Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
28842/21.6T8LSB.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: REENVIO PREJUDICIAL
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
ALIENAÇÃO
PARTICIPAÇÃO SOCIAL
SOCIEDADE COMERCIAL
DIREITO POTESTATIVO
SÓCIO
REGIME APLICÁVEL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 06/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :
I – Pese embora o teor do 3º parágrafo do art. 267 do TFUE, pelo menos desde o Acórdão CILFIT (Acórdão do TJ de 6-10-1982) vem sendo entendido que o dever de reenvio não é absoluto, admitindo o TJ que não há obrigação de reenvio prejudicial se a questão em causa não for relevante e não tiver influência no resultado do litígio, se existir uma interpretação já anteriormente fornecida pelo TJ (que já se pronunciara sobre questão similar, ainda que não absolutamente idêntica) ou se a norma é de tal modo evidente que não deixa lugar a qualquer dúvida razoável (total clareza da norma em causa).

II - Considerando as posições assumidas pelo Tribunal de Justiça, dada a semelhança (ainda que não verdadeira identidade) das questões abordadas, nomeadamente no acórdão “Impacto Azul” (Acórdão de 20 de Junho de 2013), relacionadas com a delimitação espacial resultante do nº 2 do art. 481 do CSC no que respeita à regulamentação das sociedades coligadas, no Título VI do CSC, daquele Acórdão (bem como do Despacho do TJ de 22-10-2021) resulta uma orientação do Tribunal que esclarece o seu entendimento sobre a questão colocada pelo recorrente nestes autos, pelo que não se justifica o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, não havendo obrigação desse reenvio por parte deste STJ.

III – Pretendendo o A. exercer o direito potestativo de alienação de participações sociais que o art. 490 do CSC confere ao sócio minoritário da sociedade dependente, coloca-se a questão do âmbito espacial decorrente do nº 2 do art. 481 do CSC quando circunscreve a aplicação das disposições contidas no título VI “apenas a sociedades com sede em Portugal”.

IV – O sentido da regra constante do nº 2 do art. 481 do CSC é o de exigir  que ambas as sociedades tenham a sua sede em território nacional, sem prejuízo das excepções que ali são determinadas – tal resulta do texto da lei, considerando aquelas excepções, bem como da previsão do nº 4-a) do art. 489 do mesmo Código, não havendo que proceder a uma interpretação correctiva daquela regra.

V – O nº 2 do art. 481 do CSC na sua conjugação com o disposto nos nºs 5 e 6 do art. 490 do mesmo Código, limitando a aplicação espacial destes últimos, é compatível  com os princípios constitucionais de igualdade de tratamento e da livre concorrência, bem como com os princípios comunitários da não discriminação em razão da nacionalidade e da liberdade de estabelecimento.

Decisão Texto Integral:



