Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5394/20.9T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: DOMINGOS JOSÉ DE MORAIS
Descritores: PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
FALSIDADE
ACUSAÇÃO
CONTRATO DE TRABALHO
RESOLUÇÃO PELO TRABALHADOR
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário :

A acusação falsa em procedimento disciplinar instaurado pelo empregador é fundamento para a lícita resolução do contrato de trabalho com justa causa por iniciativa do trabalhador.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 5394/20.9T8FNC.L1.S1


Recurso revista


Relator: Conselheiro Domingos Morais


Adjuntos: Conselheiro Mário Belo Morgado


Conselheiro Júlio Gomes


Acordam os Juízes na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.Relatório


1. - AA intentou acção com processo comum contra


C....... – Cooperativa de Habitação Económica de Câmara de Lobos, CRL, alegando, em síntese, que:


A Autora trabalhou para a Ré no exercício das funções de educadora de infância, desde 1 de setembro de 2006 até ao dia 21 de agosto de 2020, data em que comunicou à Ré a imediata resolução do contrato de trabalho, com justa causa, pelos fundamentos descritos na carta resolutiva, após ter sido notificada da sanção disciplinar de repreensão registada com perda de retribuição.


Terminou, pedindo:


1. Declarar-se a licitude e validade da resolução do contrato de trabalho com justa causa operada pela autora decorrente de comportamento culposo do empregador demandado;


2. Condenar-se a ré a pagar à autora a quantia total de € 45.904,77 (quarenta e cinco mil novecentos e quatro euros e setenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento, dos quais:


i. € 28.466,66 (vinte e oito mil quatrocentos e sessenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos) a título de indemnização por antiguidade;


ii. € 4.388,12 (quatro mil trezentos e oitenta e oito euros e doze cêntimos) correspondente ao subsídio de desemprego que a autora tem legalmente direito a receber mas que se tem frustrado desde Agosto de 2020 até este mês de Dezembro de 2020 em consequência do indevido preenchimento da Declaração Modelo 5044 da Segurança Social;


iii. € 2.033,33 (dois mil trinta e três euros e trinta e três cêntimos) a título de retribuição


correspondente a férias e subsídio de férias proporcionais ao tempo de serviço prestado no ano da cessação do contrato de trabalho;


iv. € 1.016,66 (mil e dezasseis euros e sessenta e seis cêntimos) a título de subsídio de natal proporcional ao tempo de serviço prestado no ano da cessação contrato de trabalho;


v. € 10.000,00 (dez mil euros) a título de danos morais ou não patrimoniais.


2. - A Ré contestou, concluindo pela improcedência da acção; e reconviu, pedindo a condenação da Autora no pagamento da quantia de € 4.575,00 correspondente ao tempo de pré-aviso.


3. – Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:


a) revogo a sanção disciplinar aplicada à Autora de repreensão registada com perda de retribuição com a sua remoção do registo disciplinar da Autora;


b) declaro a licitude da resolução do contrato de trabalho com justa causa pela Autora e, consequentemente,


Condeno a Ré a pagar à Autora:


c) a quantia de 21.324,58€ (vinte e um mil euros e trezentos e vinte e quatro euros e cinquenta e oito cêntimos), a título de indemnização pela resolução;


d) as quantias de 2.033,33€ (dois mil e trinta e três euros e trinta e três cêntimos) a título de retribuição de férias, subsídio de férias e proporcionais do ano da cessação e de 1.016,66€ (mil e dezasseis euros e sessenta e seis cêntimos), a título de subsídio de Natal, do ano da cessação;


e) a quantia de 2.000€ (dois mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais;


f) a que acrescem os juros legais desde a data do seu vencimento;


g) absolve-se a Autora e a Ré do demais peticionado.”.


4. - Por acórdão de 26 de outubro 2022, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu:


Em face do exposto:


5.1. rejeita-se a impugnação da decisão de facto deduzida pela recorrente;


5.2. altera-se oficiosamente o ponto 53. da matéria de facto nos termos sobreditos;


5.3. concede-se parcial provimento ao recurso e revoga-se a sentença da 1.a instância na parte em que declara a licitude da resolução do contrato de trabalho e condena a R. no pagamento da inerente indemnização [als. b) e c) do dispositivo], em tudo o mais se confirmando o seu dispositivo.”.


5. - A autora interpôs recurso de revista, concluindo, em síntese:


(T)endo as alegações do recurso de apelação sido apresentadas no 11º dia posterior ao termo do prazo geral para a sua interposição (30 dias), rejeitado este quanto à matéria de facto, rejeitado deverá ser quanto à questão de direito colocada nas alegações recursivas, por extemporâneo, face ao disposto no artº 638ª, nºs 1 e 7 do CPC. (alíneas a) a g) das conclusões).


A ilegal alteração oficiosa da redação dada pelo tribunal de 1.ª instância ao ponto 53 da matéria de facto; (alíneas h) a w) das conclusões).


cc) O facto 48 evidencia que em 27 de julho de 2020 já toda a gente - leia-se trabalhadores, membros da direção da ré e os próprios pais das crianças do infantário - estava a par do processo disciplinar que foi aberto contra a autora e da respetiva decisão final.


dd) Por isso é óbvio que todos os presentes na reunião referida nos factos 51 e 52 perceberam que aquilo que nela foi dito pelo presidente da direção da ré se reportava à autora.


ee) Note-se ainda que no facto provado 49 estabelece-se uma correlação direta entre a ação dos membros da direção da ré e os cochichos, os gestos e os olhares através dos quais aqueles e os colegas de trabalho fulminaram a autora.


ff) As (supostas) indefinições referidas no penúltimo parágrafo da página 38 do acórdão recorrido são retóricas, manifestamente infundadas e desligadas da materialidade e da realidade dos acontecimentos porque decorre da interpretação conjugada e complexiva dos factos provados 46, 47, 48 e 49 que:


Quem cochichou foram os membros da direção da ré e os colegas de trabalho da autora por ação daqueles;


Quem lançou olhares foram os membros da direção da ré e os colegas de trabalho da autora por ação daqueles;


Pelo contexto da alegação e dos factos provados conjugados com a ponderação daquilo que normalmente acontece, as regras da experiência comum e até com os dados da intuição humana, é manifesto que estamos perante olhares reprovadores que toda a gente dotada de mediana sensibilidade conhece bem sem amplos desenvolvimentos e descrições linguísticas;


