mão direita, equimoses azul-arroxeadas no braço esquerdo, escoriação avermelhada no braço esquerdo, escoriação avermelhada na perna direita e equimoses arroxeadas na coxa e perna esquerdas. Estas lesões traumáticas são compatíveis com traumatismo de natureza contundente;

— Escoriações alaranjadas e desidratadas no tórax, região ano-genital, membro superior direito, membro inferior direito e membro inferior esquerdo. Estas lesões são compatíveis com lesões ocorridas no período post-mortem.

87) Ao nível do Hábito Interno foram observadas as seguintes lesões:

— Tradução nos tecidos moles, com infiltração sanguínea, da equimose na região frontal esquerda descrita no exame do hábito externo, medindo 2 por 1 cm de maiores dimensões; Hemorragia subaracnoideia ligeira,

essencialmente a nível dos lobos parietais, sendo mais evidente à esquerda; Ausência de lesões traumáticas ósseas cranianas ou de outras lesões traumáticas encefálicas; Tradução nos tecidos celulares subcutâneos, com infiltração sanguínea, da equimose figurada perimamilar descrita no exame do hábito externo; Congestão generalizada dos órgãos; Sufusões hemorrágicas dispersas pela mucosa laríngea; Sufusões hemorrágicas dispersas pela superfície pulmonar, bilateralmente; Presença de calo ósseo nos arcos posteriores da 9.ª à 11.ª costelas, à direita, compatível com fracturas não recentes, consolidadas.

88) O estudo toxicológico revelou-se:

— Positivo para a pesquisa de etanol, na concentração de 1,98 ± 0,25 g/L;

— Positivo para a pesquisa de substâncias medicamentosas, nomeadamente 7-aminoclonazepam (metabolito activo do clonazepam), diazepam, nordiazepam (metabolito activo do diazepam) e trazodona, todos em doses consideradas não tóxicas.

89) Relativamente às amostras remetidas ao Serviço de Genética e Biologia Forenses do INMLCF, I.P. para pesquisa de material biológico:

— Foi confirmada a presença de sémen nas zaragatoas vaginal e da cavidade oral, bem como no cobertor que envolvia a vítima.

— Foi confirmada a presença de material biológico de origem masculina nas zaragatoas vaginal, anal, subungueais bilateralmente, oral, peri-vulvar, bem como no cobertor que envolvia a vítima, coincidente com o perfil genético do suspeito.

— Com exceção dos perfis genéticos da vítima e do suspeito, não foram encontrados outros perfis genéticos em todas as amostras colhidas.

— O facto de ter sido detetado sémen nas zaragatoas vaginais, em quantidade suficiente para contaminar o cobertor onde a vítima se encontrava envolvida, sugere a ocorrência de relações sexuais (coito vaginal) entre a vítima e o arguido num curto período de tempo prévio à morte.

— O exame anátomo-patológico às amostras colhidas de coração, pulmão, rim, fígado, encéfalo e vulva, remetidas para o laboratório de Anatomia Patológica desta Delegação para processamento, detetaram: “Congestão multivisceral. Lesões difusas de necrose aguda tubular renal”.

90) Fruto das lesões infligidas pelo arguido a BB, com a oclusão de ambas as vias respiratórias, o arguido, de forma direta, adequada e necessária, provocou-lhe dores e a morte, o que quis e conseguiu.

91) A vítima não apresentava qualquer lesão de defesa nas mãos, braços ou antebraços.

92) O arguido sabia que as expressões por si dirigidas à mencionada BB eram profundamente ultrajantes e lesivas da sua honra e da consideração pessoal que lhe é devida, mas não obstante essa cognição, agiu com o propósito, conseguido, de a ofender na sua honra e consideração.

93) Sabia igualmente que os anúncios acima referidos eram adequados a afetar a sua liberdade de determinação e a provocar-lhe medo e inquietação e a criar nela angústia e sentimentos de insegurança e de dependência em relação a si, aterrorizando-a, o que igualmente quis e conseguiu.

94) Ao atuar da forma acima descrita, quis também, como conseguiu, molestar e maltratar o corpo e saúde da mencionada BB e atingi-la na sua integridade física.

95) Sabia ademais que os seus atos acima descritos afetavam a dignidade pessoal da mencionada BB, sua companheira, bem como o seu equilíbrio psicológico e emocional.

96) Fê-lo sem qualquer motivo justificativo e com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência física e psíquica, bem sabendo que da forma descrita atingia física e psicologicamente a mencionada BB e lhe infligia maus-tratos físicos e psíquicos, o que lhe foi indiferente por ser querida tal conduta.

97) Sabia outrossim que atuava no domicílio comum e que, deste modo, coartava as possibilidades de defesa e/ou fuga da mesma e lhe infligia um maior sentimento de vergonha e de insegurança e vulnerabilidade, bem como que essas circunstâncias lhe agravavam a responsabilidade criminal.

98) Do mesmo modo, ao ocluir ambas as vias respiratórias da vítima, usando a sua superior força física e aproveitando-se do estado de embriaguez em que aquela se encontrava, o arguido sabia que podia provocar-lhe a morte, propósito que visava alcançar e que ocorreu.

99) Por via de tal oclusão das vias respiratórias, resultou para a vítima a sua asfixia, que, de forma direta, adequada e necessária, lhe provocou dores e a morte.

100) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de matar e tirar a vida à sua companheira BB, sem que a vítima o tivesse provocado ou por alguma forma atentado contra a sua integridade física, denotando um total, pérfido e gratuito desrespeito pela vida humana.

101) O arguido sabia e não podia ignorar que a vítima era sua companheira, a quem devia especial respeito e consideração.

102) O arguido sabia que a vítima se encontrava embriagada, conhecia a sua debilidade física face à sua compleição física e força, tornando-a praticamente incapaz de se defender da sua atuação.

103) O arguido sabia ainda que ao ocluir boca e nariz da vítima BB, obstruindo-lhe as vias respiratórias e impedindo-a de respirar, indispensável ao sustento da vida do corpo humano, melhor assegurava o êxito das suas intenções homicidas.

104) Tal morte, querida pelo arguido, que agiu com total insensibilidade e desconsideração pela vida e integridade física da vítima BB, ocorreu porque esta foi intencionalmente impedida de respirar, provocando, assim, a sua morte.

105) Ao colocar o corpo da vítima BB numa zona erma de mato florestal, o arguido agiu com vista a que o seu cadáver não fosse encontrado, nem fosse descoberto o crime de homicídio que havia cometido, abandonando-o com o propósito concretizado de impedir a sua descoberta, o que bem sabia não estar autorizado a fazer.

106) Ao desfazer-se do cadáver da vítima BB, o arguido agiu com total insensibilidade, bem sabendo que ofendia o sentimento moral coletivo de respeito devido aos mortos, o que quis e logrou alcançar.

107) Fê-lo, ainda, com o propósito de, dessa forma, impedir a descoberta do cadáver de BB pelas autoridades policiais e assim obstar à sua perseguição criminal, não obstante saber ter sido ele quem tinha causado a morte de BB.

108) O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e puníveis por lei, não se tendo, contudo, coibido de as praticar.

Do pic de PP e QQ

109) PP, nascido em ...-...-2009, e QQ, nascida em ...-...-2011, são filhos da vítima BB.

110) Os menores vivem aos cuidados do pai desde fevereiro 2019, contactando com a mãe telefonicamente e estando por vezes com a mãe quando esta estava em Portugal e os ia buscar a casa do pai.

111) A morte da vítima causou-lhes sofrimento.

112) Tiveram que passar pelo escrutínio público no meio onde vivem e até em contexto escolar.

113) Os factos tiveram cobertura pelos media, quer a nível nacional, quer local, o que levou a que tal notícia fosse comentada no meio onde os menores estão inseridos, o que lhes causou tristeza, desgosto e, quanto ao filho, revolta.

114) Na escola, sentiram-se envergonhados e amedrontados, pois sabiam que os colegas e professores tinham tido conhecimento do sucedido.

115) Nunca mais vão ver a mãe, nunca mais vão estar com ela ou falar com ela.

116) Além da dor por terem perdido a mãe, têm saudades dela.

117) As agressões físicas de que BB foi vítima causaram-lhe dores e marcas no seu corpo, o que lhe causava tristeza e vergonha, vivendo aterrorizada com as ameaças que o arguido lhe fazia, motivo que a levava a voltar sempre a viver com ele.

118) No momento em que o arguido matou a vítima, causou-lhe sofrimento quando esta sentiu quando o arguido lhe estava a “tapar” a boca e o nariz para que deixasse de respirar.

119) A vítima, à data dos factos, tinha 30 anos de idade, tendo nascido em ...-06-1991. Do pic de RR

120) RR, mãe de BB, sofreu desgosto e tristeza em virtude da morte da filha e viu-se impedida de velar o seu corpo nas suas cerimónias fúnebres.

Outros

121) O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos.

122) À data dos factos o arguido desenvolvia atividade como operário da construção civil. O agregado constituído por si e por BB dispunha de valor equivalente ao salário mínimo nacional, acrescido de horas extra, o que permitia fazer face às despesas fixas relativas à renda de casa, água e eletricidade, sem privações significativas no quotidiano.

123) AA tem em …, para além da sua progenitora, uma filha já adulta, fruto de um relacionamento curto que manteve na juventude.

124) O arguido tinha problemática alcoólica quando viva em …, nunca tendo feito tratamento para tal, encontrando-se desde a reclusão abstinente.

125) AA terá frequentado a escola na idade normal, tendo desistido após a conclusão do ensino obrigatório, iniciando atividade laboral aos 16 anos de idade, primeiro como soldador e depois como camareiro num barco.

126) Pese embora a natureza dos factos constantes da acusação seja conhecida, AA projeta uma imagem de pessoa educada no relacionamento de vizinhança, sem que seja denotada rejeição à sua presença naquele meio.

127) AA encontra-se preso no Estabelecimento Prisional do... (E..) desde 31-03-2022, à ordem do presente processo. Tem revelado capacidade de adaptação ao normativo vigente, tendo obtido ocupação laboral na faxina do pavilhão até ao inicio da fase de julgamento; posteriormente, tendo sido caso mediatizado, foi necessário transferir o arguido para regime protegido em virtude de este temer retaliações por parte da restante população prisional.

128) Não beneficia de visitas: a mãe, por residir em …, não o pode visitar e o arguido não tem em território nacional qualquer amigo e ou familiar que o faça. Beneficia, todavia, de apoio económico da progenitora que todos os meses deposita 50€ na sua conta corrente no estabelecimento prisional.

129) O arguido, assinalando como repercussão imediata do presente processo a privação de liberdade, projeta o futuro centrado no exercício de uma atividade laboral regular na área da construção civil, na mesma morada em ..., sendo a habitação propriedade da empresa. Pretende, assim, permanecer em Portugal, desejando que a progenitora emigre e venha viver consigo.

*

Mas não resultou provado que:

A - Na residência sita em ..., BB suspeitou que podia estar grávida do arguido, tendo então efetuado um teste de gravidez na presença deste, o qual deu resultado positivo.

B - Na situação descrita em 7) e 8), o arguido desferiu vários pontapés em todo o corpo de BB, maioritariamente na barriga e costas, e disse-lhe “vou-te matar”.

C - Nas circunstâncias descritas em 10), o arguido ficou proibido de se aproximar da vítima.

D - Após três semanas decorridas do episódio atrás descrito, quando se encontrava sentada numa esplanada perto da casa dos pais do arguido, BB foi abordada por este, tendo-lhe o mesmo pedido desculpas pelo sucedido, prometendo que não voltariam a acontecer novas agressões e pedindo-lhe que reatassem a relação.

E - Devido ao facto de se encontrar sozinha sem qualquer apoio familiar e laboral, BB acabou por reatar a relação com o arguido.

F – Na circunstância descrita em 14), o arguido afirmava a BB “Estou-me a chatear, se te vejo com algum homem parto-o todo e a ti também”.

G – No dia 26-04-2021, à noite, quando BB foi à casa de banho, o arguido pegou no telemóvel, marca Samsung, modelo Galaxy S8, no valor de €899,00, pertença desta, sem o seu consentimento, para verificar com quem a mesma falava, tendo partido o mesmo.

H – O facto descrito em 15) deveu-se ao facto de o arguido se mostrar mais agressivo nas palavras e nas respostas que dirigia a BB.

I - Em data não concretamente apurada, mas em meados de Agosto de 2021, já de noite, durante um convívio organizado pelo arguido nessa habitação, estando presentes três amigos de trabalho do arguido, este e os amigos consumiram bastantes bebidas alcoólicas e também produto estupefaciente (haxixe).

J - Nessa ocasião, devido ao excesso de fumo e cheiro decorrente do consumo de haxixe, BB chamou-os a atenção, pedindo para irem fumar para o exterior da habitação, ao que nesse momento o arguido se abeirou dela e lhe desferiu uma bofetada na face com a mão aberta.

K - Ato contínuo, BB foi para a cama e, após alguns minutos, o arguido deslocou-se ao quarto e obrigou-a a tomar vários comprimidos.

L – Para concretizar os factos descritos em 20º, o arguido, usando a força, colocava os joelhos em cima dos braços de BB para a mesma não poder resistir, com uma mão abria a boca desta apertando na zona da boca e com a outra cheia de medicamentos introduzia os mesmos na sua boca, dando-lhe água de seguida.

M – Na circunstância descrita em 22) e 23), estava presente SS e, perante o comportamento do arguido, DD interveio e disse “Calma que eu estou aqui”, serenando os ânimos.

N – Nas circunstâncias descritas em 31), o arguido apontou a arma para BB ao mesmo tempo que dizia: “Eu mato esta filha da puta”, ao que, ao ver o arguido a avançar na direção de BB a empunhar tal faca de cozinha, DD agarrou e puxou o braço do arguido, acabando o mesmo por pousar a faca em cima da mesa da cozinha.

O – Logo após o facto descrito em 34), DD agarrou no braço do arguido e puxou-o para trás, pedindo-lhe mais uma vez para ele parar, ao que o mesmo acedeu.

P – Após o facto descrito em 42), o arguido largou-a e BB deslocou-se para outro quarto para lá pernoitar, deitando-se completamente ensanguentada, sendo abordada novamente pelo arguido que a obrigou a tomar mais comprimidos, abrindo-lhe a boca para o efeito e fazendo-a engoli-las com água.

Q - No dia 8 de dezembro de 2021, BB acordou cerca das 17:00 horas, e estando o mesmo em casa, pediu ao arguido para a transportar ao hospital, porque estava com bastantes dores, o que este não fez.

R – Aquando dos factos descritos em 45), BB recebeu uma chamada telefónica do arguido que lhe perguntou onde ela estava, mas como ela não lhe disse, o mesmo começou depois insistentemente a tentar entrar em contacto com ela.

S - Ao final do dia 10 de Dezembro de 2021, BB voltou a receber várias chamadas telefónicas realizadas por um número que começava por “91” e terminava em “11” e que sabe ser usado por um colega de trabalho do arguido, as quais não atendeu.

T – Já no interior da habitação do casal no dia 11-12-2021, o arguido deslocou-se ao outro quarto, onde foi buscar um rolo de fita cola larga, de cor castanha, e, usando tal fita, prendeu as mãos de BB atrás das costas, tendo-lhe ainda colocado fita adesiva na boca, impossibilitando-a de falar.

U - Depois, passou as suas mãos pelo cabelo dela, ao mesmo tempo que lhe disse: “Gosto muito de ti. Só te quero à minha beira… Vou sair durante uma hora para trabalhar e depois volto”.

V - BB acabou por adormecer e quando acordou o arguido já estava em casa, encontrando-se deitado junto de si e a passar-lhe as mãos pelo cabelo, acabando BB por adormecer de novo.