Proc. nº 28842-21.6T8LSB.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

                                               *

IAA intentou acção declarativa com processo comum contra “Banco Santander, SA”.
Alegou o A., em resumo:
A R. detém uma participação superior a 99,85% do capital social da sociedade “Santander Totta, S.G.P.S., S.A.”, sociedade de que o A. é accionista minoritário, detendo 116.908 valores mobiliários representativos do seu capital.
O A., por escrito, exigiu à R. que esta lhe fizesse uma oferta de aquisição daqueles valores mobiliários o que a R. recusou.
O A., enquanto acionista minoritário, tem direito de exigir a aquisição pela R. das acções por si detidas a um preço justo a fixar, nos termos previstos no art. 490.º do C.S.C..
Formulou o A. o seguinte pedido:
«1. Que ao Autor seja reconhecido o direito de alienação potestativa dos valores mobiliários representativos do capital da sociedade Santander Totta, SGPS, S.A. que detém, nos termos e para os efeitos conjugados do artigo 490 (5) (6) do CSC.
2. Que a Ré seja condenada a ver reconhecido esse direito.
3. Que ao Autor seja reconhecida a possibilidade de produzir os efeitos jurídicos da alienação potestativa previstos no artigo 490 (6) do CSC perante a Ré relativamente dos valores mobiliários representativos do capital da a sociedade Santander Totta, SGPS, S.A. que detém e sobre os quais exigiu a oferta prevista no artigo 490(5) do CSC.
4. Que a Ré se sujeite aos efeitos do exercício do supra referido direito potestativo e em consequência seja condenada a adquirir ao Autor os valores mobiliários representativos do capital da sociedade Santander Totta, SGPS, S.A. que este seja titular, na quantidade de 116.908 ações, nos termos e para os efeitos do artigo 490 (6) do CSC, ao preço fixado pelo tribunal, tendo como referência o valor justo apurado na perícia colegial requerida a que se deve somar os dividendos distribuídos e não pagos (ex dividend) e diminuído do valor de dividendos aprovados para distribuir no curto prazo mais ainda não distribuídos e pagos (cum dividend), caso tais efeitos não tenham sido considerados no valor justo determinado pela perícia.
5. Que o valor justo da sociedade Santander Totta seja determinado por perícia judicial, a ser realizada por três Revisores Oficiais de Contas por forma a determinar o valor justo que o Autor deve receber como contrapartida pelos valores mobiliários a alinear potestativamente, o qual deste momento desconhece e não tem forma de conhecer».
A R. contestou, invocando factualidade que, em seu entender, afastaria o direito invocado pelo A., defendendo a inaplicabilidade ao caso do art. 490.º do CSC e o não preenchimento dos requisitos do mesmo artigo, aludindo designadamente ao âmbito de aplicação espacial do art. 490 do CSC (definido pelo art. 481) que não abrangeria o caso dos autos, bem como invocando o abuso de direito por parte do A..
Concluiu pela improcedência da acção.
No saneador,  o Tribunal de 1ª instância, decidiu nos seguintes termos:
«Julga-se a presente ação improcedente e, em consequência, decide-se, absolver a ré BANCO SANTANDER, S.A. do pedido contra si deduzido pelo autor AA».
O A. interpôs recurso “per saltum” para o STJ, formulando na alegação de recurso oferecida as conclusões que se seguem:
«1. O autor interpõe o presente recurso da douta sentença proferida pelo tribunal a quo, que ponderada toda a matéria de facto e de direito, decidiu que a presente ação é improcedente e, em consequência, decidiu absolver a ré do pedido contra si deduzido.
2. O tribunal a quo entende que o regime da previsto no artigo 490 do CSC não tem aplicação no caso dos autos força do disposto no artigo 481 do mesmo diploma, considerando que a sociedade detentora da maioria das participações do capital social da sociedade dominada tem sede em Espanha.
3. Por conseguinte, entende o tribunal, que não assiste ao autor, ora recorrente, o direito de alienação potestativa conferido pela aludida norma, designadamente no artigo 490 (5), do CSC.
4. O presente recurso vem na modalidade da revista per saltum, por recair apenas sobre a matéria de direito, o que é feito nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631,637, 639, 672, 675, 678 (1), aplicável ex vi artigo 644 (1,a) e 678 (3), todos do CPC.
5. O recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso acompanhado das respetivas alegações sob a matéria de direito (cf. artigo 631 do CPC) e está em tempo de o fazer (cf. artigo 638 do CPC).
6. Os factos assentes são os que consta em §3 supra, para onde se remete e aqui se dão como reproduzidos, mas que resumidamente sustentam que a ré, sociedade constituída e com sede em Espanha, detém mais de 90 % do capital social da sociedade dominada, constituída e com sede em Portugal, e que o autor, ora recorrente, exigiu, por escrito, que a ré, ora recorrida, lhe fizesse uma oferta nos termos no artigo 490 (5), do CSC, a qual foi recusada.
7. Sendo, portanto, o exercício do direito de alienação potestativa nos termos do artigo 490 (5), do CSC, que se discute nesta ação.
8. O recorrente, mui respeitosamente, discorda da douta sentença pelas razões vertidas nos § 4 supra, para onde se remete para uma completa compreensão e evitando aqui uma repetição fastidiosa e prolixa do que ai se encontra de forma resumida.
9. Mas que, resumindo, se estriba no facto de não concordar com a interpretação de que o artigo 481 (2), do CSC, impeça operar o direito contido no artigo 490 (5), do CSC, quando a sociedade dominante tenha sede no estrangeiro.
10. Pelo contrário, entende o recorrente, que, para efeitos da aplicação do artigo 490 (5), do CSC, impõe-se proceder à interpretação corretiva do artigo 481 (2), do CSC, no sentido que basta que uma das sociedades em causa tenha uma ligação espacial com o território nacional, com acontece com a sociedade dominada, não sendo exigido que a sociedade dominante tenha sede em Portugal.
11. O recorrente requer ainda o reenvio prejudicial, tudo nos termos do §5 supra, com força obrigatória conferida pelo artigo 267 § 3, do TFUE, para que o TJUE interprete, a titulo prejudicial, o artigo 18, do TFUE, no sentido de questionar esse tribunal se tal norma de direito da União Europeia se opõe-se à interpretação de uma norma de direito nacional de um Estado Membro que seja discriminatória entre grupos nacionais e grupos estrangeiros, como é o caso do artigo 481 (2), do CSC para efeitos de aplicação do artigo 490 (5), do CSC».
Contra alegou a R., dizendo que o fazia com ampliação do objecto do recurso apresentando as conclusões que se transcrevem:
«1. O RECORRIDO detém mais de 99% do capital social da sociedade Santander Totta, SGPS, S.A.
2. O RECORRENTE propôs a presente acção contra o RECORRIDO para, na qualidade de titular de 116.908 acções da sociedade Santander Totta, SGPS, S.A., requerer a condenação do RECORRIDO no reconhecimento do seu pretenso direito de alienação potestativa dessas acções, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 490.º do CSC.
3. O Tribunal recorrido considerou que o artigo 481.º, n.º 2 do CSC impedia a aplicação do regime previsto no invocado artigo 490.º do CSC ao RECORRIDO, dado que a sua sede está localizada em ..., Espanha, e, como tal, julgou improcedente a acção.
4. O RECORRENTE alega que o Tribunal a quo deveria ter procedido a uma interpretação correctiva do artigo 481.º, n.º 2 do CSC, no sentido de que, para efeitos do disposto no artigo 490.º do CSC, não é exigível que a sociedade dominante tenha sede em Portugal, bastando que uma das sociedades em questão tenha uma ligação espacial com o território nacional.
5. O RECORRENTE alega ainda que a interpretação sufragada pelo Tribunal recorrido é incompatível com os artigos 13.º e 81.º, n.º 1, alínea e), da CRP e com o artigo 18.º do TFUE, requerendo o reenvio prejudicial com força obrigatória desta questão para o TJUE, nos termos do artigo 267.º § 3, do TFUE.
6. As alegações do RECORRENTE carecem de fundamento e são improcedentes em toda a sua extensão.
7. No caso concreto, o STJ não deverá proceder ao reenvio prejudicial para o TJUE da questão suscitada pelo RECORRENTE, ao abrigo da doutrina do «acte éclairé» e da doutrina do «acte clair».
8. A questão da não aplicação do Título VI do CSC português a entidades com sede noutro Estado-Membro já foi decidida anteriormente pelo TJUE no Acórdão “Impacto Azul”( C-186/12 – Impacto Azul, ECLI:EU:C:2013:412).
9. A interpretação dos artigos 481.º e 490.º do CSC sufragada pelo RECORRENTE é, ela sim, susceptível de fazer incorrer o STJ na obrigação de realizar o reenvio prejudicial de uma questão – diferente daquela que é colocada pelo RECORRENTE – para o TJUE
10. A aplicação do regime do artigo 490.º do CSC a sociedades com sede no estrangeiro configuraria uma restrição à liberdade de estabelecimento e uma afronta ao artigo 49.º, n.º 1, do TFUE.
11. Não se pode proceder a uma interpretação correctiva do artigo 481.º, n.º 2, do CSC, de modo a que este passe a dispor que o Título VI do CSC se aplica a entidades estrangeiras, dado que tal seria totalmente contrário ao elemento literal, histórico e sistemático da norma.
12. Ao proceder-se à referida interpretação correctiva incorrer-se-ia numa inconstitucionalidade por violação do princípio da segurança jurídica e tutela da confiança, previsto no artigo 2.º da CRP.
13. O artigo 490.º do CSC apenas se aplica aos casos em que a detenção de 90% ou mais do capital social é superveniente e não aos casos em que a sociedade é constituída com essa configuração.
14. O Santander Totta SGPS, S.A. foi, desde a sua constituição, detido a mais de 90% pelo RECORRIDO, pelo que nunca lhe seria aplicável ao disposto no artigo 490.º do CSC.
15. De modo a evitar que o RECORRENTE pudesse evitar numa posição minoritária no capital social do Santander Totta, SGPS, S.A., foram-lhes feitas três ofertas, que o RECORRENTE não aceitou, tendo duas delas sido, aliás, legalmente obrigatórias.16. Não assiste razão ao RECORRENTE quando afirma que a Decisão Recorrida errou na apreciação do caso e na interpretação que fez do artigo 490.º do CSC, nomeadamente quanto ao facto de  o mesmo não se aplicar a entidades com sede fora de Portugal por via do disposto no artigo 481.º do CSC.
17. Na eventualidade de o Tribunal ad quem acolher a pretensão do RECORRENTE, deve ser admitida a ampliação do objecto do recurso, nos termos do artigo 636.º, n.º 1, do CPC, quanto à parte em que o RECORRIDO decaiu na Decisão Recorrida.
18. O STJ não deve proceder ao reenvio da questão prejudicial suscitada pelo RECORRENTE , na medida em que não existe qualquer violação do Direito da União Europeia.
19. A não aplicação do artigo 490.º do CSC (e, de resto, das demais disposições do Título VI do CSC) a entidades sedeadas noutros Estados-Membros não é desconforme ao Direito da União Europeia.
20. O facto de o Tribunal recorrido ter considerado que o artigo 490.º do CSC se aplica apenas a sociedades com sede em Portugal, por força do artigo 481.º, n.º 2, do CSC, não só não constitui uma violação do artigo 18.º do TFUE, como, na verdade, constitui uma situação de «discriminação inversa», que é compatível com o Direito da União Europeia.
21. A discriminação inversa ocorre quando existe um tratamento desfavorável dos nacionais de um Estado-Membro, que só se realiza na ordem jurídica desse Estado-Membro, e que não se reflecte na situação de uma entidade de outro Estado-Membro.
22. O TJUE não proíbe as situações em que, por força de aplicação de regras do Direito nacional, as entidades nacionais sejam objecto de um tratamento menos favorável do que aquele que resulta da aplicação das regras da União Europeia relativamente a entidades com sede em outro Estado-Membro.
23. De acordo com a jurisprudência reiterada do TJUE, reflectindo a divisão vertical de competências entre a UE e os Estados-Membros, cabe aos tribunais nacionais a competência para determinar se as situações de discriminação inversa são compatíveis com o princípio constitucional da igualdade, utilizando como parâmetro as respectivas constituições e não o TFUE.
24. Esta situação já foi discutida pelo TJUE no âmbito do Acórdão “Impacto Azul”, em que o Tribunal foi chamado a pronunciar-se sobre se a aplicação do artigo 481.º, n.º 2, do CSC em conjunto com outro artigo incluído no Título VI daquela diploma, o artigo 501.º, poderia constituir uma violação do artigo 49.º do TFUE (sendo este último artigo uma norma especial em relação ao artigo 18.º do TFUE, invocado pelo RECORRENTE).
25. O entendimento do TJUE a respeito desta matéria é o de que o tratamento mais exigente conferido às sociedades portuguesas no Título VI do CSC corresponde a uma situação meramente interna e que os Estados Membros dispõem de competência para determinar as regras aplicáveis no seu território nacional.
26. Uma potencial violação do artigo 18.º do TFUE, que estabelece um princípio geral de igualdade, só ocorreria no caso de a lei portuguesa favorecer as sociedades nacionais em prejuízo das entidades da União Europeia.
27. Tanto o artigo 18.º do TFUE, como, em grande medida, o artigo 49.º, do TFUE, foram pensados para situações em que se pretende proibir a discriminação e o tratamento desigual de nacionais de outros Estados Membros face aos nacionais de um certo Estado-Membro.
28. A discriminação inversa é legítima e aceite pelo TJUE, traduzindo-se numa consequência da manutenção da prevalência do Direito nacional quanto a questões que dizem somente respeito aos cidadãos desse Estado-Membro, i.e. situações internas.
29. Se se entendesse que o artigo 481.º n.º 2 do CSC não se aplica ao caso dos autos, assim se limitando, em consequência, também a aplicação do Título VI do CSC ao caso concreto, tal consubstanciaria uma restrição à liberdade de estabelecimento consagrada no artigo 49.º do TFUE e, dependendo das circunstâncias do caso concreto, à livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE.
30. A obrigatoriedade do reenvio de questões prejudiciais não é absoluta, nem mesmo para o tribunal que, no ordenamento jurídico interno, decide em última instância.
31. De acordo com o conhecido acórdão CILFIT, existem três excepções ao artigo 267.º § 3 do TFUE.
32. Uma dessas excepções consiste na inexistência de uma obrigação de reenvio quando em decisões anteriores o Tribunal de Justiça já tenha decidido a questão de direito em causa, independentemente da natureza do processo que tenha dado origem a essas decisões, mesmo que as questões em causa não sejam rigorosamente idênticas («acte éclairé»).
33. No caso, o tema da discriminação inversa já foi, por diversas ocasiões, esclarecido pelo TJUE.
34. Além disso, a questão da não aplicação de determinadas normas do Título VI do CSC português, mercê do n.º 2 do artigo 481.º do mesmo diploma, a entidades com sede noutro Estado-Membro já foi decidida anteriormente pelo TJUE no Acórdão “Impacto Azul”.
35. No Acórdão “Impacto Azul”, o TJUE considerou que as regras do CSC que preveem a responsabilidade solidária da sociedade-mãe totalmente dominante pelas obrigações da sociedade-filha apenas nos casos em que as sociedades-mãe tenham sede em Portugal (artigo 501.º do CSC) não constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento, na acepção do artigo 49.º do TFUE.
36. O TJUE considerou que na ausência de harmonização das legislações nacionais (in casu, em matéria de grupos de sociedades comerciais), os Estados-Membros dispõem de competência para determinar as regras aplicáveis.
37. O TJUE considerou também que o tratamento mais exigente conferido às sociedades-mãe nacionais face às sociedades-mãe estrangeiras constitui uma situação meramente interna.
38. E, por fim, o TJUE considerou que a inaplicabilidade do regime resultante do artigo 501.º do CSC às sociedades dominantes com sede noutros Estados-Membros não é susceptível de tornar menos atractivo o exercício, por estas sociedades, da liberdade de estabelecimento garantida pelo artigo 49.º do TFUE.
39. Invocando o Acórdão Kaas, o TJUE entendeu que o artigo 49.º do TFUE não se opõe que a que um Estado-Membro possa legitimamente melhorar a situação dos credores dos grupos presentes no seu território.
40. O TJUE concluiu que o regime nacional decorrente dos artigos 481.º e 501.º do CSC, ao excluir a responsabilidade solidária das sociedades totalmente dominantes com sede noutro Estado-Membro pelas dívidas das sociedades dominadas, não constitui uma medida restritiva da liberdade de estabelecimento das sociedades de outros Estados-Membros em Portugal.
41. Apesar de o Acórdão “Impacto Azul” não se referir directamente ao artigo 18.º do TFUE, dele resulta claramente o entendimento do TJUE quanto à não aplicação do artigo 481.º, n.º 2 do CSC, em conjunto com os restantes artigos do Título VI do CSC, em que se inclui o artigo 490.º do CSC, a entidades estrangeiras e quanto à possibilidade dos Estados de poderem proceder a discriminação inversa quanto às entidades nacionais.
42. O Acórdão “Impacto Azul” pode não se ter debruçado sobre uma questão exactamente idêntica à que foi formulada pelo RECORRENTE nos autos; mas, certamente, ocupou-se da mesma questão de Direito: a circunstância de o 481.º, n. 2, do CSC, em conjunto com os artigos do Título VI do CSC a que se refere, comportar uma discriminação inversa para as entidades nacionais.
43. O artigo 49.º do TFUE constitui uma norma especial em relação ao artigo 18.º TFUE, uma vez que tutela igualmente a discriminação em razão da nacionalidade no âmbito da liberdade de estabelecimento
44. Ao pronunciar-se sobre o confronto do artigo 481.º, n.º 2, do CSC, com o artigo 49.º do TFUE, o TJUE já decidiu sobre o tema da discriminação inversa contida na norma nacional.
45. O TJUE conclui em jurisprudência recente que colocar uma questão prejudicial relativa a um tema sobre o qual já se pronunciou esvaziaria o conteúdo deste mecanismo, e, por tal, não só não é obrigatório, como seria de evitar.
46. Outra das excepções à obrigatoriedade do reenvio prejudicial são os casos em que a correcta aplicação do Direito da União for evidente.
47. A simples existência de decisões contraditórias, proferidas por outros órgãos jurisdicionais nacionais, não constitui um elemento determinante, susceptível de impor o mecanismo enunciado no artigo 267.º § 3 do TFUE.
48. O TJUE reconhece a possibilidade de existirem decisões judiciais contraditórias no ordenamento jurídico nacional ou a possibilidade de se interpretar de forma distinta uma disposição de direito nacional com enquadramento de Direito da União Europeia.
49. A existência de decisões em sentido contrário na jurisprudência nacional não determina o Tribunal ad quem a realizar uma interpretação correctiva dos artigos 481.º, n.º 2, ou 490.º do CSC, ou, sequer, a ter dúvidas razoáveis sobre a conformidade da Decisão Recorrida ao Direito da União Europeia.
50. A não aplicação do artigo 490.º do CSC a sociedades com sede fora do território nacional não viola o artigo 18.º do TFUE, constituindo uma situação de discriminação inversa relativa as sociedades portuguesas e, por isso, permitida pelo Direito da UE
51. Aplicar o Título VI do CSC tanto a sociedades estrangeiras como a sociedades nacionais poderia constituir, aí sim, uma violação do artigo 49.º do TFUE, relativo à liberdade de estabelecimento no mercado interno, e do artigo 63.º do TFUE, relativo à liberdade de circulação de capitais no mercado interno.
52. Não obstante o RECORRENTE ter solicitado o reenvio prejudicial, deste pedido não resulta o dever do STJ de proceder ao aludido reenvio.
53. No caso, as particularidades do caso concreto determinam mesmo o STJ a não proceder ao  reenvio requerido pelo RECORRENTE.
54. O TJUE, confrontado com situações de discriminação inversa, já se pronunciou no sentido de ser da competência do órgão jurisdicional nacional decidir as questões de Direito interno, nomeadamente saber se existe uma situação de discriminação à luz dos preceitos constitucionais nacionais aplicáveis.
55. No Acórdão “Uecker e Jacquet”, o TJUE decidiu que [a]s eventuais discriminações de que os nacionais de um Estado-Membro possam ser objecto à luz do direito desse Estado enquadram-se no âmbito de aplicação deste, de modo que devem ser resolvidas no quadro do sistema jurídico interno do referido Estado.
56. No caso concreto, é ao STJ que cabe aferir se o artigo 490.º do CSC (e o remanescente Título VI), por força do artigo 481.º, n.º 2, do CSC, se aplica somente as entidades com sede em Portugal e, se sim, se tal situação configura uma discriminação aceitável à luz do ordenamento jurídico português.
57. Entendendo o STJ que essa discriminação inversa é aceitável, como de facto é, então merecerá provimento a Decisão Recorrida (e, inerentemente, os argumentos expostos pelo RECORRIDO), não devendo proceder ao reenvio prejudicial.
58. Entendendo o STJ que essa discriminação inversa não é aceitável – o que não se concede – a solução a dar ao caso dispensa a aplicação do Direito da União Europeia, porque basta-se com a suposta violação do Direito nacional.
59. De uma forma ou de outra, o STJ não deverá recorrer ao mecanismo do reenvio prejudicial, uma vez que o STJ possuirá todas as ferramentas indispensáveis para decidir a causa.
60. Encontrando-se a questão suscitada nos autos já resolvida por jurisprudência do TJUE, proceder a um reenvio prejudicial implicaria uma utilização desnecessária de recursos públicos e privados, um alargamento temporal do pleito e um incremento injustificado do impacto económico do mesmo
61. Mesmo no caso de se entender que existe, à partida, um reenvio obrigatório – o que não se concede -, sempre caberá ao órgão jurisdicional de reenvio a competência para decidir se a questão é pertinente para decidir o processo em causa e, consequentemente, se existe em concreto a referida obrigação.
62. O STJ não está vinculado a qualquer dever de proceder a este reenvio prejudicial (nem deve fazê-lo no caso concreto).
* * *
63. Caso o STJ viesse a entender que se deve desconsiderar a previsão cristalina do artigo 481.º, n.º 2 do CSC, aplicando o Título VI ao RECORRIDO, aí sim poderia existir um tema relevante de violação da liberdade de estabelecimento e da liberdade de circulação de capitais.
64. Entender que as disposições do Título VI do CSC são aplicáveis a sociedades com sede noutros Estados Membros, implica admitir a existência de um conjunto de restrições que constituem um desincentivo relevante ao estabelecimento de operadores de outros Estados-Membros em Portugal.
65. Uma vez que a liberdade de estabelecimento abrange o direito de adquirir participações sociais de controlo em sociedades que exercem a sua actividade noutros Estados-Membros, o conjunto de restrições decorrentes do Título VI constitui um claro desincentivo ao estabelecimento de entidades de outros Estados-Membros, em prejuízo do mercado interno.
66. Já foram declaradas incompatíveis com a liberdade de estabelecimento um conjunto de medidas materialmente idênticas (do ponto de vista da perturbação das liberdades) àquelas que se encontram incluídas no Título VI, como é o caso da imposição de requisitos de capital e de responsabilidade dos administradores a entidades localizadas noutras jurisdições.
67. A interpretação de que o Título VI do CSC é aplicável a entidades estrangeiras pode corresponder ainda a uma restrição à livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, que se interliga com a restrição à liberdade de estabelecimento.
68. Razões pelas quais a interpretação do artigo 481.º, n.º 2, do CSC, no sentido de que permitiria a aplicação ao RECORRIDO do Título VI do CSC é, ela sim, inadmissível.
69. E é-o, desde logo, à luz do Direito da União Europeia (cfr. artigo 8.º, n.º 4, da CRP).
70. A sujeição à apreciação do TJUE da questão que o RECORRIDO agora suscita seria uma novidade para o TJUE, dado que, ao contrário do que acontece no Acórdão “Impacto Azul”, estar-se-ia a apreciar se o artigo 481.º, n.º 2, do CSC, interpretado no sentido de permitir a aplicação do Título VI do CSC a entidades estrangeiras, ao contrário do que sustenta o RECORRIDO, seria violador da liberdade de estabelecimento e circulação de capitais.
