Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
31/21.7JELSB.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PODERES DE COGNIÇÃO
AVULTADA COMPENSAÇÃO REMUNERATÓRIA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
I. Tendo em consideração os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no art. 434.º, do C.P.P., não cabe a este Tribunal apreciar matéria de facto que ficou estabilizada com o acórdão do Tribunal da Relação e relativamente à qual já não é admissível recurso.

II. Por outro lado, constitui jurisprudência consolidada do STJ que, em relação aos vícios previstos no art. 410.º n.º 2, do C.P.P., este Tribunal, no contexto em causa, apenas os poderá conhecer oficiosamente e não a pedido dos sujeitos processuais recorrentes.

III. Nesta conformidade, tais vícios não poderão constituir objeto do recurso para o STJ, podendo somente este Tribunal conhecer deles, ex officio, se resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

IV. Em face da factualidade dada como provada e, numa ponderação global de todos os fatores, assiste razão ao recorrente quando se insurge contra a agravação resultante da alínea c) do art. 24.º do DL n.º 15/93, de 22/01, uma vez que não ficou provado que, com a conduta praticada, tivesse obtido ou pretendido obter uma avultada compensatória remuneratória, pelo que será condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º n.º 1, do citado diploma legal.

V.  No que concerne à medida concreta da pena, a pena de 10 anos de prisão, aplicada pelo tribunal a quo, que confirmou a pena de prisão fixada pelo tribunal da primeira instância, teve por base a condenação do arguido pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. e pelo art. 21.º n.º 1 e 24 c), do DL n.º 15/93, sendo agora este crime “convolado” para o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º n.º 1, do mesmo diploma, cuja moldura penal, em abstrato, vai dos 4 anos aos 12 anos de prisão.

VI. Como é sabido, o crime de tráfico de estupefacientes é um crime contra a saúde pública, onde as necessidades de prevenção geral de integração da norma e de proteção de bens jurídicos são, particularmente, prementes, sendo também o “sentimento jurídico da comunidade” nada consentâneo com a sua punição através de penas leves ou meramente simbólicas.

 Considerando ainda a culpa intensa do arguido, a elevada gravidade da ilicitude, a natureza do produto apreendido (droga dura), os meios logísticos envolvidos, o papel ativo do arguido e a dimensão e organização da atividade desenvolvida, para além, naturalmente, das exigências de prevenção, em especial da prevenção geral, que são muito fortes, a que já fizemos referência, entendemos que, não obstante a alteração da qualificação jurídica, se justifica uma pena não muito diferente da anteriormente aplicada, ou seja, um pouco superior ao ponto médio da referida moldura, que se fixa em 9 anos e 6 meses de prisão, por reconhecermos ser a necessária, adequada, justa e proporcional.

VII. Nestes termos, acorda-se em rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso do arguido, no segmento em que impugna a matéria de facto do acórdão do Tribunal da Relação e relativamente aos vícios que invoca previstos no art. 410.º n.º 2 a) e c), do C.P.P., e concede-se parcial provimento ao recurso do mesmo arguido e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, na parte em que o condenou na pena de 10 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. pelos arts. 21.º n.º 1 e 24 c), do DL n.º 15/93, de 22/01, por ref. à Tabela I-B anexa, e condena-se, agora, o mesmo pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º n.º 1, do mesmo diploma, por ref. à Tabela I-B anexa, na pena de 9 anos e seis de prisão, mantendo-se, no mais, o acórdão recorrido.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 5.ª Secção, de 09/05/2023, foi negado provimento ao recurso do arguido AA, com os sinais dos autos, e, em consequência, mantida a condenação do mesmo nos termos do acórdão do Juízo Central Criminal ... -J6, da comarca de Lisboa Norte, na pena de 10 (dez) anos de prisão, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. pelos arts. 21.º n.º 1 e 24.º c), do DL n.º 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-B anexa.

2. Inconformado, recorreu o arguido, em 13/06/2023, para este Supremo Tribunal, apresentando as seguintes Conclusões da sua Motivação, que passamos a transcrever:

A) O ora Recorrente é natural do Brasil, tem nacionalidade brasileira, é natural do município de ..., no Estado de ...-Brasil. O pai era … na área do ramo automóvel, actualmente com 74 anos e reformado e a mãe, tem actualmente 66 anos de idade. O agregado familiar do Recorrente, hoje composto pela sua mulher, o enteado e sua sobrinha de 14 anos, residem em ... junto com o recorrente. É referido um bom relacionamento entre os vários elementos que compõem o agregado.

B) Em sede de Recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, foi proferido o Douto Acórdão: O tribunal fundou a sua convicção na prova real (apreensões de droga, perícias, autos de apreensão e relatórios de vigilância, tudo corroborado pelos depoimentos dos inspectores da Polícia Judiciária. Não credibilizou as declarações do arguido.

Ao invés do que pretende o recorrente, o erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão do julgador em relação à matéria de facto e aquela que teria sido a do recorrente. Limitando-se o recorrente a manifestar a sua discordância entre aquilo que foi dado como provado pelo Tribunal, e aquilo que ele, recorrente, teria dado como provado, não pode sequer enquadrar-se a questão na alínea c) do nº 2 do cit. art. 410º.

O tribunal a quo não incorreu em erro notório na apreciação da prova. Como resulta da supra transcrita fundamentação de facto, inexiste qualquer erro notório na apreciação da prova que resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com a experiência comum.

Decai, assim, este fundamento do recurso.

Assim, o arguido AA foi condenado, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c) do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-B anexa, na pena de 10 (dez) anos de prisão.

Improcede na íntegra o recurso do arguido AA.”

C) Não se conforma o arguido, ora Recorrente com o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o que justifica o presente Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que tem como objeto toda a matéria de direito e de facto do acórdão proferido nos presentes autos.

D) A decisão recorrida enferma, assim, de insuficiência para a decisão de matéria de facto provada que constitui o vício constante das als. a) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, vício que é possível ao STJ conhecer, mas não é possível suprir, por contender com a determinação da matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, obrigando ao reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo, nos termos dos arts. 426.º e 426.º-A, do CPP.

E) Um processo comunicacional probatório dialético impõe seriedade e cientificidade que credibilize o objeto sub judice e o legitime perante a sociedade sob pena de lançarmos as bases de um Estado polícia em que o relevante interesse público é uma qualquer condenação e não a condenação sob a égide da axiologia material de um Estado constitucional democrático.

