Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
907/22.4T8MTS.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: INVENTÁRIO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
LEGITIMIDADE ATIVA
PARTILHA DA HERANÇA
QUINHÃO HEREDITÁRIO
APREENSÃO
HERDEIRO
LEGITIMIDADE ADJETIVA
PETIÇÃO INICIAL
INTERPRETAÇÃO
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
Data do Acordão: 11/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
O administrador da insolvência não tem legitimidade activa para requerer a abertura do inventário para partilha da herança, a que pertence o quinhão hereditário apreendido para a massa insolvente do co-herdeiro.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO



1.1.- No Cartório Notarial, sito em ..., em 24/9/2019, deu entrada um requerimento de inventário para partilha da herança deixada por óbito de AA, falecida em .../6/2006, em que no ponto 3 é identificada como requerente BB, na qualidade de descendente em 1º grau ( filha ).

No ponto 7 (“Observações” ) foi aposto o seguinte:

“A Requerente e seu marido (CC) encontram-se insolventes, pelo que a Massa Insolvente de CC e BB requereu Apoio Judiciário para que fosse interposto o processo de Inventário que ora se requer. O Apoio Judiciário foi deferido à Massa Insolvente, tendo sido nomeada Patrona Oficiosa a Advogada signatária - Junta-se ainda o despacho de deferimento o Apoio Judiciário e o Ofício de nomeação da signatária”.

1.2. À inventariada sucederam-lhe os seguintes herdeiros

- DD (viúvo)

- BB ( filha ) casada com CC

- EE (filho) sendo seu acompanhante FF.

1.3. O processo de inventário foi remetido ao tribunal (Juízo Cível local de ...) que, por decisão de 28/2/2022, admitiu liminarmente o mesmo.

1.3. – Em 3/11/2022 foi proferida sentença que se inicia da seguinte forma:

“Massa insolvente de CC e BB propôs ação especial de inventário, para partilha da herança deixada por óbito de AA, mãe da insolvente.”

Concluiu com a seguinte decisão:

“Por todo o expendido, julgo verificada a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da requerente e consequentemente absolvo os requeridos da instância, nos termos conjugados dos artigos 30.º, 278.º, n.º1, alínea d) e n.º3, a contrario sensu, 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º al. e), 1085.º, n.º 1, al. a), a contrario sensu, todos do Código de Processo Civil.


*


Valor da causa: € 85.656,11 – cf. o artigo 296.º, n. º1, do Código de Processo Civil – entendendo-se que a utilidade económica imediata coincidirá com o valor dos bens a partilhar.”

Argumentou-se, em síntese:

“(…)

“Concluindo, o administrador da insolvência, atuando em juízo como substituto processual da interessada insolvente, e não como seu representante, não é interessado direto na partilha (e nem a massa insolvente, representada pelo seu administrador).

A requerente nestes autos constitui um património autónomo distinto da pessoa jurídica da herdeira (interessada direta na partilha), pelo que tal massa insolvente não é sucessora da inventariada, carecendo de interesse direto na partilha e, logo, de legitimidade para requerer o inventário”.

1.4. A massa insolvente de CC e BB recorreu de apelação e a Relação do Porto, por acórdão de 27/3/2023, decidiu revogar a sentença.

O acórdão assentou nos seguintes tópicos:

- A recorrente Massa Insolvente não é parte no processo de inventário, mas antes a herdeira BB, e sendo assim “não pode discutir-se a sua legitimidade processual para requerer o inventário da pessoa declarada insolvente, uma vez que não é efetivamente parte no processo”.

- Mesmo que o fosse parte (e não é), a massa insolvente da herdeira não estaria devidamente representada pelo administrador de insolvência ( “Não se mostre junta aos autos qualquer certidão extraída do processo de insolvência da requerente do inventário, a devedora BB, mas decorre do respetivo assento de nascimento ter sido nomeado em processo de insolvência o administrador, GG, que não surge em parte alguma destes autos na qualidade de representante da massa insolvente e, menos ainda, a, em nome daquela massa, conceder mandato a quem aqui atua – veja-se quem subscreve o recurso – como putativo patrono da massa insolvente”).