* * *
71. A argumentação aduzida pelo RECORRENTE a respeito da suposta sujeição do RECORRIDO ao artigo 490.º, n.º 5, do CSC e do afastamento ou interpretação correctiva do artigo 481.º, n.º 2, do CSC, improcede em toda a linha.
72. O artigo 490.º do CSC foi incluído pelo legislador no Título VI do CSC (relativo às Sociedades Coligadas), título este que integra os artigos 481.º a 508.º-F do CSC.
73. Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 481.º do CSC, o referido Título VI do CSC – onde se inclui o artigo 490.º do CSC – aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal.
74. O RECORRIDO tem a sua sede social em ..., Espanha, pelo que não se encontra coberto pelo artigo 490.º do CSC.
75. Actualmente não se afigura defensável a realização de uma interpretação correctiva ao disposto na aludida norma.
76. Em primeiro lugar, porque a isso se opõe frontalmente o elemento literal da norma.
77. O ponto de partida de qualquer intérprete do Direito deve ser a norma em crise.
78. Não se poderá simplesmente abandonar a letra da lei, aquando a sua interpretação, para assumir uma posição claramente contrária à literalidade reflectida na norma em questão.
79. A disposição que se encontra plasmada no artigo 481.º do CSC, expressamente limita a aplicabilidade do regime das sociedades coligadas às pessoas colectivas que tenham a sua sede em Portugal.
80. Não cabe ao intérprete-aplicador tecer juízos de bondade sobre as opções político-legislativas.
81. Em segundo lugar, também o elemento histórico da norma se opõe à interpretação correctiva ou ab-rogante sugerida pelo RECORRENTE.
82. O artigo 481.º do CSC foi introduzido no ordenamento jurídico português através do Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, tendo o referido diploma sofrido múltiplas desde então.
83. Não se afigura razoável assumir que, ao fim de mais de 50 oportunidades para rever o artigo 481.º do CSC – foram 50 as alterações ao CSC desde a sua aprovação pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro –, o legislador continua sem saber “expressar o seu pensamento em termos adequados” (cfr. n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil).
84. Em terceiro lugar, o próprio elemento sistémico da norma obsta igualmente à interpretação correctiva do artigo 481.º, n.º 2, do CSC.
85. O artigo 481.º, n.º 2, do CSC comporta várias excepções (previstas nas alíneas a) a d) daquele preceito) através das quais o regime das sociedades coligadas se aplica a entidades com sede no estrangeiro.
86. Não é razoável admitir que o legislador previu excepções à aplicação do regime do 481.º, n.º 2, do CSC (que, em princípio se aplicaria apenas a sociedades portuguesas), para depois a doutrina e jurisprudência virem fazer uma interpretação correctiva da norma, defendendo que todo Título VI do CSC se aplica a sociedades com sede fora do território português.
87. Em quarto lugar, a posição actualmente dominante na doutrina nacional é a de que as normas sobre relações de grupo não se aplicam a sociedades com sede fora de Portugal.
88. Em conclusão, uma vez que o RECORRIDO, enquanto sociedade dominante, tem a sua sede social fora do território nacional – em ..., Espanha – a situação em análise nos presentes autos extravasa o âmbito de aplicação espacial do artigo 490.º do CSC (definido pelo artigo 481.º do CSC).
89. Este entendimento, ao contrário do referido pelo RECORRENTE, não comporta qualquer violação do princípio da igualdade, consagrado no n.º 2 do artigo 13.º da CRP.
90. A esta conclusão não obsta o entendimento sufragado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 272/2021, de 5 de Maio de 2021, porquanto o mesmo trata de situações jurídicas emergentes de uma relação de trabalho.
91. A decisão proferida pelo Tribunal Constitucional tem por objecto as garantias fundamentais dos trabalhadores e a tutela da igualdade dos mesmos, pelo que o seu raciocínio não se afigura transponível para a alienação potestativa prevista no artigo 490.º do CSC.
92. A isto acresce o artigo 481.º, n.º 2, do CSC também não viola o artigo 81.º, alínea f), da CRP.
93. Os presentes autos não tratam de qualquer abuso da posição dominante, uma vez que este conceito se relaciona com o princípio da concorrência, i.e. é um conceito que se aplica a um empresa perante os seus concorrentes no mercado e não à distribuição interna do seu capital.
94. Também não se pode dizer que a não sujeição do artigo 481.º, n.º 2, do CSC a entidades estrangeiras prejudicaria o funcionamento eficiente do mercado, quando a situação contrária implicaria uma restrição ao princípio da liberdade de estabelecimento previsto no artigo 49.º do TFUE, que é um dos princípios fundamentais à constituição do mercado comum, conforme anteriormente demonstrado.
95. Por fim, se fosse de aplicar o regime previsto no Título VI do CSC a entidades com sede noutro Estado-Membro, nomeadamente o disposto no artigo 490.º do CSC sobre a aquisição e alienação potestativa, estar-se-ia inevitavelmente a obrigar estas sociedades a uma relação de grupo a que nunca esperariam ser sujeitas com base na letra da lei (cfr. 489.º, n.º 4, alínea a) do CSC).
96. O que, além do mais, implica que uma eventual aplicação pelo STJ do artigo 490.º do CSC ao presente caso, em desconsideração da letra da lei e do âmbito espacial da norma definido pelo artigo 481.º do CSC, sempre consubstanciaria uma violação injustificada do princípio da segurança jurídica (e, bem assim, do corolário relativo ao princípio da protecção da confiança), tutelado pelo artigo 2.º da CRP.
97. Os artigos 481.º, n.º 2, e 490.º, n.ºs 5 e 6, ambos do CSC, interpretados no sentido de que a sociedade dominante a que se refere o artigo 490.º, n.ºs 5 e 6 pode ter sede fora de Portugal, mesmo não se tratando de nenhuma das excepções a que aludem as quatro alíneas do artigo  481.º, n.º 2, é inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica e tutela da confiança, consagrado no artigo 2.º da CRP.
98. Alegação que se faz nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 72.º, n.º 1, alínea b), da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro).
99. Aceitar um entendimento contrário ao exposto implica sujeitar o RECORRIDO a uma onerosidade excessiva, inadmissível ou intolerável relativamente às expectativas legitimamente criadas pelo legislador, ao consagrar (e manter) a solução disposta nos artigos 481.º e 490.º do CSC.
100. O pedido do RECORRENTE relativo à aplicação ao RECORRIDO do regime previsto no artigo 490.º do CSC, através de uma interpretação correctiva do artigo 481.º, n.º 2 do CSC, deve ser julgado improcedente.
* *
101. O regime do artigo 490.º do CSC foi concebido para as situações supervenientes em que uma sociedade adquire pelo menos 90% de outra sociedade e tinha como intuito os accionistas minoritários que não desejavam entrar nessa situação.
102. O artigo 490.º do CSC não foi, assim, pensado para casos iniciais em que o domínio total ou tendente ao domínio total originários.
103. Conforme consta dos factos assentes no processo, o Recorrido adquiriu acções da sociedade Santander Totta, SGPS, S.A. através da realização de uma operação de cisão aprovada por Assembleia Geral a 15 de Outubro de 2004.
331. A aludida concentração das participações numa única sociedade gestora de participações sociais foi obtida através da cisão simples do Banco Totta & Açores, mediante destaque de participações financeiras para a constituição da Santander Totta, SGPS, S.A. (uma nova sociedade).
332. A sociedade Santander Totta, SGPS, S.A. é dominada, desde a sua constituição em 16 de Dezembro de 2004, pelo RECORRIDO.
333. O RECORRIDO encontra-se numa situação evidente de domínio total inicial aquando da constituição da sociedade Santander Totta, SGPS, S.A. (e não de domínio total superveniente).
334. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 490.º do CSC, “Uma sociedade que, por si ou conjuntamente com outras sociedades ou pessoas mencionadas no artigo 483.º, n.º 2, disponha de quotas ou acções correspondentes a, pelo menos, 90/prct. do capital de outra sociedade, deve comunicar o facto a esta nos 30 dias seguintes àquele em que for atingida a referida participação (sublinhado e realçado nosso).
335. Do artigo 490.º, n.º 1, do CSC decorre que a comunicação da situação de aquisição de pelo menos 90 % de uma sociedade pressupõe que há um momento em que a esta percentagem de participação seja alcançada, o que, por sua vez, pressupõe um momento anterior em que aquele limiar não foi atingido.
336. Em situações de domínio total inicial não ocorre este momento de “alcance” da participação de pelo menos 90%; ela sempre existiu desde o inicio da constituição da sociedade.
337. Não tem qualquer sentido obrigar a sociedade dominante que detém o domínio total da sociedade dominada desde a sua constituição ao dever de comunicação previsto no n.º 1 do artigo 490.º do CSC.
338. Os accionistas minoritários – protegidos pelo artigo 490.º do CSC – souberam desde o início, i.e., desde o momento da constituição da sociedade Santander Totta, SGPS, S.A., que o RECORRIDO era o accionista maioritário com uma percentagem superior a 90% do respectivo capital social.
104. Na eventualidade de os accionistas minoritários não estarem interessados em manter a sua posição no Banco Totta & Açores – que entretanto seria cindida para dar origem à constituição da sociedade Santander Totta, SGPS, S.A.–, poderiam ter beneficiado da oferta de aquisição que foi lançada pelo Grupo Santander, o que o RECORRENTE não fez.
105. No caso concreto, uma vez que estamos perante uma situação de domínio total inicial do RECORRIDO sobre a sociedade Santander Totta, SGPS, S.A. – e não de domínio total superveniente -, não se encontram reunidos os pressupostos necessários para que o artigo 490.º do CSC seja aplicável ao caso concreto.
* * *
106. Caso assim não se entenda, deve ser admitida a ampliação do objecto do recurso, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 636.º, n.º 1, do CPC, quanto à parte em que o RECORRIDO decaiu na Decisão Recorrida.
107. O RECORRIDO defendeu na sua Contestação que o RECORRENTE assistiu ao lançamento de três iniciativas destinadas a permitir a venda das participações sociais dos accionistas minoritários do Banco Totta & Açores.
108. O RECORRIDO defendeu igualmente que o artigo 490.º do CSC não lhe seria aplicável, uma vez que existem mecanismos legais de tutela dos interesses dos accionistas minoritários efectivamente aplicáveis ao caso concreto.
109. Tendo ainda referido que, muito embora não tenha sido aplicável o regime relativo à cisão de sociedades previsto no artigo 105.º do CSC (ex vi artigo 120.º do CSC) – uma vez que os estatutos do Banco Totta & Açores não consagravam o direito de exoneração dos sócios –, dever-se-á ter em conta que o Grupo Santander decidiu voluntariamente apresentar uma oferta de aquisição aos accionistas minoritários do Banco Totta & Açores afectados pela aludida cisão.
110. A Decisão Recorrida julgou improcedentes estes argumentos apresentados pelo RECORRIDO.
111. É precisamente quanto a esta parte da Decisão Recorrida que o RECORRIDO vem requerer a ampliação do objecto do recurso, para a eventualidade (sempre sem conceder) de o recurso do RECORRENTE ser acolhido e de os seus fundamentos serem considerados procedentes.
112. Uma vez que era detentor das acções do Banco Totta & Açores desde 1989, o RECORRENTE era accionista da referida entidade na altura em que a S... iniciou o procedimento tendente ao lançamento de oferta pública de aquisição das participações do Banco Totta & Açores, ao abrigo do artigo 187.º do CdVM.
113. O regime estalecido no artigo 187.º do CdVM, relativamente ao dever de lançamento de oferta pública de aquisição, afasta a aplicação do artigo 490.º do CSC ao caso concreto.
114. Este mecanismo visa tutelar os interesses e a posição dos accionistas minoritários no âmbito da sociedade visada pela oferta pública de aquisição.
115. No caso concreto, e na sequência da aquisição de 94,68% das acções representativas do capital social do Banco Totta & Açores (correspondentes a 95,55% dos direitos de voto), a S... deu cumprimento à obrigação de lançamento de uma Oferta Pública de Aquisição sobre as acções do Banco Totta & Açores.
116. Nesse sentido, em 9 de Junho de 2000, a sociedade S... divulgou o anúncio de lançamento de Oferta Pública de Aquisição às acções do Banco Totta & Açores.
117. Durante o prazo de 4 semanas (i.e. entre 13 de Junho e 10 de Julho de 2000), a totalidade dos accionistas do Banco Totta & Açores que detivesse participações sociais livres de ónus ou encargos puderam, querendo, exercer o seu direito de alienar as respectivas participações sociais.
118. O RECORRENTE optou por não exercer o direito de venda das acções à S... durante o período compreendido entre 13 de Junho e 10 de Julho de 2000.
119. Não é admissível que, tendo o RECORRENTE deixado esgotar tal prazo sem exercer o direito de alienação de que dispunha, venha agora – 18 anos volvidos – invocar tal direito, agora ao abrigo do regime previsto no artigo 490.º do CSC.
120. A tutela do RECORRENTE enquanto accionista minoritário desta instituição foi plenamente assegurada, no devido tempo, por via da aplicação do artigo 187.º do CdVM.
121. Acresce que a aplicação do artigo 490.º do CSC ao caso concreto sempre seria afastada pelo regime estabelecido nos artigos 27.º e 28.º do CdVM (vigente à data dos factos em apreço nos autos).
122. A assembleia geral do Banco Totta & Açores deliberou, em 28 de Maio de 2004, a perda da qualidade de sociedade aberta, tendo a mesma sido aprovada por 99,36363% do respectivo capital social.
123. Em situações em que existe uma deliberação aprovada em assembleia geral por maioria superior a 90% dos votos, o regime de perda de qualidade de sociedade aberta constante do CdVM tem associado um mecanismo de venda potestativa em benefício dos accionistas minoritários que não tenham votado favoravelmente tal proposta.
124. O Banco Totta & Açores, em execução da deliberação referida, deu entrada junto da CMVM de requerimento destinado à declaração de perda da qualidade de sociedade aberta e consequente exclusão das suas acções do mercado regulamentado da Euronext Lisboa.
125. Em consequência, em 30 de Junho de 2004, a CMVM deliberou a perda da qualidade de sociedade aberta do Banco Totta & Açores, não tendo apresentado uma qualquer objecção à contrapartida proposta para a aquisição das participações sociais dos accionistas minoritários.
126. Em conformidade, e durante o prazo de 3 meses (entre 2 de Julho e 2 de Outubro de 2004), todos e cada um dos accionistas minoritários do Banco Totta & Açores que não tivessem votado favoravelmente a proposta de perda de qualidade aberta – como seria o caso do RECORRENTE –, puderam, querendo, exercer o seu direito de alienação potestativa.
127. O RECORRENTE não exerceu esse direito.
128. O RECORRENTE conformou-se com a decisão da CMVM, não tendo reagido contra a respectiva deliberação, designadamente através da competente acção de impugnação de acto administrativo.
129. O RECORRENTE optou por não exercer o direito de venda das Acções à S... durante o período compreendido entre 2 de Julho e 2 de Outubro de 2004 (inclusive).
130. Não é admissível que, tendo o RECORRENTE deixado esgotar tal prazo sem exercer o direito de alienação potestativa que lhe assistia, pretenda ter uma segunda oportunidade de o fazer quase 18 anos depois, agora ao abrigo do regime do regime previsto no artigo 490.º do CSC.
131. Aceitar o entendimento do RECORRENTE consubstanciaria uma violação do princípio da igualdade, uma vez que implicaria tratar de maneira desigual um conjunto de accionistas minoritários que se encontravam nas mesmas circunstâncias.
132. O mecanismo especial anteriormente previsto no artigo 27.º do CdVM exclui e afasta a aplicação do mecanismo do artigo 490.º do CSC, na medida em que, em face da perda da qualidade de sociedade aberta, foi permitido aos accionistas minoritários alienar as suas participações sociais.
133. O mecanismo de tutela dos accionistas minoritários de que o RECORRENTE pretende lançar mão foi plenamente assegurado, no devido tempo, por via da aplicação dos artigos 27.º e 28.º doCdVM, caindo por terra os argumentos em prol da aplicação do artigo 490.º do CSC.
134. Também no período compreendido entre 2000 e 2004, a tutela do RECORRENTE enquanto accionista minoritário desta instituição foi plenamente assegurada, no devido tempo, por via da aplicação dos artigos 27.º e 28.º do CdVM.
135. O regime previsto no artigo 490.º do CSC não é aplicável ao caso concreto, uma vez que foi afastado pela aplicação do regime previsto dos artigos 27.º e 28.º do CdVM.
* * *
136. Por último, cumpre referir que, em todo o caso, os pressupostos de que depende a aplicação do artigo 490.º do CSC não se encontram preenchidos no caso concreto.
137. Do n.º 5 do artigo 490.º do CSC, resulta expressamente que a constituição do direito de alienação potestativa das participações sociais dos accionistas minoritários está dependente da não realização pela sociedade dominante de oferta permitida pelo n.º 2 do artigo 490.º do CSC.
138. No caso concreto, isto equivale a dizer que o alegado direito de alienação potestativa do RECORRENTE apenas teria nascido na sua esfera jurídica se o Banco Totta & Açores não tivesse apresentado uma proposta permitida pelo n.º 2 do artigo 490.º do CSC.
139. No caso,– e mesmo desconsiderando a oferta pública obrigatória lançada pela sociedade S... a 9 de Junho de 2000 –, o Banco Totta & Açores apresentou ofertas de aquisição aos seus accionistas minoritários.
140. Fê-lo, primeiro, com a oferta de aquisição apresentada aquando da perda de qualidade de sociedade aberta pelo Banco Totta & Açores.
141. E fê-lo também com a oferta de aquisição apresentada aquando da cisão do Banco Totta & Açores e, consequentemente, da criação da sociedade Santander Totta, SGPS.
142. No âmbito da perda da qualidade de sociedade aberta, o Banco Totta & Açores obrigou-se, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 27.º do CdVM, a indicar um accionista que se obrigasse a adquirir, no prazo de três meses após o deferimento pela CMVM, os valores
143. A accionista S... – participada a 100% pelo B... – obrigou-se a adquirir um máximo de 673.700 acções, pelo preço unitário de € 36,00 por acção, aos accionistas que não votaram favoravelmente a aludida deliberação.
144. Os accionistas interessados em alienar as respectivas participações sociais teriam apenas de transmitir as suas ordens de venda junto de qualquer balcão do Banco Totta & Açores ou de qualquer outro intermediário financeiro habilitado a receber ordens de venda sobre valores mobiliários.
145. O Banco Totta & Açores indicou a sociedade S... enquanto entidade quer iria assumir a obrigação de adquirir as participações sociais dos minoritários que não tivessem votado favoravelmente a deliberação de perda de qualidade de sociedade aberta.
146. Ainda que ao abrigo de uma norma diferente do artigo 490.º do CSC, os accionistas minoritários do Banco Totta & Açores beneficiaram de uma oferta de aquisição das suas participações passível de ser reconduzida à oferta prevista no n.º 2 do artigo 490.º do CSC.
147. A oferta efectuada pela S... ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 27.º do CdVM cumpre com os requisitos estabelecidos no artigo 490.º do CSC e podia e devia ser considerada para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 490.º do CSC.
148. Uma vez que os accionistas minoritários do Banco Totta & Açores beneficiaram de uma oferta de aquisição das suas participações sociais lançada pela S... ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 27.º do CdVM, o direito de alienação potestativa referido no artigo 490.º, n.º 5 do CSC nunca chegou a nascer na esfera jurídica do RECORRENTE.
149. Além disso, a perda da qualidade de sociedade aberta do Banco Totta & Açores ocorreu num quadro preparatório de uma reorganização do Grupo Santander, tendo em vista a possível fusão dos três bancos comerciais que o integravam, que ocorreu antes do final do ano de 2004.
150. A referida concentração das participações numa única sociedade gestora de participações sociais foi obtida através da cisão simples do Banco Totta & Açores, mediante destaque de participações financeiras maioritárias para constituição de uma nova sociedade: a Santander Totta, SGPS, S.A.
151. Foi no âmbito desta operação de cisão do Banco Totta & Açores, que o Grupo Santander lançou voluntariamente uma oferta de aquisição das participações sociais dos accionistas minoritários do Banco Totta & Açores.
152. Apesar de o contrato de sociedade não prever o direito de exoneração dos accionistas em caso de cisão societária, o Banco Totta & Açores implementou voluntariamente uma iniciativa com vista a permitir aos accionistas minoritários o acesso a uma alternativa à satisfação dos seus interesses.
153. O Banco Totta & Açores anunciou o lançamento de uma oferta de aquisição das participações sociais dos accionistas minoritários para, querendo, as venderem até ao termo do prazo previsto no n.º 2 do artigo 107.º do CSC.
154. Esta oferta foi efectuada pela mesma contrapartida prevista aquando da perda da qualidade de sociedade aberta, ou seja, por um valor até tendencialmente superior ao valor de mercado das acções do Banco Totta & Açores.
155. Com o registo da operação de cisão do Banco Totta & Açores iniciou-se o prazo de 30 dias para os accionistas interessados exercerem a sua opção de venda.
156. Ainda que ao abrigo de um regime diferente do artigo 490.º do CSC, foi lançada uma oferta de aquisição das participações sociais detidas pelos accionistas minoritários no âmbito da reestruturação ao abrigo da qual o RECORRIDO iria ficar com mais de 90% do capital social da sociedade Santander Totta, SGPS.
157. O RECORRENTE foi informado de que deste projecto resultaria uma nova sociedade e tinha pleno conhecimento de que se não exercesse a sua opção de venda, passaria a ser accionista da Santander Totta, SGPS, S.A.
158. Mesmo assim, o RECORRENTE decidiu não exercer esta opção.
159. Ao recusar esta oportunidade o RECORRENTE deixou precludir o seu direito a exigir do RECORRENTE a compra das suas acções.
160. A oferta de aquisição voluntariamente lançada pelo Grupo Santander aquando da operação de cisão do Banco Totta & Açores cumpre com os requisitos estabelecidos no artigo 490.º do CSC e podia e devia ser considerada para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 490.º do CSC.
161. Uma vez que os accionistas minoritários do Banco Totta & Açores beneficiaram de uma oferta de aquisição das suas participações sociais por ocasião da operação de cisão, o direito de alienação potestativa nunca chegou a nascer na esfera jurídica do RECORRENTE.
162. Por fim, conforme dado por assente pelo Tribunal a quo, a sociedade Santander Totta, SGPS, S.A., vem deliberando anualmente, em sede da realização da sua assembleia geral, o lançamento de um programa destinado à compra de acções próprias aos accionistas minoritários da sociedade, por um valor superior ao seu valor contabilístico.
163. O RECORRENTE não aproveitou nenhum destes ensejos para que as suas acções fossem adquiridas.
164. O que, mais uma vez, torna inadmissível que venha agora invocar o artigo 490.º, n.º 5, do CSC como se nunca tivesse tido oportunidade de as alienar».
O A. respondeu à matéria da ampliação do objecto do recurso.
                                                        *
II - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os factos que aqui se transcrevem:
«1. O autor é detentor 10 ações do tipo B do BANCO TOTTA & AÇORES, S.A. emitidas em 18 de julho de 1989.
2. Em 30 de outubro de 1989, as ações do BANCO TOTTA & AÇORES foram admitidas à negociação na Bolsa de Valores de ....