Os cochichos são, por natureza e definição dicionarizada, segredos e coisas que se dizem em voz impercetível junto dos visados;


Também é um facto notório que qualquer pessoa minimamente sensível, como é a autora, sente desconforto e dor emocional quando é hostilizada pelos outros, especialmente no trabalho;


A correlação entre o desdém dos colegas de trabalho da autora para com esta e a ação dos membros da direção da ré é estabelecida pela parte final do facto provado 49.


gg) Dos factos provados decorre a intolerabilidade do traiçoeiro e desleal comportamento da ré para com a autora que obviamente tem de ser analisado à luz da dimensão humana e antropomórfica do trabalho, das relações laborais e do direito do trabalho e articulados com a ponderação daquilo que normalmente acontece e as regras da experiência comum.


hh) Esse comportamento tornou praticamente insustentável e inexigível, para a autora ou para qualquer outra pessoa colocada no seu lugar, a manutenção do vínculo laboral por quebra irreversível da confiança na entidade patronal além do mais porque, reitere-se e sublinhe-se, a ninguém pode ser exigível a manutenção de uma relação laboral - ou qualquer outra relação de base e substrato pessoal - com quem o atraiçoa.


6. - A Ré contra-alegou, concluindo pela improcedência da revista.


7. - Por acórdão de 15 de fevereiro de 2023, a Relação concluiu pela improcedência da nulidade do acórdão recorrido.


8. - O Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso de revista.


9. - Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir.


II. - Fundamentação de facto


1. - O acórdão recorrido considerou provada a seguinte factualidade, que se transcreve:


1. Em 1 de Setembro de 2006 a autora, educadora, de infância, foi contratada pela ré, proprietária e gestora dos infantários "O ........ ", com a categoria e para exercer funções de educadora de infância, sob a sua direcção, fiscalização e com os meios por ela disponibilizados, mediante a remuneração ilíquida mensal de € 784,38.


2. Este contrato foi celebrado pelo período de 12 meses e caducava a 31 de Agosto de 2007.


3. Em 1 de Setembro de 2007 a autora foi de contratada pela ré com a categoria e para exercer funções de educadora de infância, mediante a remuneração ilíquida mensal de € 804,00.


4. Este contrato foi celebrado pelo prazo de 12 meses e caducava a 31 de Agosto de 2008.


5. Em 1 de Setembro de 2008 a autora foi contratada pela ré com a categoria e para exercer funções de educadora de infância, mediante a remuneração ilíquida mensal de € 1.149,00.


6. Este contrato foi celebrado pelo prazo de 12 meses e caducava a 31 de Agosto de 2009.


7. A autora foi admitida por contrato verbal por tempo indeterminado com a ré em 1 de Setembro de 2009 com a categoria e para exercer funções de educadora de infância.


8. A autora trabalhava 40 horas por semana, de segunda a sexta-feira, com entrada às 08:30 horas, saída às 17:30 horas, com horário de almoço entre as 13:00 e as 14:00 horas.


9. A remuneração da autora tinha as seguintes componentes entre Janeiro e Agosto de 2020: Vencimento/salário bruto € 1.525,00; Subsídio de alimentação € 104,94; Salário por hora Valores variáveis entre € 8,66 e €10,03; Salário diário €50,83 (€ 1.525:30).


10. Os descontos ao salário da autora eram os seguintes: Taxa Social única €
167,75 e IRS€205,00.



11. A autora tem dois filhos a seu cargo menores de 12 anos.


12. A ré tem conhecimento que a autora tinha os dois filhos a seu cargo, pois frequentaram o infantário da mesma.


13. Em Março de 2020, com o início da pandemia ainda em curso de Covid-19, foi, na Região Autónoma da Madeira e no resto do país, além do mais: I. Determinado o imediato encerramento dos infantários e escolas; II. Concedido o apoio excepcional à família para Trabalhadores por Conta de Outrem que faltassem ao trabalho por motivos de assistência a filhos ou outros menores a cargo, menores de 12 anos, ou com deficiência/doença crónica independentemente da idade, decorrente de encerramento do estabelecimento de ensino determinado por decisão da autoridade de saúde ou do governo.


14. Todas as actividades lectivas do infantário da ré foram encerradas em Março de 2020.


15. A autora, porque tinha e tem os dois filhos menores a seu cargo, recorreu ao Apoio Excepcional à Família para Trabalhadores, o que foi imediatamente comunicado à entidade patronal de acordo com as instruções desta.


16. A autora apresentou à ré declaração Mod. GF88-DGSS, relativa ao período compreendido entre 17 e 29 de Março de 2020, entregue na secretária da entidade patronal, de acordo com as indicações desta, à administrativa BB, no dia 19 de Março.


17. A ré comunicou à autora e às demais trabalhadoras que a declaração Mod. GF88-DGSS podia ser entregue dentro dos 5 dias seguintes ao dia do início da produção dos seus efeitos.


18. A ré informou a autora, através da sua Directora Pedagógica seguindo orientações da Direcção, que no período de 30 de Março a 17 de Abril, que correspondeu às férias escolares de Páscoa, que podia optar por uma das seguintes alternativas:


a) Tirar férias antecipadas;


b) Ficar disponível, a partir do dia 1 de Abril, para ir trabalhar caso fosse chamada para tal pela Direcção, o que de resto aconteceu também com as educadoras que estiveram a trabalhar no período anterior. A Directora Pedagógica esclareceu ainda que só as auxiliares iriam assegurar a manutenção da instituição em regime de rotatividade, até próximas indicações.


19. A autora optou pela alínea b) das alternativas indicadas pela Directora Pedagógica.


20. A Autora perguntou à Directora Pedagógica se era necessário comunicar à administrativa a opção e a alteração daí decorrente, ao que a Directora Pedagógica disse que não, porque ela própria o faria.


21. Através do seu telemóvel ... ... .42, a autora comunicava recorrentemente com a sua superior hierárquica e Directora Pedagógica CC, com o telemóvel ... ... .25, por meio de mensagens curtas (Short Message Service, SMS).


22. Entre 30 de Março e 17 de Abril de 2020 nem noutro período qualquer a entidade patronal demandada atribuiu à autora quaisquer tarefas para realizar em casa ou em regime de teletrabalho.