W – No decurso dos factos descritos em 66), e força do que havia acabado de suceder no interior do Restaurante ........, gerou-se uma discussão entre o arguido e BB, durante a qual o arguido tomou a decisão referida em 66).

X – No facto descrito em 67), o arguido agarrou com uma das mãos o pescoço de BB.

Y – A morte de BB foi imediata, tendo ocorrido assim que lhe foram ocluídas as vias respiratórias.

Z - Após a ter matado, o arguido despiu BB.

Outros factos por provar: não há.

*

O Tribunal a quo consignara a seguinte Motivação:

“O Tribunal baseou a sua convicção na apreciação crítica da prova produzida em audiência de julgamento, pericial, testemunhal e documental, tendo por pilar os princípios de apreciação da prova ínsitos nos artigos 127º e 163º do Código de Processo Penal.

Sigamos a prova em três passos, cronologicamente organizados, concretamente antes, no momento e após o falecimento de BB.

O início do relacionamento, os filhos de relacionamentos anteriores, a mudança para Portugal e as várias moradas do casal (factos 1º a 6º, 12º 13º e 18º) foram confirmados de forma inequívoca pelo arguido e por BB, esta em declarações para memória futura ouvidas em audiência.

Dir-se-á desde já que, no seu concreto conteúdo, as declarações prestadas por BB revelaram-se de pouco interesse, ressentindo-se uma constante preocupação em desculpabilizar o arguido e em atribuir versões mais graves dos factos a falsidades de testemunhas, a que não terá sido alheio o facto de, à data da sua prestação em 17-01-2022, BB ter retomado a vivência conjugal com o arguido e ter até já recusado a colocação de dispositivo de vigilância eletrónica para sua proteção (cfr. fls. 277 dos autos apensos). Ainda assim, além de um ou outro pormenor que foi confirmando (e que infra abordaremos), foi crucial para fortalecer o depoimento, já de si esclarecedor, da testemunha DD, que BB coloca em alguns dos momentos que viveu. Cumpre dizer que BB quis passar a mensagem de que esta testemunha é que engendrou o seu depoimento inicial e a convenceu a denunciar os factos, mas, além de a primeira denúncia datar de 29-04-2021 (muito anterior à proximidade do casal com DD e pouco após a chegada de BB e do arguido a Portugal), questionada sobre qual a finalidade de DD para tal avançou que este pretendia que BB trabalhasse com ele no negócio de karaoke, o que não faz qualquer sentido, quer porque BB e o próprio arguido confirmaram que BB já tinha prestado auxílio nos espetáculos de DD pelo menos duas vezes antes da prestação das suas declarações, quer porque é totalmente contraditório com a prova produzida, nalguns casos até com confissão do próprio arguido.

Os factos 7º a 11º foram admitidos pelo arguido e BB confirmou que já em … o arguido lhe tinha batido. Quer seja ou não a verdadeira a versão do arguido de que em discussão nessa situação BB o arranhou, foi só ela que careceu de assistência hospitalar após intervenção de clientes e funcionário do hotel onde se encontravam, o que é revelador da desproporção das alegadas agressões mútuas.

Os factos 14º a 17º foram assumidos pelo arguido, a própria BB viu-se confrontada, como relatou, com a falta da roupa quando regressou a casa e TT, pai dela e em casa de quem o casal à data vivia, presenciou o ato do arguido de queimar as roupas. Se o controlo se devia ou não, como quis fazer crer o arguido, ao facto de BB usar sem autorização o veículo dele ou se a queimada das peças de vestuário teve como rastilho uma alegada fuga de BB com um colega, é irrelevante: se o arguido não concordava com os comportamentos dela, seguia a sua vida sem ela.

Quanto aos factos 19º a 21º, é inequívoco que BB tomava, como prescrição médica, vários medicamentos por dia. O arguido admitiu que muitas vezes era o próprio que lhos administrava, mas a pedido dela, por vezes até mais do que a dose prescrita, ora porque BB se esquecia, ora porque estava sob a influência de substâncias estupefacientes ou álcool. A questão está no excesso ou na administração contra a vontade de BB com o fito de a manter a dormir, de que BB se queixava ao pai (como o próprio asseverou), a que DD assistiu na noite de 08-12-2021 (num momento de extrema violência) e que é reforçado pelo depoimento de RR, mãe de BB, que tomava o mesmo tipo de medicação e a quem a filha pedia caixas de medicamentos com muita frequência, às vezes de 15 em 15 dias, revelando que as caixas se esvaziavam num ápice. Estes dados associados ao facto de RR não conseguir, nos últimos meses de vida da filha, contactá-la a não ser à noite (BB não trabalhava, mas também não atendia chamadas) e ao facto de o próprio arguido assumir que a trancava em casa levam-nos a perceber que BB vivia fortemente condicionada pela ingestão de medicamentos contra a sua vontade, administrados pelo arguido (única pessoa com quem vivia), que dessa forma, aliada à impossibilidade de sair de casa, lhe controlava os movimentos.

E a desculpa avançada pelo arguido para trancar BB à chave em casa – o que foi evidente no dia 09-12-2021 quando teve que sair auxiliada pela janela da cozinha - foi absurda: só havia uma chave e, quando BB pedia, o arguido deixava-a na janela da cozinha, já que ela podia sempre sair pela janela; e o motivo pelo qual o arguido levava a chave consigo prendia-se com o facto de BB temer o seu pai, se bem que desconfiassem que este tinha uma outra chave da porta. É manifesta a falta de sentido lógico desta explicação: em primeiro lugar, o ato de trancar alguém é uma privação da liberdade qualquer que seja a explicação dada e, em segundo lugar, se a questão estava no medo de BB do pai e este podia ter uma chave extra, então BB nunca estaria protegida em casa, fito último avançado pelo arguido.

Os factos 22º e 23º foram admitidos pelo arguido.

Quanto à situação descrita em 24º a 42º foi fulcral o depoimento de DD, que não nos mereceu a menor reserva, não se descortinando uma mínima razão para que não depusesse com verdade, já que se trata de alguém alheio a vínculos familiares ou profissionais do arguido e de BB (a ajuda que esta prestou no karaoke foi pontual). Assumiu uma narrativa sentida, deixando transparecer que ficou profundamente incomodado com o que presenciou, a tal ponto que se sentiu incapaz de trabalhar no dia seguinte, preocupado que estava com a condição física de BB (preocupação espelhada no telefonema de 08-12-2021 e no auxílio prestado no dia seguinte). Acresce que o depoimento da sua esposa, UU, igualmente isenta, reforçou-o, assim como as lesões observadas em BB no dia seguinte (factos 44º e 47º), constantes das fotografias de fls. 143-147, do registo de urgência de fls. 172 e do relatório médico-legal de fls. 257-259 e 854.

DD descreveu o episódio dessa noite com particular violência, suportado em inúmeros detalhes incompatíveis com quem não assistisse ao episódio, e confirmou a discussão por causa das chamadas reencaminhadas, insultos e provocações verbais mútuos do casal, e as ameaças e agressões provadas, tendo o arguido forçado BB a engolir comprimidos abrindo-lhe a boca e apertando-lhes os maxilares e tendo-lhe apontado uma faca ao peito; não negou esta testemunha que BB também desferiu murros aos arguido, mas o número de agressões perpetradas, até já com BB caída no chão, e a força empregue pelo arguido foram, no seu relato, de tal forma superiores que as tentativas de BB não surtiam qualquer efeito na agressividade do arguido. E tendo em conta as lesões físicas observadas em BB no dia seguinte, é manifesta a gravidade das investidas do arguido.

DD foi muito pormenorizado, o que solidificou o seu depoimento, tendo o tribunal dado como assentes os factos nos termos da acusação, mais parcos que os de DD, mas compatíveis com toda a dinâmica que o mesmo trouxe. E UU relatou que o marido lhe ligou pelas 3:00 horas dessa noite de 08-12-2021 a pedir-lhe que o fosse buscar, logo lhe relatando em traços largos o que tinha presenciado, coincidentes com o que relatou em audiência e com o estado em que SS encontrou BB no dia seguinte, com o corpo dorido, marcas no pescoço, sangue numa orelha e os olhos pisados.

Assim se entendeu que a genérica admissão do arguido sobre estes factos foi parca, pois apenas assumiu uma discussão, insultos, bofetadas recíprocas, insinuações de amantes, a quebra dos telefones e o facto descrito em 42º, afirmando que DD saiu da habitação pouco após o início da contenda e BB seguiu-o, tendo esta saltado pela janela e embatido com o rosto no chão (assim tentando justificar as lesões na face); poucos minutos depois, segundo o arguido, DD e BB teriam voltado das traseiras de uns contentores, o arguido deu comprimidos a BB, DD foi embora e a discussão durou até BB adormecer.

BB declarou ainda menos do que o arguido, situando a presença de DD apenas na fase inicial da discussão na cozinha, onde apenas teria ocorrido uma bofetada na face perpetrada pelo arguido, que a fez cair e sangrar na zona da orelha, contrariando de forma evidente o relato exaustivo deste que abarca um período muito mais vasto e muitas agressões. Mais, BB nega, na senda da sua desculpabilização, até o que o arguido admite, a quebra do telemóvel.

Os factos 43º a 46º foram relatados de forma inquestionável por DD e UU (e até confirmados por BB), preocupada que ficou desde o sucedido na noite de 7 para 8-12, tanto que no dia 8-12 o seu marido DD, que em audiência o confirmou, estranhou a pressa do arguido em desligar o telemóvel quando ligou para o número de BB e este o atendeu. Confirmaram os gemidos de BB, a face pisada e negra, o pedido dela de ajuda, a retirada pela janela precisamente por a porta se encontrar trancada e BB não ser possuidora da respetiva chave, e a dificuldade de BB de se locomover sozinha face às dores corporais de que se queixava.

Os factos 48º a 52º foram confirmados pelo arguido e por FF (taxista que efetuou o serviço de transporte) e os factos 53º a 56º por UU, EE, os militares HH e II e pelo próprio arguido. Ainda quanto a estes factos, foi flagrante a intimidação de BB ao contar a sua versão absurda: de táxi teria sido levada de casa do pai à casa do casal apenas para recolha de vestuário e medicação, o arguido apenas se teria aproximado para pagar a viagem sem sequer entrar em casa, e daí voltou pela mesma via para casa do pai, não tendo regressado a ... até 05-01-2022. Obviamente, esta versão embate frontalmente com o ocorrido em 11-12-2022 perante as testemunhas supra referidas.

O regresso de BB a ... poucos dias após esse episódio (facto 57º) foi confirmado pelo arguido e por TT.

Quanto ao facto 58º - consumos de estupefacientes e bebidas alcoólicas por BB e relações sexuais desta com outros indivíduos com conhecimento do arguido – AA afirmou que BB consumia haxixe e cocaína e que era frequente ingerir bebidas alcoólicas, mas negou ter conhecimento que se envolvesse com outros homens, do que só veio a saber já em reclusão.

Quanto ao primeiro ponto, BB assumiu ter efetuado outrora desintoxicações por consumos abusivos de álcool e que teve uma recaída em novembro de 2021; e as testemunhas VV, amiga de BB e que viveu com o casal já em 2022, TT, pai e em casa de quem o casal morou, WW e XX, proprietárias do Restaurante D......., EE e MM, vizinhos do casal, e YY, cuidadora da companheira do pai de BB e que viveu uns tempos com o casal, todos confirmaram ter presenciado esses consumos, a que se soma a presença de etanol no corpo de BB com concentração expressiva aquando da autópsia e que credibiliza esses depoimentos.

Já no que concerne aos relacionamentos que BB mantinha com outros indivíduos, foi confirmado por KK e JJ que mantiveram relações sexuais com BB desde que esta regressou a Portugal, este até várias vezes, e ambos lhe pagavam por esse ato. Não nos convenceu o alegado desconhecimento do arguido desses encontros, porquanto era muito notória a cumplicidade de BB com estes indivíduos e a particularidade de BB, sem rendimentos próprios, se munir de valores monetários advindos desses relacionamentos: TT relatou um episódio em 14-02-2022 em que foi com o casal e VV ao D....... e viu BB a “atirar-se ao colo de um careca“ (sic) e a chamar-lhe “meu amor”, sem qualquer reação por parte do arguido; VV via BB sair muitas vezes com JJ e sem o arguido, o que estranhava, tanto que BB se atirava publicamente ao seu colo e o beijava; JJ conheceu-a cerca de 6 meses antes do seu falecimento e BB chamava-lhe “tio” e o arguido chegou a pedir-lhe boleias para BB, a sugerir-lhe dar-lhe a chave de sua casa e a comentar ter conhecimento que BB às vezes andava com dinheiro que alguém lhe dava; a KK, conforme o próprio e XX, BB apelidava publicamente de “meu amor”, abraçava-o e atirava-se para os seus braços, o que era presenciado pelo arguido. Ora, num relacionamento baseado no controlo e no domínio, até físico, por parte do arguido, em que BB dependia dele financeiramente, não é crível, pelas mais elementares regras da experiência comum, que o arguido aceitasse sem questionar o tratamento íntimo que BB dava a outros homens e os valores de que ela se munia, mas pelo contrário se conclui que sabia e pactuava com esses relacionamentos como forma de arrecadar meios financeiros, sendo expressiva a afirmação de JJ de que tinha a sensação de que “o AA lhe entregava a mulher a troco de dinheiro”.

Os factos 59º a 65º (à exceção do 60º) foram admitidos pelo arguido e contextualizados por EE e MM (companheira deste). Já o facto 60º foi relatado em audiência por KK, que confirmou ter mantido nessa noite relações sexuais com BB no interior do quarto-de-banho do restaurante ......... Aliás, é até chocante o arguido ter afirmado desconhecer que BB se relacionava sexualmente com outros homens a troco de dinheiro e que nessa noite nem viu KK quando esta mesma testemunha afirmou, de forma credível, que nessa noite no restaurante foi o próprio arguido que lhe disse que BB queria falar consigo e o aguardava na sala das traseiras e que pagou € 20,00 a BB no final do ato, valor esse de que o arguido teve conhecimento e de que questionou, segundo o próprio, BB ainda no restaurante e que esta reconheceu ter-lhe sido emprestado por KK noutra circunstância. Ora, ao arrepio das declarações da testemunha, se o arguido não soubesse que BB tinha estado naquele momento com KK e esperasse uma contribuição monetária desse ato, por que razão ocorreria esta conversa sobre os € 20,00 à saída do quarto-de-banho?

O cenário de maus tratos, em traços mais largos, foi-nos também trazido 1) pela agressividade presenciada na casa do casal por YY, já em ..., em que ouvia discussões frequentes nas quais o arguido expulsava BB de casa e a agredia com bofetadas, 2) pelo medo que BB apregoava do arguido, nomeadamente perante DD (na noite de 08-12-2021 BB insistiu que DD fosse a casa afirmando repetidamente que o arguido ia matá-la) e MM (na noite de 16-02-2022 sentiu BB receosa, trémula, retardou voltar para casa com o arguido) e 3) pelo facto de mais do que uma vez o seu pai ter sentido a necessidade de ocupar a casa do casal com outras pessoas para, segundo o próprio, manter o ambiente controlado, como foi o caso no final do ano de 2021 da sua esposa e da cuidadora YY e já próximo do falecimento de BB de VV, a quem TT pagou para o efeito atentas as constantes queixas da filha de que o arguido lhe batia.

Não olvidamos que nas discussões também era audível pelos vizinhos da rua do Outeiro a voz de BB, sendo ouvidos insultos mútuos (“filho da puta, vaca, boi”), portas a bater, quedas de objetos, como recontaram EE e MM, mas o nível de ofensas físicas e domínio provados era apenas protagonizado pelo arguido.