             3. Em 1995, o BANCO TOTTA & AÇORES foi integrado no Grupo Mundial Confiança, por via da aquisição de 50% do capital social por BB, através do Banco Pinto & Sotto Mayor e da Companhia de Seguros Mundial Confiança.    4. Em 1999 foi realizado um acordo entre BB, o Banco Santander Central Hispano e a Caixa Geral de Depósitos, do qual resultou que:

- A CGD chamaria a si o controlo do Grupo Mundial Confiança e, consequentemente, o Banco Pinto & Sotto Mayor; e

- O Crédito Predial Português e o BANCO TOTTA & AÇORES ficariam sob o controlo do B....

5. Em 2000, em virtude da realização de várias operações financeiras, a sociedade S... – controlada pelo B... – adquiriu à CGD 94,68% do capital social que esta detinha no BANCO TOTTA & AÇORES (e, indiretamente, 70,66% do capital social que esta detinha no Crédito Predial Português).

6. Na sequência da aludida aquisição de 94,68% das ações representativas do capital social do BANCO TOTTA & AÇORES (correspondentes a 95,55% dos direitos de voto), a S... iniciou, ao abrigo do disposto no artigo 187.º do Código dos Valores Mobiliários, o procedimento tendente ao lançamento de oferta pública de aquisição das participações do BANCO TOTTA & AÇORES.

7. Em 09 de junho de 2000 foi divulgado o anúncio de lançamento de oferta pública de aquisição às ações do BANCO TOTTA & AÇORES, sendo a contrapartida da oferta em numerário no valor de 28,20 €, por cada ação da sociedade visada.

8. O valor da contrapartida oferecida representava (i) uma valorização de cerca de 14% relativamente à cotação média verificada na Bolsa de Valores de ... e ... nos seis meses que antecederam a publicação do anúncio preliminar, e (ii) uma valorização de 33% no decurso do ano anterior à data de publicação do anúncio.

9. Na sequência da oferta pública de aquisição o B... aumentou a sua participação no BANCO TOTTA & AÇORES, direta ou indiretamente (através da sociedade S...), de 94,68% para 98,605%.

10. Em 28 de maio de 2004, a assembleia geral do BANCO TOTTA & AÇORES deliberou a perda da qualidade de sociedade aberta desta sociedade.

11. Em 30 de junho de 2004, a CMVM deliberou a perda da qualidade de sociedade aberta do BANCO TOTTA & AÇORES.

12. Na sequência dessa deliberação foi dado início ao procedimento previsto no art. 27.º no CdVM, tendo a acionista S... – participada a 100% pelo B... – ficado obrigada a adquirir um máximo de 673.700 ações, pelo preço unitário de € 36,00 por ação, aos acionistas que não votaram favoravelmente a aludida deliberação, entre 02 de julho e 02 de outubro de 2004.

13. Em 2004, o Grupo Santander sofreu uma profunda reestruturação e reorganização societária que visou atingir os seguintes objetivos:

- concentrar as participações maioritárias numa única sociedade gestora de participações sociais a ser constituída (i.e. a SANTANDER TOTTA, SGPS); e

- concentrar a banca comercial numa única entidade (i.e. o Banco Santander Totta, S.A.), através da fusão dos três bancos comerciais então existentes (i.e. o BANCO TOTTA & AÇORES, o Banco Santander Portugal, S.A. e o Crédito Predial Português).

14. No âmbito do referido plano de reestruturação, o BANCO TOTTA & AÇORES anunciou que iria ser lançada uma oferta de aquisição das participações sociais dos acionistas minoritários que, querendo, transmitissem as respetivas ordens de venda até ao termo do prazo de 30 dias previsto no n.º 2 do artigo 107.º do CSC, mediante as seguintes contrapartidas:

- € 36,00 por cada ação do BANCO TOTTA & AÇORES; e

- € 22,74 por cada ação do Banco Santander Portugal, S.A..

15. Em 20 de agosto de 2004, foi registado junto da Conservatória do Registo Comercial ... o projeto de cisão do BANCO TOTTA & AÇORES.

16. Em 15 de outubro de 2004, os acionistas do BANCO TOTTA & AÇORES reuniram em assembleia geral e deliberaram, inter alia, sobre os seguintes tópicos da ordem de trabalhos:

- deliberar sobre o projeto de cisão do BANCO TOTTA & AÇORES, aprovado pelo Conselho de Administração do BANCO TOTTA & AÇORES em 19 de Agosto de 2004; e

- deliberar, no âmbito do referido projeto de cisão, sobre a constituição de uma nova sociedade, sua denominação social, respetivo contrato de sociedade, bem como a designação dos órgãos sociais.

17. A ré detém, direta e indiretamente, uma participação superior a 99,85% do capital social da sociedade SANTANDER TOTTA, SGPS, S.A.

18. O autor não exerceu a opção de venda das ações ao abrigo da iniciativa anunciada pelo BANCO TOTTA & AÇORES, nos termos melhor detalhados supra, até ao dia 15 de Janeiro de 2005, em virtude do que passou a deter uma posição no capital social da SANTANDER TOTTA, SGPS, S.A., correspondente a 116.908 ações.

19. A sociedade SANTANDER TOTTA, SGPS vem deliberando anualmente, em sede da realização da sua assembleia geral, o lançamento de um programa destinado à compra de ações próprias aos acionistas minoritários da sociedade, por um valor superior ao seu valor contabilístico.

20. A ré é uma sociedade de direito espanhol, com sede em Espanha.

21. Em 10.11.2021, por intermédio do seu advogado, o aqui mandatário, o autor exigiu, por escrito, que a ré lhe fizesse uma oferta de aquisição pelos valores mobiliários representativos do capital social da sociedade Totta, mediante contrapartida em dinheiro ou ações das  sociedades dominantes nos termos previstos no artigo 490 (5) do CSC, nos termos constantes do documento n.º ... junto com a p.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

22. Em 03.12.2021, a ré respondeu a tal convite recusando a fazer qualquer oferta, por entender que não estavam verificados os pressupostos do artigo 490 (5) do CSC».

                                                           *

III – Em princípio, serão as conclusões da alegação do recorrente, no seu confronto com a decisão recorrida, que delimitarão o objecto da revista, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo; todavia, o nº 1 do art. 636 determina que, no caso de pluralidade de fundamentos da acção, ou da defesa, o Tribunal de recurso conhecerá do fundamento pelo qual a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo que a título subsidiário, na respectiva alegação.

Tendo em conta o teor das conclusões da alegação do recorrente/A., esclarecidas pelo conteúdo do corpo daquela peça processual, as questões que se colocam são as seguintes: em termos prévios, se deverá proceder-se ao reenvio prejudicial ao TJUE, pretendido pelo recorrente; de qualquer modo (mesmo que não se preceda àquele reenvio) se para efeitos da aplicação do nº 5 do art. 490 do CSC se impõe realizar uma interpretação correctiva do nº 2 do art. 481, no sentido de que basta que uma das sociedades (e não as duas) tenha sede em território nacional (no caso, bastando que a sociedade de que o A. é accionista livre tivesse sede em Portugal); bem como, se a opção seguida pelo Tribunal de 1ª instância é discriminadora entre grupos nacionais e grupos estrangeiros, violando o art. 18 do TFUE e os arts. 13 e 81-e) (quererá, antes, dizer-se “f” e não “e”) da Constituição da República Portuguesa.

Considerando a contra alegação da recorrida, e que esta requereu a ampliação do objecto do recurso, para o caso deste Tribunal acolher a pretensão do recorrente,  teremos, então, como questões subsequentes, os fundamentos pelos quais a R. decaiu (logo, os fundamentos apreciados pelo tribunal recorrido e que não obtiveram vencimento), ou seja, se está afastado o mecanismo previsto no art. 490 do CSC por se encontrar precludido o direito do A. (considerando que já fora dada aos accionistas a oportunidade de alienação das suas participações sociais quando da oferta pública de aquisição, levada a cabo pela S..., bem como, posteriormente, na sequência da aprovação pela assembleia geral da perda da qualidade de sociedade aberta do Banco Totta & Açores).

A apreciação em causa, sendo subsidiária, está condicionada pelo sentido do julgamento das questões colocadas pelo recorrente – só dela se conhecerá se, quanto àquelas outras, recurso proceder.

                                                           *

IV – 1 - Haverá que começar por ponderar o que concerne ao pedido de reenvio prejudicial formulado pelo recorrente.

Estabelece o nº 3-b) do art. 19 do Tratado da União Europeia que o Tribunal de Justiça da União Europeia decide, nos termos do disposto nos Tratados, a «título prejudicial, a pedido dos órgãos jurisdicionais nacionais, sobre a interpretação do direito da União ou sobre a validade dos atos adotados pelas instituições».

Já o art. 267 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia determina:

«O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a) Sobre a interpretação dos Tratados [[1]];

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível» (itálico nosso).

Atento o transcrito parágrafo 3º deste artigo, numa primeira abordagem, poderia dizer-se que, uma vez que as decisões do STJ não serão susceptíveis de recurso ordinário, este Tribunal estaria obrigado a submeter ao reenvio prejudicial as questões previstas nas alíneas a) e b) do 1º parágrafo do mesmo artigo.

Sucede, porém, que, pelo menos desde o Acórdão CILFIT (Acórdão de 6-10-1982), vem sendo entendido que aquele dever não é absoluto, admitindo o TJUE que não há obrigação de reenvio prejudicial se a questão em causa não for relevante e não tiver influência no resultado do litígio, se existir uma interpretação já anteriormente fornecida pelo TJUE (que já se pronunciara sobre questão similar, ainda que não absolutamente idêntica) ou se a norma é de tal modo evidente que não deixa lugar a qualquer dúvida razoável (total clareza da norma em causa) ([2]).