1.5. Inconformada, a massa insolvente de CC e BB recorreu de revista com as seguintes conclusões:

1)Porque nunca foi colocado em causa ser a Massa insolvente de CC e BB a Requerente do presente inventário, nem se colocou em causa o apoio judiciário e o patrocínio judiciário de que beneficia a Requerente, o presente acórdão constitui uma decisão surpresa.

2) Sendo colocada esta questão (ou questões) pela primeira vez pelo Tribunal da Relação do Porto, deveria ter sido dada às partes, designadamente à Requerente a oportunidade, previamente, de se pronunciar sobre ela (ou sobre elas), em cumprimento do art.3 nº3 CPC.

3)Tento existido a inobservância do contraditório, que constitui uma nulidade processual (porque influiu no exame ou na decisão da causa, sem que à parte haja sido dada a possibilidade de se pronunciar sobre factos e respectivo enquadramento jurídico, designadamente, seu alcance e efeitos), deve ser revogada a decisão ora colocada em crise, por se tratar de uma decisão surpresa ( art. 195 e segs. CPC).

4) Considerando a sentença proferida em primeira instância, bem como o teor do recurso apresentado pela Recorrente para o Tribunal da Relação do Porto (alegações e respectivas conclusões), verifica-se que as questões que fundamentam a decisão do Tribunal da Relação do Porto não foram em momento algum, anterior ao douto acórdão, invocadas, debatidas ou, sequer, afloradas.Não foi colocada (quer na sentença proferida em primeira instância, quer nas alegações e conclusões do recuso interposto para o Tribunal da Relação) qualquer questão relativamente à identidade do Requerente do Inventário, mandato e taxa de justiça.

5)O Acórdão recorrido, ao fundamentar nas referidas questões a sua decisão, violou o princípio do dispositivo, no termos do nº 2 do art.608 CPC.

6)Acresce que, porque se tratam questões que são assentes e pacíficas quer para o tribunal de primeira instância, quer para as partes, não existe, a nosso ver e com todo o respeito, conhecimento oficioso que imponha o conhecimento das mesmas pelo Tribunal da Relação, pelo que, o douto acórdão ora colocado em causa está ferido de nulidade nos termos da al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC.

7) Requerente do presente processo de inventário é, e sempre foi a Massa insolvente de CC e BB.

8) Esclareça-se, desde logo, que, ao invés do que vem referido no douto acórdão, quem requereu o apoio judiciário para requerer o presente inventário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento de compensação ao patrono, e a quem o mesmo foi deferido, foi de facto a Massa insolvente de CC e BB e não, como refere o acórdão, a Massa Insolvente apenas de CC (marido da BB a herdeira da inventariada).

9) Existe um único processo de insolvência para ambos os elementos do casal (CC e BB), Proc. nº 3452/17.6..., que corre termos pelo Juiz ...do Juízo de Comércio de ... do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, existindo uma única Massa Insolvente, respeitante ao património de ambos, a ser liquidada – cfr. Anúncio da sentença de Declaração de Insolvência que se pode extrair da plataforma Citius a respeito do referido processo, que se junta sob o doc nº1.

10)Mais se refira que, o presente processo de Inventário foi requerido, em 24.09.2019 pela Massa insolvente de CC e BB, e não pela herdeira BB, tendo sido o processo requerido (interposto) em Cartório Notarial, por imperativo legal, atenta a legislação vigente à altura, a lei nº 23/20013 de 5 de Março, que conferia competência exclusiva aos Notários para a tramitação do processo de inventário.

11)Na trilha do facilitismo processual pretendido com aquela Lei, e com muitas outras surgidas com o objectivo de retirar dos Tribunais competências que lhe são próprias, o processo de inventário iniciava-se (e ainda se inicia para quem hoje optar pela tramitação do inventário em Cartório Notarial), necessariamente, com um mero preenchimento de um formulário electrónico, sem que fosse acompanhado de qualquer peça processual digna desse nome. Acontece que, quando a advogada signatária começou a preencher o Formulário Electrónico, que constituía, por si só, o requerimento inicial do processo de inventário, ao tentar inserir como Requerente a Massa Insolvente deparou-se com um problema intransponível, pois, era obrigatório a Requerente possuir um Número de Contribuinte, e a Massa Insolvente não o possuía, o que impossibilitava sequer aceder aos passos seguintes necessários ao preenchimento de tal formulário electrónico.