23. A autora nunca foi chamada para ir trabalhar pela entidade patronal até ao dia 21 de Maio de 2020, data em que lhe foi pedido para comparecer no local de trabalho às 09:00 horas do dia 25 de Maio de 2020.


24. No dia 25 de Maio de 2020 a autora apresentou-se no local de trabalho às 09:00horas.


25. Através da Resolução n.° .../2020, de 18 de Abril da Presidência do Governo Regional da Madeira, foi declarada a situação de calamidade na freguesia de ..., Município de Câmara de Lobos no período de 19 de Abril a 2 de Maio, a qual, além do mais, implicou a interdição de circulação e permanência de pessoas na via pública na freguesia de ....


26. A C....... localiza-se no Complexo Habitacional ..., em Câmara de Lobos, freguesia na qual a autora também reside.


27. No dia 18 de Abril de 2020, às 19:48, a autora recebeu da Directora Pedagógica uma SMS com o seguinte teor:


"Boa tarde devido a anunciada cerca sanitária em Câmara de Lobos, o nosso Presidente da Direcção ordenou que nos próximos quinze dias os G........ estarão encerrados. Se houver alguma nova indicação eu anunciarei atempadamente. Obrigada e cuidem-se".


28. A Autora apresentou a Declaração Mod. GF 88 - DGSS na secretaria da ré à administrativa BB no dia 25 de Maio.


29. A intenção da autora era apresentar uma declaração reportada apenas aos dias 25 a 31 de Maio, além do mais porque desde o dia 4 e até ao dia 22 de Maio o funcionamento do infantário esteve assegurado apenas pelas auxiliares em regime de rotatividade.


30. Por opção e ordem da entidade patronal, nenhuma educadora trabalhou nesse período.


31. A autora foi compelida a indicar o período de 1 a 31 de Maio de 2020, por ordem da Direcção formulada neste mesmo dia 25 de Maio.


32. Depois de ter indicado o período de 1 a 31 de Maio de 2020 conforme a imposição da entidade patronal, a autora predispôs-se a devolver imediatamente a quantia de 33% do seu ordenado, pois nesse mesmo dia foi-lhe paga a totalidade da remuneração.


33. Neste mesmo dia 25 de Maio, após a reunião, a autora esteve a trabalhar ao longo de toda a manhã, porque foi-lhe pedido pela Directora Pedagógica para telefonar aos pais dos alunos da sua sala a informar que a instituição iria reabrir e em que moldes o faria.


34. Nessa ocasião a autora reafirmou à entidade patronal que continuaria aprestar assistência aos seus dois filhos menores de 12 anos a seu cargo, o que implicava a sua ausência ao trabalho nesse período de reabertura do infantário.


35. No dia 25 de Maio de 2020, às 18:00, a autora fez o teste à Covid-19 tal como os demais funcionários da entidade patronal.


36. A autora no dia 1 de Junho apresentou Declaração Mod. GF 88 - DGSS na secretaria da entidade patronal à administrativa BB, por volta das 16:00h e reportou-se ao período entre 1 e 26 de Junho de 2020.


37. Os recibos de vencimento da autora dos meses de Março, Maio e Junho de 2020 passaram a consignar a rubrica: Código 031 - Apoio excepcional à família (Covid 19).


38. No dia 25 de Junho a autora recebeu o seu ordenado com a dedução pela entidade patronal de 66%, 33% referente ao mês de Maio e 33% referente ao mês de Junho.


39. Pelas 18:00h do dia 1 de Junho de 2020 a autora recebeu um email a informar que estava suspensa porque tinha-lhe sido instaurado um processo disciplinar.


40. No dia 23 de Junho de 2020 a autora foi notificada da nota de culpa do processo disciplinar aberto pela ré.


41. A nota de culpa deixou a autora surpreendida, perplexa e indignada.


42. A partir de 1 de Junho de 2020, a autora começou a ter dificuldades em dormir e a sentir-se ansiosa e nervosa ao ponto de automedicar-se.


43. A partir do momento que teve conhecimento da abertura do processo disciplinar a autora foi sentindo níveis crescentes de ansiedade e de depressão.


44. A autora respondeu à nota de culpa.


45. No dia 24 de Julho de 2020 a autora foi notificada da decisão disciplinar nos seguintes termos:


"Vimos pela presente comunicar a aplicação da sanção disciplinar de repreensão registada, bem como da perda de retribuição correspondente ao período de ausência de 30 de Março a 30 de Abril de 2020, pelos factos constantes do relatório anexo, que aqui se dá por integralmente reproduzido. Com efeito, ficou provada a violação do dever de obediência, no que respeita às ordens e instruções do empregador, bem como de superior hierárquico do trabalhador, e os deveres de assiduidade, nos termos alínea b) do n.° 1 e n.° 2 do artigo 128.°, e ainda às faltas não justificadas no período de 30 de Março a 30 de Abril de 2020, nos termos do n.° 3 do artigo 249°, todos do Código do Trabalho".


46. No dia 24 de Julho de 2020 a autora recebeu um email a informar que devia apresentar-se ao serviço no dia 27 de Julho.


47. A autora apresentou-se ao serviço entre os dias 27 e 31 de Julho.


48. Nessa semana de trabalho entre o dia 27 e 31 de Julho de 2020 a autora apercebeu-se que já toda a gente estava a par do processo disciplinar que foi aberto contra si e da respectiva decisão final.


49. Através de cochichos, de gestos e de olhares a autora sentiu a reprovação e o desdém dos membros da direcção da ré e até dos seus colegas por acção daqueles.


50. Embora sem lhe comunicar os assuntos que nela seriam tratados, a autora foi convocada pela directora pedagógica para uma reunião geral com a direcção agendada para o dia 31 de Julho de 2020, às 18:30 horas.


51. No dia 31 de Julho de 2020, às 18:30 horas, realizou-se uma reunião entre todos os funcionários - pessoal docente e não docente - e os membros da direcção da ré.


52. Nessa reunião o presidente da ré, Sr. DD, dirigindo-se a todos os presentes: i. Disse que houve questões que lhe desagradaram ao longo da pandemia; ii. com falta de solidariedade com as colegas, de falta de profissionalismo e de respeito pela entidade patronal; iii. se não estivessem bem podiam ir embora; iv. tendo sido ponderado que as pessoas tinham filhos.