Refira-se que se ao Tribunal de Justiça cabe a responsabilidade última de interpretar o direito da União, é ao Tribunal nacional que incumbe aplicá-lo ao caso concreto, depois de ter concluído que a decisão da causa que lhe é submetida comporta a aplicação desse direito; mas, se o Tribunal nacional considerar que o litígio deve ser decidido somente na conformidade das disposições de direito interno, «não pode ser-lhe imposta a obrigação de solicitar a interpretação ou apreciação de uma norma que, no entender do juiz, é desprovida de interesse para o julgamento da causa» ([3]) – a questão da interpretação ou da apreciação da validade é, nesse caso, desprovida de pertinência.

No Acórdão CILFIT ([4]) mencionou-se, expressamente:

- Que o art. 267 «não constitui uma via de recurso aberta às partes num litigio pendente perante um juiz nacional. Por conseguinte, não é suficiente que uma parte sustente que o litígio envolve uma questão de interpretação de Direito Comunitário, para que a jurisdição em causa seja obrigada a considerar que existe uma questão» (no sentido daquele artigo);

- Que as jurisdições nacionais «não são obrigadas a reenviar uma questão de interpretação de Direito Comunitário perante si suscitada se a questão não for pertinente, ou seja, no caso em que a resposta a esta questão, qualquer que seja, não produz nenhuma influência na solução do litígio»;

- Que a autoridade da interpretação feita pelo Tribunal em virtude do art. 267 «pode privar a obrigação da sua causa e esvaziá-la de conteúdo», sendo assim, quando, nomeadamente, «a questão colocada é materialmente idêntica a uma questão que já tenha sido objecto de uma decisão a título prejudicial num caso análogo», podendo o mesmo efeito resultar de uma «orientação jurisprudencial do Tribunal que esclareça o ponto de direito em causa, qualquer que seja a natureza do procedimento que deu causa a esta jurisprudência, mesmo na ausência de uma estrita identidade das questões em litígio».

Certo é que, embora as partes possam requerer/sugerir o reenvio, é ao Juiz/Juízes do processo que cabe apreciar a necessidade de reenvio, bem como as questões a colocar – a «circunstância de as partes requererem ao julgador a submissão da questão ao Tribunal de Justiça não é, por si só, suficiente para desencadear o processo de reenvio: é necessário que a questão a colocar ao Tribunal seja reconhecida pelo próprio juiz nacional como necessária à decisão da causa» ([5]).

Cumprindo, também, referir que incumbirá ao Tribunal de Justiça interpretar o direito da União ou pronunciar-se sobre a sua validade, e não aplicar este direito à situação de facto que está em discussão no processo, o que caberá ao Juiz nacional - não competindo ao Tribunal de Justiça pronunciar-se sobre as divergências na interpretação ou aplicação das normas de direito nacional.

Consoante sumariado no acórdão do STJ de 13-9-2022 ([6]) «Não é da competência do TJUE pronunciar-se sobre a interpretação a dar a normas internas dos próprios Estados-Membros da EU».

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IV – 2 - No caso dos autos, a pretensão do recorrente é a de que seja apresentada ao Tribunal de Justiça a seguinte questão: «O artigo 18, do TFUE, opõe-se à interpretação de uma norma de direito nacional de um Estado Membro que seja discriminatória entre grupos nacionais e grupos estrangeiros, como é o caso da opção de afastar a aplicabilidade do artigo 490 (5), do CSC, relativamente ao exercício do direito de alienação potestativa relativamente a uma sociedade constituída e com sede em outros Estado Membro, por força da interpretação do artigo 481 (2), do CSC, quando o exercício de tal direito é permitido relativamente a uma sociedade constituída e com sede no mesmo Estado Membro?»

O art. 18 do TFUE dispõe: «No âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade».

A norma de direito nacional em causa é o nº 2 do art. 481 do CSC que determina que o disposto no título VI daquele Código, sob a epígrafe “Sociedades Coligadas” se aplica, apenas “a sociedades com sede em Portugal” – o que incluiria o que respeita à alienação potestativa prevista nos nº 5 e 6 do art. 495 do mesmo Código em cujo âmbito se situa aquilo que se encontra em discussão no presente processo.

Segundo o recorrente, para efeitos da aplicação do nº 5 do art. 490 do CSC, “impõe-se proceder à interpretação corretiva do artigo 481 (2), do CSC, no sentido que basta que uma das sociedades em causa tenha uma ligação espacial com o território nacional, como acontece com a sociedade dominada, não sendo exigido que a sociedade dominante tenha sede em Portugal”.

Requerendo o reenvio prejudicial “para que o TJUE interprete, a titulo prejudicial, o artigo 18, do TFUE, no sentido de questionar esse tribunal se tal norma de direito da União Europeia se opõe à interpretação de uma norma de direito nacional de um Estado Membro que seja discriminatória entre grupos nacionais e grupos estrangeiros, como é o caso do artigo 481 (2), do CSC para efeitos de aplicação do artigo 490 (5), do CSC”.

O recorrido sustenta, designadamente, que estaríamos, antes, perante uma situação de “discriminação inversa” que é compatível com o Direito da União Europeia, que de  acordo com a jurisprudência reiterada do TJUE cabe aos tribunais nacionais a competência para determinar se as situações de discriminação inversa são compatíveis com o princípio constitucional da igualdade, utilizando como parâmetro as respectivas constituições e não o TFUE e que esta situação já foi discutida pelo TJUE no âmbito do Acórdão “Impacto Azul”, em que o Tribunal foi chamado a pronunciar-se sobre se a aplicação do art. 481.º, n.º 2, do CSC em conjunto com outro artigo incluído no Título VI daquela diploma, o artigo 501.º, poderia constituir uma violação do artigo 49.º do TFUE (sendo este último artigo uma norma especial em relação ao artigo 18.º do TFUE, invocado pelo recorrente).

Comecemos pelo acórdão do Tribunal de Justiça designado como acórdão “Impacto Azul” ([7]).

Num processo, uma das partes, a sociedade Impacto Azul havia invocado que a diferença de tratamento conferida a uma sociedade estrangeira, atento o nº 2 do art. 481 do CSC, conduziria a uma violação do art. 49 do TFUE (respeitante à liberdade de estabelecimento).

A questão que, em reenvio prejudicial, veio a ser colocada ao Tribunal de Justiça pelo Tribunal português foi a seguinte: “A exclusão da aplicação do regime previsto no art. 501.º às empresas sedeadas noutro Estado-Membro, por força do regime previsto no art. 481.º, n.º 2, é contrária ao direito [da União], designadamente ao artigo 49.º do TFUE, de acordo com a interpretação que a tal normativo vem sendo dada pelo Tribunal de Justiça?”

No acórdão “Impacto Azul” o Tribunal de Justiça teve em consideração os arts. 481, 482, 491, 501, todos do CSC, declarando a final, que o «artigo 49.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que exclui a aplicação do princípio da responsabilidade solidária das sociedades‑mãe para com os credores das suas filiais a sociedades‑mãe com sede no território de outro Estado‑Membro».

Afirmando, nomeadamente: «35. Importa salientar que, tendo em conta a falta de harmonização, ao nível da União, das regras em matéria de grupos de sociedades, os Estados‑Membros continuam, em princípio, a ser competentes para determinar o direito aplicável à dívida de uma sociedade coligada. Assim, o direito português prevê a responsabilidade solidária das sociedades‑mãe para com os credores das suas filiais unicamente no que respeita às sociedades‑mãe com sede em Portugal. Ora, como salienta corretamente a Comissão, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, o artigo 49.° TFUE não se opõe a que um Estado‑Membro possa legitimamente melhorar a situação dos credores dos grupos presentes no seu território» (itálico nosso).

Bem como: «38. Por conseguinte, há que declarar que, no que respeita ao tratamento concedido às sociedades‑mãe com sede em Estados‑Membros diferentes da República Portuguesa, uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal não constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento na aceção do artigo 49.° TFUE» (igualmente itálico nosso).

Diz-nos Miguel Gorjão Henriques ([8]) que sendo beneficiários do direito de estabelecimento as pessoas singulares e as sociedades nacionais de um estado membro que se pretendam fixar noutro estado membro para exercerem a sua actividade «o tratado não se preocupa com todas as situações puramente internas, não podendo por isso excluir-se, com base unicamente no direito da União, a existência de situações de discriminação inversa».

Rui Pereira Dias ([9]) alude à «chamada discriminação de nacionais, ou às avessas, ou também inversa», dizendo ser o preço a pagar pela manutenção da prevalência do direito nacional nas situações puramente internas.

A discriminação inversa corresponderá ao tratamento menos favorável dado a um nacional de um Estado-Membro que está perante uma situação dita “puramente interna” e que, devido a tal, não poderá invocar o Direito da União Europeia nem beneficiar do padrão de jusfundamentalidade que dele decorre, ficando colocado numa posição desfavorável em relação aos nacionais de outros Estados-Membros que beneficiam daquela proteção no Estado-Membro de acolhimento. Tais situações não são impedidas pelo Direito da União Europeia, uma vez que consideradas puramente internas.

A propósito daquele acórdão “Impacto Azul”, refere Pedro de Gouveia e Melo ([10]) que no «seu estado actual o direito da União não se opõe (ou, mais precisamente, não é aplicável) à existência de situações de discriminação inversa, ou seja, de situações em que, por força da aplicação das regras de direito nacional, as pessoas (singulares e colectivas), produtos e serviços nacionais são objecto de um tratamento menos favorável do que aquele que resulta da aplicação do direito da União relativamente a pessoas, produtos e serviços, que estão nas mesmas circunstâncias, mas que são provenientes de outros Estados-Membros».

Prosseguindo: «Embora à primeira vista possa parecer surpreendente que, numa comunidade de direito como a União Europeia, os Estados-Membros permaneçam livres de discriminar os seus cidadãos e produtos nacionais, na verdade não é difícil compreender as razões que têm levado o Tribunal de Justiça a excluir a aplicação do direito da União a situações puramente internas.

Desde logo, a inversão de tal entendimento poderia pôr em causa a repartição de competências entre a União Europeia e os seus Estados Membros, estendendo o âmbito das liberdades fundamentais do Tratado a domínios (ainda) reservados aos direitos e políticas nacionais. Por outro lado porque, tendo em conta a formulação extremamente ampla do conceito de “restrição” às liberdades fundamentais que resulta da jurisprudência, praticamente todas as medidas nacionais que de alguma forma tivessem incidência sobre bens, serviços, pessoas, actividades económicas ou movimento de capitais seriam potencialmente abrangidas pela proibição das restrições. O que faria com que, para serem compatíveis com o direito da União, praticamente todas as medidas e políticas nacionais tivessem de se enquadrar numa das apertadas justificações previstas no Tratado (como a segurança pública, ordem pública e a saúde pública) ou numa das exigências imperiosas de interesse público reconhecidas pela jurisprudência, e tornaria o Tribunal de Justiça no “árbitro de toda a legislação nacional”, com consequências adversas tanto ao nível dos interesses nacionais legítimos que devem ser prosseguidos e defendidos pelo Estado, como para o funcionamento do próprio sistema jurídico da União».

Entretanto, em 22 de Outubro da 2021, a Nona Secção do Tribunal de Justiça, sobre pedido de decisão prejudicial que tinha por objeto a interpretação do artigo 18.º do TFUE, proferiu decisão ([11]) em que expendeu:

«18 . Segundo jurisprudência constante, o artigo 18.º TFUE só se destina a ser aplicado autonomamente em situações reguladas pelo direito da União para as quais os Tratados não prevejam regras específicas de não discriminação …

19. De acordo com o primeiro destes requisitos, a situação que dá origem à discriminação invocada deve estar abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União. De acordo com o segundo requisito, nenhuma regra específica prevista pelo Tratado e destinada a proibir a discriminação em razão da nacionalidade deve ser aplicável a tal situação. Assim, as medidas nacionais só podem ser analisadas à luz do artigo 18.º, primeiro parágrafo, TFUE caso se apliquem a situações não abrangidas por regras específicas de não discriminação previstas pelo Tratado FUE …

20.  A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que o princípio da não discriminação, consagrado no artigo 18.º TFUE, foi concretizado, no domínio do direito de estabelecimento, pelo artigo 49.º TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 5 de fevereiro de 2014, Hervis Sport‑ és Divatkereskedelmi, C‑385/12, EU:C:2014:47, n.º 25 e jurisprudência referida), pelo qual a situação no processo principal está abrangida (itálico nosso).

21. Assim, uma vez que o artigo 49.º TFUE contém uma regra específica que visa proibir qualquer discriminação em razão da nacionalidade no domínio da liberdade de estabelecimento, a legislação nacional em causa no processo principal não pode ser analisada à luz do artigo 18.º TFUE (itálico nosso).

22.  Importa recordar que a liberdade de estabelecimento, que o artigo 49.º TFUE reconhece aos nacionais dos Estados‑Membros e que compreende o acesso, por parte destes, às atividades não assalariadas e o seu exercício, bem como a constituição e a gestão de empresas, nas mesmas condições que as definidas na legislação do Estado‑Membro de estabelecimento para os seus próprios nacionais, inclui, ao abrigo do artigo 54.º TFUE, para as sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado‑Membro e que tenham a sua sede social, administração central ou estabelecimento principal na União, o direito de exercer a sua atividade no Estado‑Membro em causa através de uma filial, de uma sucursal ou de uma agência. Está abrangida pela liberdade de estabelecimento a situação em que uma sociedade com sede num Estado‑Membro adquire uma participação no capital de uma sociedade estabelecida noutro Estado‑Membro, que lhe permite exercer uma influência efetiva nas decisões dessa sociedade e determinar as respetivas atividades (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2016, AGET Iraklis, C‑201/15, EU:C:2016:972, n.ºs 45 e 46 e jurisprudência referida) (igualmente itálico nosso).

(…)

Declarando, com base nos fundamentos apresentados:

«O princípio da não discriminação, concretizado pelo artigo 49.º TFUE, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional segundo a qual uma sociedade com sede num Estado‑Membro diferente daquele em que está sediada a sociedade por ela dominada não pode ser considerada solidariamente responsável por dívidas desta última sociedade emergentes de um contrato de trabalho».

No caso dos autos estamos perante uma situação em que, por força da aplicação da regra de direito português inscrita do nº 2 do art. 481 do CSC, as normas do título VI (Sociedades Coligadas) do CSC, no que nos interessa as constantes dos nºs 5 e 6 do art. 490, referentes à alienação potestativa de acções, apenas são aplicáveis a sociedades com sede em Portugal; assim, uma vez que a sociedade «Banco Santander, SA» (que detém, direta e indiretamente, uma participação superior a 99,85% do capital social da «Santander Totta SGPS», S.A.) é uma sociedade de direito espanhol, com sede em Espanha, o A., na qualidade de accionista da sociedade «Santander Totta SGPS», S.A, com sede em Portugal, não goza do direito potestativo de alienação de que aproveitaria se ambas as sociedade tivessem sede em Portugal. Pela razão de ter sede no estrangeiro, a sociedade «Banco Santander, SA» é beneficiada, no caso concreto, não ficando sujeita às obrigações correspondentes àquelas a que estaria sujeita uma sociedade com sede em Portugal.

