Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2384/17.2T8PDL.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: CONTRATO MISTO
LACUNA
INTEGRAÇÃO DO NEGÓCIO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
INCUMPRIMENTO PARCIAL
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
REDUÇÃO DO PREÇO
Data do Acordão: 06/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I. Um contrato em que uma das partes se obriga, contra o pagamento de preços parcelares, a fornecer hardware e software, a conceder licença de uso definitivo de um programa informático standard, e a prestar serviços de instalação desse programa e de formação de pessoal para a sua utilização, é um contrato misto, na modalidade de contrato combinado.

II. Em tudo aquilo que não foi expressamente previsto pelas partes, o regime aplicável deve ser encontrado na vontade hipotética das partes, se tivessem previsto os pontos omissos, devendo procurar-se, perante a realidade e os valores dominantes, reconstruir a vontade das partes, num juízo de razoabilidade.

Decisão Texto Integral:
                                               *

I – Relatório

A Autora intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra a Ré, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 70.139,44 €, acrescida de juros comerciais desde Janeiro de 2013, até integral pagamento, e ainda no pagamento da quantia de 5.000,00 €, acrescida de IVA.

Alegou, em síntese, o seguinte:

- celebrou com a Ré, a pedido desta, um contrato de prestação de serviços, equipamentos e direito de utilização de um software para a gestão do seu centro médico (e-Clinica);

- a Ré, apesar do total das faturas pelos serviços prestados somar 138.516,84 €, apenas pagou 68.379,40 €, motivo pelo qual suspendeu o serviço.

- para cobrança do seu crédito, despenderá com os mandatários judiciais a quantia de 5.000,00 €, acrescida de IVA.

A Ré contestou, alegando, em síntese, o seguinte:

- foi a Autora que a procurou e ofereceu o serviço em causa, garantindo que o mesmo reunia todas as condições para que a sua aquisição fosse subsidiada;

- até ao dia de hoje o “e-Clinica” não está concluído com as funcionalidades anunciadas, tendo apenas sido instaladas algumas valências de agendamento e faturação.;

- considerando o atraso na conclusão no programa, bem como a recusa de comparticipação por parte da entidade pública, a Ré recusou efetuar qualquer outro pagamento enquanto o programa não estivesse concluído.

- perante o impasse em desbloquear a situação, a Autora acabou por abandonar, sem aviso, as suas instalações, levando consigo inúmero material e bloqueando o acesso ao “e-Clinica”.

- o valor peticionado a título de honorários, por não é devido.

 Concluiu, pedindo a condenação da Autora como litigante de má-fé, por alegar factos que sabe não corresponderem à verdade.

A Autora respondeu ao pedido de condenação como litigante de má-fé, defendendo a sua improcedência.

Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a Ré dos pedidos contra si formulados e a Autora do pedido de condenação como litigante de má-fé.

A Autora recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação que, com um voto de vencida, julgou o recurso parcialmente procedente e condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 59.771,44, acrescida de juros de mora desde a data fixada para pagamento das faturas apresentadas e não pagas, revogando a sentença recorrida.

A Ré recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

1. Sem quebra do devido respeito, a decisão recorrida fez uma errada interpretação e aplicação dos artigos 406.º, 798.º, 1222 n.1 e 562.º todos do Código Civil;

2. Na verdade, conforme resulta da abundante prova constante dos autos, o que verdadeiramente interessava à R. era adquirir não um mero programa de agenda e de faturação, mas sim um programa que pudesse ainda criar um registo e histórico do doente para que, quando solicitadas MCDT ou PEM, estas fossem através desta ferramenta (fornecendo assim gratuitamente esta faculdade aos seus médicos, sendo mais um fator de escolha da Centro Ré por parte destes), e que assim ficavam automaticamente no histórico informático do doente, não só o pedido mas acima de tudo o seu resultado, permitindo que sempre que o médico consultasse aquele histórico, ali surgisse o resultado de tudo quanto tenha sido solicitado;

3. Era esta interação dos módulos que verdadeiramente interessava à R. e foi isto que era verdadeiramente inovador e que justificava um investimento tão elevado na sua aquisição;

4. Ou seja, aquele programa apenas tinha um preço tão elevado por ser, ou melhor, prometia ser o único no mercado que conseguia colocar na mesma ferramenta informática não só a gestão da clínica como ainda a gestão dos médicos e dos doentes, interligando-os com as PEM e os MCDT;