Provadas as atuações, e no que respeita à intenção que lhes estava subjacente (factos 92º a 97º), a mesma há-de retirar-se do quadro factual que se nos apresenta; sendo do conhecimento geral e do senso comum que bater, ameaçar, insultar, controlar os passos, como foi pretendido pelo arguido sobre a companheira, são aptos a humilhar, magoar, diminuir, rebaixar, amedrontar a pessoa atingida, temos que concluir que o arguido teve por intuito causar esses sentimentos em BB, com plena consciência do que fazia e da proibição dos seus atos.

No que respeita aos factos atinentes ao momento da morte de BB e intenção subjacente (factos 66º, 67º e 98º a 104º), o tribunal analisou as declarações do arguido, o relatório da autópsia de fls. 934-962 e os esclarecimentos do seu autor em audiência, relacionando tais elementos com a conduta do arguido anterior e posterior a esses factos.

Segundo a versão do arguido – que cristaliza a data da morte: noite de 16 para 17 de fevereiro de 2022 -, quando voltaram para casa provindos do restaurante ........ tiveram relações sexuais, inicialmente anais e posteriormente orais (em posição que designou como 69, pretendendo dizer que cada uma das zonas genitais estava em contacto com a boca do outro) e no momento em que se encontravam nesta última posição BB urinou sobre o arguido, este assustou-se e sacudiu-se, o que fez BB tombar no chão do lado direito da cama. Aí, o arguido chamou pela companheira, percebeu que ela não reagia e que estava morta, e passou a noite abraçado ao seu corpo sem que em momento algum procurasse socorrê-la ou solicitasse auxílio de terceiros, alegando medo de que não acreditassem em si. Na manhã seguinte, ainda segundo o próprio, foi trabalhar, deixando o corpo de BB na cama, e, quando regressou, fingiu aos vizinhos que BB tinha abandonado a residência, confessando a partir daí todos os factos provados. Quanto ao depósito no corpo, afirmou que a deixou num local especial para o casal, onde já tinham passado algumas noites dentro de um veículo automóvel.

O relatório de autópsia não é perentório quanto à causa da morte, tendo o seu autor, Dr. ZZ, esclarecido em audiência a existência de sinais sugestivos de asfixia com oclusão das vias aéreas ao nível da cavidade oral e nasal, como ausência de lesões traumáticas a nível cervical e presença de lesão de infiltração sanguínea da língua e de sufusões hemorrágicas pleurais e na laringe, não sendo esta sugestão afastada pela ausência de lesões de defesa no corpo da vítima (as equimoses nos membros que apresentava não eram sugestivas de defesa, mas seriam anteriores) tendo em conta que se encontrava sob o efeito de etanol e substâncias medicamentosas (em doses não tóxicas e, por isso, não determinantes da morte) que a relaxavam. Sustentando esta possibilidade de causa de morte, adiantou o mesmo perito que essas infiltrações sanguíneas na língua são causadas por mecanismo contundente, o que é incompatível com uma morte natural, podendo eventualmente ocorrer por uma queda posterior à morte com a língua parcialmente fora da cavidade bocal.

Não deixou o mesmo perito de afirmar que o tempo decorrido entre a morte e a data em que o corpo foi encontrado, bem como as condições climáticas a que esteve sujeito, influenciaram os sinais sugestivos da causa de morte (destruição de células, nomeadamente no tecido cardiovascular), atenuando-os caso estivéssemos perante uma morte natural, que até podia nem deixar sinais fisiológicos se adviesse de um evento arrítmico. Em todo o caso, quanto a essa última possibilidade, nada na microscopia dos órgãos, na idade da vítima, na ausência de antecedentes de doença própria e de familiares, nas profusões dispersas nos pulmões e na laringe e na lesão na língua sugeria morte por causa natural, afastando uma probabilidade séria desse cenário.

Arredou ainda, perante tese avançada pela defesa, qualquer hipótese de BB ter falecido pela ingestão de sémen do arguido, num fenómeno de engasgamento sem qualquer reflexo nos achados de autópsia.

Também afastou a possibilidade de BB ter falecido de causa violenta acidental, como uma queda da cama, pelas ténues lesões traumáticas na cabeça, bem como ausência de crânio-meningo-encefálicas mortais.

Afastada então a tese de que BB poderia ter falecido da queda, só nos restam a morte natural (relegada pelo perito nos termos expostos para uma possibilidade muitíssimo residual, mas invocada pelo arguido) e a morte por asfixia perpetrada pelo arguido.

Ora, o relatório pericial de autópsia não é meio único de prova da causa da morte. E na falta de uma conclusão arrasadora, compete ao tribunal analisar todos os elementos de que dispõe, assumindo particular relevo neste caso a conduta do arguido anterior e posterior aos factos.

Vejamos: a relação conjugal era marcada pela violência, pela agressividade, pelo domínio, pelo controlo, pelos consumos excessivos, pelo medo que BB apregoava de que o arguido a matasse; este já a tinha agredido de forma severa, mormente em 08-12-2022, pouco mais de dois meses antes do seu falecimento, tendo-lhe na altura recusado assistência hospitalar que só teve por intervenção de terceiros; exercia sobre BB forte pressão, levando-a sempre a regressar a casa e a desculpabilizá-lo dos seus atos, tendo o tribunal percebido dos depoimentos dos seus pais, do ex-marido CC e da companheira deste AAA que BB não tinha suporte familiar consistente, saiu de casa adolescente, viveu em … alguns anos sem grande contacto com a família que desconhecia o seu concreto paradeiro, tinha poucos contactos presenciais com os filhos, o que o arguido usava a seu favor.

Na noite em que BB faleceu, e assim que o arguido se apercebeu da inconsciência da vítima, não tentou reanimá-la, não procurou ajuda, não ligou ao 112, o próprio o admite esquivando-se no medo de que não acreditassem em si. Há que referir que, além desta postura perante a vítima que se lhe deparava contrariar as mais básicas regras da experiência e do senso comum de qualquer pessoa que, não o tendo causado, estivesse perante alguém a carecer imediatamente de assistência, mormente uma companheira de vida, esse medo era infundado, pois dos depoimentos prestados pelo pai de BB, por VV e pelos vizinhos EE, BBB e MM, vizinhos, quem gozava de má imagem pública era BB, por se encontrar várias vezes alcoolizada. Além da falta de assistência, o arguido logo criou toda uma mise-en-scènepara ocultar a morte de BB: recolheu toda a sua roupa e despejou-a no contentor do lixo, desligou o seu telemóvel, passou a transportar consigo o de BB, fingiu telefonemas públicos para BB do próprio telemóvel dela, avançou várias desculpas para o seu desaparecimento, levou os vizinhos a sua casa para confirmarem que BB tinha ido embora sabendo que o corpo desta estava na habitação, pediu um veículo emprestado para o transporte do corpo, conduziu-o a um monte a cerca de 15 km da sua habitação (distância trazida pelo próprio arguido, o que denota que o local foi escolhido previamente e pretendido que se distanciasse da sua habitação, curiosamente a cerca de 2 a 3 km da residência do pai de BB contra o qual pendia queixa por violação à filha) e depositou-o entre os arbustos, envolto numa manta.

É manifesto que o arguido pretendeu, com esta encenação, demarcar a sua responsabilidade na morte de BB – não há qualquer outra explicação plausível para esta atuação pós-morte -, o que advém do facto de saber ter sido o seu autor e pretender imiscuir-se de perseguição criminal. E dessa forma sabia que, até ser encontrado, o corpo se deteriorava, atenuando ou apagando sinais da causa da morte.

Neste enquadramento factual quer dos achados de autópsia, quer da conduta anterior e mormente posterior do arguido, entendemos que qualquer outra causa de morte que não a asfixia pretendida por este com o fito de matar BB está excluída. A morte natural, contra a vontade do arguido, conduziria a um apelo de auxílio que não ocorreu; a conformação imediata do arguido com a morte revela que a causou e pretendeu, é elucidativa do seu quadro mental no momento; e os atos que se seguiram confirmam-no.

Por isso, concluiu este tribunal que o arguido quis e atuou no sentido de matar a companheira, sabendo que a sua atuação era idónea a produzir esse efeito e confirmando-o após a sua produção. E sabendo, quer pelos esclarecimentos do perito, quer pelo senso comum, que a morte por asfixia não é imediata, foi dado como provado que BB se apercebeu dessa iminência e sentiu dor e pânico.

No que tange a todo esse circunstancialismo posterior à morte de BB (factos 68º a 83º e 105º a 107º), o

arguido confessou-o de forma espontânea, à exceção de que a morte estivesse relacionada com um crime de homicídio por si cometido, facto que, como deixámos expresso, entendemos também provado. Em todo o caso, muito era o suporte testemunhal e documental que espelhava a conduta posterior do arguido, tendo o mesmo na altura espalhado várias versões sobre o desaparecimento de BB, atestadas em julgamento, mas mostrando-se o seu percurso documentado em análises de telefones e imagens de videovigilância, além do evidente empréstimo da carrinha da empresa no período do transporte da vítima confirmado por CCC, DDD e NN e o atraso na sua devolução. Nessa matéria também as inspetoras da PJ EEE e FFF trouxeram o quadro geral da atuação do arguido pós-morte, nos termos por ele confessados. OO encontrou o corpo e contextualizou-o em audiência (facto 84º), junto a um carreiro no monte, fora da estrada principal (a cerca de 3 metros) ladeado de arbustos altos.

Baseou-se ainda o Tribunal:

- nos relatórios de inspeção judicial ao local de aparecimento do corpo de fls. 2-40 e 161-213; - na reportagem fotográfica à habitação da Rua ... de fls. 74-81;

- no exame ao veículo usado pelo arguido no transporte da vítima de fls. 102-110;

- no auto de visionamento do registo de imagens no restaurante ........ na noite de 16-02-2022 de fls. 496-559;

- nas análises aos telemóveis do arguido e de BB de 16-02-2022 a 28-02-2022 de fls. 608-627 e 964-974;

- no auto de diligência efetuado na presença e com a participação do arguido sobre o percurso desde a sua habitação até ao local de depósito do corpo de fls. 710-715;

- no relatório pericial de criminalística biológica relativamente às amostras recolhidas no local de depósito do corpo e no veículo usado para o seu transporte de fls. 924-933;

- no relatório de autópsia de fls. 934-962 (também factos 85º a 89º e 91º); - no certificado do registo criminal do arguido de fls. 1233-1234;

- no relatório social sobre as condições de vida do arguido de fls. 1330-1332.

No que respeita à matéria constante dos factos PICS (109º a 119º e 120º), além da circunstância de que a morte de uma filha e de uma mãe causa sempre sofrimento pela inversão do curso natural da vida e da perda de figura de referência, RR frisou-o - se bem que ressaltou do seu depoimento que a filha saiu ainda na adolescência da habitação materna, viveu em … em cidades de que a mãe não tinha conhecimento e pouco contacto presencial tinham desde que BB voltou a Portugal -, assim como CC, ex-marido de BB, e principalmente AAA, companheira deste, que, quanto ao PP e à QQ, esclareceram que desde a separação de BB e CC em 2012 os filhos viveram uns meses com a avó materna, daí foram para a … com o pai, passaram quase dois anos na … com um tio paterno e voltaram à guarda do pai até hoje, tendo regressado a Portugal em 2019.

Quanto à ligação dos menores à mãe, referiram que os contactos eram essencialmente por telefonemas e videochamadas, quase todas as semanas, e que desde que BB regressou a Portugal em 2021, para morada que o ex-marido e os filhos desconheciam, só os visitou 3 vezes. Ambos os notavam inicialmente tensos e receosos nesses contactos.

Sobre a reação dos menores aquando da notícia do falecimento da mãe, AAA e GGG, tia deles, afirmaram que o PP se exaltou, revoltou e chorou, já a QQ manteve-se sem reação até hoje. Recorreram a ajuda psicológica na escola, onde eram abordados sobre o tema e sobre pormenores relacionados com o estado do corpo encontrado, o que os ajudou a serenar e estabilizar, bem como ao rendimento escolar de PP afetado à data dos factos, também pela cobertura mediática do caso.

Também ambas frisaram que os menores têm muita cumplicidade e proximidade com o pai, mas nunca foram muito próximos da mãe, assumindo AAA esse papel.

No que respeita aos factos não provados em A) a V), resultou quer da não admissão por parte do arguido, quer da não confirmação por BB ou qualquer uma das testemunhas, não sendo possível extraí-los de qualquer outro elemento probatório.

Não foi também feita prova da ocorrência de uma discussão prévia ou contemporânea da decisão do arguido de matar BB; o próprio não o referiu e a razão que lhe estava subjacente na acusação – o relacionamento sexual de BB e KK nessa noite – não se nos afigura plausível, já que demos como provado que o arguido era sabedor desses relacionamentos; daí a ausência de prova do facto W.

O relatório de autópsia exclui a possibilidade de a morte de BB se ter devido a compressão do pescoço por ausência de lesões nessa zona corporal (X)).

Uma vez que da oclusão das vias respiratórias até à perda de sentidos decorre naturalmente um hiato temporal, não demos como provado que a morte de BB foi imediata (Y)).

E, tendo o ato de matar ocorrido no decurso de relações sexuais, sendo percecionada no decurso da autópsia a presença de sémen nas zaragatoas vaginal, vaginal, anal e peri-vulvar, e sem que o arguido o tenha referido, não podemos assumir que, após a ter matado, o arguido despiu BB, levantando-se a forte probabilidade de a mesma se encontrar despida aquando do falecimento (Z)).”

*

O Tribunal da Relação do Porto considerou na decisão do recurso:

(aqui transcrita nos segmentos que mais relevam)

A. “Quanto à - impugnação da matéria de facto quanto ao crime de homicídio qualificado (pontos 66, 67, 90, 98, 99, 100, 103 e 104) e, violação do princípio geral do direito penal in dubio pro reo.

“(…)

Compulsada a motivação apresentada, verifica-se que o recorrente concretiza os pontos de facto que reputa de incorretamente julgados: pretende a modificação da decisão de dar como provados os factos constantes dos pontos 66, 67, 90, 98, 99, 100, 103 e 104 dos factos provados, passando todos para o elenco dos não provados. Encontra-se, então, respeitado o ónus imposto pela al. a) do nº3 do art. 412º do CPP.

Vejamos então se as provas invocadas pelo recorrente impõem decisão diversa da recorrida. São os seguintes os pontos da matéria de facto que impugna o recorrente.

66) De regresso a casa, na noite de 16 para 17 de Fevereiro de 2022, o arguido e BB mantiveram relações sexuais, no decurso das quais o arguido decidiu tirar a vida e matar a sua companheira BB.

67) De facto, nessa madrugada, no interior da referida residência, o arguido usando a sua superior força física ocluiu totalmente a boca e o nariz de BB por forma não concretamente apurada, até que a mesma deixasse de respirar, conseguindo, assim, tirar-lhe a vida, o que quis e conseguiu.

90) Fruto das lesões infligidas pelo arguido a BB, com a oclusão de ambas as vias respiratórias, o arguido, de forma direta, adequada e necessária, provocou-lhe dores e a morte, o que quis e conseguiu

98) Do mesmo modo, ao ocluir ambas as vias respiratórias da vítima, usando a sua superior força física e aproveitando-se do estado de embriaguez em que aquela se encontrava, o arguidos abia que podia provocar-lhe a morte, propósito que visava alcançar e que ocorreu.

99) Por via de tal oclusão das vias respiratórias, resultou para a vítima a sua asfixia, que, de forma direta, adequada e necessária, lhe provocou dores e a morte.

100) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de matar e tirar a vida à sua companheira BB, sem que a vítima o tivesse provocado ou por alguma forma atentado contra a sua integridade física, denotando um total, pérfido e gratuito desrespeito pela vida humana.

103) O arguido sabia ainda que ao ocluir boca e nariz da vítima BB, obstruindo-lhe as vias respiratórias e impedindo-a de respirar, indispensável ao sustento da vida do corpo humano, melhor assegurava o êxito das suas intenções homicidas.