F) Conforme Manuel Valente em Cadeia de Custódia da Prova-pg.31, “O Direito jamais pode abdicar da credibilidade jurídica da técnica científica em prol da eficácia, apenas possível com a integralidade da custódia da coisa apreendida. Outra opção significa a corrosão e a corrupção da superioridade ética do Estado. Não podemos olhar para a prova apenas como resultado, mas acima de tudo como um processo comunicacional probatório dialético límpido e transparente: leal e democrático.”

G) Em Ciência, Tecnologia e Investigação Criminal, ensina-nos José Braz, Assessor de Investigação Criminal e Ex-dirigente da Polícia Judiciária-pg.364, “Todas as práticas e procedimentos desenvolvidos, desde a localização e identificação de um vestígio pela Polícia Técnica, até à sua análise e interpretação pericial pela Polícia Científica, devem ser minuciosamente descritas de acordo com um protocolo procedimental validado e normalizado.”

H) Segundo o Manual de criminalística para pessoal não-forense do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e crimes, Considerando todas as fontes de informação disponíveis em investigações como, por exemplo, confissões, testemunhas, vídeo-vigilância, a evidência material desempenha um papel central e especialmente importante. Excetuando-se as provas materiais, todas as outras fontes de informação sofrem com problemas de confiabilidade limitada. A evidência material, quando identificada e apropriadamente tratada, oferece a melhor perspectiva para prover informações objetivas e confiáveis envolvendo o incidente sob investigação. Ressalta-se, ainda, que no entanto, o valor da evidência, mesmo cuidadosamente coletada e preservada, pode ser perdido se a cadeia de custódia não for adequadamente constituída. Cadeia de custódia é geralmente reconhecida como o elo fraco em investigações criminais. Refere-se ao procedimento de documentação cuidadosa e cronológica da evidência material para estabelecer a sua ligação à infração penal. Desde o início até o fim do processo judicial, é fundamental ser capaz de demonstrar cada passo (todas as etapas) para assegurar o “rastreamento” e a “continuidade” da evidência desde o local de crime até a sala do tribunal.

I) Assim, José Braz, Assessor de Investigação Criminal e Ex-dirigente da Polícia Judiciária na pág.. 366 e 367 no livro Ciência, Tecnologia e Investigação Criminal, refere que o acondicionamento, armazenamento e transporte de vestígios deve ser sempre feito, em condições que garantam o seu ISOLAMENTO e INVIOLABILI-DADE, utilizando recetáculos e sistemas de fechamento e de etiquetagem adequados.

J) O arguido, ora recorrente, desde a fase de instrução faz requerimentos ao Tribunal solicitando perícias. Todos os seus requerimentos foram negados, entretanto, na fase de julgamento em sua contestação o recorrente novamente solicitou as perícias no Iphone 6S que lhe foi indevidamente atribuído, bem como das camaras de videovigilância, a perícia só veio ser juntada aos autos na penúltima sessão de julgamento, limitando esta mandatária a inquirir as testemunhas, bem como os arguidos, interrompida inclusive pela Exa. Sra. Juiz Presidente do Tribunal Coletivo que julgou o processo em 1ª instância dizendo:(a este propósito importa transcrever) “Dra. nós não vamos estar aqui agora a ouvir todos os áudios da perícia, não é”, e indeferindo por não achar relevante a junção as imagens da camaras de videovigilância.

K) A pergunta que se faz é a seguinte: Como que em um relatório fotográfico feito pela Polícia judiciária em uma armazém cheio de camaras de videovigilância em suas fotografias não apareceu nenhuma das camaras? E como as suas imagens não podem ser relevantes para a descoberta da causa?

L) Não só o recorrente, mas o arguido BB também fez um requerimento solicitando a junção das camaras e que suas imagens fossem disponibilizadas, no dia 08/11/2022, veio o arguido BB fazer o requerimento, com referência de entrada e respectivo comprovativo de entrega via CITIUS n.º 43812907, que ora se transcreve:

“Inexiste ainda qualquer referência que seja ao conteúdo das câmaras de vigilância, ou cartões de memória das mesmas, instaladas no armazém, e retiradas no dia da detenção do ora Arguido pelos Senhores Inspectores da Polícia Judiciária.

Ora considera a defesa, naquele que é o seu muito humilde entendimento, ser essencial à descoberta da verdade material a peritagem ao conteúdo das mesmas.”

M) Totalmente de acordo com a mandatária do senhor BB, esta mandatária do arguido AA, ora recorrente, também entende ser essencial à descoberta da verdade a junção das camaras que foram retiradas pelos senhores Inspetores da Polícia Judiciária e que fosse feita peritagem no seu cartão de memória interno como por inúmeras vezes explicou o recorrente. Tanto assim é, que foram inúmeras vezes solicitadas as suas junções e perícias por parte da defesa e todas negadas sem a devida fundamentação, ferindo assim, o princípio do contraditório.

N) Nenhum dos inspetores da PJ que participaram das buscas no dia da prisão do recorrente souberam explicar de forma clara, como sabiam que o Iphone 6S pertencia de facto ao recorrente, ao serem as testemunhas questionadas, se viram o arguido com o telemóvel iphone 6S? as respostas foram:

CC: Não vi, mas sei que é do arguido porque esta escrito nos autos de apreensão (Cfr. Ata de Julgamento do dia 24/10/2022 às 15:14 da Gravação de Áudio e ficheiro 20221024105003_6142232_2871215.wma, pelas 01:42:19 às 01:44:27).

DD: Pressuponho que o telemóvel seja do Sr. AA porque estava junto com as coisas dele em um saco, (Cfr. Ata de Julgamento do dia 24/10/2022 às 15:14 da Gravação de Áudio e ficheiro 20221024153212_6142232_2871215.wma, pelas 22:25 às 22:54).

O) Aqui vemos desde logo que o protocolo contínuo, que assegura a memória de todas as fases do processo, a sua permanente reconstituição, demostração sendo, por isso, fundamental para garantir a integridade do vestígio e o seu correspondente valor probatório, não foi devidamente assegurado e tão pouco feito, se houvesse uma devida cadeia de custódia da prova, as Inspetoras teriam dado as informações com clareza e em pormenor, mas responderam com duvidas e com base naquilo que leram no auto de apreensão, a Inspetora DD, deixa ainda mais evidente a forma desajustada e sem cautela alguma que foram colhidos os objetos quando diz que “as coisas estavam no saco com o nome do Sr. AA.”

P) Os inspetores da Polícia Judiciária devem recolher/coletar os objetos no local do crime e enviar de imediato para quem tem legitimidade para fazer as devidas perícias e análises, tratando-se de telemóveis para Unidade de Perícia Tecnológica e Informática. A prisão e apreensão ocorreu no dia 12/08/2021, os objetos só foram enviados ao UPTI no dia 22/11/2021, consta ainda escrito à caneta as fls. 1736 dos autos principais “Recebi 1 saco de prova”.