Havendo por base as considerações constantes do acórdão “Impacto Azul”, que a decisão de 22 de Outubro secunda, teremos que, face à falta de harmonização ao nível da União, das regras em matéria de grupos de sociedades, os Estados‑Membros continuam a ser competentes para determinar o direito aplicável no que a tal concerne - concretamente no que respeita ao divergente mas aparentemente mais favorável tratamento das sociedades que têm sede no estrangeiro, beneficiando a situação destas nos termos aludidos.

Relevante é, nos casos em questão (aqueles sobre os quais se pronunciou o Tribunal de Justiça e o dos autos) o cruzamento da delimitação espacial constante do nº 2 do art. 481 do CSC com a proibição de discriminação em razão da nacionalidade afirmada em termos genéricos no art. 18 do TFUE, com concretização no que concerne à discriminação em razão da nacionalidade no domínio da liberdade de estabelecimento no art. 49 do mesmo TFUE.

Neste contexto, considerando as posições assumidas pelo Tribunal de Justiça, dada a semelhança (ainda que não verdadeira identidade) das questões abordadas, nomeadamente no citado acórdão “Impacto Azul”, relacionadas com a delimitação espacial resultante do nº 2 do art. 481 do CSC no que respeita à regulamentação das sociedades coligadas, no Título VI do CSC, daquele acórdão (bem como do aludido despacho de 22-10-2021) resultando uma orientação do Tribunal que esclarece o seu entendimento sobre a questão colocada pelo recorrente nestes autos, entendemos não se justificar a formulação de um pedido de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, não havendo obrigação de reenvio prejudicial por parte deste STJ.

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IV – 3 - O Tribunal de 1ª instância considerou que da letra do nº 2 do art. 481 do CSC resulta inequívoco que as regras previstas no título VI daquele Código apenas se aplicam a relações entre empresas com sede em Portugal e que «considerando o teor do art. 481.º, nos seus vários números … não se mostra legítimo entender que o legislador, ao prever que o Título se aplica apenas a sociedades com sede em Portugal, tenha querido dizer coisa diversa no sentido de que possa ter aplicação o referido conjunto de normas quando apenas uma das sociedade tenha sede em Portugal, caso contrário não se justificaria o conjunto de exceções enunciadas no n.º 2». Concluindo «estamos em crer que o regime previsto no art. 490.º do C.S.C. não tem aplicação no caso dos autos força do disposto no art. 481.º do mesmo diploma, considerando que a sociedade detentora da maioria das participações do capital social da SANTANDER TOTTA SGPS, S.A. tem sede em Espanha», entendeu não assistir ao A. o direito invocado, pelo que julgou a acção improcedente.
O recorrente diverge, dizendo não concordar «com a interpretação de que o artigo  481 (2), do CSC, impeça operar o direito contido no artigo 490 (5), do CSC, quando a sociedade dominante tenha sede no estrangeiro», sustentando que «para efeitos da aplicação do artigo 490 (5), do CSC, impõe-se proceder à interpretação corretiva do artigo 481 (2), do CSC, no sentido que basta que uma das sociedades em causa tenha uma ligação espacial com o território nacional, como acontece com a sociedade dominada, não sendo exigido que a sociedade dominante tenha sede em Portugal».

Vejamos, então.

O art. 490 do CSC atribui à sociedade dominante um direito de aquisição (nº 2 daquele artigo) e, por outro lado, aos sócios minoritários da sociedade dependente um direito de alienação das suas participações sociais (nº 5 do mesmo artigo).

Tais direitos vêm sendo qualificados como direitos potestativos, respectivamente de aquisição e de alienação ([12]).

Assim, no que a este último concerne, determinam os nºs 5 e 6 do art. 490 do CSC:

 «5 - Se a sociedade dominante não fizer oportunamente a oferta permitida pelo n.º 2 deste artigo, cada sócio ou accionista livre pode, em qualquer altura, exigir por escrito que a sociedade dominante lhe faça, em prazo não inferior a 30 dias, oferta de aquisição das suas quotas ou acções, mediante contrapartida em dinheiro, quotas ou acções das sociedades dominantes.

6 - Na falta da oferta ou sendo esta considerada insatisfatória, o sócio livre pode requerer ao tribunal que declare as acções ou quotas como adquiridas pela sociedade dominante desde a proposição da acção, fixe o seu valor em dinheiro e condene a sociedade dominante a pagar-lho. A acção deve ser proposta nos 30 dias seguintes ao termo do prazo referido no número anterior ou à recepção da oferta, conforme for o caso».

Face ao disposto no art. 490 do CSC, o direito potestativo de alienação decorreria da verificação de três condições: a qualidade de sócio minoritário de sociedade na qual outra sociedade passe a dispor, directa ou indirectamente, de uma participação correspondente a, pelo menos, 90% do capital; a sociedade dominante não haver feito oportunamente oferta de aquisição das participações minoritárias; o sócio minoritário pedir por escrito à sociedade dominante que lhe faça, em certo prazo, proposta de aquisição da sua participação, mas a proposta não ser feita, ou ser considerada insatisfatória.

Sucede que o art. 490 se insere, como já acima foi referido, no «Título VI - Sociedades Coligadas», sendo que o nº 2 do art. 481, no «Capítulo I – Disposições Gerais» daquele título, dispõe:

«2 - O presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal, salvo quanto ao seguinte:

a) A proibição estabelecida no artigo 487.º aplica-se à aquisição de participações de sociedades com sede no estrangeiro que, segundo os critérios estabelecidos pela presente lei, sejam consideradas dominantes;

 b) Os deveres de publicação e declaração de participações por sociedades com sede em Portugal abrangem as participações delas em sociedades com sede no estrangeiro e destas naquelas;

c) A sociedade com sede no estrangeiro que, segundo os critérios estabelecidos pela presente lei, seja considerada dominante de uma sociedade com sede em Portugal é responsável para com esta sociedade e os seus sócios, nos termos do artigo 83.º e, se for caso disso, do artigo 84.º;

        d) A constituição de uma sociedade anónima, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 488.º, por sociedade cuja sede não se situe em Portugal» (itálico nosso).

Temos, assim, que, segundo a lei e em termos gerais, o disposto em matéria de sociedades coligadas somente será aplicável a sociedades com sede em Portugal – colocando-se, então, a questão de saber se o regime daquele art. 490, invocado pelo A. na presente acção, em que pretende exercer o direito potestativo de alienação, se aplica quando ambas as sociedades (a sociedade dominante e a sociedade dominada) tenham sede em Portugal ou, igualmente, quando uma delas aqui tenha sede (neste último caso, na interpretação restritiva a que alude o recorrente).

A questão do âmbito espacial decorrente do nº 2 do art. 481 quando circunscreve a aplicação das disposições contidas no Título VI «apenas a sociedades com sede em Portugal» tem sido bastamente discutida na doutrina, embora pouco versada na jurisprudência publicada.

Afirmava Ana Perestrelo de Oliveira ([13]) que a regra geral é a de que o regime do CSC sobre sociedades coligadas se aplica «quando as sociedades intervenientes tenham, todas elas, sede em Portugal, com consequente exclusão das relações de coligação internacionais» e que «o elemento adicional de conexão espacial previsto pelo 481.º/2 discrimina … infundadamente, o regime a aplicar às coligações societárias internas e internacionais, criando até regime mais favorável para as sociedades estrangeiras que actuam em Portugal e desprotegendo, do mesmo passo, as filiais portuguesas». Especificando adiante ([14]) que «nos termos do 481º/2, o regime do 490º apenas se aplica quando ambas as sociedades têm a sua sede em Portugal» (itálico nosso).

E Catarina Tavares Loureiro e Joana Torres Ereio ([15]), concluem: «Embora Portugal tenha sido um dos primeiros países a consagrar um regime específico para tratar o fenómeno dos grupos de sociedades (constante do Título VI do CSC), a verdade é que esse regime se confina, em regra, por força do artigo 481.º, n.º 2, do CSC, a determinadas relações intersocietárias (aí descritas) que se estabeleçam entre sociedades com sede em Portugal, deixando, assim, de fora uma realidade que assume uma importância crescente no contexto económico actual: os grupos multinacionais».

Mencionando que sendo o art. 3, n.º 1, do CSC, a regra de conflitos nuclear em matéria de sociedades comerciais, estipulando que «as sociedades têm como lei pessoal a lei do Estado onde se encontre situada a sede principal e efectiva da sua administração», com base nesta norma, as sociedades com sede em Portugal têm como lei pessoal a lei portuguesa e regem-se pelo CSC – assim, as relações de coligação em que interviessem seriam, à partida, também reguladas, em geral, pelo CSC e, em particular, pelo Título VI, independentemente da localização da sede das demais sociedades intervenientes. Todavia, o art. 481, n.º 2, afasta-se da regra geral consagrada no art. 3, n.º 1, dispondo que o regime previsto no Título VI do CSC (salvo os casos excepcionais aí indicados) apenas é aplicável a sociedades com sede  em Portugal.

Ana Perestrelo de Oliveira ([16]) explica que exigindo o nº 2 do art. 481 que as sociedades coligadas tenham a sua sede em Portugal, quando confrontado com o art. 3 do mesmo Código «o sentido da regra só pode ser o de exigir que todas as sociedades intervenientes tenham a sua sede em território nacional, ressalvadas determinadas situações aí contempladas» e que apesar de criticável, não restam dúvidas quanto ao âmbito diferenciado legalmente fixado para o título VI do CSC. Acrescentando que já se sustentou na doutrina que apenas a sociedade-filha teria de ter a sua sede em Portugal, mas que, «é claro que a lei – bem ou mal – pretendeu fixar um diferente âmbito de aplicação», só assim se explicando «a própria existência do art. 481º/2, tal como o conjunto de excepções que prevê».

Já Ana Filipa Morais Antunes ([17]) considera que, em face da formulação legal, «é possível questionar a aplicabilidade do regime constante da norma da norma do art. 490º a uma sociedade com sede no estrangeiro que seja titular de 90% do capital social de uma sociedade portuguesa – isto é com sede no território nacional…».

Ressalva que o elemento gramatical ou literal da interpretação parece apontar no sentido da exclusão das hipóteses equacionadas no âmbito da aplicação do título VI e, especificamente, do art. 490º do CSC – o legislador é expresso ao exigir, como pressuposto, que as sociedades tenham a sua sede em Portugal, parecendo daí decorrer que ambas as sociedades (dominante e dominada) têm de ter a sua sede em território nacional. Aduz, todavia, no que concerne ao elemento teleológico, que a matéria dos grupos de sociedades se caracteriza por uma especial preocupação de tutela das sociedades dependentes, dos sócios minoritários, credores sociais e trabalhadores, havendo, também, uma preocupação em garantir e proporcionar condições objectivas para a formação e desenvolvimento de grupos de sociedades, objectivos a que o legislador português foi sensível, consagrando «uma disciplina equilibrada que procura tutelar os interesses aparentemente antagónicos: de um lado, o interesses na valorização das participações sociais; de outro, o interesse de ordem pública, de valorização de parcerias económico-financeiras e da unificação jurídica dos diversos centros de poder, evitando a difusão de participações sociais». Concluindo que, em face da ratio legis, não se compreende a restrição do âmbito de aplicação – por um lado, os interesses dos sócios minoritários, trabalhadores e credores sociais não diferem consoante esteja em causa uma sociedade com sede em Portugal ou noutro país, não se compreendendo, igualmente, que pela simples circunstância de não estar sediada em Portugal  não se aplique a uma sociedade estrangeira que pretenda iniciar um processo de aquisição tendente ao domínio total em território nacional, o disposto no art. 490. Por fim, aponta para o elemento sistemático, referindo a terminologia utilizada na alínea b) do nº 2 do art. 481, concluindo que o legislador «pretende que, pelo menos, uma das sociedades tenha conexão espacial com o território nacional, não exigindo uma dupla conexão espacial».

Concluindo não ser necessário que ambas as sociedades envolvidas no processo tenham a sua sede em Portugal, mas que apenas uma delas (sociedade dominante ou sociedade dependente) tenha aqui a sua sede e que, assim, o requisito exigido pelo nº 2 do art. 481 «deve ser objecto de uma interpretação correctiva, em ordem a exigir um resultado interpretativo mais adequado à razão de ser do regime e das diversas normas que integram a regulamentação das sociedades coligadas».

Diferentemente, Maria Mariana de Melo Egídio Pereira ([18]) comenta que, quanto ao âmbito espacial de aplicação, ficam excluídas as relações de coligação quando uma, ou ambas as sociedades tenham sede efectiva no estrangeiro, bastando, de iure condendo, que a sociedade dominada tivesse sede em Portugal, solução que é seguida, por exemplo, no ordenamento jurídico alemão, evolução também recebida pelo artigo 21º, nºs 1 e 2 do CVM, evitando-se, assim, a discriminação entre sociedades com sede no estrangeiro, às quais não se aplicará este regime face a sociedades com sede em Portugal e, mesmo, entre sociedades portuguesas quando a sede da sociedade dominante não for em Portugal, isto quando o principal objectivo do regime é não apenas fomentar a criação de relações de grupo mas, também, proteger os sócios minoritários.

Porém, não concorda com a solução apresentada por Ana Filipa Antunes (acima descrita), no sentido de que o legislador pretende que somente uma das sociedades tenha conexão espacial com o território português, sustentando que «o actual artigo 481º ao dispor que “o presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal” excepcionando meramente as quatro alíneas constantes do nº 2, conjugado com o artigo 489º, nº 4, alínea a) não permite sustentar a abrangente interpretação exposta pela autora, a qual a mesma designa de correctiva».

Também Ana Rita Nascimento ([19]) defende que, de acordo com o Direito constituído, parece que a letra da lei não permite ir mais longe. «Desde logo porque a alínea a) do n.° 4 do artigo 489.° do CSC estipula que a relação de grupo termina se a sociedade dominante ou a sociedade dependente deixar de ter a sua sede em Portugal».

De igual modo, Liliana da Silva Sá ([20]) que refere: «A doutrina divide-se, defendendo uns, com base em uma interpretação correctiva do disposto no art. 481.º, n.º 2, do C.S.C., que é suficiente que apenas uma delas tenha a sua sede em Portugal. Propendemos para considerar que a letra da lei não consente tal interpretação. Na verdade, o legislador pretendeu que o instituto se aplicasse apenas quando ambas as sociedades tenham sede em território nacional, configurando-se as excepções previstas no n.º 2 do referido art. 481.º do C.S.C. como um reforço de tal entendimento… »

A nossa opinião aproxima-se destas últimas que enunciámos.