53. Os níveis de ansiedade e de sofrimento da autora, que já eram humanamente insuportáveis, atingiram o paroxismo durante e depois dessa reunião.


54. A autora recorreu a tratamento psiquiátrico junto da médica psiquiatra EE a partir do dia 5 de Agosto de 2020, que lhe receitou medicação.


55.No dia 21 de Agosto de 2020, primeiro por correio electrónico e depois por correio postal registado com aviso de recepção, a autora enviou à ré a seguinte carta resolutiva:


"1. Por ter dois filhos a meu cargo, um com 10 e outro com 5 anos, com o início da pandemia ainda em curso de COVID-19 e o imediato encerramento dos infantários e escolas, exerci efetivamente o meu direito ao apoio excecional à família, nos termos e dentro das possibilidades oferecidas pela lei e em plena e prévia harmonização e conciliação de interesses e de procedimentos com todas as partes envolvidas, designadamente com essa Cooperativa e entidade patronal.


2. Para tanto preenchi completa e devidamente as declarações Mod. GF88-DGSS e entreguei-as à minha entidade empregadora sempre de acordo com as instruções e ordens emanadas pelos responsáveis da entidade patronal, designadamente da direcção e da directora pedagógica.


3. O apoio foi requerido apenas e só para mim e não para o pai dos filhos, que esteve sempre a trabalhar.


4. Porém, no dia 1 de junho de 2020, 2 horas depois de ter-me dirigido ao meu local de trabalho para entregar a última declaração de apoio aos filhos menores e de aí ter sido recebida com a maior das simpatias, recebi um email a informar que estava suspensa e que me tinha sido instaurado um processo disciplinar.


5. Fiquei literalmente sem chão, sentindo-me traída, castigada e enganada pela minha entidade patronal. Telefonei umas 10 vezes para a diretora pedagógica que não atendeu nenhuma das minhas chamadas, nem respondeu à minha sms.


6. No dia 2 de junho dirigi-me outra vez às instalações da entidade patronal e ao meu local de trabalho a fim de perceber o que tinha acontecido e a razão deste processo.


7. Falei com a diretora pedagógica que disse compreender a minha aflição mas que não podia fazer nada que tinha sido uma decisão tomada pela direção. Esta inclusive incentivou-me a defender-me e mencionou que eu estava a ser prejudicada por causa de outras duas colegas que também estavam suspensas.


8. No dia 23 de junho de 2020 fui notificada da nota de culpa, a qual, pelo seu conteúdo, surpreendem-me ainda mais do que a abertura do processo disciplinar.


9. Desde o dia 1 de julho que comecei a ter dificuldades no sono, ando sempre muito ansiosa e nervosa, comecei a tomar medicação por conta própria.


10. No decorrer deste processo senti-me cada vez mais alterada a nível psicológico, muito deprimida, pois fui acusada pelas pessoas - em quem confiava e que me uiieiílaiam - de falta de profissionalismo, de humildade, de educação, de responsabilidade, de brio e de respeito pela entidade patronal.


11. Ainda assim respondi à nota de culpa nos termos que aqui dou por integralmente reproduzidos com a convicção íntima de que tudo seria esclarecido e que todos os equívocos determinantes da abertura do processo disciplinar, da minha suspensão e da formulação da nota de culpa seriam integralmente dissipados.


12. Defendi-me sempre de todas as acusações com a verdade dos factos e com a consciência limpa de estar a agir corretam ente, mas com uma grande dificuldade em aceitar todas as ofensas à minha integridade pessoal e profissional.


13. No dia 24 de julho de 2020 recebi uma carta da minha entidade patronal a comunicar que me tinha sido aplicada uma sanção disciplinar que consistia no averbamento das faltas injustificadas na ficha de cadastro pessoal, bem como a devolução de valores recebidos no período de 30 de Março a 30 de Abril e na aplicação de sanção e repreensão registada.


14. Repudio e rejeito ponto por ponto as falsas imputações e conclusões formuladas na decisão disciplinar, que será impugnada pela via adequada.


15. Nesse mesmo dia 24 de julho de 2020 recebi um email a informar que no dia 27 de julho deveria regressar ao trabalho.


16. Com muitas dificuldades e à base de medicação fui trabalhar nessa semana.


17. Senti-me sob grande pressão psicológica e com muita ansiedade, além do mais por causa dos olhares de reprovação, do desdém, dos cochichos e da falsidade dos representantes da entidade patronal, particularmente dos membros da direção.


18. Durante essa semana foi-me comunicado pela diretora pedagógica que no dia 31 de julho, às 18:30 horas, haveria uma reunião geral com a direção, ou seja todos os funcionários, pessoal docente e não docente, inclusive quem estava de baixa médica teria de estar presente nesta reunião, mas não foi comunicado o motivo da mesma.


19. Esta reunião contou com a presença de todos os funcionários e com os membros da direção e recursos humanos, e tomando a palavra o presidente da C.. ....., Sr DD, começou por agradecer aos funcionários pelo trabalho realizado ao longo deste ano letivo, para depois se cingir maioritariamente ao processo disciplinar, que foi o assunto que mais lhe desagradou, segundo o mesmo, durante a pandemia.


20. Nessa reunião do dia 31 de julho, à frente de toda a gente, eu, tal como as minhas 2
outras colegas que se encontram nas mesmas condições, fui acusada de irresponsável, de
falta de solidariedade com as colegas, de falta de profissionalismo e de respeito pela
entidade patronal.


21. O presidente da C....... mencionou que se não estamos bem, podemos ir embora e ainda que tomou esta decisão e que não tem problemas em voltar a fazê-lo sempre que achar necessário, que este caso para ele está encerrado e que até foi muito brando.


22. Senti-me e fui objetiva e efetivamente denegrida e enxovalhada perante todos, servindo e sendo apontada como mau exemplo.


23. O Sr. DD, presidente da C......., nunca mencionou em que factos se baseou para me instaurar o processo, nem a decisão da sanção disciplinar que me aplicou, querendo passar a imagem de um patrão compreensivo e generoso.


24. A grande ansiedade e mau estar que passei durante essa semana que trabalhei entre o dia 27 e o dia 31 de julho e sobretudo a forma indigna com que fui tratada durante a reunião do dia 31 de julho, despontaram e agravaram os meus níveis de ansiedade e de esgotamento psicológico.