Q) Consta nas fls. 2608 dos autos principais a descrição de como os objetos foram recebidos no laboratório, a este propósito importa transcrever:

Apreendido a AA

Equipamento entregue em saco prova série A n.º 114358 fechado - Iphone 6S;

Apreendido a AA

Equipamento entregue em saco prova série A n.º 114358 fechado - Iphone 11 Pro Max; Os objetos são recolhidos são colocados em sacos de provas e gerado um selo com um número, que neste caso foi A n.º 114358, entretanto, jamais poderiam ter sido colocados ambos os telemóveis no mesmo saco de provas gerando ali contaminação de vestígios.

R) Ainda se faz de suma importância ressaltar o que foi dito pelo inspetor EE, que “Diz ter feito revista no arguido e viu que o telemóvel estava com ele.” Nobre julgadores, como demostrado não houve uma cadeia de custódia de proca, houve uma violação da integridade e autenticidade dos objetos colhidos como prova, tornando-os nulos, e com está frase e sem direito ao contraditório e se esquecendo totalmente do princípio da presunção de inocência o Tribunal condenou o arguido. O que vemos aqui, com o devido e merecido respeito, é a infração dos princípios processuais penais, é inconstitucional e chega a ser abuso de poder.

S) O recorrente foi condenado por simplesmente ser o dono da empresa, em nenhum dos e-mails das negociações consta o recorrente, da perícia feita nos telemóveis demostra claramente que os demais arguidos e terceiros faziam planos sem o conhecimento do arguido, o facto do arguido vir várias vezes a Portugal não é motivo para condená-lo, não há nexo causal, o facto do arguido receber notícias em seu whatsapp de terceiros, seja de qual natureza for, o arguido recebeu, não pesquisou e tão pouco foi quem enviou, não é motivo para condená-lo, menos ainda em uma pena de 10 anos.

T) O julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”. Cfr. Acórdão do TRC de 01 de outubro de 2008, 3/07.4GAVGS.C2.

U) Foram Violados os Princípios do contraditório, tendo em vista que não foi dado ao recorrente o seu devido direito de produzir as provas para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, nomeadamente, todas as perícias solicitadas e inclusive as camaras de vídeo vigilância, bem como o princípio da presunção de inocência, tendo em vista que na fase de julgamento o ónus da prova teve que ser exercido pelo ora Recorrente na tentativa exaustiva de provar sua inocência ao invés de incumbir ao Ministério Público o ónus da prova. O arguido já entrou no tribunal condenado e sem direito ao contraditório. A culpa para lá de qualquer dúvida legítima significou que houve a probabilidade do Recorrente ter cometido o crime, então condena-o a uma pena descabida de 10 anos, conforme o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

V) E ainda a propósito do princípio do in dubio pro reo, e por sintetizar pacífica jurisprudência do STJ, transcreve-se sumário do acórdão STJ, no Proc. n.º 4006/05 – 3ª Secção, de 25/01/2006: “I – O princípio in dubio pro reo, maioritariamente, é entendido como pertinente à matéria de facto, pertencendo a fixação definitiva daquela à Relação, nos termos do art.º 428.º do CPP, a quem compete declará-lo sempre que resulte que o tribunal recorrido chegou a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos e não a decretou, em desfavor do arguido. II – Em paralelo se entende que o STJ pode sindicar a aplicação do princípio, no âmbito da sua competência de tribunal de revista (art.º 434º do CPP), enquanto questão de apreciação necessária sobre a observância ou desrespeito desse princípio geral de processo penal, ligado a uma concreta decisão de direito, quando naquele contexto de dúvida, esta não é declarada, em desfavor do arguido, ou ressalte evidente do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja quando é visível que a dúvida só não é reconhecida em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410º, n.º 2, al. c), do CPP.”

X) Acresce ainda que, como se diz no acórdão deste STJ (Proc. n.º 3167/06 – 3ª Secção, de 24/01/2007), “Se a fixação dos factos não é susceptível de constituir objeto de recurso para o STJ, enquanto Tribunal de revista votado em exclusivo ao reexame da matéria de direito (cfr. Arts.º 432º, n.º 2 al. d), e 434º, do CPP, e 722º, n.º 2 do CPC), já a pretensa violação das regras sobre a prova pode ser sindicada nesse recurso. Entre essas regras encontram-se as regras da experiência comum e o princípio do in dubio pro reo. Ponto é que a própria decisão, designadamente a sua fundamentação, indicie, sem necessidade de outras averiguações probatórias, terem-se as instâncias desviado das primeiras ou terem preterido o segundo.”

Y) Sendo jurisprudência pacífica do STJ que, salvo nos casos previstos no art. 432º, n.º 1, al. a), do CPP, o STJ, como tribunal de revista que é, só conhece dos vícios aludidos no n.º 2 do art.º 410º do CPP, por sua própria iniciativa, isto é, “ex oficio”, e não podendo esses vícios fundamentar o recurso, e, pese embora a inconstitucionalidade supra arguida quanto a essa questão, Também é certo que, como já acima se citou, tem sido entendido que “A circunstância de a detecção dos vícios ser de conhecimento oficioso não prejudica a possibilidade de os recorrentes tomarem a iniciativa e suscitarem esse conhecimento na fundamentação do recurso que interponham. Conhecimento oficioso não é óbice à iniciativa processual dos interessados, ou seja, mesmo que o conhecimento da questão seja suscitado pelos interessados, o Tribunal de recurso não deixa de proceder ex officio ao seu conhecimento, como sucede, aliás, sempre que em causa o conhecimento de direito (iura novit curia), independentemente da posição concordante ou discordante daqueles sobre a matéria”. Cfr. Acórdão do STJ de 17 de março de 2016, 849/12.1JACBR.

Z) Pelo exposto, o Tribunal, condenando o recorrente violou o princípio e direito fundamental do Recorrente a um processo justo e equitativo, com total desrespeito pelas suas garantias de defesa e pelo direito a um julgamento no qual sejam escrupulosamente cumpridos os princípios de independência, isenção e imparcialidade da magistratura judicial. Conforme os artigos 18.º, 20.º, n.ºs 1 e 4 e 32.º, n.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.