104 )Tal morte, querida pelo arguido, que agiu com total insensibilidade e desconsideração pela vida e integridade física da vítima BB, ocorreu porque esta foi intencionalmente impedida de respirar, provocando, assim, a sua morte.

Como já se adiantou, o arguido limita o recurso à condenação pelo crime de homicídio qualificado, por entender que está insuficientemente sustentada na prova carreada para os autos, posto que o julgamento dos mencionados pontos da matéria de facto provada contraria o relatório de autópsia e os esclarecimentos prestados em audiência pelo perito médico-legal. Estes meios de prova, sustenta, revelaram-se incapazes de esclarecer sobre a causa da morte, ou seja, no relatório de autópsia conclui-se pela indeterminação da causa da morte, aventando-se como possível a morte por homicídio, mas não se descartando a morte por qualquer outra causa, nomeadamente, por causa natural, o que foi reiterado, e, até, aprofundado, pelo perito. Assim, argumenta que foi desconsiderada a prova pericial, aderindo-se a outros meios de prova e diz que o tribunal a quo passou o arguido a homicida porque também o condenou pela prática dos crimes de violência doméstica e de profanação de cadáver, porque antes do falecimento da companheira a relação do casal era pautada por episódios de violência doméstica mútua, e, após a morte, o arguido ocultou o facto, mentindo sobre o seu desaparecimento, e depositou o corpo daquela numa mata, ainda que devidamente embrulhado num edredon e junto à berma, de modo a ser encontrado rapidamente, como efetivamente sucedeu; ou seja, numa logicidade de quem é capaz do menos também é capaz do mais.

E, remata que à falta de melhor prova deveria prevalecer o princípio geral in dubio pro reo; há erro de julgamento quanto aos factos supra enunciados, devendo ser absolvido da prática do crime de homicídio qualificado.

As provas que o recorrente entende imporem decisão diversa são, pois, o relatório de autópsia, em que se conclui pela indeterminação da causa de morte e os esclarecimentos adicionais do perito médico-legal em audiência de julgamento, provas essas que não se mostraram capazes de esclarecer a causa da morte.

Nesta decorrência retenham-se as conclusões insertas no debatido relatório de autópsia de 08.06.2022:

“1. Face aos achados necrópsicos, à informação circunstancial facultada, ao resultado dos exames complementares de toxicologia, anátomo-patológico e de criminalística biológica, bem como ao anteriormente exposto no capítulo da Discussão, a morte de BB é de causa indeterminada, sendo que das hipóteses analisadas, a mais corroborável é a de etiologia médico-legal homicida. --------------------------------------------------------

2. As lesões traumáticas ante-mortem descritas são compatíveis com traumatismo de natureza contundente, ou como tal atuando, não sendo passíveis de causar a morte da vítima. -------------

3. O exame toxicológico às amostras de sangue cardíaco para rastreio e quantificação de etanol, drogas de abuso e substâncias medicamentosas revelou-se positivo para etanol (1,98± 0,25g/L),

7-aminoclonazepam (metabolito ativo do clonazepam), diazepam, nordiazepam (metabolito ativo do diazepam) e trazodona, estando todos os fármacos em doses consideradas não tóxicas.-

4. O local onde o corpo da vítima foi encontrado não corresponde ao local onde ocorreu a sua morte. ----------------------

5. A análise dos fenómenos cadavéricos não permite excluir que a morte de BB tenha ocorrido entre as 22h48 de 16/02/2022 e 06h45 de 17/02/2022.----“

(….)

No ponto H, esclarece-se:

“No que concerne à causa de morte de BB, na ausência de lesões traumáticas mortais, bem como de processos fisiopatológicos patognomónicos da causa de morte, os Peritos assumem que a causa de morte da vítima é de causa indeterminada. Contudo, no presente momento, existem elementos que permitem explicitar algumas das hipóteses diagnósticas relacionadas com esta morte: ------------------------

- Na hipótese de morte de causa natural, esta teria ocorrido devido a um processo arritmogénico. Esta hipótese é contrariada pela idade da vítima, pela ausência de histórico de morte súbita cardíaca familiar (ambos os pais vivos), pela ausência de alterações histológicas cardiovasculares e pela ausência de história compatível com esta patologia (segundo a informação facultada pelo suspeito à Polícia Judiciária). ----------------------------------------------------

- Na hipótese de morte de causa violenta de etiologia acidental, conforme descrito pelo suspeito (“quando estava em sua casa e mantinha relações sexuais com a sua companheira (…) esta tinha caído da cama e falecido em virtude dessa queda”), esta teria de ter ocorrido por uma depressão do sistema nervoso central e consequentemente da drive respiratória por associação a intoxicação alcoólica aguda (1,98 ± 0,25 g/L) e presença de benzodiazepinas (7- aminoclonazepam, diazepam, nordiazepam e trazodona). Esta hipótese é contrariada pelas ténues lesões traumáticas apresentadas na região da cabeça (pele e tecido celular subcutâneo), pela ausência de lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas mortais (e que justificariam a morte imediatamente após o TCE), pelas concentrações dos fármacos detetados (cujas concentrações não atingiu valores tóxicos), pela concentração de etanol detectado (que na altura do óbito seria ligeiramente inferior, uma vez que algum aumento terá sido contribuição da fermentação pela fauna cadavérica). Esta hipótese também é contrariada pela descrição do evento realizada pelo suspeito à Polícia Judiciária, uma vez que, nesta hipótese descrita, a morte da vítima não seria súbita, permitindo que o suspeito tivesse tempo para acionar os meios de emergência médica para socorro da vítima. --------------------------------------------------------

Na hipótese de morte de causa violenta de etiologia homicida, esta teria de ser causada por asfixia com oclusão das vias aéreas ao nível da cavidade oral e nasal. Esta hipótese é corroborada pela ausência de lesões traumáticas a nível cervical compatíveis com compressão extrínseca do pescoço, pela lesão de infiltração sanguínea da língua, pela congestão multivisceral, pela presença de sufusões hemorrágicas pleurais e na laringe (achados necrópsicos sugestivos de mecanismo asfíxico), e pela sequência de eventos após a morte (nos quais o suspeito tentou ocultar de forma propositada o cadáver de BB, segundo informação policial facultada). A ausência de lesões de defesa no corpo da vítima poderá ser justificada pela depressão do sistema nervoso central provocada pelas substâncias encontradas no exame toxicológico. Não existem achados patognomónicos associados a este tipo de morte que permitam afirmar a presente hipótese de forma certa e segura. ------------------------------------

- Existe ainda a possibilidade de morte de causa violenta de etiologia acidental, na hipótese de morte durante a atividade sexual com recurso a um componente asfíxico. Esta hipótese é corroborada pela presença de sémen do suspeito colhido na vagina da vítima, pela ausência de lesões de defesa no corpo da vítima, pela congestão multivisceral, pela presença de sufusões hemorrágicas pleurais e laríngeas. Contudo, esta hipótese é contrariada pela história facultada pelo suspeito à Polícia Judiciária relativamente ao óbito de BB, bem como a tentativa de ocultar o seu cadáver.”

Aclaremos:

A Lei nº 45/2004, de 19 de agosto estabelece o Regime jurídico das perícias médico-legais e forenses e concretamente no seu art. 18º, nº 1, esclarece em que circunstâncias tem lugar a autópsia médico-legal – em situações de morte violenta ou de causa ignorada – tratando-se de uma perícia tanatológica. Como tal, não há incerteza que está sujeita ao regime do art. 163º do CPP que estatui: “1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.

2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”

A regra ali contida afasta por isso o princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127º do CPP.

Estabelece-se uma presunção juris tantum de validade do parecer técnico ofertado pelo perito, que obriga o julgador. Ou seja, a conclusão a que chegou o perito só pode ser desprezada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (nº 2 do art. 163.º) Tal como se escreve no Ac. desta Relação de 26.01.2022 proferido no Proc. nº 2136/13.9TAMTS.P1 acessível em www.dgsi.pt “quando no nº 2 daquele mesmo normativo se prevê a possibilidade de divergir do parecer dos peritos, desde que tal seja devidamente fundamentado, pretende-se significar que uma tal divergência poderá assentar em perícia ou parecer similar de sinal contrário ou diferente, que comprometa o primitivamente existente, ou, então, derivar da não prova dos factos em que tal parecer se estribava, retirando-lhe actualidade ou, se quisermos, suporte fáctico alicerçante”.

E isto porque é consabido que “A perícia é a actividade de percepção ou apreciação dos factos probandos efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 3ª Edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 197), cuja utilização é recomendada sempre que a investigação seja confrontada com obstáculos de apreensão ou de apreciação de factos não removíveis através dos procedimentos e meios de análise de que normalmente dispõe. No fundo, a prova pericial permite ao juiz suprir a sua falta de específicos conhecimentos científicos ou artísticos, auxiliando-o na apreensão realidades não directamente captáveis pelos sentidos – cfr. aresto citado que por sua vez transcreve sumário do acórdão do TRC datado de 01/07/2015 extraído da anotação ao artigo 163º do Código de Processo Penal anotado inserto na base da PGD Lisboa.

Regressando ao caso que examinamos, o recorrente argumenta que o tribunal recorrido violou ostensivamente a mencionada disciplina contida no antedito art. 163º do CPP por ter tomado uma decisão em sede de matéria de facto estribada à revelia daquela prova pericial vinculativa.

Porém, cumpre desde já sublinhar que, tal como se retira do antedito, só os juízos periciais, os juízos técnicos, científicos ou artísticos propriamente ditos, estão sujeitos à disciplina do art. 163º, nº 1 do Código de Processo Penal, e já não as circunstâncias fácticas que lhes serviram de fundamento, tal como de resto o Ministério Público na reposta ao recurso, sustenta.

Por seu turno, o juízo pericial, tem que constituir sempre uma afirmação categórica, isenta de dúvidas, sobre a questão proposta, não integrando tal categoria, os juízos de probabilidade ou meramente opinativos. Por isso, quando tal não sucede, quando o perito, em vez de emitir um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, emite uma probabilidade, uma opinião ou manifesta um estado de dúvida, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, este decide livre de qualquer restrição probatória e, portanto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, onde deverá ter na devida conta o princípio in dubio pro reo - veja-se neste sentido o Ac. do STJ de 27.04.2011, proferido no proc. nº 693/09.3JABRG.P2.S1, e desta Relação de 27.01.2010, no proc. nº 45/06.7PIPRT.P1, ambos in www.dgsi.pt. podendo ler-se no sumário deste último “Um resultado pericial inconclusivo não conduz necessariamente a uma dúvida insanável: por não agregar um verdadeiro juízo pericial mas antes um estado dubitativo, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto.”

Neste conspecto, o posicionamento actual do Código de Processo Penal vem de posição defendida por Figueiredo Dias, para quem os dados de facto do arrazoado técnico estão sujeitos à livre apreciação do julgador – “que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer” – enquanto o juízo científico expendido só é passível de crítica “igualmente material e científica”. Excepções seriam os casos inequívocos de erro, nos quais o juiz deve motivar a sua divergência – Direito Processual Penal, I, 209, vide ainda, Maria do Carmo Silva Dias, Revista do CEJ, 2.º semestre de 2005, n.º 3, 219. Assim, a prova pericial é valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão.

Quanto à validade, deve-se aferir se a prova foi produzida de acordo com a lei, ou se não foi produzida contra proibições legais (…)

Também fica a cargo do julgador examinar se o procedimento da perícia está de acordo com normas da técnica ou da prática corrente.

Com relação à matéria de facto em que se baseia a conclusão pericial, é lícito ao julgador divergir dela, sem que haja necessidade de fundamentação científica, porque não foi posto em causa o juízo de carácter técnico-científico expendido pelos peritos, aos quais escapa o poder de fixação daquela matéria. (sempre sublinhado nosso)

Esta é, portanto, a interpretação corrente dada pelos tribunais ao art. 163º do CPP, atenta a sua função de mero auxiliar do julgador, a quem incumbe a função de fixação dos factos, para que

dispõe dos adequados conhecimentos jurídicos e da experiência da vida –cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ, de 01.07.93, Proc. n.º 44431 e de 09.05.95, in CJ, STJ, III, T2, 189.”

Ora, na presente situação, o que sucedeu foi que o tribunal recorrido acolheu uma das hipóteses de causa da morte admitidas como possibilidade na prova pericial (e, como se viu com diferentes graus de probabilidade) – que a morte da vítima se deveu o oclusão total da boca e nariz da vítima, perpetrada pelo arguido por forma não concretamente apurada, com o uso de força física – “hipótese corroborada pela ausência de lesões traumáticas a nível cervical compatíveis com compressão extrínseca do pescoço, pela lesão de infiltração sanguínea da língua, pela congestão multivisceral, pela presença de sufusões hemorrágicas pleurais e na laringe (achados necrópsicos sugestivos de mecanismo asfíxico), e pela sequência de eventos após a morte”.

Daí que se possa afirmar com segurança que no caso posto à nossa consideração, não se retirou eficácia à prova pericial existente, e deste modo a decisão tomada em sede de facto não colide com as regras atinentes ao valor da prova pericial consagrados no antedito art. 163º do CPP, não se podendo dizer que ultrapassou os limites de divergência ali impostos, pelo que, inexiste erro de julgamento.

E quanto à controvertida inconclusividade sobre a causa de morte da ofendida, não agrega em si um juízo pericial, mas um estado de dúvida, um juízo dubitativo que não vincula o tribunal, incumbindo-lhe esclarecer a matéria de facto em que se funda, no âmbito da sua função de julgar e superar, até onde lhe for possível, aquela dúvida.

Ou seja, nada se conclui, num sentido ou noutro, o que de resto se ficou a dever a várias razões que dificultaram o exame do cadáver da vítima e de que o Sr. Perito dá conta (mormente o tempo decorrido entre a morte e a data em que o corpo foi encontrado, bem como as condições climáticas a que esteve sujeito, que “o cadáver apresentava já sinais evidentes de putrefação com uma exuberante mancha esverdeada que se estendia das fossas ilíacas para o abdómen” e “a cavidade oral também apresentava sinais de putrefação (…)” (cfr. ponto 85 da matéria de facto provada).

Reafirma-se, não se mostra violado o disposto no art. 163º, nº 1, posto que e tal como se referiu verificado tal condicionalismo de dúvida, inexistindo um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, antes e tão só uma probabilidade, uma opinião, uma manifestação de estado de estado de dúvida, se devolveu plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, de acordo e apenas sujeito ao princípio da livre apreciação da prova. Nessa situação, tal como refere o Supremo Tribunal de Justiça no aresto que citamos, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria, competindo-lhe tomar posição, julgar e remover, se for caso disso, a dúvida, fixando os necessários factos, não se contrariando, por essa via, qualquer juízo pericial científico, por falta dele.

Pelo que, e face a tal quadro (in)conclusivo da perícia não está o tribunal constrangido a meramente reproduzir, no plano da valoração da prova e da fixação dos factos, a inconclusividade do resultado do exame. Ou seja, um resultado inconclusivo não tem necessariamente de conduzir a uma dúvida insanável por parte do tribunal, determinante do apelo ao princípio in dubio pro reo.

Pelo que, se tivesse sido produzido relatório com um resultado conclusivo quanto à causa de morte, isto é, de certeza sobre a etiologia da morte da vítima, é que juízo teria que ser necessariamente acolhido a não ser que fundamentação especial sustentasse a divergência, abrigado no nº 2 do artº 163º.

De resto, a convicção do tribunal a quo a respeito da autoria e da causa de morte está bem fundamentada e tem também sustentação no referido relatório, já que neste se afasta a morte por causa natural e outrossim a versão apresentada pelo arguido (queda da cama), considerando-se como causa mais corroborável a de etiologia médico-legal homicida, apresentando-se a da asfixia como uma das hipóteses.