12)Sem saber como resolver a intransponível barreira da falta de NIF da Requerente Massa Insolvente, a Advogada signatária, porque os únicos NIFs associados ao processo de insolvência eram os pessoais dos próprios insolventes, optou, apenas como forma de desbloquear o sistema e poder continuar o preenchimento do formulário, por inserir, no local destinado a identificar o requerente, o NIF da Insolvente herdeira, acompanhado da respectiva identificação, entendendo a Advogada que, com os documentos juntos (designadamente, a sua nomeação como Patrona Oficiosa da Massa Insolvente e a cópia do deferimento do Apoio judiciário requerido para o efeito pela Massa Insolvente), bem como, pelo que expos na janela de tal Formulário destinada a observações, teria ficado clarificada a situação.

13)Esta situação nunca levantou qualquer dúvida ou questão no Cartório Notarial, onde nunca se considerou existir falta de mandato por parte da Advogada, visto esta ser a Patrona Oficiosa da Massa Insolvente, a verdadeira Requerente do processo de Inventário e a quem foi atribuído o Apoio Judiciário, sendo que, facto de no cabeçalho das notificações provenientes do Cartório Notarial surgir inscrito como requerente a Insolvente BB, trata-se de uma decorrência automática da forma como foi preenchido o formulário inicial, e não porque esta fosse, de facto e na realidade, a Requerente.

14) No requerimento junto pela Requerente em 04.10.2019, nesse processo de inventário a decorrer no Notário, verifica-se que esta se identifica como sendo a Massa insolvente de CC e BB, o que nunca causou qualquer estranheza no Notário, porque sempre se soube, que Requerente no processo era esta Massa Insolvente.

15) Quando o processo foi distribuído ao Tribunal, foi como tendo como Requerente, aquela que sempre o foi, ou seja, a Massa insolvente de CC e BB, o que se pode verificar também na capa inicial do processo judicial, bem como em todos as notificações despachos e sentença que ocorreram.

16)Se existiu um lapso ou um erro na forma como foi preenchido o formulário Inicial do processo de inventário notarial, nunca, até à presente data foi mandado corrigir, ou sequer lhe foi feita qualquer referência (antes do acórdão de que se recorre), pelo que, atento todo o processado neste processo, tal erro, a ter alguma vez existido, teria sempre de se considerar já, há muito, sanado.


II - FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – Objecto do recurso

As questões essenciais submetidas a recurso, delimitado pelas conclusões, são as seguintes:

Quem é a requerente do inventário;

A legitimidade do administrador da massa insolvente de CC e BB para requerer o inventário para partilha da herança aberta por óbito de AA, falecida em .../6/2006, em que é herdeira BB.

2.2.- A Relação deu como provados os seguintes elementos:

1 – A 24.9.2019, deu entrada no Cartório Notarial de ..., requerimento de inventário por óbito de AA.

2 – O requerimento, subscrito em formulário próprio, assinado digitalmente pela Sr.ª Dra. HH, contém, entre o mais, o seguinte:

3. IDENTIFICAÇÃO DO REQUERENTE E QUALIDADE EM QUE INTERVÉM

Nome completo*: BB

Estado Civil*: Casada

Documento de identificação* - Tipo: Cartão de Cidadão N.°: ...50

Número de identificação fiscal*:...43 Residência*: Travessa ... Qualidade em que intervém*: Descendente 1.º Grau

3 – Já no ponto 7 do mesmo formulário, destinado a Observações, consignou-se o seguinte:

A Requerente e seu marido (CC) encontram-se insolventes, pelo que a Massa Insolvente de CC e BB requereu Apoio Judiciário para que fosse interposto o processo de Inventário que ora se requer. O Apoio Judiciário foi deferido à Massa Insolvente, tendo sido nomeada Patrona Oficiosa a Advogada signatária - Junta-se ainda o despacho de deferimento o Apoio Judiciário e o Ofício de nomeação da signatária.