5. Por esta razão, tal como resultam das candidaturas formuladas pela A. e R. para atribuição de subsídios públicos para a construção (A.) e aquisição (R.) daquela ferramenta informática, aquela entidade pública responsável pela gestão dos programas comunitários de atribuição de fundos públicos para o investimento e a competitividade empresarial considerou ajustado o preço de venda daquele programa informático, pois constituía uma inovação no mercado;

6. Assim, não se percebe, nem faz sentido, o cálculo efetuado na Decisão recorrida em dividir o valor em falta por quinze e atribuir aos módulos PEM e MCDT o valor de 2/15, descontando-o na quantia peticionada nos presentes autos, como se os módulos tivessem todos o mesmo valor e estivéssemos a falar de algo uniforme;

7. Pelo contrário, existe nos autos uma avaliação efetuada por uma entidade pública externa, nomeadamente pela Direção Regional de Apoio ao Investimento e à Competitividade do Governo Regional dos Açores (adiante DRAIC), entidade esta que aprovou aqueles apoios públicos quer por parte da A. para o desenvolvimento daquele programa, quer da parte da R. para apoio para a sua aquisição, que tinha assim conhecimento do proposto e do valor de aquisição, onde o seu auditor Eng. AA elaborou um relatório técnico de vistoria, datado de outubro de 2015 (cerca de três anos depois da aquisição...), onde afirma que que o “e-clinica” é ainda “…um produto limitado, ainda em evolução…”, cujo valor de referência não ultrapassará os cinco mil euros – fls. 24 e seguintes do apenso 1 junto aos autos;

8. Num outro relatório de vistoria da DRAIC junto da R. agora recorrente, datado de 10/03/2014, esta mesma entidade constatou que naquela data apenas 20,96% do investimento estava realizado – fls. 377 e seguintes do apenso 1;

9. Em 12 de abril de 2016, numa nova vistoria e respetivo relatório elaborado pelo auditor da DRAIC, Eng.º AA, este conclui que: ”Na componente relativa à implementação do software e-clinica o investimento não foi totalmente realizado, pois o fornecedor do software não concluiu o fornecimento total da solução e-clinica conforme previsto. Deste Investimento só foi realizado o módulo de gestão comercial (agenda, cientes, tesouraria e listagens), sendo que ficaram os restantes módulos da solução e-clinica por fornecer.” (sublinhado nosso) – fls. 541 e seguintes do apenso 2;

10. De igual modo, não foi tido em conta na Decisão recorrida que, além dos módulos PEM E MCDT, também não foi executado pela A. recorrida o site (ponto 15 dos factos provados), a licença de encontros nível 1, que inclui não só os módulos PEM e MCDT mas também avaliações e emissão de documentos (ponto 16 dos factos provados); não foi registado na ASSOFT (ponto 17 dos factos provados); não foi solicitada junto da CNPD a respetiva licença de tratamento de dados (ponto 18 dos factos provados); e não foi ministrada formação aos médicos (ponto 19 dos factos provados);

11. Por isto, a Decisão aqui recorrida não consubstancia qualquer “equilíbrio nas prestações”, pois condena a R. aqui recorrida a pagar € 59.771,44, a acrescer aos € 116.049,76 (ainda que parte deste valor tenha sido destinado ao hardware), já pagos à A., para fazer face a um fornecimento incompleto, de um programa que não correspondia minimamente ao prometido, que três anos depois ainda estava em construção e que a entidade auditora daquele investimento avaliou em não mais do que cinco mil euros...;

12. Pelo contrário, sem quebra do devido respeito, a Decisão recorrida vem inverter alguma justiça que tinha sido feita pela Decisão de Primeira Instância, tornando agora manifestamente desproporcional o montante que condena a R. e o valor do que lhe foi efetiva e comprovadamente prestado;

13. Como muito bem foi afirmado no Voto de Vencido da Sra. Dra. Juiz Desembargadora Maria de Deus Correia, a Decisão de primeira instância decidiu bem ao considerar justificado o não pagamento do restante em dívida como exceção de não cumprimento do contrato.