AA) Não respeitando a Cadeia de Custódia da Prova, violou ainda os princípios do instituto da prova penal, ilegitimidade, ilegalidade e ilicitude da prova, desta forma, por todo o já exposto acima, violando os princípios aqui mencionados houve uma nulidade insanável e proibição desta prova que o STJ deverá reconhecer ex officio, devido a sua inadmissibilidade de valoração da prova em sede de processo crime. Todas as perícias são válidas, desde que respeitem o princípio da legalidade da prova, artigo 125º do CPP e, que pela sua natureza e meios que utilizam não sejam proibidas por lei, artigo 126º do CPP.

BB) Verificando que os factos imputados ao arguido na acusação e na pronúncia e reproduzidos na decisão recorrida são manifestamente insuficientes para legitimar a condenação operada, conclui-se que o acórdão recorrido incorre na sua totalidade em nulidade, pelo que alude o disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, mais também pelo vício da ilegalidade, consequência resultante da violação de pressupostos materiais e formais processuais penais, pela violação dos princípios constitucionais da presunção de inocência e princípio in dubio pro reo.

CC) Posto isto, não pode o ora Recorrente conformar-se com o entendimento do tribunal, não há cabimento a tal agravamento do tipo legal de crime, motivo pelo qual deve o mesmo ser afastado.

DD) Outrossim, fundamentado no princípio do contraditório e ampla defesa, o Recorrente também se defende de sua condenação, quando da audiência de julgamento, posto que o contexto probatório, frágil, inconclusivo quanto a ter praticado os crimes pelos quais fora condenado, porém suficiente a lhe imputar uma pena de 10 anos de prisão.

EE) No caso, o Recorrente postula, no presente recurso, um novo julgamento diante das provas nos autos, ou ainda, pela nulidade da R Sentença, pela sua absolvição, ou então, pela medida de requalificação da pena.

FF) O recorrente requer ainda o conhecimento ex officio das nulidades probatórias.

GG) Logo, a teor do que preceitua o devido processo legal, e ainda, o in dúbio pro réu, postula-se pela reforma da condenação do Recorrente, a fim de que este não seja injustiçado.

Termos em que, e nos mais que V. Exas., doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser Revogado o Acórdão recorrido, e, em consequência, ser o Recorrente ABSOLVIDO por não existirem provas suficientes e bastantes que possibilitem a sua condenação pelo cometimento em coautoria material do crime pelo qual foi condenado;

E caso assim V.Exas. Doutamente não o considerem, deve a pena aplicada ser fixada em limite inferior mais benigno, num limite inferior ou igual a cinco anos, devendo pelos motivos invocados decair o agravamento p. e p. nos termos do disposto da alínea c) do artigo 24.º do DL 15/93, de 22 de janeiro, por referência á Tabela I-B, permitindo-se a suspensão da sua execução, nos termos do disposto no artigo 50º do Código Penal.

Fazendo-se, assim, a habitual e necessária JUSTIÇA.

3. Na sequência de reclamação, viria o recurso a ser admitido por despacho do Senhor Desembargador relator, de 14/07/2023, com efeito suspensivo.

4. O Ministério Público, junto do tribunal recorrido, respondeu, em 24/07/2023, ao recurso do arguido, concluindo da seguinte forma (Transcrição):

1. O Acórdão recorrido, ao enquadrar os factos no tipo agravado de tráfico de estupefacientes resultante da aplicação conjugada do disposto nos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c), do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, procedeu a uma correcta qualificação jurídico-criminal.

2. A pena aplicada mostra-se justa e aplicada.

3. A ser assim, a argumentação apresentada pelo Recorrente não tem qualquer fundamento e como tal o douto Acórdão recorrido não merece nenhum reparo ou censura.

5. Por sua vez, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu, em 04/09/2023 douto parecer, no qual levanta uma questão prévia sobre o não cumprimento, por parte do recorrente, do ónus de concluir, sugerindo que, com vista ao efetivo exercício do contraditório e à “clarificação do debate”, o mesmo fosse notificado para formular as conclusões de acordo com o que resulta de uma boa interpretação da lei processual penal, sob pena de rejeição do recurso, nos termos do disposto nos arts. 412º n.º 1 e 414º n.º 2, in fine, e 420º n.º 1b) do C.P.P., mas, se assim não se entender, defende que o recurso não merece provimento, mantendo-se a decisão recorrida.

Observado o contraditório, o arguido recorrente, através de requerimento de 19/09/2023, respondeu ao referido perecer, manifestando, em síntese, a sua discordância e mantendo integralmente os termos do seu recurso.

6. Submetidos os autos à Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso

Considerando o conteúdo das Conclusões, que, como é conhecido, delimitam o objeto do recurso, são as seguintes as questões colocadas:

- Vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova (art. 410.º n.º 2 a) e c), do C.P.P.);

- Violação do princípio in dubio pro reo;

- tipicidade/afastamento do agravamento da alínea c) do art. 24.º, do DL n.º 15/93, de 22/01;

- nulidade do acórdão recorrido (art. 379.º n.º 1 b), do C.P.P.); e

- medida concreta da pena, que, no entender do recorrente, deve ser fixada no limite dos 5 anos de prisão ou mesmo inferior, com a suspensão da sua execução.

III. Fundamentação

1. Uma palavra inicial sobre a questão prévia levantada pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, em virtude de o recorrente não ter apresentado as Conclusões do seu recurso de acordo com o estatuído no art. 412.º, do C.P.P.

Embora se reconheça que as Conclusões apresentadas padecem de falta de síntese e estão longe da perfeição técnico-jurídica, consegue-se, apesar de tudo, com algum esforço e boa vontade, deduzir das mesmas o sentido das questões colocadas pelo recorrente, pelo que nada se ordena, a este propósito, nos termos do art. 417.º n.º 3, do C.P.P.

2. Na parte que ora releva é do seguinte teor o acórdão recorrido (Transcrição):

(…)

II - A) Factos Provados

Dos factos constantes da Pronúncia:

1. Em data não apurada, anterior a 15.03.2021, os arguidos e terceiros, cujas identidades se desconhecem, congeminaram um plano que se traduzia na introdução de cocaína em Portugal, por via marítima e na sua entrega a terceiros a troco de quantias monetárias.

2. Para tanto, os arguidos contactaram com indivíduos localizados na América do Sul.

3. Na sequência de tais contactos, foram ajustados diversos envios de cocaína para os arguidos, através das empresas A..., Unipessoal, Lda e M..., unipessoal, Lda

4. O arguido AA era o único sócio-gerente da empresa A..., Unipessoal, Lda.

5. O arguido BB era funcionário de tal empresa, designada como COO – Director de Operações.

6. O arguido FF era o único sócio-gerente da sociedade M..., unipessoal, Lda.

7. As sobreditas empresas operavam no Complexo Industrial da ..., armazém D13, na ..., em ....

8. Na sequência de tais contactos, os terceiros localizados na América do Sul dissimularam 216 placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 54127,058g, em nove paletes de madeira.