25. Por isso, no dia 5 de agosto consultei a psiquiatra Dra. EE que me medicou com antidepressivos e ansiolíticos, por estar num quadro de depressão e de muita ansiedade provocada por toda esta situação.


26. A Sra. Dra. aconselhou-me a entrar de baixa por não me encontrar em condições de voltar ao meu local de trabalho, com o risco de agravar o meu estado de saúde, de depressão, esgotamento e de grande perturbação pessoal.


27. Deste modo, o desrespeito, a traição e a ofensa à minha integridade pessoal e profissional perpetradas pela minha entidade patronal, no contexto da relação laboral assumem tal gravidade que a subsistência do contrato de trabalho se torna imediatamente impossível, não me sendo exigível a manutenção daquela relação.


28. A conjugação dos identificados fatores é para mim incomportável e torna imediatamente intolerável a manutenção do contrato de trabalho.


29. Na verdade, como estamos perante situações anormais e particularmente graves, deixa de ser-me possível e exigível que permaneça ligada à empresa e à entidade patronal por mais tempo, operando esta resolução imediatamente o seu efeito extintivo.


30. Cessarei as minhas funções no dia 24 de agosto de 2020 pelo que esta resolução produzirá os seus efeitos a partir desse mesmo dia 24 de agosto de 2020".


56. A ré recebeu esta carta resolutiva por correio electrónico no dia 21 de Agosto de 2020 e por correio postal registado no dia 25 de Agosto de 2020.


57. No dia 8 de Setembro de 2020 a autora interpelou a ré concedendo-lhe o prazo suplementar e final de até ao dia 14 seguinte para emitir e entregar-lhe o Certificado de Trabalho e a Declaração Modelo 5044 da Segurança Social devidamente preenchida.


58. A autora apresentou queixa e participação da demandada na Inspecção Regional do Trabalho, que intimou a ré a emitir a declaração modelo RP 5044-DGSS.


59. A ré emitiu essa declaração com data de 18 de Setembro de 2020.


60. No dia 29 de Setembro de 2020, com base na declaração modelo RP 5044-DGSS preenchida pela ré, a autora formulou pedido de prestações de desemprego no Instituto de Emprego da Madeira, IP — RAM.


61. A ré consignou na declaração modelo RP 5044-DGSS que a trabalhadora tinha denunciado o contrato de trabalho no âmbito da liberdade contratual.


62. O Instituto de Emprego da Madeira, IP - RAM indeferiu o pedido da autora de prestações de desemprego apresentado no dia 29 de Setembro de 2020 com. o fundamento de que "... denunciou o contrato de trabalho no âmbito da liberdade contratual, conforme declaração comprovativa da situação de desemprego (mod. RP 5044-DGSS), emitida pela entidade empregadora e entregue por V. Exa. neste serviço.".


63. A autora depende do seu trabalho para ganhar a vida e sustentar os seus filhos.


64. A autora era conhecida e respeitada no seu meio laboral e fora dele como pessoa trabalhadora, dedicada, leal e honesta.


65. Sempre foi trabalhadora exemplar,


66. Tem sentido enormes dificuldades para resistir à humilhação e vergonha a que ficou sujeita.


67.Câmara de Lobos é um meio pequeno onde toda a gente se conhece, especialmente os colegas de trabalho e os pais das crianças do infantário.


68. A Autora e outras duas funcionárias da Ré, FF e GG submeteram candidatura a um concurso público para recrutamento de pessoal docente de educação, tendo sido admitidas na lista de 25.05.2020.


69. A autora não apresentou declaração do outro progenitor, como este estava a trabalhar e não podia ficar em casa a cuidar dos filhos menores de 12 anos.


70. Na reunião de 25.05.2020 a autora informou a Directora Pedagógica que iria permanecer e assistência aos filhos menores.


- E considerou como "não provado" nomeadamente que:


«os filhos da Autora sejam o HH, nascido em ...-...-2010 e o II, nascido no dia ...-...-2015;


- tenham sido convocados para a reunião de 31 de julho os trabalhadores da Ré que estavam de baixa médica;


- na reunião de 31 de Julho, o presidente da ré, Sr. DD, disse que as questões relacionadas com o processo disciplinar foram a que mais lhe desagradaram, acusou a autora e as duas outras colegas que também foram alvo de processo disciplinar de irresponsáveis, revelou que se a autora e as duas colegas alvo de processo disciplinar não estivessem bem podiam ir embora, a decisão disciplinar foi muito branda considerando a gravidade dos comportamentos praticados pelas funcionárias alvo de processo disciplinar; - a autora só recebeu a declaração no dia 23 de Setembro de 2020;


- a autora quando regressou ao serviço fê-lo sob o efeito de calmantes mas ainda assim abalada e perturbada, pois só a iminência das férias há muito marcadas para o mês de Agosto permitiu à autora enfrentar o martírio que vivenciou no local de trabalho entre os dias 27 e 31 de Julho;


- que a psiquiatra tenha receitado à autora antidepressivos e ansiolíticos;


- com o encerramento das actividades lectivas para o público dos estabelecimentos da ré, os trabalhadores desta não ficaram dispensados de comparecer no seu local de trabalho;


- o Infantário internamente esteve sempre em funcionamento e o pessoal esteve a aborar ao serviço da Ré;


- no período de 29 de Março a 17 de Abril de 2020, a autora chegou a ligar para a Directora Pedagógica dizendo que não ia trabalhar e que tinha conhecimento que existiam pessoas de outros estabelecimentos de ensino que não estavam a trabalhar;


- desde o dia 30 de Março de 2020, a autora nunca esteve disponível para
colaborar e se apresentar no infantário, nem apresentou qualquer trabalho ou
projecto;


- foi solicitada a comparecência da autora ao serviço, o que rejeitou;


- durante a cerca sanitária os funcionários do Infantário não foram dispensados de
comparecer ao serviço. [...]».


III. – Fundamentação de direito


1. - Do objeto do recurso de revista.


- A inadmissibilidade do recurso de apelação, por extemporâneo;


- A nulidade do acórdão da Relação por alteração oficiosa do ponto 53 da matéria de facto, sem cumprimento do artigo 3.º, n.º 3 do CPC.


- A (i)licitude da resolução do contrato de trabalho.


2. - Da inadmissibilidade do recurso de apelação, por extemporâneo.