Com efeito, o tribunal, desde logo, com base num juízo científico do Perito - nada na microscopia dos órgãos, na idade da vítima, na ausência de antecedentes de doença própria e de familiares, nas profusões dispersas nos pulmões e na laringe e na lesão na língua sugeria morte por causa natural, afastando uma probabilidade séria desse cenário, sendo certo que arredou, também a hipótese avançada pela defesa de engasgamento por ingestão de sémen do arguido, bem como a possibilidade de ter falecido de causa violenta acidental (queda da cama), afastada pelas ténues lesões traumáticas na cabeça, bem como ausência de lesões crânio-meningo-encefálicas mortais – afasta a tese de que a vítima poderia ter falecido da queda, aventando a possibilidade muitíssimo residual de morte natural, em contraponto com a morte por asfixia perpetrada pelo arguido.

Não podemos deixar de trazer à liça neste particular, os contributos do Guia de Perícias Médico-legais de Carlos Ribeiro da Silva Lopes, 6ª edição, 1977, pág. 292, o qual, debruçando-se sobre as causas de morte violenta, concretamente as asfixias de origem mecânica que se dividem em típicas ou puras e atípicas ou impuras, esclarece que, de entre as primeiras, se inclui a sufocação por oclusão dos orifícios ou dos canais aéreos, revelada pelos seguintes sinais: sinais externos: congestão ou cianose da face, sufusões sanguíneas da pele e das mucosas e livores cadavéricos abundantes e escuros, já como sinais internos aponta sufusões sanguíneas, congestão visceral principalmente dos pulmões e fluidez e cor escura do sangue.

No caso que temos em mão, e como ressalta do relatório pericial, alguns desses sinais ocorrem “lesão de infiltração sanguínea da língua, pela congestão multivisceral, pela presença de sufusões hemorrágicas pleurais e na laringe (achados necrópsicos sugestivos de mecanismo asfíxico”, o que inegavelmente corrobora a tese ali aventada e a que o tribunal recorrido aderiu, e que nos merece total concordância.

Depois, e no cumprimento do dever de esclarecer e de procura de superação da dúvida contida no juízo do perito, recorreu o tribunal a quo a outros meios de prova e examinou-os à luz da experiência comum como bem se patenteia no acórdão: “a relação conjugal era marcada pela violência, pela agressividade, pelo domínio, pelo controlo, pelos consumos excessivos, pelo medo que BB apregoava de que o arguido a matasse; este a tinha agredido de forma severa, mormente em 08-12-2022, pouco mais de dois meses antes do seu falecimento, tendo-lhe na altura recusado assistência hospitalar que teve por intervenção de terceiros; exercia sobre BB forte pressão, levando-a sempre a regressar a casa e a desculpabilizá-lo dos seus atos, tendo o tribunal percebido dos depoimentos dos seus pais, do ex-marido CC e da companheira deste AAA que BB não tinha suporte familiar consistente, saiu de casa adolescente, viveu em alguns anos sem grande contacto com a família que desconhecia o seu concreto paradeiro, tinha poucos contactos presenciais com os filhos, o que o arguido usava a seu favor.

Ponderou ademais o tribunal que na noite em que a vítima faleceu, e assim que o arguido se “apercebeu” da inconsciência da vítima, não tentou reanimá-la, não procurou ajuda, não ligou ao 112, o que admitiu, pretextando medo de que não acreditassem em si. O que de acordo com as regras da lógica e normalidade não convence que alguém a carecer imediatamente de assistência, mormente uma companheira de vida, não tivesse assim actuado.

E para além da incompreensível falta de assistência, o arguido logo criou todo o descrito cenário para ocultar a morte da sua companheira, tendo recolhido toda a sua roupa e grande parte dos objectos pessoais e despejou-os no contentor do lixo, desligou o seu telemóvel que passou a transportar consigo, fingiu telefonemas públicos para a falecida, avançou várias desculpas para o seu desaparecimento, levou os vizinhos a sua casa para confirmarem que BB tinha ido embora sabendo que o corpo desta estava na habitação, pediu um veículo emprestado para o transporte do corpo, conduziu-o a um monte a cerca de 16 km da sua habitação e depositou-o entre os arbustos, envolto numa manta.

Ora toda esta encenação e atuação pós-morte, segundo critérios de normalidade e pelas regras da experiência não tem qualquer outra explicação plausível que não demarcar a sua responsabilidade na morte da companheira. Atrasou desta forma a descoberta do corpo que, até ser encontrado, se foi deteriorando, dificultando os vestígios da causa da morte, o que seguramente não desconhecia.

Daí que, perante o acervo de factos vindos de referir, aliados ao factualismo da perícia, entendeu o coletivo, e bem, que qualquer outra causa de morte que não a asfixia está excluída. Pelo que neste contexto podemos concluir que o tribunal a quo não divergiu do juízo contido no relatório pericial, por forma a que tivesse de fundamentar tal divergência (nº 2 do art. 163º do CPP), já que seguiu até a causa mais provável ali apontada.

Por isso, não logrando o arguido demonstrar nem uma violação do valor probatório pleno da prova pericial, nem a existência de erro de julgamento (por força da conjugação entre a prova pericial e a prova testemunhal conducente à demonstração da violência, agressividade, domínio, e consumos excessivos de álcool, o medo propalado pela vítima de que o arguido a matasse, as agressões severas anteriores, com recusa da prestação de assistência hospitalar, a forte pressão exercida sobre a vítima (que sempre procurou desculpabilizá-lo), toda a mise-en-scéne criada em torno do alegado desaparecimento da vítima), nem a existência de qualquer erro notório na apreciação da prova, na medida em que nenhum dos factos dados como provados contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, improcede esta questão recursiva. (…)”

B) Num outro plano, quanto à questão da medida da pena pelo crime de homicídio qualificado, o Tribunal da Relação ponderou:

“(…)

O recorrente reputa a pena que lhe foi aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado de excessiva, devendo ser atenuada.

Para o efeito, alega que o tribunal a quo não atendeu ao facto de que tais crimes terão sido praticados num ambiente social e familiar de submundo, pautado por violência mútua, álcool e substâncias psicotrópicas, desvalor social e moral, em que apenas o arguido trabalhava, estando perfeitamente inserido profissionalmente.

Nessa medida, atenta a moldura penal, que prevê pena de prisão de 12 a 25 anos, a pena concretamente aplicada é manifestamente exagerada, pois é superior a metade do limite máximo e constitui uma violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade.

A pena concretamente aplicada viola o disposto no artigo 71.º, n.º 1, e n.º 2, alínea d), ambos do Código Penal, remata o recorrente.

Como se vê, o recorrente não ataca a medida da pena única (senão pela via, subsidiária, da redução da pena parcelar do crime de homicídio, que poderia conduzir a um abaixamento da pena única). Insurge-se apenas contra a pena aplicada de 19 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, cuja moldura penal abstracta se situa entre os 12 e os 25 anos. Vejamos então.

(…)

Em suma, a medida concreta da pena fixar-se-á com vista a permitir a satisfação das exigências de prevenção geral, salvaguardando as expectativas da comunidade na validade e manutenção/reforço da norma violada – o que constitui o seu limite mínimo, abaixo do qual não estão a ser cumpridas as finalidades da punição –, embora sem ultrapassar a medida da culpa - que funciona como limite máximo da medida da sanção, sob pena de ser posta em causa a dignidade da pessoa do delinquente - , e a medida encontrada deve corresponder ao necessário e suficiente para a reintegração do agente, aí sendo realizado o juízo de ponderação das exigências de prevenção especial.

Descendo ao caso vertente, importa para já conferir a fundamentação da decisão recorrida neste capítulo:

“Natureza e medida das penas

Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido importa agora determinar a natureza e medida das penas a aplicar.

Apenas o crime de profanação/ocultação de cadáver prevê pena alternativa de prisão ou multa. Segundo o artigo 70º do Código Penal “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” que são, segundo o artigo 40º, n.º 1 do mesmo diploma, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

No caso que nos move, numa visão global da factualidade, não cremos que a aplicação de uma pena de multa seja equacionável, já que o crime de profanação/ocultação foi o culminar de uma atuação particularmente censurável do arguido, com fito de se imiscuir da responsabilidade do homicídio e de abreviar a degradação do corpo, assim procurando apagar os vestígios do seu crime. Será, também quanto a este crime, condenado em pena de prisão.

Quanto à medida das penas, preceitua o artigo 71º, n.º 1 do Código Penal que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, atendendo, nomeadamente, às circunstâncias que depuserem a favor do agente ou contra ele constantes do n.º 2 do mesmo artigo.

A culpa estabelece o limite máximo da pena concreta que não poderá em caso algum ser ultrapassado e que se revele ainda compatível com as exigências da dignidade da pessoa, tendo em conta o disposto nos artigos 1º, 13º, 40º, n.º 2, todos do Código Penal, e 25º da Constituição da República Portuguesa.

Dentro do limite máximo permitido pela culpa, e tendo em atenção como limite mínimo a defesa do ordenamento jurídico e a reposição da confiança da comunidade na validade das normas, será determinada a medida da pena de acordo com considerações de prevenção geral e especial.

No caso que nos ocupa, há a considerar que:

- agiu com dolo direto, na expressão máxima da culpa, em todos os crimes;

- o grau de ilicitude dos factos é muito elevado em todos os crimes; a violência doméstica abrange uma panóplia de comportamentos censuráveis e estende-se no tempo; o homicídio é cruel, sem motivo imediato; a ocultação do corpo foi preparada, premeditada, o arguido muniu-se de meios que não tinha, encenou tentativas de contactos, avançou desculpas falsas para o desaparecimento de BB, nem sequer a vestiu; o grau de ilicitude quanto ao crime de homicídio é o mais elevado, enquanto violador do direito à vida, bem suporte de todos os outros bens da tutela jurídica;

- não foi provada qualquer discussão, qualquer acontecimento prévio ao homicídio que tivesse espoletado uma reação por parte do arguido a qualquer provocação da vítima, o que revela um ato frio e imoral;

- o arguido mantinha relacionamento amoroso com BB há cerca de 2 anos, pessoa que escolheu para sua companheira, sabendo que era mãe, o que em momento algum o inibiu de a agredir e, posteriormente, de lhe tirar a vida;

- as agressões foram graves, BB necessitou mais do que uma vez de assistência hospitalar, as fotografias das suas lesões visíveis da ocorrência de 08-12-2021 são esclarecedoras;

- BB vivia amedrontada, receava e afirmava publicamente que o arguido lhe batesse e a matasse, não tinha retaguarda familiar, o que o arguido sabia;

- a atuação do arguido revela uma personalidade que não respeita os valores humanos, dominadora, o que intensifica as exigências de prevenção geral; é, aliás, na punição do crime de homicídio que as exigências de prevenção geral atingem a maior necessidade e intensidade dissuadora “pois que ninguém se sentirá seguro, nem haverá sociedade que subsista se a punição das actuações homicidas ficar aquém da necessidade, forem inadequadas ou desproporcionais ao âmbito de protecção da norma na defesa e salvaguarda da vida humana”. – Acórdão do STJ de 26-09-2019, disponível em www.dgsi.pt;

- o comportamento posterior ao homicídio espelha a sua frieza e calculismo e o desprendimento em relação aos valores básicos da vida em sociedade: não procura auxílio à vítima, deixa o seu corpo em casa enquanto se mune dos meios necessários para a sua remoção, encena o seu desaparecimento, pede emprestada uma carrinha para o transporte do corpo, escolhe um local ermo e distante da sua habitação, deposita-a totalmente despida envolta numa manta entre a vegetação e

aí a deixa;

- o arguido sabia que os atos causariam um rasto de sofrimento, mormente aos filhos de BB, ainda menores, que conheceriam a forma como a mãe faleceu e como o corpo apareceu;

- a confissão foi parcial;

- a seu favor, não tem antecedentes criminais, estava à data profissionalmente inserido e tem mantido bom comportamento em meio prisional.

Perante estes dados, entendem-se adequadas as seguintes penas:

- 3 anos e 10 meses de prisão pelo crime de violência doméstica agravado; - 19 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado;

- 1 ano de prisão pelo crime de profanação/ocultação de cadáver.”

Desta feita, anota-se que o tribunal fixou a pena em análise ligeiramente acima do meio da medida da pena (que se situa em 18 anos e 6 meses), e, não sendo esta tarefa uma mera operação aritmética, podemos com segurança afirmar que a operação de determinação da medida da pena respeitou os apontados critérios estipulados no sobredito art. 71º, nº 1 do Código Penal.

A decisão recorrida explanou os parâmetros considerados, mormente o grau acentuado de ilicitude já que foi violado o bem primeiro e mais elevado da tutela jurídica (a vida); o dolo revestiu a forma mais grave (dolo direto), e no que respeita aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, destaca-se a ostensiva indiferença pela vida humana.

Dos factos provados extrai-se uma personalidade violenta, pois ficou provado (ponto 100) que o arguido tirou a vida à sua companheira sem que a vítima o tivesse provocado ou atentado contra a sua integridade física, denotando um total, pérfido e gratuito desrespeito pela vida humana, e (ponto 102) sabia que a vítima se encontrava embriagada, conhecia a sua

debilidade física face à sua compleição física e força, tornando-a praticamente incapaz de se defender da sua atuação.

E se a motivação para a conduta do arguido ficou por determinar, já que não se apurou o que impulsionou o arguido a matar BB, qual o motivo concreto, qual o rastilho, já em termos de conduta posterior merece particular censura o facto de não procurar auxílio para a vítima, deixa o seu corpo em casa enquanto se mune dos meios necessários para a sua remoção, encena o seu desaparecimento, pede emprestada uma carrinha para o transporte do corpo, escolhe um local ermo e distante da sua habitação, deposita-a totalmente despida envolta numa manta entre a vegetação e aí a deixa.

E não logrou o arguido demonstrar auto censura nem arrependimento, face à sua postura em tribunal, concretamente em relação ao crime de homicídio colaborando pouquíssimo para a descoberta da verdade, tentado a sua desresponsabilização.

Donde, não nos merece qualquer censura a pena de 19 (dezanove) anos de prisão cominada ao arguido, que apenas tem a seu favor a ausência de antecedentes criminais a sua inserção profissional e o bom comportamento em meio prisional, e de resto foram factores considerados pelo tribunal a quo.

Para além da culpa muito elevada, elevadas são também as necessidades de prevenção especial, e no que diz respeito às necessidades de prevenção geral, não podem deixar de se ter acutilantes ligadas à satisfação do interesse público de defesa da sociedade que, pela natureza e gravidade dos factos, sente uma necessidade acrescida de ver restabelecida a confiança nas normas infringidas.

Não podemos esquecer que o homicídio da vítima ocorre num claro contexto de violência doméstica, sendo o escalar definitivo desta. O arguido foi superando uma escala de violência, de domínio e “coisificação” da vítima (como espelha a matéria de facto provada quanto a este crime), que culmina no homicídio da vítima quando esta se encontrava embriagada.

Impõe-se assim ademais transmitir à comunidade uma estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, ainda para mais o valor máximo e inaliável da vida em comunidade.

Já os argumentos que o recorrente convocou, nada acrescentam e/ou alteram o raciocínio empreendido, já que, quer ao nível das necessidades de prevenção especial quer geral, nenhum reparo nos merece a decisão recorrida, que analisou e ponderou equilibradamente as circunstâncias relevantes in casu. Sequer se sobrepõem às exigências preventivas supra referenciadas e às finalidades da punição que, em concreto, se fazem sentir e que de resto foram atendidas no exercício efectuado pelo tribunal recorrido, como se deu conta. Neste contexto, dir-se-á que as condições pessoais favoráveis ou positivas plasmadas na factualidade provada que o recorrente invocou e que foram, reafirma-se, devidamente acolhidas não constituem fatores idóneos a mitigar os aspetos negativos da sua conduta. Donde, analisados todos os ponderados factores, não se reconhece fundamento para redução da apontada pena de 19 (dezanove) anos de prisão fixada, pelo que será de manter.