9. Essa carga foi colocada, juntamente com outras paletes de madeira, no contentor marítimo GFRU ...... 4, que foi expedido para Portugal.

10. A carga chegou a Portugal em data não apurada, anterior a 05.07.2021.

11. No dia 05.07.2021, o veículo pesado com a matrícula ..-QI-.., transportou o mencionado contentor marítimo GFRU ...... 4 da ..., em Setúbal, até ao Parque Industrial ..., Armazém D13, em Vialonga.

12. O arguido BB chegou àquele local antes das 16h17m, ao volante do veículo automóvel com a matrícula ..-QZ-...

13. A arguida GG acorreu àquele local pelas 17h05m, ao volante do veículo automóvel com a matrícula ..-RD-...

14. O referido veículo pesado entrou naquele complexo industrial pelas 17h12m, imobilizando-se junto ao armazém D13.

15. Pelas 17h15m, a arguida GG abriu o portão das traseiras do armazém, que dá acesso ao cais de descarga.

16. O veículo pesado deslocou-se para aquele local e imobilizou a sua marcha, tendo a arguida GG dado diversas indicações ao condutor.

17. Logo após o arguido BB abandonou o complexo industrial ao volante do veículo com a matrícula ..-QZ-...

18. Pelas 17h35m, o arguido FF chegou ao referido complexo industrial, ao volante do veículo com a matrícula espanhola ....KTT.

19. O arguido HH chegou àquele local à mesma hora, aos comandos do veículo automóvel com a matrícula espanhola ....LDM, imediatamente atrás do arguido FF.

20. Os arguidos FF e HH abeiraram-se da arguida GG e mantiveram uma conversa durante cerca de 5m.

21. Pelas 17h48m, a arguida GG iniciou a descarga das paletes que se encontravam no interior do mencionado contentor, com o auxílio de um monta-cargas mecânico.

22. Enquanto isso decorria, o arguido FF observava a operação de descarga.

23. As paletes foram colocadas no interior do armazém D13.

24. Pelas 18h38m, a arguida GG abandonou o referido armazém pela porta principal, dirigiu-se ao seu veículo automóvel com a matrícula ..-RD-.. e deixou o complexo.

25. Pelas 18h45m, o arguido FF começou a manusear as paletes retiradas do contentor, dentro do aludido armazém e com o auxílio de um monta-cargas manual.

26. Pelas 19h27m, a arguida GG entrou no mencionado parque industrial ao volante do veículo automóvel de mercadorias, com a matrícula ..-EU-.., que estacionou junto ao armazém D13.

27. Esse veículo automóvel foi alugado pela arguida GG à empresa A..., Lda, em ..., tendo o pagamento sido feito em numerário.

28. A arguida GG abriu as portas do compartimento de carga da viatura e, depois, dirigiu-se para junto dos arguidos FF e HH.

29. Pelas 21h35m, a arguida GG e o arguido HH colocaram paletes de madeira vazias junto ao portão do cais de descarga do aludido armazém.

30. Cerca das 23h10m, a arguida GG abandonou o armazém, tendo aí regressado pelas 23h40m, ao volante do seu automóvel com a matrícula ..-RD-...

31. Pelas 00h06 do dia 06.07.2021, o portão do cais de descarga do armazém D13 foi aberto, estando os arguidos FF, HH e GG junto às paletes de madeira que aí se encontravam empilhadas.

32. Após o carregamento de diversas paletes por parte dos arguidos na viatura com a matrícula ..-EU-.., a arguida GG fechou o portão do armazém e desligou as luzes do espaço.

33. Seguidamente, a arguida GG saiu do complexo ao volante do seu automóvel, acima identificado.

34. Cerca das 00h35m do dia 06.07.2021, o arguido FF abandonou o complexo industrial, ao volante do automóvel com a matrícula ..-EU-...

35. O arguido HH seguiu o co-arguido FF, ao volante do referido automóvel com a matrícula espanhola ....LDM.

36. Pelas 00h45m, o arguido FF imobilizou a viatura que conduzia na rotunda de ..., que dá acesso à A1.

37. O arguido FF parou o veículo junto ao automóvel com a matrícula ..-RD-.., no qual se encontrava a arguida GG.

38. Em acto contínuo, a arguida GG saiu do lugar de condutor do seu automóvel e dirigiu-se ao arguido FF, entregando-lhe um papel.

39. Seguidamente, a arguida GG regressou ao seu automóvel e iniciou a marcha na direcção oposta em que anteriormente circulara.

40. Essa manobra, por parte da arguida GG, destinava-se a tentar avistar presença policial e alertar os arguidos FF e HH.

41. Imediatamente depois, os arguidos FF e HH acederam à A1 pela portagem de ..., tomando o sentido do ....

42. Pela 01h10m, o arguido FF parou na estação de serviço de ..., abasteceu a viatura de combustível e voltou à auto-estrada.

43. O arguido HH parou na mesma estação de serviço e, logo depois da 01h25m, regressou à A1, circulando à velocidade média de 110km/h.

44. Pelas 01h43m, a GNR deu ordem de paragem ao veículo conduzido pelo arguido FF, na aérea de serviço da A1 de ....

45. Nas apontadas circunstâncias, o arguido FF tinha no interior do automóvel as 216 placas de cocaína, com o peso líquido 54127,058g nas referidas paletes.

46. Dentro do automóvel estavam mais paletes de madeira, sem qualquer produto estupefaciente.

47. Pelas 01h58m, o arguido HH ingressou na mencionada área de serviço, depois de lhe ter sido dada ordem de paragem pela GNR.

48. Após se ter apercebido da operação de fiscalização da GNR, o arguido HH não imobilizou o veículo, acelerou e regressou à A1, a cerca de 160km/h.

49. O arguido HH foi interceptado pelas 02h15m, na área de serviço de ....

50. Aquando da sua intercepção, o arguido FF tinha consigo 6 telemóveis, a quantia de €120 e diversos manuscritos, sendo que num deles estava anotado “60,9x25 1522.500”.

51. O arguido HH tinha consigo dois telemóveis e a quantia de €10.155.

52. Após a detenção dos arguidos FF e HH, os arguidos AA e BB prosseguiram o apontado plano de introdução de cocaína em Portugal.

53. Os terceiros, localizados na América do Sul, dissimularam 49 placas de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 48944,400g, numa carga de feijão preto.