4- Com o requerimento inicial foi junta a decisão da Segurança Social conferindo apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxas de justiça e encargos e nomeação de patrono, à massa insolvente de CC.

5 – A inventariada faleceu a....6.2006 (certidão de óbito junta com o requerimento inicial).

6 – BB é filha da inventariada, tendo casado com CC, em 5.8.2006, e declarada insolvente, por sentença transitada a 13.3.2018, e tendo-lhe sido nomeado administrador de insolvência GG (certidão de assento de nascimento junta com o requerimento inicial).

7 – A Sr.ª Dr.ª HH foi nomeada patrona oficiosa da massa insolvente de CC.

8 – Por despacho de 14.11.2019, a Exm.ª Notária consignou o seguinte: Rececionada na plataforma www.inventarios.pt, os autos do presente processo, requerido por BB, para partilha por óbito dos bens do inventariado, AA, ordeno (…)

9 – O processo de inventário foi remetido ao tribunal judicial, a 17.2.2022.

10 – Por despacho de 12.9.2022, entendeu-se ter o inventário sido requerido pela massa insolvente de CC e BB, tendo as partes sido notificadas para se pronunciarem sobre o pressuposto da sua legitimidade.

2.3. – Quem é a requerente do inventário

A primeira questão que se coloca é a de saber quem é a requerente do inventário, se a herdeira BB ou a massa insolvente de CC e BB.

A resposta condicionará a abordagem da revista, porque o problema da violação do contraditório e da legitimidade para requerer o inventário dependem dela.

O processo especial de inventário começa por um requerimento inicial (petição inicial ) no qual o autor/requerente deve “identificar as partes” ( art.552 nº1 a) CPC). No caso do processo de inventário, a Portaria nº 278/2013 de 26/8 regulou, ao tempo, as formas de apresentação do requerimento de inventário e o modelo do requerimento.

No formulário electrónico do requerimento de inventário no item sobre a “identificação do requerente” foi aposto o nome de BB, e os demais elementos de identificação.

Contudo, nas observações é mencionado ser a massa insolvente de CC e BB quem requer o inventário, tendo-se junto o ofício do ISS sobre o apoio judiciário, na modalidade de nomeação de advogada para patrocinar em nome da massa insolvente e a dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos.

A petição configura uma declaração de vontade tendente a obter um determinado efeito jurídico, devendo ser interpretada segundo o critério estabelecido nos arts.236 nº1, 237 e 238 nº1 do CC, que consagram de forma mitigada o princípio da impressão do destinatário.

Por conseguinte, na interpretação do acto postulatório prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Neste âmbito, deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações a determinados tópicos, como a finalidade prática visada pelas partes, o comportamento processual posterior e o princípio da confiança.

As notificações, quer no Cartório Notarial, quer no tribunal foram sempre feitas para a senhora advogada, patrona nomeada para a massa insolvente.

Não obstante nos despachos proferidos pela senhora Notária se mencionar em cabeçalho a identidade da requerente como sendo BB, a verdade é que a notificação foi sempre feita à senhora advogada, patrona oficiosa nomeada à massa insolvente e o cumprimento dos mesmos foi sempre feito pela massa insolvente e aceites como tal.

No tribunal da 1ª instância o processo foi tramitado como sendo a massa insolvente a requerente do inventário, e identificada como tal, tanto nas notificações como no despacho de 12/9/2022 e na sentença.

O próprio cabeça de casal, DD, no seu requerimento de 21/9/2022 identifica a requerente como sendo a massa insolvente, significando que também interpretou e agiu como sendo a massa insolvente a requerente do inventário.

Neste contexto, a interpretação que se colhe, à luz do critério exposto, é no sentido de que a requerente do inventário é a massa insolvente de CC e BB, sendo esta a posição de um declaratário normal em face do requerimento inicial e do comportamento processual subsequente.