14. Por tudo isto, a Decisão aqui recorrida fez uma errada interpretação e aplicação ao caso sub judice dos artigos 406.º, 798.º, 1222 n.1 e 562.º todos do Código Civil, razão pela qual deverá ser revogada e substituída por outra que mantenha a Decisão de primeira instância e absolva a R. aqui recorrente;

15. Por fim, a Decisão aqui recorrida condenou ainda a recorrente a pagar aquela quantia de capital, “...acrescida de juros desde a data para pagamento das faturas apresentadas e não pagas.”;

16. Sem quebra do devido respeito, a recorrente apenas admite como possível aquela condenação no pagamento de juros como um lapso da Decisão, pois a mesma vai em sentido contrário do seu conteúdo;

17. Isto porque, se a Decisão aqui recorrida reconhece que existiu um incumprimento por parte da A. e que o montante peticionado nos presentes autos, que corresponde aos montantes titulados nas “...faturas apresentadas e não pagas”, não é devido na sua totalidade, mas apenas parcialmente e no valor só agora determinado nesta Decisão, tal significa que aquela quantia constante das faturas não era devida desde a data da sua apresentação a pagamento, não sendo assim possível que se tenham vencidos juros sobre as mesmas. Caso contrário, pergunta-se: E como seriam contabilizados estes juros? em que fatura operou o “desconto” determinado na Decisão recorrida?;

18. Quanto muito, a serem devidos juros, o que não se admite, seriam apenas após o trânsito em julgado da decisão que liquida o valor certo que a R. recorrente teria que pagar à A., depois de determinado qual o montante da redução do negócio;

19. Por isto, também por aqui a Decisão recorrida fez uma errada interpretação do art.º 805.º n.º3 do Código Civil, pelo que também nesta parte deve ser revogada e a R. aqui recorrente, a ser condenada no pagamento de juros, o que não se concede, apenas poderá ser nos que se vencerem após o trânsito em julgado desta Decisão, momento em que a obrigação se tornou liquida.

A Autora respondeu, pronunciando-se pela inadmissibilidade do recurso, por não se fundamentar na violação de normas substantivas e se pretender recorrer da decisão sobre matéria de facto, e subsidiariamente, pela improcedência do recurso.


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II – A admissibilidade do recurso

Como se deu nota acima a Autora alegou que este recurso não é admissível porque a Recorrente não só não fundamentou o recurso em violação de normas substantivas como recorre da matéria de facto.

Lendo as alegações de recurso, designadamente as suas conclusões, verifica-se que a Ré questiona o valor da redução do preço calculado no acórdão recorrido.

A Ré não questiona, contudo, qual a parte do objeto do contrato celebrado entre as partes que não foi integralmente cumprido e que consta da matéria de facto provada, mas sim o critério adotado pelo acórdão recorrido para proceder ao cálculo do seu valor.

Tratando-se de matéria relativa à subsunção do direito de redução do preço à factualidade provada, ela pode ser objeto de recurso de revista, nos termos do artigo 674.º, n.º 1, a), do Código de Processo Civil, pelo que o recurso deve ser conhecido.

III – O objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre verificar:

- se, atento o grau de incumprimento da prestação da Autora, a Ré nada mais está obrigada a pagar àquela, além dos valores que já lhe pagou?

- se não são devidos juros de mora sobre a quantia eventualmente em dívida?


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IV – Os factos

Neste processo encontram-se provados os seguintes factos:

1. A Autora é uma empresa que se dedica à atividade de programação informática, consultoria e atividades relacionadas.

2. A Ré é uma empresa que se dedica à prestação de serviços médicos e cirúrgicos no domínio da ginecologia, obstetrícia e endocrinologia, ao arrendamento de bens imobiliários e administração de centros médicos e ao exercício de atividades de segurança, higiene e saúde no trabalho.

3. Em 28/11/2012 a Autora apresentou à Ré a proposta BB.

4. O referido orçamento foi aceite pela Ré em 03/12/2012.

5. Em 07/12/2012, Autora e Ré assinaram o contrato de licença de uso e de prestação de serviços relacionados com a plataforma “e-Clinica”.