54. Essa mercadoria foi colocada no contentor marítimo HLBU.....68.

55. No dia 05.07.2021 o contentor foi carregado no navio UASC ..., no ..., no Brasil.

56. O aludido contentor chegou ao Porto de Sines no dia 08.08.2021, tendo sido descarregado do navio no dia seguinte.

57. No dia 11.08.2021 o contentor foi transportado do Porto de Sines, num veículo pesado, para o aludido armazém D13, do Complexo Industrial ..., em Vialonga.

58. O pesado em causa, com a matrícula ..-TX-.., ingressou no referido complexo industrial no dia 12.08.2021, pelas 08h53m, imobilizando-se junto ao armazém D13.

59. Seguidamente, o pesado dirigiu-se para as traseiras daquele armazém, colocando-se junto ao cais de descarga.

60. Naquele local já se encontravam os arguidos BB e AA.

61. O arguido BB descarregou a carga contida no pesado, com o auxílio de um monta-cargas mecânico e de um empilhador.

62. O arguido AA fotografou exclusivamente as paletes 3 e 5, com o seu telemóvel iPhone 6S.

63. O arguido AA enviou as fotografias das paletes 3 e 5, através de WhatsApp ao utilizador com o nickname “II”, que lhe respondeu «maravilha».

64. O arguido AA enviou também as fotografias das mesmas paletes, através da predita aplicação, a uma utilizadora com o nickname “JJ”.

65. Pelas 10h08m, os arguidos BB e AA terminaram a descarga da mercadoria e fecharam o cais de descarga.

66. Cerca das 11h30m, elementos da PJ interceptaram os arguidos BB e AA, no interior do armazém e junto à mercadoria que tinham descarregado do veículo pesado.

67. Em duas das paletes descarregadas (n.ºs 3 e 5), estavam dissimuladas as 49 placas de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 48944,400g.

68. Nas apontadas circunstâncias o arguido AA tinha consigo um iPhone, modelo 6S e um iPhone, modelo 11 Pro Max.

69. No referido iPhone 6S estavam as aludidas fotografias das paletes que continham a cocaína, as mensagens com os utilizadores de WhatsApp “II” e “JJ”.

70. Os números de tais utilizadores de WhatsApp eram os únicos contactos gravados nesse telemóvel.

71. No histórico do referido iPhone 6S do arguido AA, encontravam-se diversas pesquisas alusivas a apreensões de cocaína, ao Porto de Sines e a cães farejadores de estupefacientes.

72. O arguido BB tinha consigo um iPhone, modelo 11.

73. O arguido BB tinha no interior do veículo automóvel de marca Mercedes, com a matrícula AF-..-LJ, que estava estacionado no mencionado complexo industrial, o seguinte:

a. Um Ipad;

b. Um computador Macbook Pro;

c. Um disco externo;

d. Uma agenda do ano de 2021, com anotações manuscritas;

e. Um cartão de visita, em seu nome, com o timbre da empresa F...

74. Na mesma data, pelas 14h45m, o arguido BB tinha, entre outras coisas, na sua residência, sita na Rua ..., n.º 13, 1.º andar, no ..., ..., um caderno com anotações, uma pen drive e diversos documentos alusivos às empresas T..., Lda e à referida sociedade A..., Unipessoal, Lda.

75. No dia 20.12.2021, pelas 06h15m, a arguida GG estava na sua residência, sita na Praça ..., ..., em ....

76. Nessas circunstâncias a arguida tinha na sua residência, entre outras coisas, dois telemóveis, duas pen drives, diversos documentos alusivos às empresas M..., unipessoal, Lda e A..., Unipessoal, Lda e aos arguidos FF e BB, um manuscrito com as inscrições “alugar carrinha”, “5 dias”, “450€+IVA”, “12H” e “Setúbal” e três folhas relativas ao contentor GFRU ...... 4.

77. No contentor GFRU ...... 4 foram transportadas as supracitadas 216 placas de cocaína.

78. O aluguer da carrinha referia-se ao mencionado veículo com a matrícula ..-EU-.., usado para transportar tais placas de cocaína.

79. Os arguidos destinavam a entrega da cocaína a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.

80. As sobreditas quantias monetárias destinavam-se a custear as despesas inerentes ao transporte da cocaína.

81. Os telemóveis e demais material informático acima enumerado destinavam-se aos contactos entre os arguidos e as pessoas que lhes enviaram e posteriormente iriam receber a cocaína.

82. Os arguidos BB e AA trocaram entre si e por recurso aos aludidos telemóveis e à aplicação WhatsApp, várias mensagens alusivas à introdução da cocaína em território nacional.

83.º O arguido BB enviou, inclusivamente, ao arguido AA uma reportagem da TVI24, subordinada ao tema “os métodos mais incríveis usados no tráfico de droga”.

84. Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o propósito concretizado de introduzir em Portugal e ter consigo o mencionado estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conheciam, com o fito de o entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.

85. Os arguidos actuaram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Dos antecedentes criminais:

(…)

88. Do certificado de registo criminal do arguido AA nada consta.

(…)

93. Das condições económicas, pessoais, familiares e sociais do arguido AA:

O arguido AA, de nacionalidade brasileira, é natural do município de ..., no Estado de ...-Brasil. O pai era consultor técnico na área do ramo automóvel, actualmente com 74 anos e reformado e a mãe, tem actualmente 66 anos de idade. Tem um irmão. Os familiares residem em .... Os progenitores têm uma propriedade rural onde fazem a criação de aves que comercializam, além de possuírem outros bens imobiliários. Apesar de os pais serem de origem humilde, singraram na vida, vivendo o agregado um nível de vida bem acima da média. As relações no seio do agregado eram pautadas pela afectividade e entreajuda entre os seus membros e com a transmissão de normas e valores inerentes à sociedade onde estava inserido.

O arguido iniciou o percurso escolar em idade apropriada, tendo-se licenciado em engenharia civil com 23 anos de idade.

Sempre se dedicou à actividade comercial, iniciando-se na comercialização de madeira que comprava no ... e vendia em ..., tendo sido director da empresa de transportes “M.....”, entre 2006 e 2009 e nesse ano fundou uma empresa de transportes rodoviários, para transportar contentores, trabalhando também na área dos despachos aduaneiros, fretes marítimos, transporte de encomendas, comercialização de produtos de beleza, compra e venda de sucata e proprietário de um restaurante, referindo ter escritórios em ... e em ....

Em termos afectivos, AA casou-se em 2006, tendo a sua mulher, de origem japonesa, 47 anos de idade. Tem uma enteada com 14 anos de idade. O agregado reside em ..., num apartamento de que o arguido é proprietário. É referido um bom relacionamento entre os vários elementos que compõem o agregado.