Por outro lado, o princípio da confiança impõe a aceitação da massa insolvente como a requerente do inventário. Na verdade, tendo a actuação sido nesse sentido, afrontaria o princípio da confiança entender agora que a requerente é e sempre foi a herdeira BB.

Em face desta conclusão, torna-se inútil e inconsequente a apreciação da imputada nulidade do acórdão por violação do contraditório, na modalidade de decisão-surpresa.

2.4. A legitimidade do administrador da massa insolvente de CC e BB para requerer o inventário

Uma vez assente que a massa insolvente de CC e BB é a requerente do inventário, para além da questão da falta de representação, dada a não intervenção do administrador de insolvência (art.26 CPC), mas que poderia ser oficiosamente suprida, nos termos do art.27 nº1 e 28 nº1 CPC, sobra o problema da legitimidade.

Tem sido controversa a questão da legitimidade da massa insolvente para requerer o inventário em nome de um herdeiro.

O art.4 nº1 a) da Lei nº 23/2013 de 5/3 (RJPI) ( vigente à data da instauração do inventário ) sobre a “ legitimidade para requerer ou intervir no inventário” dispunha

“1. Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo:

a. Os interessados directos na partilha.”

O art.1085 nº1 a) do CC (aditado pela Lei nº 117/2019 de 13/9) mantém a mesma redacção, atribuindo a legitimidade activa aos “interessados directos na partilha”.

Os “interessados diretos na partilha” serão os sujeitos que, sendo ou não herdeiros do de cujus, veem a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo modo como se organiza e concretiza a partilha do acervo hereditário (cf. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes, Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil” Almedina, Coimbra, 2020, pág. 31).

O Supremo Tribunal de Justiça tem adoptado a orientação no sentido de que “O Administrador da insolvência carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança, a que pertence o quinhão hereditário apreendido para a massa insolvente do co-herdeiro” (cf. Ac de 9/11/2022 ( proc nº 775/22), Ac de 21/3/2023 ( proc nº 2315/20 ) disponíveis em www dgsi).

Os tópicos de argumentação são, em síntese, os seguintes:

a) Declarada a insolvência, o quinhão hereditário é apreendido, passando a integrar a massa insolvente. O insolvente perde os poderes de administração e de disposição, sendo “representado” pelo administrador da insolvência;

b) A qualidade de sucessora legal da inventariada permanece na esfera jurídica da insolvente, que sempre seria interessada direta na partilha, pelo que a massa insolvente não tem legitimidade para requerer o inventário;

c)A apreensão do quinhão hereditário não confere à massa insolvente a qualidade de sucessora legal do inventariado, pois o que passa a estar integrado na massa insolvente é o quinhão hereditário que a insolvente possui na herança da inventariada, e não a sua qualidade sucessória em relação à mesma;

d)A massa insolvente não é interessada directa no inventário porque não beneficia directa e imediatamente com a partilha, dado que o que está em causa é o quinhão hereditário e não o seu preenchimento com bens concretos;

e) O art.81 nº4 CIRE, muito embora se reporte à representação, a verdade é que se trata de substituição processual, ou seja, o administrador da insolvência não actua em representação do herdeiro/insolvente, mas como parte, como substituto processual. Na substituição processual, porque não há coincidência entre o sujeito da relação processual e o da relação substantiva, o substituto, agindo em nome próprio, litiga em direito alheio, e, por isso, é parte no processo, com o direito de acção e de defesa;

f) A massa insolvente constitui um património autónomo distinto da pessoa jurídica da herdeira (interessada direta na partilha), pelo que tal massa insolvente não é sucessora da inventariada, carecendo de interesse direto na partilha e, logo, de legitimidade para requerer o inventário.

A jurisprudência das Relações tem vindo a seguir maioritariamente esta orientação (cf., por ex., Ac RL de 24/9/2020 (proc nº 31/20), Ac RC de 9/11/2021 ( proc nº 94/21), Ac RC de 10/5/2022 ( proc nº 775/2022), Ac RL de 28/5/2022 ( proc nº 5879/20), disponíveis em www dgsi.pt ).