É que tendo presente a sobredita moldura abstrata, respeitados que foram os apontados critérios que norteiam a aplicação das penas, e relembrando-se que nesta matéria existe sempre alguma margem de subjetividade do julgador, pelo que as penas só poderão ser alteradas nos casos em que, apesar de respeitados os subjacentes critérios legais, é ostensivo o seu exagero ou desproporção, tal como decorre do elucidativo Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, datado de 02.06.2010 aresto proferido no âmbito do processo nº 60/09.9 GNPRT.P1, acessível em www.dgsi.pt, onde se sustentou que “Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável”, entendimento que sufragamos, desrespeito que aqui não sucedeu, manifestamente como já se deu conta.

E porque a cominada pena de prisão aplicada não se mostra exagerada, desproporcionada e/ou injusta, deve, por isso, manter-se.

Em conformidade, nada cumpre alterar em relação ao decidido pela 1ª instância, improcedendo a pretensão recursiva.

Consequentemente, improcede o recurso na totalidade.

(…)”

1.2 – O arguido, no recurso desta decisão do TRP para este Supremo Tribunal de Justiça concluíu a sua motivação, dizendo:

“I – O Recorrente não se conforma com o acórdão em crise, por via do qual foi confirmado o acórdão proferido em primeira instância, por via do qual foi condenado, entre o mais, pela prática de 1 (um) crime de homicídio qualificado na pena de prisão de 19 (dezanove) anos, e, em cúmulo, na pena única de 21 (vinte e um) anos de prisão, e, bem assim, no pagamento ao assistente de avultadas quantias a título indemnizatório;

II – A imputação ao arguido da prática do homicídio contraria o relatório de autópsia e os esclarecimentos prestados em audiência pelo perito médico-legal.

III – Nem o relatório da autópsia, nem os esclarecimentos do perito médico-legal foram capazes de esclarecer sobre a causa da morte, ou seja, no relatório de autópsia conclui-se pela indeterminação da causa da morte, aventando-se como possível a morte por homicídio, mas não se descartando a morte por qualquer outra causa, nomeadamente, por causa natural, o que foi reiterado, e, até, aprofundado, pelo perito.

IV - Dispõe o n.º 1 artigo 163.º do Código do Processo Penal, “O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.”, dispondo o n.º 2 do mesmo artigo que “Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”, o que não sucedeu no caso vertente, porquanto, in casu, o que sucedeu foi a desconsideração da prova pericial, em ambas as instâncias, e a adesão a outros meios de prova.

V – Sustentou-se em primeira instância que “… o relatório pericial de autópsia não é meio único de prova da causa da morte.”, tendo o Tribunal de primeira instância passado o arguido a homicida porque também o condenou pela prática dos crimes de violência doméstica e de profanação de cadáver, ou seja, numa logicidade de que quem é capaz do menos também é capaz do mais!

VI - Não podendo colher, sempre com o devido respeito, o referenciado no acórdão recorrido de que “…perante o acervo de factos vindos de referir, aliados ao factualismo da perícia, entendeu o colectivo, e bem, que qualquer outra causa de morte que não a asfixia está excluída. Pelo que neste contexto podemos concluir que o tribunal a quo não divergiu do juízo contido no relatório pericial, por forma a que tivesse de fundamentar tal divergência (nº2 do art. 163º do CPP) que seguiu até a causa mais provável ali apontada.”.

VII – Contrariou o Tribunal a quo avalizada jurisprudência, nomeadamente o acórdão do STJ de 03.04.2019, processo 38/17.9JAFAR.E1.S1, que dispõe que “Qualquer insuficiência de que relatório da autópsia da ofendida possa enfermar sempre terá de ser resolvida a favor do arguido, em homenagem ao princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da CRP e o postulado “in dubio pro reo”, que lhe está associado.”.

VIII - O Juiz não poderá pôr em causa o parecer técnico dos peritos, apenas o pode criticar, pondo em causa os factos ou os pressupostos que serviam de base ao parecer dos peritos.

IX - Não tendo sido isso que sucedeu no caso vertente, é o arguido de entendimento de há erro notório na apreciação da prova e, consequentemente, de julgamento, violando-se, nomeadamente, o disposto no artigo 163.º do CPP.

X - Ao não fundamentar a divergência e decisão face às conclusões do relatório pericial, ou, pelo menos, ao suprir as dúvidas daquele com outra prova meramente circunstancial, chegando ao ponto de reconstituir os próprios factos sem qualquer sustentação probatória, o tribunal a quo, assim como já havia sido feito em primeira instância, fez uma interpretação do citado comando legal que viola o princípio relativo à prova em desfavor do arguido, pondo em crise o disposto no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, inconstitucionalidade que se invoca para todos os efeitos legais.

XI – Ou seja, à falta de melhor prova, deveria prevalecer o princípio geral do direito penal in dubio pro reo, o qual constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa, e, enquanto princípio que configura uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência contempla na primeira parte do n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

XII - Face ao exposto, verificando-se erro na apreciação da prova e, consequentemente, de julgamento, deve a condenação pela prática do crime de homicídio qualificado ser revogada, absolvendo-se o arguido da sua prática.

XIII – Sem prescindir, sempre a pena concretamente aplicada ao Arguido se afigura exagerada, não tendo o Tribunal a quo atendido ao facto de que os crimes terão sido praticados num ambiente social e familiar de submundo, pautado por violência mútua, álcool e substâncias psicotrópicas, desvalor social e moral, em que apenas o arguido trabalhava, estando perfeitamente inserido profissionalmente.

XIV - Uma pena no caso concreto superior a metade do limite máximo constitui, com o devido respeito, uma violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, tendo este inscrito em si uma função de controlo que emerge sempre que a protecção de interesses públicos possa entrar em conflito com os direitos fundamentais e liberdades públicas do cidadão, o que no âmbito penal ocorre com frequência.

XV - Não pode, por isso, o Recorrente conformar-se com a pena concretamente aplicada, a qual viola o disposto no artigo 71.º, n.º 1, e n.º 2, alínea d), ambos do Código Penal.

XVI – O acórdão recorrido violou, entre outros que Vossas Excelências doutamente suprirão, os comandos legais supra enunciados.

Termos em que,

Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão recorrido, com a consequente sua absolvição pela prática do crime de homicídio qualificado, ou, assim não se entendendo, deve a pena concretamente aplicada ser reduzida nos termos sobreditos.”

1.3- Por sua vez, respondeu o Ministério Público:

O Requerente arguido AA invoca que o douto acórdão prolatado pelo TRP, em conferência, sofre de nulidade por omissão sobre questões que deveria ter conhecido, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 379º, nº 1 al. a) e c) do CPP, ex vi art.º 425º, nº 4 do CPP.

Em resumo, o Requerente entende que não foi feita referência no Douto Acórdão, de fundamentação quanto à divergência que entende existir entre o relatório pericial e a posição assumida nos autos, quer em primeira instância, quer nesta instância de recurso, pelo que existe omissão de pronuncia que configura a indicada nulidade.

Porém, foram tratadas todas as questões a que o TRP estava vinculado, ou seja, aquelas balizadas e especificadas nas conclusões do requerimento de interposição de recurso,o que facilmente se dáconta compaginando as peças em questão.

Constitui princípio geral do direito processual que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, como decorre da 1.ª parte do n.º 2 do art. 660.º do CPC, aplicável ex vi do art. 4.º do CPP. Omitindo o tribunal esteve dever de julgamento, quando o

juiz/tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, a respetiva decisão é nula - 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

Não é o caso, claramente.

O recorrente discorda da sua condenação pela prática de homicídio qualificado. Considera insuficiente a prova constante dos autos para tal, admitindo a prática dos dois outros crimes em que foi condenado, e entende que existe erro na apreciação da prova, não só em sede da condenação em primeira instância como de recurso neste TRP.

O que na sua visão está em causa, é a duvidosa questão da causa da morte. Pretende que o tribunal violou o princípio expresso no art. 32º, nº 2 da CRP, e o art. 163º do CPP, uma vez que considera que o tribunal não pode pôr em causa o parecer técnico dos peritos – nos elementos dos autos, exames post mortem e esclarecimentos prestados por estes – apenas criticá-los.

Pretende a absolvição do crime de homicídio qualificado, pois, e consequentemente, da indemnização cível em que igualmente foi condenado.

Caso assim não se entenda, considera a pena excessiva e desproporcional, com violação dos princípios da necessidade e proporcionalidade, devendo ser reduzida.

Discordamos, seguindo as palavras do MºPº junto da primeira instância, quando responde à motivação do recurso do arguido, e que defendemos também em sede de audiência que foi realizada nos termos do disposto no art. 411º, nº 5 do CPP. A gravidade do crime, das suas consequências, toda a circunstância em que este ocorre, bem patente nos factos provados, para dizer o mínimo, não permite outra medida da pena.

O Tribunal apreciou criticamente a prova produzida em audiência de julgamento, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova, de acordo com as regras da experiência e com a sua livre convicção, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, inexistindo assim qualquer erro na apreciação da matéria de facto ou erro notório.

A fundamentação do Acórdão recorrido é suficientemente profícua, tendo recorrido às regras de experiência e apreciou a prova de forma objetiva e motivada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção.

Em síntese, sempre se dirá que o Acórdão em crise mostra-se bem fundamentado,de facto e dedireito,cumprindo integralmente o exame critico que a lei impõe, fez correcta interpretação e aplicação do direito, não enfermando de qualquervicio ou nulidade, não tendo sido violadas as normas invocadas pelo arguido,ou quaisquer outras que cumpraapreciar ou principio geral, e mantendo dessa forma a posição assumida processualmente, pelo que deve ser este Acórdão integralmente mantido, improcedendo totalmente a pretensão do arguido. “

1.4 - Admitido o recurso e remetido a este Supremo Tribunal de Justiça, o MºPº emitiu parecer no sentido da sua improcedência, dizendo em suma:

“ (…) como é profusamente demonstrado, quer nas respostas do Ministério Público junto da primeira instância e daquele Tribunal da Relação, quer no douto acórdão por este proferido, é manifesta e evidentíssima a sua falta de razão.

Assim e face ao respeito pelo precioso tempo de Vossas Excelências, apenas se consignará que o Tribunal da Relação se pronunciou sobre todas as questões que foram colocadas à sua apreciação, tendo, designadamente, exprimido entendimento, que se pode repetir da seguinte forma:

1. Dado que, nem no relatório da autópsia nem nos esclarecimentos dados pelo Sr. Perito, se atesta categoricamente a concreta causa da morte, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, devendo este decidir, livre de qualquer restrição probatória e, portanto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, onde deverá ter na devida conta o princípio in dubio pro reo;

2. No caso em apreço o tribunal acolheu uma das hipóteses de causa da morte admitidas como possibilidade na prova pericial, ou seja, que a morte da vítima se deveu a oclusão total da boca e nariz da vítima, perpetrada pelo arguido por forma não concretamente apurada, com o uso de força física;

3. Assim não foi violado o disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal;

4. Não tendo também sido beliscado o princípio in dubio pro reo já que, para o julgador, não existiu qualquer dúvida sobre o comportamento assumido pelo arguido, tendo explicado adequadamente porque chegou a essa conclusão.

Por outro lado, e quanto à medida da pena aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado, remete-se para as respostas dos Colegas atrás mencionadas e para o teor do douto acórdão, não resistindo a comentar a falta de sentido (para ser diplomático…) da invocação do “ambiente social e familiar de submundo, pautado por violência mútua, álcool e substâncias psicotrópicas, desvalor social e moral” e recordando que a inserção profissional do arguido foi devidamente ponderada. Ou seja, a pena aplicada ao arguido pelo crime de homicídio qualificado, se pecar, não será por excesso…

Concluindo o recurso não merece qualquer provimento ”

*

O arguido, apesar de notificado nos termos do artº 417º do CPP, não ofereceu qualquer contraditório a este parecer.

1.5 - Após exame preliminar e vistos legais procedeu-se à Conferência, tendo sido deliberado como seguidamente se passa a explicar.

II- CONHECENDO

2.1- Sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art.º 410º, n.º2 do CPP o âmbito do recurso delimita-se pelas questões sumariadas em face das conclusões extraídas da respectiva motivação, visando permitir e habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância da decisão recorrido. Este entendimento tem sido a posição pacífica da jurisprudência (1).

2.2 - Está em discussão para apreciação e em síntese, tendo em atenção a linha de argumentação do arguido no recurso e conclusões:

Vícios da decisão:

erro notório na apreciação da prova e, consequentemente, de julgamento, violando-se, nomeadamente, o disposto no artigo 163.º do CPP?

Ao não fundamentar a divergência e decisão face às conclusões do relatório pericial, ou, pelo menos, ao suprir as dúvidas daquele com outra prova meramente circunstancial, chegando ao ponto de reconstituir os próprios factos sem qualquer sustentação probatória, o tribunal a quo, assim como já havia sido feito em primeira instância, fez uma interpretação do citado comando legal que viola o princípio relativo à prova em desfavor do arguido, pondo em crise o disposto no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, inconstitucionalidade que se invoca para todos os efeitos legais. À falta de melhor prova, deveria prevalecer o princípio geral do direito penal in dubio pro reo?

Verificando-se erro na apreciação da prova e, consequentemente, de julgamento, deve a condenação pela prática do crime de homicídio qualificado ser revogada, absolvendo-se o arguido da sua prática?

Medida da pena

Uma pena no caso concreto superior a metade do limite máximo constitui uma violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, não tendo o Tribunal a quo atendido ao facto de que os crimes terão sido praticados num ambiente social e familiar de submundo, pautado por violência mútua, álcool e substâncias psicotrópicas, desvalor social e moral, em que apenas o arguido trabalhava, estando perfeitamente inserido profissionalmente?

2.3 - A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL

2.3.1 - Do vício de erro notório e da violação do princípio in dubio pro reo

Como já se viu, o arguido, em dupla conforme face à total confirmação da decisão da 1ª instância pelo Tribunal da Relação do Porto, foi condenado por um crime de violência doméstica agravado, previsto e punível pelo artigo 152º, n.ºs 1, b) e 2, a) do Código Penal, na pena de 3 anos e 10 meses de prisão;

-um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 26º, 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, b) do Código Penal, na pena de 19 anos de prisão;

-um crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, previsto e punível pelos artigos 14º, 26º e 254º, n.º 1, a) do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão;

-Em cúmulo jurídico de penas, ficou condenado na pena única de 21 anos de prisão.

No Tribunal da Relação do Porto as questões em apreciação foram, como ali se explicitou, atinentes à impugnação da matéria de facto quanto ao crime de homicídio qualificado (pontos 66, 67, 90, 98, 99, 100, 103 e 104), à alegada subsequente violação do princípio in dubio pro reo e, subsidiariamente, à medida da pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado.

No presente recurso o arguido vem, de novo, invocar no essencial as mesmas questões que haviam sido objecto de decisão em recurso.

O tema de facto atinha-se ao problema de saber qual a causa da morte e o valor a considerar quanto à prova pericial.

Neste recurso para o STJ , estamos perante decisão a quo que foi integralmente confirmada pelo Tribunal da Relação.

O recurso da decisão deste para o STJ é configurado nos pressupostos de admissibilidade, quanto à pena superior a 8 anos de prisão (in casu, pelo homicídio) ao abrigo da norma permissora contida no artº 400º nº1, f), a contrario, do CPP:

1 - Não é admissível recurso:

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

Por sua vez, dispõe o artº 434.º do CPP:

O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º (sublinhado nosso)

Tais alíneas a) e c) do artº 432º referem-se a situações em que o recurso é admissível:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

b) [...];

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

Nelas não se prevê o recurso da decisão das Relações em dupla conforme quanto aos fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artº 410º do CPP.