6. Em 15/01/2013 foi apresentada uma nova proposta de orçamento, no qual foi contemplado a compra de:      

        Hardware:

- 1 Servidor com redundância de dados;

- 3 Switch POE;

- 1 Câmara IP;

- 18 Work Stations;

- 12 Impressoras Laser mono;

      Software:

- Sistema Operativo

- Base de dados

- Anti-virus

       Total da Infra-estrutura: 41.096,00 € + IVA.

b) Framework s-Clínica

- Licença Base

       Contempla 30 utilizadores

- Licença Financeira Lv1

        Contempla 25 utilizadores

- Licença Encontros Lv 1

       Contempla 25 utilizadores

Total de Licenças Framework e-Clínica: 77.760,00 € + IVA

c) Serviços relacionados com o fornecimento da Framework e-Clínica

- Instalação/Configuração

- Suporte Técnico Aplicacional

- Monitorização da Rede

- Formação

Total de serviços contemplados: 39.628,00 € + IVA

Total da Proposta: 158.484,00 € + IVA. [1]

7. O novo orçamento foi aceite e em 16/01/2013 a Ré adjudicou à Autora a compra do hardware constante do segundo orçamento, no valor de 41 096,00€ + IVA que deu origem à fatura nº 2013/8 de 20.12.2013 no valor total de 47 671,36€, paga em 30/11/2014 e 17/02/2014.

8. A Ré apenas foi pagando pequenas faturas de serviços extra e equipamentos vendidos, como o hardware referido supra e outros: i. FA2013/6 no valor de 39,44€; ii. FA 2013/7 no valor de 552,16€, iii. FA 2014/2 no valor de 11,68€, iv. FA 2014/3 no valor de 389,97€, v. FA2014/10 no valor de 389,97€, vi. FA2014/11 no valor de 123,07€, vii. FA2014/13 no valor de 519,96€, viii. FA 2014/14 no valor de 61,54€, FA 2015/1 no valor de 649,94€.

9. A Autora era uma empresa certificada desde 2012 para a criação de software para Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica e Prescrição Eletrónica Médica.

10. O contrato celebrado entre Autora e Ré teve em vista a candidatura a fundos públicos.

11. A Autora emitiu as seguintes faturas: i. Em 20.02.2014, a fatura n.º FA 2014/5 no valor de 38 880,00€ + IVA, correspondente a metade do valor constante do orçamento para a Licença de uso do programa informático correspondente à plataforma “e-Clinica” (77 760,00€ / 2), no total de 45 878,40€; ii. 2. E em 01/07/2014, a fatura nº 2014/12 no valor total de 45 878,40€, IVA incluído, correspondente aos restantes 50%; iii. Em abril de 2014, a fatura FA 2014/8 referente à parte do valor da prestação de serviços relacionados com o fornecimento da licença de uso do “e-Clinica” no montante total de 46 761,04€ (39 628,00€ + IVA).

12. Do referido em 11, a Ré pagou 68 378,40€: i. 20 000,00€ em 19/05/2014; ii. 25 878,40€ em 24/07/2014; iii. 7 000,00€ em 03/02/2015; iv. 9 000,00€ em 24/03/2015; v. 6 500,00€ em 10/07/2015.

13. A Ré nada mais pagou.

14. O programa informático constante das faturas FA 2014/5 e FA 2014/12 não está concluído, uma vez que não foram instalados os módulos de Licença Encontros nível 1, Prescrição Electrónica de Medicamentos (PEM) e Prescrição de Meios Complementares de Diagnostico e Terapêutica (MCDT) [2].

14-A. As licenças do Framework “e-Clinica” no contrato referido no ponto 5. abrangiam os seguintes módulos.

Licença Base: Gestão do site; Demográficos; Agendamento; Emissão de Documentos Administrativos; e-mail.

Licença Financeira 1: Serviços (Stocks); Gestão de Clientes e Faturação (certificado n.º 1407 da AT/DGCI).

Licença Encontros Nível 1: Sumários Clínicos; PEM; MCDT (autorizados pela ACSS desde 24 de setembro de 2012); Avaliações; Emissão de Documentos Clínicos [3].

15. Não existe site.

16. Não existe a licença de encontros nível 1.

17. Não foi registado na ASSOFT.

18. Não foi solicitada junto da CNPD a respetiva licença de tratamento de dados.

19. Não foi ministrada formação aos médicos.

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V – O direito aplicável

Após a celebração de um primeiro contrato, em 7 de dezembro de 2012, tendo por objeto a cedência de uso de licença de uso e de prestação de serviços relacionados com a plataforma informática “e-Clínica”, Autora e Ré outorgaram um novo contrato, em Janeiro de 2013 que substituiu o primeiro, através do qual a Autora acordou em comprar à Ré:

a) hardware e software, pelo preço de 41.096,00€ + IVA;

b) Licença de uso do programa informático correspondente à plataforma “e-Clinica”, pelo preço de 77.760,00€ +IVA;

c) Prestação de serviços relacionados com o fornecimento da licença de uso da “e-Clinica”, pelo preço de 39 628,00€ + IVA.