A Autora/recorrente alegou que tendo as alegações do recurso de apelação da Ré sido apresentadas no 11.º dia posterior ao termo do prazo geral para a sua interposição (30 dias), rejeitado este quanto à matéria de facto, rejeitado deverá ser quanto à questão de direito colocada nas alegações recursivas, por extemporâneo, face ao disposto no artigo 638.º, nºs 1 e 7 do CPC.


Acontece, no entanto, que a Autora não invocou a intempestividade do recurso de apelação da Ré nas suas contra-alegações, nem, tão pouco, reagiu ao despacho proferido na 1.ª instância, em 25 de maio de 2022, que admitiu tal recurso; ou seja, o acórdão recorrido não se pronunciou sobre tal matéria.


Ora, destinando-se os recursos a reapreciar as decisões tomadas pelos tribunais de inferior hierarquia e não a decidir questões novas que perante eles não tenham sido equacionadas, é manifesto que a questão (nova) da intempestividade do recurso de apelação da Ré não pode ser agora conhecida pelo Supremo Tribunal de Justiça.


[cfr., neste sentido, os acórdãos do STJ de 14.01.2015 proc. n.º 2881/07.8TTLSB.L1.S1 Melo Lima (Relator); de 22.02.2017 proc. 1519/15.4T8LSB.L1.S1 Ribeiro Cardoso (Relator); de 15.09.2021 proc. n.º 559/18.6T8VIS.C1.S1 Leonor Cruz Rodrigues; de 23.06.2023 proc. 1236/20.3T8BJA.E1.S1 Mário Belo Morgado (Relator), todos in www.dgsi.pt].


3. - Da nulidade do acórdão da Relação por alteração oficiosa do ponto 53 da matéria de facto, sem cumprimento do artigo 3.º, n.º 3 do CPC.


3.1. - O ponto 53. dos factos dados como provados na 1.ª instância tinha a seguinte redacção:


“53. Os níveis de ansiedade e de sofrimento da autora, que já eram humanamente insuportáveis, atingiram o paroxismo durante e depois dessa reunião na qual foi objectiva e efectivamente denegrida e enxovalhada perante todos os presentes.”


O Tribunal da Relação alterou, oficiosamente, essa redacção para:


"53. Os níveis de ansiedade e de sofrimento da autora, que já eram humanamente insuportáveis, atingiram o paroxismo durante e depois dessa reunião.”.


E argumentou:


Ora, constituindo objecto da presente acção - e do recurso - aferir da existência de justa causa para a resolução do contrato de trabalho e constituindo um dos fundamentos invocados para esta a conduta adoptada pelo presidente da direcção da R. na indicada reunião, é patente que a afirmação de que na reunião a A. "foi objectiva e efectivamente denegrida e enxovalhada perante todos os presentes", contém um evidente juízo de valor sobre o comportamento nela objectivamente prosseguido pelo representante do empregador, sendo susceptível, por si só, de permitir a sua qualificação como contrário ao dever de respeitar e tratar o trabalhador com urbanidade e probidade previsto no artigo 127.°, n.° 1, alínea a) do Código do Trabalho, e de o reconduzir à hipótese de justa causa de resolução prevista no artigo 394.°, n.° 2, alíneas b) e f) do mesmo código.


Este juízo sobre o comportamento do empregador haverá de ser feito perante os factos concretos que se provaram quanto à conduta que o seu representante adoptou na reunião em causa - será essa a base objectiva desse juízo -, sendo a partir dele que se alcançará a solução, no plano jurídico, do caso subjudice.


Não desconhecemos a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que "importa evitar excessos de formalismos sobre o que sejam factos conclusivos, não se devendo eliminar da matéria de facto segmentos que embora tenham valorações sociais comportam, ainda, um substrato factual que pode, inclusive, revelar-se importante”.


Mas não cremos que seja essa a situação que ocorre no caso em análise em que a afirmação em causa constitui uma conclusão a retirar dos factos provados e contende directamente com o thema decidendum da acção.”.


3.2. - A Autora arguiu a nulidade do acórdão por violação do princípio do contraditório, “porque o nº 3 do artigo 3º do CPC visa impedir as decisões surpresa”.


3.3. - Por acórdão de 15 de fevereiro de 2023, a Relação concluiu pela inexistência da arguida nulidade, nos seguintes termos:


“(…), ainda que nada decidisse expressamente sobre o facto 53. - como, em bom rigor, o Acórdão entendeu fazer, invocando o artigo 663°, n.º 2 do Código de Processo Civil de 2013, determinativo de que na elaboração do acórdão se observe, além do mais, o comando normativo do artigo 607.° relativo à discriminação dos factos - sempre estaria vedado ao Tribunal da Relação, na aplicação do direito aos factos, assentar o seu juízo sobre a afirmação conclusiva de que numa determinada reunião a A. "foi objectiva e efectivamente denegrida e enxovalhada perante todos os presentes ", conclusão esta que incumbia ao tribunal retirar dos demais factos que se encontrassem provados e que fossem susceptíveis de o demonstrar. Como ficou dito no Acórdão, "esta afirmação que contém um evidente juízo de valor sobre o comportamento nela objectivamente prosseguido pelo representante do empregador, sendo susceptível, por si só, de permitir a sua qualificação como contrário ao dever de respeitar e tratar o trabalhador com urbanidade e probidade previsto no artigo 127.°, n. ° 1, alínea a) do Código do Trabalho, e de o reconduzir à hipótese de justa causa de resolução prevista no artigo 394. ° n, ° 2, alíneas b) ef) do mesmo código".


Ou seja, independentemente da eliminação oficiosamente efectuada, sobre a qual a recorrente entende que deveria ter sido ouvida, nunca a decisão de direito desta Relação poderia fundar-se na valoração que constava do segmento em causa do ponto 53. dos factos provados.


Não pode, pois, dizer-se que a alteração da descrição constante do facto 53. se repercutiu, em si mesma, no conteúdo da decisão final, o que obsta a que se considere cometida a nulidade processual invocada.


(…)


Acresce que, como constitui entendimento doutrinário e jurisprudencial pacífico e reiterado, o limite cognitivo traçado nas conclusões do recurso em observância do princípio dispositivo cede quando se trate de questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio2.


Ora, o texto do acórdão é em si claro quanto ao entendimento de que se inscreve nos poderes oficiosos da Relação o de expurgar a decisão dos factos conclusivos.”.