Na versão anterior à actual redacção do artº 434º do CPP- (esta introduzida recentemente pela Lei n.º 94/2021, de 21/12 ) o texto era o seguinte:

“Sem prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.”

Em nenhum daquelas duas possibilidades de recurso ( alíneas a) e c) do artº 432º agora prevista na actual redacção deste se trata de decisões proferidas pelas Relações em dupla conforme e, por isso, será de concluir que, nestas, a recursividade com base ou também com motivo em configuração de vícios de sentença não foi permitida pelo legislador, salvo se o seu conhecimento decorrer de iniciativa do STJ, por oficiosidade, independentemente da alegação ou não de existência de vícios e ou nulidades.

E percebe-se porquê, porquanto se trata de exclusão expressa dessa hipótese, visto ter o legislador admitido apenas as situações das alíneas a) e c), únicas que o artº 434ºmenciona e reporta aos fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artº 410º, daqui decorrendo que essa intenção radicou no afastamento de, quanto a essas questões, poder intervir uma terceira apreciação da mesma problemática através de uma nova via de recurso.

Não obstante, ainda que não densificando o direito ao recurso, deve ainda assim recordar-se que o condenado sempre poderá arguir (ao menos em reclamação para a conferência, no caso de dupla conforme) nulidades do acórdão da Relação, bem como requerer a retificação de erros, obscuridades ou ambiguidades que não importem modificação essencial da decisão.

Também o Tribunal Constitucional afirmou repetidamente “caber na discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso à mais alta jurisdição, desde que não consagre critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados” Ac. n.º 357/2017.

O direito ao recurso em processo penal, as limitações que pode admitir, os graus de recurso que pode ou não comportar e os graus de jurisdição a que, por essa via, se pode aceder, são aspetos que têm sido vivamente discutidos, com especial enfoque na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que durante muito tempo ia – até à declaração de inconstitucionalidade firmada no Ac. n.º 429/2016 -, sem destrinçar as situações a que se aplicava, no sentido de que a garantia jus-constitucional do direito ao recurso se satisfazia com um grau de jurisdição.

Entendia-se que o “conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas não abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior” – Ac. n.º 189/2001.

O qual já vinha afirmando não ser “arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do STJ, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada. Essa limitação do recurso apresenta-se como «racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o Supremo Tribunal de Justiça com a resolução de questões de menor gravidade»” – Ac. n.º 357/2017.

Naquele entendimento, no Ac. n.º 49/2003 lê-se que: “o acórdão da relação, proferido em 2ª instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao recurso”.

Cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição”.

Porquanto, “se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspetivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará”.

Na sequência das recentes alterações introduzidas pela Lei 94/2021, ao que agora importa salientar , e que foram incidentes na reconfiguração de aumento de poderes de revista alargada pelo STJ através da nova redacção do artº 434º do CPP (que se atém apenas aos casos das decisões das relações proferidas em 1.ª instância, e de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos) 2 nada resulta em como, nos casos de dupla conforme, se tenha alterado a posição já dominante na jurisprudência do STJ em como em nova via de recurso a invocabilidade de vícios e nulidades, sobretudo já analisados em via de recurso para a Relação não era admitida como fundamento de recurso em si.

Ou seja, em casos como o ora em análise, de dupla conforme, parece que se deverá entender ser inadmissível recurso para o Supremo abrangendo invocação de vícios ou nulidades nos termos do artº 410º nºs 2 e 3 a não ser que este oficiosamente, entenda poder e dever deles conhecer. (sobre esta questão vide pag 93 §4 do artigo do Conselheiro Nuno Gonçalves “Alterações ao regime do recurso ordinário” in A Revista , ed. do STJ, nº1- Jan a Jun 2022). Regime este que era o que já vinha sendo admitido e acolhido pelo STJ na anterior redacção do art 434º do CPP em caso de dupla conforme, no sentido de não admitir a revista alargada como fundamento de recurso.

Agora, com a nova redacção do artº 434º, a não ser que se entendesse ter havido lapso do legislador (o que é tudo menos manifesto) terá sido reforçada a ideia de excluír a revista alargada por via da invocação como fundamento de recurso de vícios e nulidades nos termos do artº 410 nº2 e 3 do CPP, em caso de dupla conforme e em que o recurso seja admissível por ter havido condenação em pena (parcelar e/ou +única) superior a 8 anos de prisão, pois agora o STJ conhece apenas em sede de direito, mas também em revista alargada só nos casos das alíneas a e c) do artº 432º do CPP, o que manifestamente não abrange as decisões em dupla conforme em que tenha sido aplicada pena superior a 8 anos de prisão. Podendo o legislador não ter distinguido, o mesmo distinguiu, não abrangendo hipóteses como a dos autos.

Neste sentido, decidiu também recentemente o Ac STJ de 01/03/2023 , no procº 589/15.0JABRG.G2.S1 ( rel. Ernesto Oliveira) e o infra citado por este ( acórdão de 23/03/2022, 4/17.4SFPRT.P1.S1, ( relator Lopes da Mota):3

“A novel redação do artigo 434º, além de excluir o segmento inicial de “Sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 410”, acrescenta ao reexame da matéria de direito o plus de conhecimento dos erros-vício do nº 2 do 410 e das nulidades não sanadas do nº 3, como “fundamentos do recurso”, ut epígrafe do artigo 410, para os casos das alíneas a) e c) do artigo 432º, a saber:

(i) recursos “de decisões das relações proferidas em 1ª instância” ou

(ii) recursos per saltum de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos.”

É esta a redação do artigo 432.º do C.P.P, na redação da Lei 94/2021, de 21/12: 1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

(…)

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

(…)

“O artigo delimita exaustivamente os casos de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.”, in “CPP Comentado”, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 4ª edição, em nota ao artigo 432º. (…)”

A nova configuração do recurso para o STJ conferida pela L. 94/2021, permite, preenchidos que estejam os demais pressupostos, o recurso das decisões das relações proferidas em 1ª instância com fundamento em erro-vício (al. a) e admite igualmente o recurso dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri ou pelo tribunal coletivo com fundamento em erro vício (al. c). (para maiores detalhes, v. “Alterações ao regime do recurso ordinário”, Nuno A. Gonçalves, in “A Revista”, nº 1.”)

Mas agora não permite o recurso do acórdão da Relação proferido em recurso com fundamento em erro-vício.

Como se sublinhou no despacho do Exmo Vice-Presidente do STJ, também Presidente desta Secção, Conselheiro Nuno A. Gonçalves, proferido em 05.01.2023 em sede de reclamação apresentada ao abrigo do disposto no artigo 405.º do C.P.P. no processo n.º 5711/20.1T9CBR.C1-A.S1:

“Com a alteração operada pela Lei n.º 94/2021 de 21712, que entrou em vigor um 21 de março de 2022, os erros-vicio e a nulidades previstos e referidas no artigo 410 n.ºs 2 e 3, do CPP podem legitimar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça mas apenas de decisão da Relação proferida em 1ª instância (portanto, em recurso em 1º grau para o Supremo, em que poderá/deverá conhecer de facto e de direito) e no recurso per saltum, de acórdão Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 15/09/2023, 14:23, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b88468c00a9e236980258966005995ab?OpenDocument , de tribunal do júri ou coletivo de 1ª instância contanto tenha aplicado pela de prisão em medida superior a 5 anos.

Com fundamento nos referidos erros-vício e nulidades não sanadas, não se admite recurso de acórdãos da Relação, tirados em recurso.

No mesmo sentido pende o acórdão de 23/03/2022, 4/17.4SFPRT.P1.S1, (Lopes da Mota)

E, efetivamente, em termos de regras de boa hermenêutica algum sentido e efeito útil se há de retirar da remissão pela parte final do artigo 434º para as alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 432º e da correspetiva falta de remissão para a alínea b) do mesmo dispositivo.

Ademais quando é admissível a diferença de regimes face à circunstância de a al. b) do artigo 432º se reportar a decisões já proferidas em recurso enquanto as als a) e c) dizerem respeito a decisões proferidas em primeira instância.

A admissão do recurso é um prius em relação ao seu conhecimento.

“Uma coisa são os poderes de cognição do STJ; outra, distinta e prévia a essa, consiste em saber da admissibilidade do recurso interposto. Por outras palavras: só admitido o recurso interessa saber se os vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP podem constituir fundamento de recurso ou apenas podem ser objecto de conhecimento oficioso.” (in ac. do STJ de 18/05/2022, proc. nº

2808/13.8TAVNG.P1.S1, Sénio Alves).

Donde, se falha fundamento para recorrer e, por maioria de razão, para o admitir, mister é concluir que não chega sequer a colocar-se a possibilidade de o conhecer. Se a porta do recurso está vedada tal recurso nunca entrará no STJ e jamais este Alto Tribunal do seu mérito conhecerá, seja a pedido seja oficiosamente, no que oficiosamente fosse de conhecer. O recurso não pode entrar e, se não entra, nunca o STJ sobre ele se pode pronunciar.

Certo é que, aqui, o fundamento do erro notório na apreciação da prova não pode sustentar a admissão do recurso, e, destarte, deve o mesmo ser rejeitado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 434º, 432º, e 410º, nºs 2 e 3, 414º, nº 2, e 420, nº 1, al. b),

todos do CPP. (4)”

*

Deste modo, a conclusão óbvia no presente caso será a de o recurso, apesar de ser admissível por a pena (pelo crime de homicídio e quanto à pena unitária do concurso) ser superior a 8 anos de prisão, não poderá ser conhecido em relação à invocação do vício do erro notório mas apenas quanto à questão de direito atinente à eventual excessividade da medida da pena aplicada pelo crime de homicídio.

Admitindo porém que esta visão não seria a da perspectiva legislada, também consideramos que o vício, em todo o caso, inexiste e que o tribunal nas duas instâncias, não decidiu com dúvidas e contra o arguido com base em dúvidas, sendo certo que procurou exarar uma fundamentação lógica e coerente sobre a a causa da morte.

O recorrente pugna para que se considere e decida que:- “(…) A imputação ao arguido da prática do homicídio contraria o relatório de autópsia e os esclarecimentos prestados em audiência pelo perito médico-legal. E que nem o relatório da autópsia, nem os esclarecimentos do perito médico-legal foram capazes de esclarecer sobre a causa da morte, ou seja, no relatório de autópsia conclui-se pela indeterminação da causa da morte, aventando-se como possível a morte por homicídio, mas não se descartando a morte por qualquer outra causa, nomeadamente, por causa natural, o que foi reiterado, e, até, aprofundado, pelo perito.”

Sobre este segmento da controvérsia o tribunal considerou fixado que a vítima morreu por “asfixia” determinada por oclusão das vias respiratórias causada por acção livre, intencional e deliberada do arguido.

Nos factos provados 66) e 67) e 90), 98) a 100) e 103) a 104) encontra-se descrita a forma e autoria da oclusão acontecida.

Para o efeito, o tribunal a quo, na motivação, nem sequer vai contra o relatório pericial que, embora não tendo sido concludente sobre a real causa da morte, apontou porém para inexistência de lesão craniana subsequente a alegada (pelo arguido) queda da cama e elevada probabilidade de asfixia bem como a difícil probabilidade de morte por causa natural ou por efeito de consumo de substâncias tóxicas.

Antes, o tribunal o complementa aproximando as circunstâncias do caso, o comportamento violento do arguido, as paradoxais explicações que deu sobre o sucedido na data dos factos e o paradeiro daquela, a sua errática acção após a morte da vítima culminando com o abandono do cadáver no terreno onde veio a ser encontrado, concatenando todas essas circunstâncias na conclusão a que chegou, a qual se assume lógica, verosímil, não fere regras da experiência nem sequer contrapõe ao parecer argumentos com diferente valor científico.

O mesmo foi doutamente tido e detalhadamente considerado pelo Tribunal da Relação do Porto (por aqui se vendo que a alegação pela defesa de omissão de pronúncia (5) é completamente inaceitável) quando escreve:

“ (…)

Ora, na presente situação, o que sucedeu foi que o tribunal recorrido acolheu uma das hipóteses de causa da morte admitidas como possibilidade na prova pericial (e, como se viu com diferentes graus de probabilidade) – que a morte da vítima se deveu o oclusão total da boca e nariz da vítima, perpetrada pelo arguido por forma não concretamente apurada, com o uso de força física – “hipótese corroborada pela ausência de lesões traumáticas a nível cervical compatíveis com compressão extrínseca do pescoço, pela lesão de infiltração sanguínea da língua, pela congestão multivisceral, pela presença de sufusões hemorrágicas pleurais e na laringe (achados necrópsicos sugestivos de mecanismo asfíxico), e pela sequência de eventos após a morte”.

Daí que se possa afirmar com segurança que no caso posto à nossa consideração, não se retirou eficácia à prova pericial existente, e deste modo a decisão tomada em sede de facto não colide com as regras atinentes ao valor da prova pericial consagrados no antedito art. 163º do CPP, não se podendo dizer que ultrapassou os limites de divergência ali impostos, pelo que, inexiste erro de julgamento.

E quanto à controvertida inconclusividade sobre a causa de morte da ofendida, não agrega em si um juízo pericial, mas um estado de dúvida, um juízo dubitativo que não vincula o tribunal, incumbindo-lhe esclarecer a matéria de facto em que se funda, no âmbito da sua função de julgar e superar, até onde lhe for possível, aquela dúvida.

Ou seja, nada se conclui, num sentido ou noutro, o que de resto se ficou a dever a várias razões que dificultaram o exame do cadáver da vítima e de que o Sr. Perito dá conta (mormente o tempo decorrido entre a morte e a data em que o corpo foi encontrado, bem como as condições climáticas a que esteve sujeito, que “o cadáver apresentava já sinais evidentes de putrefação com uma exuberante mancha esverdeada que se estendia das fossas ilíacas para o abdómen” e “a cavidade oral também apresentava sinais de putrefação (…)” (cfr. ponto 85 da matéria de facto provada).

Reafirma-se, não se mostra violado o disposto no art. 163º, nº 1, posto que e tal como se referiu verificado tal condicionalismo de dúvida, inexistindo um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, antes e tão só uma probabilidade, uma opinião, uma manifestação de estado de estado de dúvida, se devolveu plenamente ao tribunal a decisão da

matéria de facto, de acordo e apenas sujeito ao princípio da livre apreciação da prova. Nessa situação, tal como refere o Supremo Tribunal de Justiça no aresto que citamos, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria, competindo-lhe tomar posição, julgar e remover, se for caso disso, a dúvida, fixando os necessários factos, não se contrariando, por essa via, qualquer juízo pericial científico, por falta dele.

Pelo que, e face a tal quadro (in)conclusivo da perícia não está o tribunal constrangido a meramente reproduzir, no plano da valoração da prova e da fixação dos factos, a inconclusividade do resultado do exame. Ou seja, um resultado inconclusivo não tem necessariamente de conduzir a uma dúvida insanável por parte do tribunal, determinante do apelo ao princípio in dubio pro reo.

Pelo que, se tivesse sido produzido relatório com um resultado conclusivo quanto à causa de morte, isto é, de certeza sobre a etiologia da morte da vítima, é que juízo teria que ser necessariamente acolhido a não ser que fundamentação especial sustentasse a divergência, abrigado no nº 2 do artº 163º.

De resto, a convicção do tribunal a quo a respeito da autoria e da causa de morte está bem fundamentada e tem também sustentação no referido relatório, já que neste se afasta a morte por causa natural e outrossim a versão apresentada pelo arguido (queda da cama), considerando-se como causa mais corroborável a de etiologia médico-legal homicida, apresentando-se a da asfixia como uma das hipóteses.