A qualificação e a definição do regime aplicável a este tipo de contratos têm revelado algumas dificuldades na jurisprudência [4], sendo certo que o seu objeto pode apresentar diferentes cambiantes em cada caso concreto.

Apesar de estarem acordados preços parcelares para diferentes prestações, deve considerar-se que nos encontramos perante uma situação em a Ré se obriga a uma prestação unitária – pagamento do preço – como contrapartida de três prestações a realizar pela Autora que integram tipos contratuais diversos, pelo que estamos perante um contrato misto, na modalidade de contrato combinado [5].

Neste tipo de contratos, subscrevendo a melhor doutrina, segundo a qual não existem soluções rígidas na definição do regime dos contratos mistos [6], vigora a regra prevista no artigo 239.º do Código Civil para a integração dos negócios jurídicos, em tudo aquilo que não foi expressamente previsto pelas partes. Assim, o regime aplicável deve ser procurado na vontade hipotética das partes, se tivessem previsto os pontos omissos. Essa procura da vontade hipotética deve ser efetuada de modo a que, perante a realidade e os valores dominantes se procure reconstruir a vontade das partes, num juízo de razoabilidade [7]. Na maior parte das situações, este juízo, sem que isto procure ser uma regra infalível, conclui pela aplicação a cada uma das prestações múltiplas do regime do contrato típico que preenchem (teoria da combinação). E nas zonas contratuais que não pertencem exclusivamente a um dos modelos presentes, como ocorrerá na prestação unitária do pagamento do preço, normalmente aplica-se o regime previsto para o contrato típico onde se insere a prestação que se revele dominante (teoria da absorção). Na hipótese de ambas as prestações assumirem igual importância, deve o julgador, nessas zonas neutras, adotar a disciplina que concretamente se revele mais razoável, tendo em consideração os interesses plasmados no figurino contratual [8].

No presente caso a Autora obrigou-se:

- a fornecer hardware e software à Ré, mediante o pagamento de um preço, o que integra a tipologia de um contrato de compra e venda (artigo 874.º do Código Civil).

- a conceder licença de uso definitiva de um programa informático standard [9], prestação socialmente típica dos denominados contratos de licença [10], que resulta na transmissão da propriedade sobre uma cópia desse programa, o que integra, igualmente, um contrato de compra e venda (artigo 874.º do Código Civil);

- a prestar serviços de instalação desse programa e de formação de pessoal para a sua utilização, o que integra um contrato de prestação de serviço (artigo 1154.º do Código Civil).

As instâncias basearam as suas decisões num suposto cumprimento defeituoso do contrato por parte da Autora, tendo a sentença da 1.ª instância acolhido a figura da exceção de não cumprimento do contrato, enquanto o acórdão da Relação optou pela redução do preço, revelando os dois arestos diferentes entendimentos sobre a manutenção da relação contratual.

 Encontra-se provado que o programa informático que a Autora se comprometeu a conceder uma licença de uso de um programa informático à Ré não se encontrava concluído, uma vez que, não foram instalados os módulos de licença nível 1, Prescrição Eletrónica de Medicamentos (PEM) e Prescrição de Meios Complementares de Diagnostico e Terapêutica (MCDT), suscitando-se a dúvida se estamos perante um cumprimento defeituoso ou se se verifica um incumprimento parcial.

Nestes casos, em que não se revela fácil distinguir se o problema é de quantidade ou de qualidade, deve considerar-se que existe um incumprimento parcial, quando o que falta tinha uma função individualizada num quadro complexo que integra todo objeto da prestação, mas já estamos perante um cumprimento defeituoso, se o elemento em falta não desempenha só por si uma função própria, diluindo-se no conjunto global da prestação, sem um papel específico, afetando negativamente a qualidade da prestação  [11].

Estando, neste caso, em falta dois módulos individualizados de um Programa Informático Clínico, relativos à Prescrição Eletrónica de Medicamentos e à Prescrição de Meios Complementares de Diagnostico e Terapêutica, estamos perante a ausência de componentes destinados a finalidades específicas, cuja ausência não afeta a operatividade dos restantes módulos daquele Programa, pelo que devemos falar num incumprimento parcial do contratado.