[2 Entendimento que se funda já na doutrina de ALBERTO DOS REIS in "Código de Processo Civil Anotado", vol. V, pp. 362 e 363.].”.


3.4. – Concordando com a fundamentação exposta, concluímos pela inexistência da arguida nulidade do acórdão recorrido.


4. - Da (i)licitude da resolução do contrato de trabalho


4.1. - A 1.ª instância considerou:


Do cômputo da matéria apurada resulta, assim, que a Ré violou os seus deveres para com a Autora, desde logo, o de a respeitar e tratar com urbanidade e probidade, afastando quaisquer actos que possam afectar a sua dignidade, discriminatórios, lesivos, intimidatórios, hostis ou humilhantes (artigo 127º, n.º 1, alínea a), do Código do Trabalho).


Atenta a actividade desenvolvida pela Ré e o procedimento adoptado face às alegadas faltas da Autora, com instauração de procedimento disciplinar e decisão final proferida, a atitude adoptada por esta na dita reunião mostra-se claramente no sentido de criar um clima de medo utilizando o caso da visada com o procedimento disciplinar, a Autora, como exemplo para os demais, o que claramente assume uma dimensão inadmissível.


Posto isto o comportamento da Ré é violador dos direitos da Autora, importando então apreciar se o mesmo torna imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral.


Conforme já se referiu, a justa causa deve ser apreciada nos termos do n.º 2 do artigo 396º, do mesmo diploma legal, com as necessárias adaptações (artigo 441º, n.º 4 do Código do Trabalho).


Em nosso entendimento estará em causa a alínea b), do n.º 2, do artigo citado, a “violação culposa de garantias legais ou convencionais do trabalhador”.


Com relevo importa considerar a jurisprudência no que concerne ao grau do juízo de inexigibilidade da manutenção do vínculo laboral nesta sede. Na verdade, “não obstante as circunstâncias a apreciar para a verificação da justa causa para a resolução do contrato por parte do trabalhador serem reportadas às estabelecidas para os casos da justa causa de despedimento levado a cabo pelo empregador, o juízo de inexigibilidade da manutenção do vínculo tem de ser valorado de uma forma menos exigente relativamente à que se impõe para a cessação do vínculo pelo empregador, uma vez que este, ao contrário do trabalhador, tem outros meios legais de reação à violação dos deveres laborais” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.04.2021, no mesmo sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.2015, www.dgsi.pt).


Nesta linha de entendimento, com a qual nos identificamos, basta que a infracção do empregador seja grave e torne inexigível para o trabalhador a manutenção do seu contrato de trabalho.


Ora, do que se deixou dito supra quanto à reunião e ao que aí foi dito pela Ré e aos sentimentos que o sucedido provocou na Autora, resulta demonstrado que a posição assumida pela Ré comprometeu séria e definitivamente a manutenção da relação laboral, posto que, temos por certo, que não seria exigível à Autora manter-se em funções por se encontrar comprometida a relação laboral.


Conclui-se, assim, que a Autora resolveu o contrato de trabalho com justa causa, dando observância ao disposto no artigo 395º, do Código do Trabalho, o que lhe confere o direito à indemnização prevista no artigo 396º, do mesmo Código.”.


4.2. - No acórdão recorrido pode ler-se:


(…).


Com os factos apurados não vislumbramos que possa imputar-se ao empregador um qualquer comportamento, sendo certo que em qualquer das hipóteses de justa causa subjectiva previstas no n.° 2 do artigo 394.° do Código do Trabalho é imprescindível que se detecte um comportamento ilícito do empregador.


(…).


O que se apurou ter dito o presidente da ré, Sr. DD, sem uma identificação da trabalhadora ora recorrida ou, sequer, uma menção a que se reportava a trabalhadores alvo de procedimento disciplinar (o que poderia, eventualmente, ser considerado uma referência indirecta à mesma, porque os factos revelam que, a mesma foi alvo de procedimento disciplinar), não permite imputar à R. a violação dos deveres de respeitar e tratar a A. com urbanidade e probidade, afastando quaisquer actos que possam afectar a sua dignidade, discriminatórios, lesivos, intimidatórios, hostis ou humilhantes (artigo 127°, n.° 1, alínea a), do Código do Trabalho). Nem, diga-se, permite se conclua que na reunião a A. tenha sido objectiva e efectivamente denegrida e enxovalhada perante todos os presentes.


Pelo que não acompanhamos a sentença quando a mesma afirma que, atenta a actividade desenvolvida pela Ré e o procedimento disciplinar e decisão adoptados face às alegadas faltas, "a atitude adoptada por esta na dita reunião mostra-se claramente no sentido de criar um clima de medo utilizando o caso da visada com o procedimento disciplinar, a Autora, como exemplo para os demais, o que claramente assume uma dimensão inadmissível".


Em suma, a análise global da factualidade apurada e das circunstâncias que dela emergem não permite concluir que se tornou inexigível para a trabalhadora, ora recorrida, a subsistência da relação laboral, não colhendo os fundamentos por si alegados para conferir justa causa à resolução do contrato de trabalho a que procedeu, pelo que não se lhe pode reconhecer o direito a receber da recorrente uma qualquer indemnização nos termos do art. 396.° do Código de Trabalho.”.


Apreciemos.


4.3. - A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo de forma pacífica que o artigo 395.º, nº 1, do Código do Trabalho exige que a comunicação do trabalhador ao empregador com vista à resolução do contrato de trabalho deve conter a indicação sucinta dos factos que a justificam, cumprindo tal disposição legal a comunicação enviada pelo trabalhador ao empregador, na qual consigne que pretende a resolução imediata, com justa causa, do contrato de trabalho, por motivo de violação do direito de continuar a exercer a atividade para a qual foi contratado, na medida em que indique de forma sucinta o fundamento da resolução, com recurso a uma expressão de base factual.


[cfr., entre outros, Ac. de 24.02.2010 recurso n.º 934/07.1TTCBR.C1.S1 Vasques Dinis (Relator); Ac. de 14.07.2016 proc. n.º 1085/15.0T8VNF.G1.S1 Pinto Hespanhol (Relator); Ac. de 31.10.2018, proc. n.º 16066/16.9T8PRT.P1.S1 Chambel Mourisco (Relator)].


Assim, deve ser considerada toda a base factual da carta de resolução e não, apenas, o que terá ocorrido na reunião geral de 31 de julho de 2020.