Muito embora o nº 1 do art. 9 do CC determine que a «interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada», o nº 2 exclui que seja «considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso», impondo o nº 3 que na fixação do «sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».

O elemento gramatical – o texto ou a letra da lei – constitui ponto de partida e, em simultâneo, limite de interpretação. A interpretação «procura como que uma mera explicitação do sentido normativo do preceito, a sua enunciação ou declaração, fruto da correspondência entre a letra e o espírito da norma». O legislador poderá ter expresso mais ou menos do que pretenderia, o que poderá originar a interpretação restritiva ou a interpretação extensiva; diferentemente, na interpretação corretiva, nem sempre considerada admissível, «o intérprete, assumindo o lapso de formulação ou de sentido da letra no confronto com o seu espírito, adequa excecionalmente a leitura interpretativa por forma a extrair um sentido útil à disposição interpretada» ([21]).

Também a nós nos parece que, face ao preciso teor do nº 2 do art. 481, tendo em conta as excepções ali concretamente delimitadas, bem como, ainda, o que consta do art. 489, nº 4, a) (“4. A relação de grupo termina: a) Se a sociedade dominante ou a sociedade dependente deixar de ter a sua sede em Portugal”) o sentido da norma em questão é o de que as sociedades dominante e dependente tenham sede em Portugal e não o de que apenas uma delas aqui tenha sede.

O elemento literal do texto, no conjunto daquelas normas, é determinante nesse sentido - é sustentado o que expressamente exprime o nº 2 do art. 481 ao referir “apenas a sociedades com sede em Portugal”, com o texto das alíneas que se seguem (indicando as excepções) e com o nº 4-a) do art. 489 que determina que a relação de grupo termina se a sociedade dominante ou a sociedade dependente deixar de ter a sua sede em Portugal.

Quanto ao elementos teleológico não nos parece que, em absoluto, aponte no sentido conducente à dita “interpretação correctiva”: a ratio legis de assim ser, até poderá compreender a restrição do âmbito de aplicação – teremos a preocupação de tutela das sociedades dependentes, dos sócios minoritários, dos credores sociais e trabalhadores, mas não esqueçamos que existirão, também, outros interesses, como o de  beneficiar  o investimento estrangeiro. De igual modo, não se perspectiva que o elemento sistemático aponte determinantemente no sentido reclamado de o legislador pretender que pelo menos uma das sociedades tenha conexão espacial com o território nacional, não exigindo essa conexão quanto a ambas as sociedades. Refira-se que a previsão do art. 21 do CVM (aludindo, no âmbito das “Relações de domínio e de grupo” a o “domicílio ou a sede se situar em Portugal ou no estrangeiro”), ocorre em ramo do direito, nas palavras de Rui Pereira Dias ([22]) «de forte componente regulatória, cuja efectivação pelas entidades nacionais competentes no mercado português aconselha a aplicação de um mesmo direito, independentemente do estatuto pessoal dos agentes – necessidade que não se faz sentir do mesmo modo no direito das sociedades constante do CSC».

Deste modo, não concordamos em que seja de proceder a uma interpretação correctiva ([23]) - o sentido da norma será o que resulta claramente do elemento literal/gramatical do texto.

                                                           *                                                        

IV – 4 – Engrácia Antunes considerava ser o sentido geral do direito das sociedades coligadas, essencialmente, um direito protector das sociedades-filhas (participada, dependente, subordinada ou totalmente dominada) bem assim, como dos respectivos sócios minoritários e credores sociais ([24]).

E que sendo esse o sentido fundamental das normas sobre sociedades coligadas «então mal se compreende que seja a própria lei a discriminar a respectiva aplicação consoante a nacionalidade revestida pela sociedade-mãe»  -  necessário e suficiente seria, apenas, «que a sociedade participada, dependente ou agrupada se encontrasse sediada em território português, devendo ser considerado indiferente a nacionalidade ou localização da sede dos sujeitos titulares da participação ou dos instrumentos constitutivos do domínio ou do grupo» ([25]).

Acrescentando que o acerto da autolimitação prevista no nº 2 do art. 481 parece, ainda,  «questionável do ponto de vista sistemático»,  sustenta que a autolimitação «acaba por introduzir uma ostensiva discriminação dos grupos societários nacionais em face dos grupos estrangeiros e uma não menos evidente desigualdade de tratamento das próprias sociedades-filhas portuguesas entre si», salientando o contraste entre a liberdade de entrada usufruída pelas sociedades estrangeiras e a inaplicabilidade do regime específico previsto nas normas dos arts. 481 e seguintes a essas sociedades ([26]).

Em termos idênticos se pronunciara já este autor ([27]) posição que continuou a manifestar, sustentando que a autolimitação em causa, sendo contrária à “ratio legis” geral dos arts. 488 e seguintes, «introduz uma discriminação entre grupos nacionais e estrangeiros de compatibilidade duvidosa, quer com os princípios constitucionais de igualdade de tratamento e da livre concorrência, quer com os princípios comunitários da não discriminação em razão da nacionalidade e da liberdade de estabelecimento», «favorece a fuga de investimento nacional e incentiva a deslocalização da sede das sociedades portuguesas para o estrangeiro» e «consagra  uma solução oposta àquela que foi prevista, quer em ordenamentos jurídicos congéneres para questão idêntica, quer no próprio ordenamento jurídico português para  questão paralela» ([28]).

Menezes Cordeiro ([29]) manifestara a opinião de que o direito dos grupos de sociedades carecia de reforma, sendo particularmente chocante o facto de segundo o art. 481 o direito dos grupos só se aplicar, em princípio, a sociedades com sede em Portugal, tendo as sociedades estrangeiras, mesmo actuando em Portugal, um sistema mais favorável, dando razão ao expendido por Engrácia Antunes (em «O âmbito de Aplicação do Sistema das Sociedades Coligadas»).

É, deste modo, colocada a dúvida sobre a compatibilidade das disposições a que nos reportamos – o nº 2 do art. 481 do CSC, limitando, designadamente, a aplicação do disposto nos nºs 5 e 6 do art. 490 do mesmo Código - com os princípios constitucionais de igualdade de tratamento e da livre concorrência, bem como com os princípios comunitários da não discriminação em razão da nacionalidade e da liberdade de estabelecimento.

Atentemos ao que respeita aos princípios constitucionais.

Das normas respeitantes à aplicação no espaço do Título VI do CSC resulta a inacessibilidade das sociedades com sede no estrangeiro a um “blocode vantagens e desvantagens ali previstos. Assim, designadamente, a sociedade com sede no estrangeiro, totalmente dominante de sociedade com sede em Portugal, não ficará sujeita à responsabilidade, directamente perante os credores desta, pelas obrigações da mesma, consoante o art. 501 do CSC;  a sociedade com sede no estrangeiro que detenha, directa ou indirectamente, participações correspondentes a 90% do capital de sociedade com sede em Portugal não fica sujeita ao exercício por parte dos sócios livres desta do direito potestativo de alienação de participações sociais, conforme os nºs 5 e 6 do art. 490 do CSC. Em contrapartida, nomeadamente: a sociedade com sede no estrangeiro, ainda que totalmente dominante da sociedade com sede em Portugal, não pode dar a esta instruções vinculantes, consoante o art. 503 (sem prejuízo de exercer o seu poder de fato); as sociedades com sede no estrangeiro ainda que detenham directa ou indirectamente participações correspondentes a 90% do capital social da sociedade com sede em Portugal, não gozam do direito potestativo de aquisição nos termos do art. 490.

Segundo Rui Pereira Dias ([30]), se a enumeração das vantagens e desvantagens (a que, aliás, procede) aparenta um equilíbrio, a análise do conteúdo «torna o balanço vantajoso para as sociedades-mãe com sede no estrangeiro, assim se justificando falar de um “tratamento de favor” destas sociedades».

Assim, à interrogação formulada sobre se a exclusão do âmbito de aplicação do título VI do CSC de um grande e importante conjunto de relações internacionais entre sociedades, comporta uma violação de regras ou princípios vigentes no nosso ordenamento jurídico de assento constitucional, afasta, desde logo, que a autolimitação espacial em apreço contenda com a “equilibrada concorrência empresarial” consignada no art. 81, nº 1-f) da Constituição – aquela será um fim prosseguido não tanto pela legislação societária mas primordialmente pelo direito da concorrência português, sendo que no direito da concorrência português não é encontrada qualquer autolimitação espacial que «exclua a sua aplicação quanto a fenómenos ocorridos em território português – bem pelo contrário…». Concluindo que «o direito dos grupos, enquanto direito das sociedades, isto é, um “direito organizatório” de estruturas, e não de actividades, não será o complexo normativo mais sensível à matéria em questão, dificilmente se concebendo a inconstitucionalidade da autolimitação espacial em apreço por referência a esta específica norma constitucional» ([31]).

Já no que respeita ao art. 13º da CRP  e ao princípio da igualdade, depois de aludir à observância de igualdade com referência à proibição do arbítrio, sintetiza que existirá uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num fundamento sério, não tiver um sentido legítimo e estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável. 

Na sequência, considera que a regulamentação jurídica em apreço estará imbuída de um espírito de favorecimento do investimento estrangeiro em Portugal (na perspectiva de investimento estrangeiro como sendo normalmente realizado por sociedades com sede no estrangeiro e de investimento nacional como sendo normalmente realizado por sociedades com sede em Portugal) e que a orientação subjacente ao proémio do art. 481, nº 2, na medida em que seja conferido um “tratamento de favor” às sociedades com sede no estrangeiro, tem fundamento material bastante na ideia do favorecimento do investimento estrangeiro, sendo confirmada pelos dados legislativos e convencionais ulteriores e não é, por isso, susceptível de um juízo de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade ([32]) .

Aduz, também, que à data da aprovação do CSC, no espaço da União Europeia, apenas a Alemanha havia precisado um direito legal das sociedades coligadas e que, apesar da evolução verificada em certos ordenamentos, a maior parte dos sistemas jurídicos não consagra regras específicas nesta matéria e que num país que pretendia atrair capital estrangeiro não seria aconselhável a introdução de regras especialmente penalizadoras das entidades investidoras por intermédio de filiais portuguesas.

Sintetizando ([33]) que a «opção legislativa pela autolimitação espacial não é irrazoável, ao ponto de fundar um juízo de inconstitucionalidade. Tenha-se maior ou menor simpatia politico-legislativa pela escolha, ela sempre pode estribar-se numa vontade de favorecer o investimento estrangeiro (esses investidores não veem assim os seus recursos expostos à pesadíssima responsabilidade que recai sobre uma sociedade totalmente dominante, nomeadamente pelas dívidas e pelas perdas da dominada – v. os arts. 501º e 502º); na ausência de consagração legislativa de semelhantes regras (de direito dos grupos) em grande parte dos sistemas jurídicos mais próximos do nosso e connosco “concorrentes” na captação desses investimento; ou ainda nas eventuais dificuldades resultantes da determinação do âmbito pessoal de aplicação do regime (que tipos societários estrangeiros, sobretudo de leis extraeuropeias, seriam subsumíveis ao regime português?). Sem que, porém, se omita uma “válvula de escape” que garante um determinado nível de responsabilização da dominante … cfr. o art. 481º, 2,c)».

Baseando-nos no teor destas apreciações - ainda que não no desenvolvimento e conclusão a final retirada pelo seu autor ([34]) - assumimos o entendimento de que as disposições do CSC em análise – concretamente o disposto nos nºs 5 e 6 do art. 490, na delimitação decorrente do nº 2 do art. 481 - não interferem na esfera do princípio constitucional da igualdade enunciado no art. 13 da Constituição.

É certo que o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 272/2021, datado de 5-5-2021 (processo n.º 1161/2019) decidiu «declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da interpretação conjugada das normas contidas no artigo 334.º do Código do Trabalho e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária da sociedade com sede fora de território nacional, em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade portuguesa, pelos créditos emergentes da relação de trabalho subordinado estabelecida com esta, ou da sua rutura, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição».

Consoante foi aludido na respectiva fundamentação a «interpretação sindicada situa-se numa zona de confluência entre o regime jurídico aplicável à relação emergente de contrato de trabalho, decorrente do CT, e o chamado direito das sociedades coligadas», a «interpretação normativa fiscalizada assenta na premissa segundo a qual, ao remeter para os «termos previstos nos artigos 481.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais», o segmento final do artigo 334.º do CT converte a norma que estabelece a responsabilidade solidária da sociedade dominante pelos créditos laborais de que seja devedora a sociedade dominada numa norma espacialmente autolimitada» e «limita a aplicação do regime-regra que vigora em matéria de garantias de créditos do trabalhador pelo incumprimento do contrato de trabalho». Sendo a questão «a de saber se a diferenciação … introduzida no estatuto jurídico dos trabalhadores de sociedades dominadas, dependentes ou agrupadas dispõe de fundamentação material suficiente ou, pelo contrário, deverá ter-se por arbitrária», considerou-se que face ao «tratamento desigual para duas categorias de sujeitos dotados de igual dignidade - os trabalhadores de sociedades portugueses em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade estrangeira  e os trabalhadores de sociedades portugueses em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade portuguesa —, a norma sindicada estabelece uma distinção destituída de fundamento material razoável, seja quanto à contraposição que diretamente estabelece, seja quanto à medida ou extensão em que esta surge concretizada». Concluindo-se que «a medida da diferença de tratamento a que nestes termos são sujeitos os trabalhadores das sociedades subordinadas portuguesas não mantém com o valor subjacente ao fim que para ela se invoca a “relação de equitativa adequação” exigida pelo princípio da igualdade (Acórdão n.º 330/1993). Para além de não assumir um relevo constitucional autónomo, o interesse na captação de capitais estrangeiros, embora legítimo, não dispõe de peso suficiente para justificar que a trabalhadores em igual posição e com igual dignidade social sejam atribuídas diferentes garantias salariais. Conclusão tanto mais evidente quanto certo é que, na concretização e conformação destas garantias, o legislador não se move num «terreno constitucionalmente neutro, mas antes num domínio informado pela «relevância constitucional da retribuição» e pela “preocupação da Constituição em proteger a autonomia dos menos autónomos na relação de trabalho”».

É óbvio que nos movemos em diferentes campos. Enquanto no caso dos autos se discute o direito de alienação potestativa das acções do autor, naquele outro, analisado pelo Tribunal Constitucional, estavam em causa créditos laborais a que assiste um outro nível de garantias – como referido no texto do acórdão  não se trata de um terreno constitucionalmente neutro, mas antes de um domínio informado pela “relevância constitucional da retribuição” e pela “preocupação da Constituição em proteger a autonomia dos menos autónomos na relação de trabalho”.

Refiram-se, mesmo assim, as várias declarações de voto apresentadas, numa das quais, sinteticamente, foi consignado entender-se que «existem motivos racionais, razoáveis e constitucionalmente legítimos para a diferenciação operada pelo legislador» - o que se coaduna com o que acima expendemos.