Sendo apenas objeto de discussão neste recurso, por delimitação efetuada pela Recorrente, a dimensão da redução do preço operada pelo Tribunal da Relação, encontra-se pressuposto o termo da relação contratual, pelo que o referido incumprimento parcial deve ser encarado como definitivo, estando, por isso, arredada a possibilidade da solução deste litígio passar pela figura da exceção de não cumprimento, a qual contempla a possibilidade do contrato ainda poder ser integralmente cumprido.

Um vez que o incumprimento contratual parcial não tem previstas normas específicas em qualquer um dos regimes dos tipos contratuais em equação (compra e venda, mandato ou empreitada) na definição das regras aplicáveis a este contrato, são aplicáveis as disposições do regime geral das obrigações que regem o incumprimento contratual parcial, ou seja os dois números do artigo 802.º do Código Civil, onde se pode ler no n.º 1: se a prestação se tornar parcialmente impossível, o credor tem a faculdade de resolver o negócio ou de exigir o cumprimento do que for possível, reduzindo neste caso a sua contraprestação, se for devida.

O acórdão recorrido, embora com fundamento noutras disposições legais (artigos 1222.º e 562.º do Código Civil) procedeu a essa redução do preço, tendo retirado € 10.368,00 ao preço acordado, pelo que concluiu que a Ré deveria ser condenada a pagar apenas € 59.771,44, dos € 70.139,44 que faltavam para perfazer aquele preço.

A Recorrente entende que a falta dos referidos módulos, atenta a valia dos mesmos, deve determinar uma redução do preço que tenha como consequência que, efetuada essa redução, se considere integralmente pago o preço acordado pelas quantias já entregues pela Ré à Autora.

O direito à redução do preço, mais do que visar o ressarcimento de um prejuízo, procura o restabelecimento do equilíbrio das prestações. Possibilita-se a alteração unilateral de uma das prestações acordadas, perante o incumprimento parcial da que lhe corresponde numa relação de sinalagma, recuperando-se assim o equilíbrio inicialmente existente entre elas. Perante a não realização parcial de uma das prestações, o contrato mantém-se através de um reajustamento proporcional da prestação correspetiva [12].

A redução do preço deve ser proporcionalmente correspondente ao valor da parte da prestação incumprida, pois é esse valor que reflete a desvalorização do resultado dessa prestação, atenta a autonomia da parte não cumprida.

O acórdão recorrido considerou que a redução da parcela do preço acordado para a concessão da  Licença de uso do programa informático correspondente à plataforma “e-Clínica” – 77.760,00€ + IVA – deveria ter uma proporção de 2/15 avos, uma vez que a licença desse programa era composta por 15 (?) módulos e só 2 não integraram o programa instalado, tendo, por isso, apenas efetuado uma redução de 2/15 avos àquela parcela do preço.

Aceita-se que face à insuficiência da alegação e consequente comprovação de factualidade que revelasse que a importância dos módulos em falta fosse superior à dos restantes, se calcule a redução do preço proporcionalmente ao número total de módulos integrantes do Programa em causa.

No entanto, conforme se constata da descrição das licenças do Programa “e-Clínica” no primeiro contrato celebrado entre as partes, os módulos aí descritos são 12 e não 15 (Gestão do site; Demográficos; Agendamento; Emissão de Documentos Administrativos; e-mail; Serviços (Stocks); Gestão de Clientes e Faturação; Sumários Clínicos; PEM; MCDT; Avaliações; Emissão de Documentos Clínicos).

E, em segundo lugar, a redução do preço não deve apenas afetar a parcela correspondente à concessão das licenças, mas também a parcela que respeita à prestação de serviços relativa ao referido Programa “e-Clínica”, uma vez que não integrando aquele Programa, os módulos relativos à Prescrição Eletrónica de Medicamentos e à Prescrição de Meios Complementares de Diagnostico e Terapêutica, também não foram prestados os respetivos serviços.

Assim, a redução do preço global deve ser no valor de €19.564,66 (€12.960,00 + € 6.604,66) + IVA (18%), ou seja €23.086,29.

Não tendo sido pago do preço acordado €70.139,44, incluindo IVA, operando a apurada redução, a dívida da Ré é apenas de €47.053,15.

Quanto aos juros de mora, relativos ao pagamento deste valor, uma vez que a liquidação da redução do preço face ao incumprimento parcial da Autora, só se estabilizou com a prolação do presente acórdão, não sendo a falta de liquidez imputável à Ré, devem esses juros apenas serem contabilizados após a notificação desta decisão, nos termos do artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil.