A carta de resolução que a Autora enviou à Ré, a 21 de Agosto de 2020, era composta por trinta itens, transcritos no ponto 55. dos factos provados.


Desses trinta itens da carta de resolução está provado que:


- A Ré informou, através da sua Directora Pedagógica seguindo orientações da Direcção, que no período de 30 de Março a 17 de Abril, que correspondeu às férias escolares de Páscoa, que a Autora podia optar por tirar férias antecipadas ou ficar disponível a partir do dia 1 de Abril, para ir trabalhar caso fosse chamada para tal pela Direcção. A Directora Pedagógica esclareceu ainda que só as auxiliares iriam assegurar a manutenção da instituição em regime de rotatividade, até próximas indicações. (ponto 18. dos factos provados)


- A Autora optou por ficar na disponibilidade. (ponto 19.)


- A Autora perguntou à Directora Pedagógica se era necessário comunicar à administrativa a opção e a alteração daí decorrente, ao que a Directora Pedagógica disse que não, porque ela própria o faria. (ponto 20.)


- Entre 30 de Março e 17 de Abril de 2020, nem noutro período qualquer, a entidade patronal demandada atribuiu à autora quaisquer tarefas para realizar em casa ou em regime de teletrabalho. (ponto 22.)


- A autora nunca foi chamada para ir trabalhar pela entidade patronal até ao dia 21 de Maio de 2020, data em que lhe foi pedido para comparecer no local de trabalho às 09:00 horas do dia 25 de Maio de 2020. (ponto 23.)


- Através da Resolução n.º .../2020, de 18 de Abril da Presidência do Governo Regional da Madeira, foi declarada a situação de calamidade na freguesia de ..., Município de Câmara de Lobos, no período de 19 de Abril a 2 de Maio, a qual, além do mais, implicou a interdição de circulação e permanência de pessoas na via pública na freguesia de .... (ponto 25.)


-A Ré e o seu estabelecimento, onde a Autora trabalhava, localiza-se em Câmara de Lobos, freguesia na qual a Autora também reside. (ponto 26.).


- No dia 18 de Abril de 2020, às 19:48, a autora recebeu da Directora Pedagógica uma SMS com o seguinte teor: “Boa tarde devido a anunciada cerca sanitária em Câmara de Lobos, o nosso Presidente da Direcção ordenou que nos próximos quinze dias os G........ estarão encerrados. Se houver alguma nova indicação eu anunciarei atempadamente. Obrigada e cuidem-se”. (ponto 27.) (negritos e sublinhado nossos)


Em síntese:


- No período de 30 de Março a 17 de Abril de 2020, que correspondeu às férias escolares de Páscoa, entre tirar férias antecipadas ou ficar disponível a partir do dia 1 de Abril, para ir trabalhar caso fosse chamada para tal pela Direcção, a Autora optou por ficar na disponibilidade, sendo certo que a Autora nunca foi chamada para ir trabalhar pela Ré até ao dia 21 de Maio de 2020.


- No período de 19 de Abril a 2 de Maio de 2020, os “G........” estiveram encerrados por decisão da Ré.


Assim, neste contexto factual, imputar à Autora faltas ao trabalho, no período de 30 de Março a 30 de Abril de 2020, tratou-se de uma distorção da realidade, com todas as consequências daí inerentes, em particular, a fundada justa causa para a resolução do contrato de trabalho invocada pela Autora.


Na verdade, a falsidade imputada no procedimento disciplinar instaurado pela Ré consubstancia uma grosseira discriminação, humilhação e intimidação da Autora, trabalhadora com 14 anos ao serviço da Ré, com dois filhos menores de 12 anos de idade a frequentarem os infantários da “G........” e residente nessa mesma freguesia.


Ao comportar-se do modo descrito, a Ré não só violou, de forma grave e culposa, o dever previsto no artigo 127.º, n.º 1, alínea a), do Código do Trabalho - respeitar e tratar a Autora com urbanidade e probidade -, como violou o princípio da boa fé, consagrado no artigo 126.º, n.º 1 do mesmo diploma: a Ré imputou faltas à Autora que sabia não ter dado, pois, no período de 30 de Março a 17 de Abril de 2020, decorreram as férias da Páscoa e a Autora optou por ficar na disponibilidade, mas a Ré não a chamou para ir trabalhar; e no período de 19 de Abril a 2 de Maio de 2020, os “G........” estiveram encerrados por decisão da Ré.


Depois de tal acusação falsa, que provocou os cochichos, gestos e olhares que a Autora sentiu de reprovação dos colegas de trabalho e o desdém dos membros da direcção da Ré - cfr. ponto 49 -, jamais em tempo algum é possível admitir que a Autora passaria a confiar na Ré, como entidade empregadora, sendo, pois, inexigível a manutenção do seu contrato de trabalho.


O Sr. Procurador Geral Adjunto escreveu no seu Parecer:


Considerando a gravidade do comportamento da recorrida, com a violação culposa dos direitos da recorrente, e consequências daí resultantes, afigura-se ser de concluir que é inexigível a manutenção do contrato de trabalho pela trabalhadora, nos termos do art. 351.º, n.º 3, do CT ex vi art. 394º, n.º 4, do CT.”.


Sublinhe-se que da factualidade dada como provada resulta muito mais do que a ocorrência de um procedimento disciplinar infundado cuja superação facilmente se ultrapassaria pela mera impugnação e anulação do mesmo.


Deteta-se, em nosso modesto entendimento, o exercício do poder disciplinar num sentido não adequado à natureza e fins a que se destina, acrescido de uma divulgação pública, com objetivos que, em bom rigor, nem se consegue perceber, mas que causaram na trabalhadora danos relevantes.”.


Em conclusão: ao contrário do acordado no Tribunal da Relação, consideramos que a Autora resolveu o contrato de trabalho com justa causa, nos termos do artigo 394, n.º 2, al. b), do Código do Trabalho.


IV. - Decisão


Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social julgar procedente o recurso de revista apresentado pela Autora, revogar o acórdão recorrido e repristinar a sentença da 1.ª instância na parte revogada pela Relação: as alíneas b) e c) do dispositivo.


Custas a cargo da Ré.


Lisboa 11 de outubro de 2023


Domingos José de Morais (Relator)


Mário Belo Morgado


Júlio Gomes