Nos tempos livres, o arguido interage com o seu agregado familiar, fazendo férias com amigos.

Em termos de saúde, após ter tido um acidente de mota, ficou com os movimentos da perna direita condicionados, razão pela qual, em reclusão, não exerce qualquer actividade, por não ter funções compatíveis com o seu problema.

O arguido refere não ter qualquer hábito aditivo.

Enquanto recluído, AA teve duas visitas de dois amigos e fez uma videochamada com a sua mulher para o Brasil.

No seio institucional onde se encontra recluído, mantém uma conduta adaptada e de acordo com as normas, não averbando qualquer registo disciplinar.

(…)

III – Objecto dos recursos

(…)

Fundamentos do recurso do arguido AA:

(i) vício do art.º 410.º, n.º 1, al. a), do CPP; (ii) vício do art.º 410.º, n.º 2, al. c), do CPP; (iii) impugnação da decisão sobre a matéria de facto e in dubio pro reo; (iv) da medida da pena

(…)

IV – Fundamentação

Questão prévia

O Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido que o acórdão recorrido incorreu na nulidade a que alude o disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, com extensão dos efeitos dessa declaração de nulidade nos termos do disposto no artigo 402.º, n.º 2 alínea a), do mesmo Código.

Com os seguintes fundamentos: “O artigo 24.º, alínea c), do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, estabelece que a pena prevista no artigo 21.º é aumentada de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se o agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória. Ora, por um lado, constata-se que nem na acusação nem no despacho de pronúncia se imputa aos arguidos o facto de com as respetivas condutas terem pretendido obter avultada compensação remuneratória, nem, tão pouco, ali se faz qualquer referência ao valor do estupefaciente apreendido. Nestes termos, afigura-se-nos que, face à promoção do Ministério Público, o tribunal a quo não se encontrava perante uma mera alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação e da pronúncia pois estes, em si mesmos, e face à não imputação aos arguidos do facto que fundamentaria a agravação, não permitiam a sua subsunção à alínea c) do artigo 24.º ou, o mesmo é dizer, não lhe permitiriam proceder à condenação dos arguidos em conformidade com o que fora requerido. Para tanto, haveria que aditar à matéria imputada aos arguidos outros factos, ou seja, que com as respetivas condutas os arguidos teriam pretendido obter avultada compensação remuneratória e, eventualmente, qual o valor presumido do estupefaciente apreendido.

Por outro lado, acresce que o disposto na alínea f) do artigo 1.º do Código de Processo Penal estatui que constitui alteração substancial de factos, e não alteração não substancial de factos, aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Pelo que, quem considere, como o fazemos, que a regra do artigo 358.º, n.º 3 do Código de Processo Penal (da qual resulta que a mera alteração a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia constitui uma alteração não substancial de factos) vê o seu campo de aplicação limitado pela citada definição constante do artigo 1.º alínea f) no seu segundo segmento, nunca poderia qualificar como uma alteração não substancial de factos a alteração da qualificação jurídica da qual resultasse um agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis, tal como no caso sucederia. A requerida convolação traduzir-se-ia, portanto, em nossa opinião, e por força de qualquer uma das razões apontadas, numa alteração substancial de factos, cujo regime, que consta do artigo 359.º do CPP, impossibilita que essa alteração possa ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, exceto se o Ministério Público, o arguido e o assistente tivessem estado de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, o que manifestamente não ocorreu (cf. n.ºs 1 e 3). Certo é que, o acórdão condenatório também não fixou, como constituindo factos provados, nem o valor presumido do estupefaciente apreendido, nem que os arguidos, através das condutas que consubstanciavam a prática do citado crime de tráfico de estupefacientes, procuravam obter aquela avultada recompensa remuneratória. Condenando-os, não obstante, pelo tipo agravado de tráfico de estupefacientes resultante da aplicação conjugada do disposto nos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c), do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro.”

Sem razão, contudo.

Em primeiro lugar, a expressão “avultada compensação financeira” é manifestamente conclusiva e, por isso, insusceptível de figurar no rol dos factos provados - cfr. Ac. da Relação de Évora de 05.03.2013, processo n.º 41/12.5JELSB.E1, dgsi.pt.

O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 02.12.98, processo n.º 98P757, diz: “A referência, na decisão de facto, a «avultadas quantias em dinheiro» contém já em si mesma uma apreciação valorativa, que incumbe fazer apenas na decisão de direito, devendo proceder-se como se tal expressão não estivesse além escrita”.

A “avultada compensação financeira” se extrai da quantidade e qualidade do estupefaciente, da duração, do nível de organização da actividade e da sua logística, nada obstando que o apuramento dos montantes seja por via directa e indirecta, bem como (já a nível da responsabilidade de cada arguido) da inserção do agente na rede criminosa (cfr. Ac. da Relação de Évora de 16.04.2013, processo n.º 536/11.8TALGS.E1, dgsi.pt.

Dos factos da pronúncia - e dados como assentes no acórdão recorrido – estão todos os necessários para aferir da qualidade e quantidade do estupefaciente, do nível de organização e da logística da actividade dos arguidos, bem como a participação de cada um deles. E, quando aos valores, andou bem o tribunal a quo na sua fundamentação: “ Mais resulta que os arguidos actuaram à escala internacional e que a quantidade apreendida era manifestamente elevada: (i) 216 placas de cocaína, com o peso líquido 54.127,058g e (ii) 49 placas de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 48.944,400g. Resultando ainda das regras da experiência profissional de que o quilograma de cocaína ascendia a, pelo menos, de €25.000, estamos, então, perante um valor total bruto superior a €2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil euros) – sendo ainda passível de aumento, se utilizado produto de corte. Esta é, efectivamente, a estimativa resulta de diversos relatórios oficiais (V. Relatório Europeu sobre Drogas, 2021, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, acessível em https://www.emcdda.europa.eu/system/files/publications/13838/2021.2256_PT_03.pdf).”

Tudo visto, não sendo necessário aditar qualquer facto, a alteração da qualificação jurídica basta-se com o art.º 358.º, n.º 1, do CPP (ex vi n.º 3 do mesmo normativo), que foi cumprido pelo tribunal a quo.

Assim, não se vislumbra a apontada nulidade.

(…)

Recurso do arguido AA

(da insuficiência para a decisão de matéria de facto provada - al. a), do nº 2, do artº 410º, do CPP)

O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude a alínea a) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal, ocorre quando, da factualidade elencada na decisão recorrida, resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância do tribunal não se ter pronunciado (dando como provados ou não provados) todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação ou pela defesa, ou tenham resultado da discussão.