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Decisão

Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pela Ré e, em consequência, altera-se o acórdão recorrido, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 47.053,15, acrescida de juros de mora desde a notificação desta decisão até integral pagamento daquela quantia, calculados sobre ela, à taxa definida por lei.


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Custas do recurso pela Autora e pela Ré, em igual proporção.

Custas na 1.ª instância e na Relação, na proporção do vencimento.


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Notifique.


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Lisboa, 22 de junho de 2023

João Cura Mariano

Vieira e Cunha

                                                          

Ana Paula Lobo

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[1] Acrescentou-se à redação deste número o que consta do orçamento junto como documento n.º 5 com a p.i. e sobre cujo conteúdo existe acordo tácito das partes nos articulados.
[2] Aditou-se a segunda parte deste facto à redação que consta da lista dos factos provados do acórdão recorrido, uma vez que se constata quer da leitura da fundamentação da decisão sobre a impugnação do ponto 14 da matéria de facto, quer da fundamentação de direito do referido acórdão que neste se considerou provado, apesar de não ter sido inserido naquela lista (incorreção meramente formal), que a falta de conclusão respeitava à ausência daqueles dois módulos.
[3] Acrescentou-se este número aos factos provados que traduz o que consta do texto do junto com a p.i. como doc. n.º 2 e sobre cujo conteúdo existe acordo tácito das partes nos articulados.
[4] V.g. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.11.2001, Proc. 2867/01 (Relator Oliveira Barros), de 24.01.2002, Proc. 3857/01 (Relator Oliveira Barros), de 13.01.2005, Proc. 4158/04 (Rel. Ferreira de Almeida), de 01.06.2006, Proc. 1687/06 (Rel. Ferreira de Sousa), de 18.05.2006, Proc. 1002/06 (Rel. Afonso Correia), de 07.05.2009, Proc. 434/09 (Rel. Sousa Leite), e de 12.01.2022, Proc. 27863/18 (Rel. Vieira e Cunha), encontrando-se apenas publicados os referidos acórdãos de 24.01.2002, 13.01.2005 , de 12.01.2022, em www.dgsi.pt.
[5] Utilizando a classificação corrente, baseada na doutrina alemã e utilizada por VAZ SERRA, União de Contratos. Contratos Mistos, B.M.J. n.º 91, pág. 41-42, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I vol., 10.ª ed., Almedina, 2000, p. 286, e ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, 2009.
[6] Neste sentido, ANTUNES VARELA, ob. cit. p. 286 e seg., e ALMEIDA COSTA, ob. cit., p. 375-377.
[7] MENEZES CORDEIRO, em Tratado de direito civil, vol. II, 4.ª ed., Almedina, 2014, p. 770-775.
[8] Sobre o regime aplicável ao cumprimento defeituoso nos contratos mistos, PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso. Em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, 2001, pág. 412-414.
[9] A qualificação seria diferente se o programa fosse elaborado por encomenda (feito à medida) para um determinado cliente.
[10] Sobre estes contratos e sua qualificação, ALEXANDRE DIAS PEREIRA, Direito da Propriedade Intelectual & Novas Tecnologias, Estudos, vol. I, Gestlegal, 2019, p. 397, Contratos de Licença de Software e de Bases de Dados, em Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial, Almedina, 2011, p. 358-360, Programas de Computador, Sistemas Informáticos e Comunicações Eletrónicas: Alguns Aspetos Jurídico-Contratuais, Revista da Ordem dos Advogados (1999), vol. III, p. 928-937, Da Licença de Software e de Bases de Dados, Revista Jurídica, no.º 14,  (2011), p. 9-25, e em anotação ao acórdão do S.T.J. de 25.05.2021, na R.L.J., Ano 151, n.º 4032, p. 224, nota 37, e CLÁUDIA TRABUCO, O direito de autor e as licenças de utilização sobre programas de computador: o contributo dos contratos para a compreensão do direito, Themis, Coimbra, A.9, n.15(2008), p.139-169.
[11] Este critério é adotado por PEDRO DE ALBUQUERQUE/MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, em Direito das Obrigações. Contratos em Geral. Contrato de empreitada, Almedina, 2012, p. 411.
[12] Defendendo, nestas situações, uma redução segundo o método proporcional, PAULO MOTA PINTO, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, vol. II, Coimbra Editora, 2008, p. 1436.