Com efeito, o tribunal, desde logo, com base num juízo científico do Perito - nada na microscopia dos órgãos, na idade da vítima, na ausência de antecedentes de doença própria e de familiares, nas profusões dispersas nos pulmões e na laringe e na lesão na língua sugeria morte por causa natural, afastando uma probabilidade séria desse cenário, sendo certo que arredou, também a hipótese avançada pela defesa de engasgamento por ingestão de sémen do arguido, bem como a possibilidade de ter falecido de causa violenta acidental (queda da cama), afastada pelas ténues lesões traumáticas na cabeça, bem como ausência de lesões crânio-meningo-encefálicas mortais – afasta a tese de que a vítima poderia ter falecido da queda, aventando a possibilidade muitíssimo residual de morte natural, em contraponto com a morte por asfixia perpetrada pelo arguido.

Não podemos deixar de trazer à liça neste particular, os contributos do Guia de Perícias Médico-legais de Carlos Ribeiro da Silva Lopes, 6ª edição, 1977, pág. 292, o qual, debruçando-se sobre as causas de morte violenta, concretamente as asfixias de origem mecânica que se dividem em típicas ou puras e atípicas ou impuras, esclarece que, de entre as primeiras, se inclui a sufocação por oclusão dos orifícios ou dos canais aéreos, revelada pelos seguintes sinais: sinais externos: congestão ou cianose da face, sufusões sanguíneas da pele e das mucosas e livores cadavéricos abundantes e escuros, já como sinais internos aponta sufusões sanguíneas, congestão visceral principalmente dos pulmões e fluidez e cor escura do sangue.

No caso que temos em mão, e como ressalta do relatório pericial, alguns desses sinais ocorrem “lesão de infiltração sanguínea da língua, pela congestão multivisceral, pela presença de sufusões hemorrágicas pleurais e na laringe (achados necrópsicos sugestivos de mecanismo asfíxico”, o que inegavelmente corrobora a tese ali aventada e a que o tribunal recorrido aderiu, e que nos merece total concordância.

Depois, e no cumprimento do dever de esclarecer e de procura de superação da dúvida contida no juízo do perito, recorreu o tribunal a quo a outros meios de prova e examinou-os à luz da experiência comum como bem se patenteia no acórdão: “a relação conjugal era marcada pela violência, pela agressividade, pelo domínio, pelo controlo, pelos consumos excessivos, pelo medo que BB apregoava de que o arguido a matasse; este a tinha agredido de forma severa, mormente em 08-12-2022, pouco mais de dois meses antes do seu falecimento, tendo-lhe na altura recusado assistência hospitalar que teve por intervenção de terceiros; exercia sobre BB forte pressão, levando-a sempre a regressar a casa e a desculpabilizá-lo dos seus atos, tendo o tribunal percebido dos depoimentos dos seus pais, do ex-marido CC e da companheira deste AAA que BB não tinha suporte familiar consistente, saiu de casa adolescente, viveu em alguns anos sem grande contacto com a família que desconhecia o seu concreto paradeiro, tinha poucos contactos presenciais com os filhos, o que o arguido usava a seu favor.

Ponderou ademais o tribunal que na noite em que a vítima faleceu, e assim que o arguido se “apercebeu” da inconsciência da vítima, não tentou reanimá-la, não procurou ajuda, não ligou ao 112, o que admitiu, pretextando medo de que não acreditassem em si. O que de acordo com as regras da lógica e normalidade não convence que alguém a carecer imediatamente de assistência, mormente uma companheira de vida, não tivesse assim actuado.

E, para além da incompreensível falta de assistência, o arguido logo criou todo o descrito cenário para ocultar a morte da sua companheira, tendo recolhido toda a sua roupa e grande parte dos objectos pessoais e despejou-os no contentor do lixo, desligou o seu telemóvel que passou a transportar consigo, fingiu telefonemas públicos para a falecida, avançou várias desculpas para o seu desaparecimento, levou os vizinhos a sua casa para confirmarem que BB tinha ido embora sabendo que o corpo desta estava na habitação, pediu um veículo emprestado para o transporte do corpo, conduziu-o a um monte a cerca de 16 km da sua habitação e depositou-o entre os arbustos, envolto numa manta.

Ora toda esta encenação e atuação pós-morte, segundo critérios de normalidade e pelas regras da experiência não tem qualquer outra explicação plausível que não demarcar a sua responsabilidade na morte da companheira. Atrasou desta forma a descoberta do corpo que, até ser encontrado, se foi deteriorando, dificultando os vestígios da causa da morte, o que seguramente não desconhecia.

Daí que, perante o acervo de factos vindos de referir, aliados ao factualismo da perícia, entendeu o coletivo, e bem, que qualquer outra causa de morte que não a asfixia está excluída. Pelo que neste contexto podemos concluir que o tribunal a quo não divergiu do juízo contido no relatório pericial, por forma a que tivesse de fundamentar tal divergência (nº 2 do art. 163º do CPP), já que seguiu até a causa mais provável ali apontada.

Por isso, não logrando o arguido demonstrar nem uma violação do valor probatório pleno da prova pericial, nem a existência de erro de julgamento (por força da conjugação entre a prova pericial e a prova testemunhal conducente à demonstração da violência, agressividade, domínio, e consumos excessivos de álcool, o medo propalado pela vítima de que o arguido a matasse, as agressões severas anteriores, com recusa da prestação de assistência hospitalar, a forte pressão exercida sobre a vítima (que sempre procurou desculpabilizá-lo), toda a mise-en-scéne criada em torno do alegado desaparecimento da vítima), nem a existência de qualquer erro notório na apreciação da prova, na medida em que nenhum dos factos dados como provados contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, improcede esta questão recursiva.(…)”

Consequentemente, a questão foi muito bem explicada e fundamentada em ambas as instâncias e nunca por nunca poderia haver fundamento de alegação de vício, nomeadamente de erro notório, de violação de prova pericial vinculada (os limites dessa vinculatividade foram esbatidos) e por último, sequer, de violação do princípio in dubio pro reo.

Assim, o recurso nesta parte não seria admissível com aquele fundamento mas, ainda que hipoteticamente o fosse, seria sempre de rejeitar por improcedência.

2.3.2 - Da medida da pena pelo crime de homicídio.

A) O tribunal condenou o arguido pelo crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 26º, 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, b) do Código Penal, na pena de 19 anos de prisão e é esse quantum concreto que o recorrente impugna, pedindo que seja atenuada e reduzida a um patamar valor mais próximo de metade do limite máximo e, que supomos esteja arreferir-se a cerca de 12/13 anos de prisão .

Para tanto, argumenta que:

“(…) crê, salvo melhor entendimento, que em qualquer circunstância a pena que lhe foi aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado é excessiva, devendo ser atenuada e que no caso vertente, para a determinação da pesada pena aplicada prevaleceu a alegada frieza do arguido, o seu calculismo, e o desprendimento relativamente aos valores básicos da vida em sociedade.

Porém, convoca o facto de “ não ter o Tribunal a quo atendido ao facto de que tais crimes terem sido praticados num ambiente social e familiar de submundo, pautado por violência, mútua, álcool e substâncias psicotrópicas, desvalor social e moral, em que apenas o arguido trabalhava, estando perfeitamente inserido profissionalmente”.

E remata, dizendo que, “(…) atendendo à matéria julgada provada, é certo que as circunstâncias anteriores, contemporâneas e ulteriores ao crime não diminuem a ilicitude do facto nem a culpa do arguido para que a pena, aparentemente, pudesse ser atenuada.”

Porém, haveria sempre que considerar que “na realização dos fins da pena se enquadra a reintegração do agente na sociedade – artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal –., que foram observados hábitos de trabalho do arguido, beneficiando de apoio da sua entidade patronal e amigos, que no seio comunitário, os habitantes, apesar do choque, consternação e surpresa com a situação, continuam a deter uma imagem positiva do arguido, não sendo expectáveis quaisquer reacções negativas ao seu regresso ao meio livre.”

Finalmente, resultará do relatório social que “(…) o arguido mantém um comportamento adequado no seio prisional e do seu registo criminal não constam quaisquer condenações. Assim, ponderando todas as circunstâncias, e num juízo de necessidade e de proporcionalidade, defende que a pena deverá ser reduzida de 19 anos para um valor mais próximo de metade do limite máximo, em linha com jurisprudência de processos de igual natureza, afigurando-se qualquer outra que seja superior manifestamente exagerada, sob pena de violação daqueles supra citados princípios da necessidade e da proporcionalidade, tendo este inscrito em si uma função de controlo que emerge sempre que a protecção de interesses públicos possa entrar em conflito com os direitos fundamentais e liberdades públicas do cidadão, o que no âmbito penal ocorre com frequência.”

Esta a sua posição.

B) Ora, na determinação da pena pelo crime em causa podemos ler no Acórdão recorrido a fundamentação transcrita e que ali consta:

(…)”

Da leitura da fundamentação de ambas as instâncias e cruzando-a com a dissensão do arguente de recurso adiantaremos desde já duas notas breves.

A primeira, no sentido em que a enunciação de critérios normativos de fixação das penas concretas e única pelo concurso são os já consabidos na doutrina, na lei e na jurisprudência corrente, por isso nos dispensamos de os repetir aqui, por estarem claramente indicados pelas instâncias.

A segunda nota vai no sentido de que, além de já haverem sido repetidos no recurso para este STJ o recorrente não esgrime argumentos novos. Repete-os, mas a linha de argumentação das instâncias, além de completa e adequadamente definir os critérios subjacentes, aponta cirurgicamente para as razões que as orientou para as penas aplicadas. Estava em causa no recurso apenas o quantum da pena pelo homicídio e, subsidiariamente, a da pena unitária.

No caso concreto impressiona o pretendido apelo, como factor de atenuação, do argumento do ambiente social violento envolvente. Além de pouco convincente e muito menos sequer coerente com o que ficou provado, a sua invocação pela defesa assume uma motivação que aparenta mais um desespero de causa, porquanto configura a reacentuação da nunca por si abandonada desmarcação de qualquer responsabilidade do recorrente , o qual desde sempre dessa forma pautou a sua posição processual na elucidação dos factos, como se quisesse novamente convencer, por outras palavras que, se matou a culpa foi do ambiente social.

Estamos perante um caso penal de enorme gravidade em que poucos factores e de bem pouco relevo intervieram como peso positivo conformador de uma pena menos grave dentro da moldura aplicável (12 a 25 anos de prisão)

Contudo, a culpa foi intensa, com dolo de grau muito elevado. O sofrimento da vítima que culminou na sua morte, sem qualquer razão ou motivo, arrastou-se por longo tempo.

O grau de ilicitude foi muito elevado. O grau de ilicitude atinente ao crime de homicídio é o mais alto e intenso, na medida em que a acção do arguido violou o bem jurídico mais importante do ser humano:- o direito à vida, no topo da hierarquia de todos os outros bens com tutela jurídica;

O homicídio revelou distanciamento, grande frieza e crueldade, acontecendo após haver tido com a vítima relações sexuais. Não foi antecedido por qualquer desavença que tivesse eventualmente desencadeado reação por parte do arguido a qualquer eventual provocação da vítima.

Não se vislumbrou um motivo imediato.

Depois, ocultou o corpo, pensadamente , tentou justificar com desculpas falsas o desaparecimento da vítima.

Revelou completo desprezo pela sua companheira, também já mãe, durante mais de 2 anos sendo certo que vinha frequentemente a agredir cobardemente aquela numa atitude controladora, possessiva, obsessiva e autocentrada no seu egoísmo.

O arguido sabia do amedrontamento e receio que causava à companheira.

Esta publicamente manifestava enorme preocupação de vir a ser vítima de mais agressões ou mesmo de ser morta por aquele tendo uma retaguarda familiar pouco eficaz e contentora.

Assim, se a ausência de antecedentes criminais e inserção laboral valerá pelo facto de ser factor que deverá ser inerente e comum a qualquer pessoa adulta, não obstante isso a sua atuação revelou uma personalidade “que não respeita os valores humanos, dominadora, o que intensifica as exigências de prevenção geral”, na acertada terminologia avaliativa usada pelas instâncias.

A punição assertiva do crime de homicídio supõe e radica em exigências de prevenção geral de maior intensidade dissuasora.

Em geral, são deveras intensas as exigências comunitárias de afirmação de validade das normas penais de protecção da vida humana contra condutas atentatórias dolosas. E, particularmente intensas perante condutas com os contornos daquela que está em apreciação. A afirmação contrafáctica da norma exige que a reacção penal concreta torne claro que não são toleráveis tais condutas.

Tendo sido já trazidos à colação os critérios gerais e os punitivos do art.º 71.º, do CP, a medida concreta da pena pelo homicídio foi determinada em função da intensa culpa (dolo directo) e elevado grau de ilicitude do agente e das exigências fortíssimas de prevenção geral.

Verificadas também todas as circunstâncias envolventes no caso, referidas expressamente no fundamento da sentença que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ( muito poucas e sem grande relevo) ou contra ele (bem intensas e graves, designadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena ou seja, a determinação da medida da pena no caso concreto mostrou-se adequadamente efectuada (até um pouco por defeito e não por excesso) fixada dentro dos limites da moldura penal abstracta, em função da culpa do agente e de critérios de prevenção geral e especial, visando-se com a sua aplicação “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, conforme art.º 40.º, n.º 1, do CP.

A culpa encontrada funcionou como limite da medida da pena (n.º 2, do art.º 40.º, do CP), tal como se disse já no Ac. do STJ, de 30/10/1996, Proc. n.º 96P725, em www.dgsi.pt:

A culpa jurídico penal vem a traduzir-se num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena (cfr. Figueiredo Dias, "Direito Penal Português - Das Consequências Jurídicas do Crime", página 215), princípio este agora expressamente afirmado no n. 2 do artigo 40 do Código Penal de 1995.

Com o recurso à prevenção geral, procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos.Com o recurso à prevenção especial, almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.”- vide ainda o citado Acórdão do STJ de 26-09-2019, disponível em www.dgsi.pt;

Nestes termos e em consequência do exposto, consideramos adequada e proporcional (se criticável fosse só o seria por defeito e não por excesso) a pena aplicada pelo- unicamente discutido em recurso-, crime de homicídio bem como a pena unitária.

Improcede pois em toda a linha o recurso interposto

III- DECISÃO

3.1 - Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente .

3.2 - Taxa de justiça a cargo do recorrente arguido em 6 UC - (tabela III do RCP e 513º nº1 do CPP)

Lisboa, 11 de Outubro de 2023


Os Juízes Conselheiros

(texto elaborado em suporte informático , revisto e rubricado pelo relator – (artº 94º do CPP)

Agostinho Torres- (Relator)

Leonor Furtado (1ª adjunta)

António Latas (2º adjunto)

_____________________________________________________

1. vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95↩︎

2. Cuja crítica de falta de equilíbrio se pode ler no artigo de Helena Morão a fls 142 daquela Revista, nº 2↩︎

3. In site da DGSI: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b88468c00a9e236980258966005995ab?OpenDocument↩︎

4. Em sentido contrário, Helena Morão, “A Revista Penal em Revista”, in “A Revista”, II, limitando-se a assinalar que “Não obstante a redação do artigo 434º não mencionar os casos da alínea b) do nº 1 do artigo 432º, o nº 2 do artigo 410º permanece aplicável nestas situações, i.e., quando “a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito.”↩︎

5. Como tem sido repetido na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, a omissão de pronúncia a que se refere a al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, aplicável por força do artigo 425.º, n.º 4, significa, fundamentalmente, a ausência de tomada de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias relativamente às quais a lei imponha que o juiz tome posição expressa; a pronúncia incide sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais. Cfr, por todos, Ac do STJ de 13-09-2023- procº 257/13.7TCLSB.L1.S1 (Lopes da Mota)↩︎