A sentença da 1ª instância concluiu pela ilegitimidade activa da massa insolvente, argumentando da seguinte forma:

“Considerando a data do óbito da autora da herança (20-06-2006), a insolvente foi chamada à sucessão antes da sua insolvência (13-03-2018), o que significa que, a partir da declaração de insolvência, o quinhão hereditário da insolvente passou a integrar a massa insolvente, perdendo qualquer poder de disposição sobre o referido direito.

Esta integração de quinhão hereditário na massa insolvente, património de afetação por definição legal, não atribuiu àquela massa a qualidade de sucessor legal da inventariada.

Temos, pois, que o quinhão hereditário da insolvente na herança por óbito de AA, por fazer parte do seu património à data da declaração de insolvência, passou a integrar a massa insolvente.

Assim, o que passou a estar integrado na massa insolvente foi o direito sobre uma quotaparte da insolvente no património da herança da falecida AA.

Pelo facto de o quinhão hereditário da insolvente no património da herança da falecida AA, passar a estar integrado na massa insolvente, não faz desta interessada direta na partilha, de modo a ter legitimidade processual para requerer a abertura do processo de inventário.

O que está integrado na massa insolvente é o quinhão hereditário que a insolvente possui na herança da falecida, e não a sua qualidade sucessória em relação à mesma.

Interessada direta na partilha da herança da falecida seria a insolvente, por ser herdeira, e não a massa insolvente, pois, além de não ser sucessora da de cujus, não é diretamente beneficiada pela partilha (não é um interessado direto).

Isto posto, importa aferir, também, da legitimidade processual do administrador da insolvência para requerer a abertura de processo de inventário.

Como o insolvente não tem legitimidade para ser parte no processo de inventário, o administrador figurará como substituto processual do interessado insolvente (artigo 81.º, nº 4, do CIRE).

Como é consabido, este preceito alude a uma “representação” do insolvente, quando, em rigor, o administrador atua em juízo como parte, e não como representante do insolvente (que seria então a parte interessada). Trata-se de uma substituição processual do interessado insolvente.

Também na esteira do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (proc. n.º31/20.4...), datado de 24-09-2020, entendemos que na medida em que tal substituição processual não permite atribuir legitimidade ativa ao administrador de insolvência para requerer inventário por óbito da progenitora da insolvente. Assim será porque os direitos da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário, e não sobre o preenchimento desse quinhão com certos e determinados bens.

Com efeito, a herança indivisa constitui uma universalidade de direito, com conteúdo próprio, sendo os herdeiros apenas titulares de um direito indivisível. Enquanto não é partilhada a herança, cada um dos herdeiros, incluindo a insolvente, não tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles.

Donde se retira que o administrador de insolvência não tem legitimidade para requerer o inventário da herança.

Contudo, à luz do disposto no artigo 81.º, n.ºs 1 a 4 do CIRE terá legitimidade passiva para, no processo de inventário, ser requerido em substituição do interessado direto insolvente.

Concluindo, o administrador da insolvência, atuando em juízo como substituto processual da interessada insolvente, e não como seu representante, não é interessado direto na partilha (e nem a massa insolvente, representada pelo seu administrador).

A requerente nestes autos constitui um património autónomo distinto da pessoa jurídica da herdeira (interessada direta na partilha), pelo que tal massa insolvente não é sucessora da inventariada, carecendo de interesse direto na partilha e, logo, de legitimidade para requerer o inventário.”

Como se vê, a sentença da 1ª instância adotou o critério jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça.

Embora com fundamentação diversa, impõe-se a confirmação do acórdão recorrido, improcedendo a revista.

2.5. Síntese conclusiva

O Administrador da insolvência não tem legitimidade activa para requerer a abertura do inventário para partilha da herança, a que pertence o quinhão hereditário apreendido para a massa insolvente do co-herdeiro.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

3)


Condenar a recorrente nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Novembro de 2023.

Jorge Arcanjo (Relator)

Manuel Aguiar Pereira

Pedro de Lima Gonçalves