                                                           *

IV – 5 – O que respeita ao confronto das disposições do nº 2 do art. 481 em conjugação com o art. 490 do CSC, com o disposto no art. 18 do TFUE foi já aflorado supra, em IV – 2).

Como vimos, o art. 18 do TFUE dispõe: «No âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade». Como, igualmente, verificámos, em 22 de Outubro da 2021, a Nona Secção do Tribunal de Justiça, sobre pedido de decisão prejudicial que tinha por objeto a interpretação do artigo 18.º do TFUE, proferiu decisão em que referiu, que segundo jurisprudência constante, o artigo 18.º TFUE só se destina a ser aplicado autonomamente em situações reguladas pelo direito da União para as quais os Tratados não prevejam regras específicas de não discriminação, que as medidas nacionais só podem ser analisadas à luz do artigo 18.º caso se apliquem a situações não abrangidas por regras específicas de não discriminação previstas pelo Tratado FUE  e que o princípio da não discriminação, consagrado no artigo 18.º TFUE, foi concretizado, no domínio do direito de estabelecimento, pelo artigo 49.º TFUE, contendo uma regra específica que visa proibir qualquer discriminação em razão da nacionalidade no domínio da liberdade de estabelecimento.

O art. 49 do TFUE determina:

«No âmbito das disposições seguintes, são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-Membro no território de outro Estado-Membro. Esta proibição abrangerá igualmente as restrições à constituição de agências, sucursais ou filiais pelos nacionais de um Estado-Membro estabelecidos no território de outro Estado-Membro.

A liberdade de estabelecimento compreende tanto o acesso às atividades não assalariadas e o seu exercício, como a constituição e a gestão de empresas e designadamente de sociedades, na aceção do segundo parágrafo do artigo 54.º, nas condições definidas na legislação do país de estabelecimento».

Ora, como também vimos, no acórdão do Tribunal de Justiça designado como acórdão “Impacto Azul” em que a sociedade Impacto Azul havia invocado que a diferença de tratamento conferida a uma sociedade estrangeira, atento o nº 2 do art. 481 do CSC, conduziria a uma violação do art. 49 do TFUE, o Tribunal de Justiça – que teve em consideração os arts. 481, 482, 491, 501, todos do CSC - declarou a final, que o «artigo 49.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que exclui a aplicação do princípio da responsabilidade solidária das sociedades‑mãe para com os credores das suas filiais a sociedades‑mãe com sede no território de outro Estado‑Membro».

Afirmando, nomeadamente, haver que declarar que «no que respeita ao tratamento concedido às sociedades‑mãe com sede em Estados‑Membros diferentes da República Portuguesa, uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal não constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento na aceção do artigo 49.° TFUE».

Rui Pereira Dias ([35]) depois de recordar que a autolimitação espacial operada pelo nº 2 do art. 481 pode ser globalmente considerada como um “tratamento de favor”, estando-se perante um regime que trata mais favoravelmente as sociedades com sede no estrangeiro, reconhece que, aparentemente, o direito comunitário não apresentará remédios para evitar o tratamento desfavorável dos próprios nacionais. Todavia, tomando em conta todo o conjunto das normas definidoras do regime dos grupos de sociedades em que uma delas tem sede no estrangeiro acaba por chegar a diferente solução, comentando acerca do acórdão “Impacto Azul” ([36]): «…o TJUE veio pronunciar-se sobre a pretensa compatibilidade com o direito da União Europeia da autolimitação espacial da regra da responsabilidade solidária pelas dívidas (art. 501), desconsiderando a necessária congruência de todo o conjunto de preceitos reguladores das relações de grupo, que não devia ter sido esquecida». Aliás, veio a renovar a crítica àquele acórdão em «A responsabilidade das sociedades-mãe estrangeiras no regime dos grupos: os cinzentos do acórdão Impacto Azul» ([37]), ressalvando, embora, que nos termos em que o problema foi colocada ao Tribunal de Justiça a decisão teria que ser desfavorável.

Pesem embora as considerações aduzidas por aquele autor (que passam, designadamente, pela congruência ou integridade do regime da relação de grupo no seu conjunto, com vantagens e desvantagens), a verdade é que, em termos globais, as sociedades com sede no estrangeiro, aparentam ser “beneficiadas” - embora não esquecendo que o articulado do Título VI comporta “vantagens” e “desvantagens” para as sociedades com sede no estrangeiro e em Portugal.

  Por outro lado, a questão que o recorrente coloca é de se o disposto no nº 2 do art. 481 do CSC, no âmbito da pretendida alienação potestativa, não infringe a determinação de não discriminação constante do art. 18 do TFUE (concretizada, como vimos, no que respeita à liberdade de estabelecimento no art. 49 do TFUE) ([38]).

Ora, não nos parece que assim seja.

Consoante aludido no acórdão “Impacto Azul, face à falta de harmonização ao nível da União, das regras em matéria de grupos de sociedades, os Estados‑Membros continuam a ser competentes para determinar o direito aplicável.

No caso, afigura-se-nos que o disposto nos arts. 18 e 49 do TFUE não se opõe a que um Estado‑Membro (Portugal) não estabeleça relativamente a sociedades dominantes com sede no estrangeiro a sujeição ao direito potestativo de alienação que impenderia sobre sociedade dominante com sede em Portugal - melhorando, comparativamente, a situação daquelas sociedades com sede no estrangeiro. A inaplicabilidade do regime previsto nos nºs 5 e 6 do art. 490 do CSC, por força da limitação espacial decorrente do nº 2 do art. 481 do mesmo Código não é susceptível de tornar menos atractivo o exercício, pelas sociedades‑mãe com sede noutro Estado‑Membro, da liberdade de estabelecimento garantida pelo TFUE, antes pelo contrário (saliente-se que não se discute aqui o direito potestativo de aquisição igualmente previsto naquele art. 490, a “outra metade” desta peça integrante de um todo que é o título VI do CSC).

Repetimos a citação de Pedro de Gouveia e Melo que acima transcrevemos, a propósito daquele acórdão “Impacto Azul”: no «seu estado actual o direito da União não se opõe (ou, mais precisamente, não é aplicável) à existência de situações de discriminação inversa, ou seja, de situações em que, por força da aplicação das regras de direito nacional, as pessoas (singulares e colectivas), produtos e serviços nacionais são objecto de um tratamento menos favorável do que aquele que resulta da aplicação do direito da União relativamente a pessoas, produtos e serviços, que estão nas mesmas circunstâncias, mas que são provenientes de outros Estados-Membros».

Pelo que, também nesta perspectiva, improcedem as conclusões do apelante.

Logo, não haverá que conhecer da subsidiária ampliação do objecto do recurso (para o caso deste Tribunal acolher a pretensão do recorrente).

                                                           *

V - Face ao exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar a revista, confirmando a sentença recorrida.

 Custas pelo recorrente.

                                                           *

Lisboa, 28 de Junho de 2023


Maria José Mouro (Relatora=

Ricardo Costa

Ana Resende


SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora).

_______________________________________________________


[1]              A expressão “Tratados” abarca, designadamente, o Tratado da União Europeia, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o Tratado de Roma, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e os Protocolos anexos aos Tratados.
[2]              Ver, a propósito desta posição do TJUE, João Mota de Campos, João Luís Mota de Campos e António Pinto Pereira, em «Manual de Direito Europeu», Coimbra Editora, 7ª edição, págs.. 432-433, Fausto de Quadros e Ana Maria Guerra Martins, «Contencioso da União Europeia», Almedina, 2ª edição, pág.. 91 e seguintes, Francisco Pereira Coutinho, «Os Tribunais Nacionais na Ordem Jurídica da União Europeia – O Caso Português», Coimbra Editora, 2013, págs.. 376 e seguintes, Inês Quadros, em «Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia», coordenação de Sofia Oliveira Pais, Almedina, 3ª edição, págs.. 219 e seguintes. Ver, ainda, o acórdão deste STJ de 26-11-2020, acessível em www.dgsi.pt, proc. nº 30060/15.3T8LSB.L3.S1,  e os Acórdãos do TJUE ali citados a propósito, bem como os acórdãos do STJ de 13-9-2022, proc. 13647/18.0T8LSB.L1.S1 e de 8-2-2022, proc. 389/17.2T8VNG.P1.S1, igualmente acessíveis em www.dgsi.pt.
[3]              João Mota de Campos, João Luís Mota de Campos e António Pinto Pereira, obra citada, pág.. 432.
[4]              O texto integral daquele acórdão está disponível na Internet (Euro-Lex, Access to European Union Law), ainda que não em português.
[5]              Referidos «Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia», pág. 226.
[6]              Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt proc. 13647/18.0T8LSB.L1.S1.
[7]              Acórdão de 20 de Junho de 2013, acessível na internet em “InfoCuria Jurisprudência”.
[8]              Em «Direito da União», Almedina, 7ª edição, pág.. 569.
[9]              Em «Responsabilidade por Exercício de Influência sobre a Administração de Sociedades Anónimas», Almedina, 2007, pág. 287.
[10]            Em «Discriminação inversa? O acórdão Impacto Azul e a exclusão da responsabilidade solidária das sociedades-mãe de outros Estados Membros pelas dívidas das suas filiais nacionais», em «Anuário de Direito Internacional 2013, págs..  342 e seguintes, acessível na internet.
[11]            Despacho do Tribunal de Justiça (Nona Secção)  de 22 de Outubro de 2021, processo C‑691/20, acessível na internet em Direito da União - EUR-Lex.
[12]            Ver, a propósito, Coutinho de Abreu e Soveral Martins, em anotação ao art. 490 do «Código das Sociedades Comerciais em Comentário», vol. VII, Almedina, 2ª edição, págs. 144 e seguintes, bem como Ana Perestrelo de Oliveira, em anotação ao mesmo art. 490 no «Código das Sociedades Comerciais Anotado», coordenação de Menezes Cordeiro, Almedina, 2ª edição, págs. 1253 e seguintes.
[13]            No já mencionado «Código das Sociedades Comerciais Anotado», coordenação de Menezes Cordeiro, pág. 1211.
[14]            Pág. 1255.
[15]            Em «A relação de domínio ou de grupo como pressuposto de facto para a aplicação das normas do Código das Sociedades Comerciais – o âmbito espacial em particular», Actualidad Jurídica Uría Menéndez / 30-2011, acessível na internet, págs. 46-61, na pág.. 61.
[16]            Agora, em «Manual de Grupos de Sociedades», Almedina, 2016, págs. 58-59..
[17]            Em «O instituto da aquisição tendente ao domínio total (artigo 490º do CSC): um exemplo de uma “expropriação legal” dos direitos dos minoritários?», em «Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais», vol. II, Coimbra Editora, 2007, págs. 215-218.
[18]            Em «A aquisição tendente ao domínio total. Breves reflexões sobre o artigo 490º do Código das Sociedades Comerciais», «O Direito», ano 140º (2008), IV, págs. 933-934.
[19]            Em «Direitos dos sócios na aquisição tendente ao domínio total: pressupostos e concretização», Revista de Direito das Sociedades, ano 2011, nº 4, pág. 1002.
[20]            Em «A Contrapartida Patrimonial na Aquisição Tendente ao Domínio Total», «Julgar», nº 9, pág. 161.
[21]            Ver Tatiana Guerra de Almeida, «Comentário ao Código Civil – Parte Geral», coordenação de Carvalho Fernandes e Brandão Proença, Universidade Católica Portuguesa, 2014, págs. 49 e 50.
[22]            Em «Responsabilidade por Exercício de Influência sobre a Administração de Sociedades Anónimas», Almedina, 2007, pág.  279.
[23]            Divergimos, deste modo, do entendimento assumido no douto acórdão da Relação de Lisboa de 11-5-2017, único acórdão publicado que lográmos localizar sobre questão correspondente à destes autos, ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt proc. 254/09.7TBVPV.L1-2, respeitando, embora, a válida argumentação ali aduzida. O sumário desse acórdão é o seguinte: «Quando se tenha em vista a aplicação do disposto no art 490º do CSC, impõe-se proceder à interpretação correctiva do nº 2 do art 481º CSCom, de modo a concluir-se que basta que uma das sociedades em causa tenha conexão espacial com o território nacional, não sendo exigido que a sociedade dominante tenha sede em Portugal».
[24]            Em «O âmbito de Aplicação do Sistema das Sociedades Coligadas», «Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço», vol. II, Almedina, 2002, pág.. 97.
[25]            Págs. 107-108.
[26]            Págs. 109-111.
[27]            Ver, designadamente, «Os Grupos de Sociedades», Almedina, 1993, págs. 243 e seguintes.
[28]            Em “Os grupos por domínio total” – «Colóquios STJ – Comércio, Sociedades e Insolvências», págs. 21-22, Abril 2020, acessível na internet.
[29]            Em «Direito Europeu das Sociedades», Almedina, 2005, pág. 785 e nota 1053.
[30]            «Responsabilidade por Exercício de Influência sobre a Administração de Sociedades Anónimas», Almedina, 2007, pág. 269.
[31]            Citado «Responsabilidade por Exercício de Influência sobre a Administração de Sociedades Anónimas», pág. 271.
[32]            «Responsabilidade por Exercício de Influência sobre a Administração de Sociedades Anónimas», págs. 278-279.
[33]            Na anotação ao art. 481 do citado «Código das Sociedades Comerciais em Comentário».
[34]            Rui Pereira Dias entende que a autolimitação espacial não se aplica às relações intersocietárias intraeuropeias, sociedades beneficiárias da liberdade de estabelecimento, consoante os arts. 49 e 54 do TFUE. Ver, assim, a anotação ao art. 481 do «Código das Sociedades Comerciais em Comentário», págs. 37-38,  o comentário «A responsabilidade das sociedades-mãe estrangeiras no regime dos grupos, os cinzentos do acórdão Impacto Azul», em «III Congresso DSR», Almedina, 2014, págs. 411 e seguintes, «Responsabilidade por Exercício de Influência sobre a Administração de Sociedades Anónimas», págs. 287 e seguintes.
[35]            Citado «Responsabilidade por Exercício de Influência sobre a Administração de Sociedades Anónimas», pág. 287.
[36]            Anotação ao art. 481 do «Código das Sociedades Comerciais em Comentário».
[37]            Em «III Congresso Direito das Sociedades em Revista», Almedina, 2014, págs. 411-424.
[38]            Aliás, a questão que o A. sugeriu que se colocasse ao TJUE foi a de se o artigo 18 do TFUE, se opunha à interpretação de uma norma de direito nacional de um Estado Membro que seja «discriminatória entre grupos nacionais e grupos estrangeiros, como é o caso da opção de afastar a aplicabilidade do artigo 490 (5), do CSC, relativamente ao exercício do direito de alienação potestativa relativamente a uma sociedade constituída e com sede em outro Estado Membro, por força da interpretação do artigo 481 (2), do CSC, quando o exercício de tal direito é permitido relativamente a uma sociedade constituída e com sede no mesmo Estado Membro».