Trata-se de um vício que consiste em ser insuficiente a matéria de facto para a decisão de direito. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III vol., p. 339) “é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada”. Ou seja, é necessário que se verifique uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito.

Como se refere no Acórdão do STJ de 21.06.2007 (Processo 07P2268), a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é “a insuficiência que decorre da circunstância de o Tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da decisão da causa, ou seja, os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia, segundo o art. 339º, nº 4 do CPP”.

É manifesto que o que o recorrente invoca é a sua discordância quanto à apreciação da prova. Entende que a prova produzida não foi suficiente para a factualidade apurada. Porém, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada nada tem a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão proferida (questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, enquadrado nos termos do art. 127º do Cód. Proc. Penal, e insindicável em reexame da matéria de direito), sendo que o vício em questão só pode ter-se como existente quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão final.

Ora, analisada a decisão recorrida, não se vê que o Tribunal “a quo” tenha incorrido no vício a que alude a alínea a) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.

Os factos provados permitem a decisão de direito (condenação pela prática do crime de tráfico agravado) e o tribunal ponderou e indagou, dando como provados, todos os factos que constituem o objecto da decisão da causa.

A discordância do recorrente é fundamento de impugnação da decisão da matéria de facto, ao abrigo do art.º 412.º, n.º 3, do CPP, e não do vício em apreciação.

Improcede este fundamento do recurso.

(do erro notório na apreciação da prova – 412º, nº 2, al. c), do CPP)

O erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal é pacificamente considerado, na doutrina e na jurisprudência, como aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum. Neste sentido veja-se o Acórdão do STJ de 9.12.1998 (BMJ 482, p. 68) onde se conclui que “erro notório na apreciação da prova é aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta” e o Acórdão do STJ de 12.11.1998 (BMJ 481, p. 325) onde se refere que o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado, “que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa”.

O tribunal fundou a sua convicção na prova real (apreensões de droga, perícias, autos de apreensão e relatórios de vigilância, tudo corroborado pelos depoimentos dos inspectores da Polícia Judiciária. Não credibilizou as declarações do arguido.

Ao invés do que pretende o recorrente, o erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão do julgador em relação à matéria de facto e aquela que teria sido a do recorrente. Limitando-se o recorrente a manifestar a sua discordância entre aquilo que foi dado como provado pelo Tribunal, e aquilo que ele, recorrente, teria dado como provado, não pode sequer enquadrar-se a questão na alínea c) do nº 2 do cit. art. 410º.

O tribunal a quo não incorreu em erro notório na apreciação da prova.

Como resulta da supra transcrita fundamentação de facto, inexiste qualquer erro notório na apreciação da prova que resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com a experiência comum.

Decai, assim, este fundamento do recurso.

(da medida da pena)

O arguido AA foi condenado, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c) do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-B anexa, na pena de 10 (dez) anos de prisão;

A medida da pena, segundo os seus fins, tem como limiar mínimo a expectativa comunitária na validade (e reforço) das normas penais violadas. É a protecção dos bens jurídicos, a prevenção geral positiva. Quanto à culpa, que assenta num juízo de censura sobre a conduta do arguido reflectida no facto criminoso praticado, diga-se que, tanto constitui limite máximo da pena, como também seu fundamento (não há pena sem culpa). E, finalmente, o pendor da pena, mais acima ou mais abaixo, está na denominada prevenção especial, na reintegração do agente (que não tem tanto a ver com as suas relações sociais, se tem família ou amigos, mas sobretudo se é expectável que seja um cidadão fiel ao direito). Se são mínimas as exigências de prevenção especial, a medida da pena baixa; e sobe quando são maiores tais exigências.

Relativamente à situação pessoal, social e económica do arguido, ficou demonstrado o seguinte:

O arguido AA, de nacionalidade brasileira, é natural do município de ..., no Estado de ...-Brasil. O pai era consultor técnico na área do ramo automóvel, actualmente com 74 anos e reformado e a mãe, tem actualmente 66 anos de idade. Tem um irmão. Os familiares residem em .... Os progenitores têm uma propriedade rural onde fazem a criação de aves que comercializam, além de possuírem outros bens imobiliários. Apesar de os pais serem de origem humilde, singraram na vida, vivendo o agregado um nível de vida bem acima da média. As relações no seio do agregado eram pautadas pela afectividade e entreajuda entre os seus membros e com a transmissão de normas e valores inerentes à sociedade onde estava inserido.

O arguido iniciou o percurso escolar em idade apropriada, tendo-se licenciado em engenharia civil com 23 anos de idade.

Sempre se dedicou à actividade comercial, iniciando-se na comercialização de madeira que comprava no ... e vendia em ..., tendo sido director da empresa de transportes “M.....”, entre 2006 e 2009 e nesse ano fundou uma empresa de transportes rodoviários, para transportar contentores, trabalhando também na área dos despachos aduaneiros, fretes marítimos, transporte de encomendas, comercialização de produtos de beleza, compra e venda de sucata e proprietário de um restaurante, referindo ter escritórios em ... e em ....

Em termos afectivos, AA casou-se em 2006, tendo a sua mulher, de origem japonesa, 47 anos de idade. Tem uma enteada com 14 anos de idade. O agregado reside em ..., num apartamento de que o arguido é proprietário. É referido um bom relacionamento entre os vários elementos que compõem o agregado.

Nos tempos livres, o arguido interage com o seu agregado familiar, fazendo férias com amigos.

Em termos de saúde, após ter tido um acidente de mota, ficou com os movimentos da perna direita condicionados, razão pela qual, em reclusão, não exerce qualquer actividade, por não ter funções compatíveis com o seu problema.

O arguido refere não ter qualquer hábito aditivo.

Enquanto recluído, AA teve duas visitas de dois amigos e fez uma videochamada com a sua mulher para o Brasil.

No seio institucional onde se encontra recluído, mantém uma conduta adaptada e de acordo com as normas, não averbando qualquer registo disciplinar.

O dolo directo deste arguido é elevado. O juízo de censura ético é agravado pela circunstância de ter um papel preponderante numa rede criminosa de tráfico internacional, apenas preocupado com o lucro, completamente alheado dos malefícios do consumo de estupefacientes.

O grau de ilicitude é igualmente acentuado, pois a sua conduta reflecte desvalor em relação à ordem jurídica, nomeadamente à protecção da saúde pública e aos valores de vivência solidária em comunidade, sendo certo que estamos em sede de crime de perigo. Importa reflectir que o crime de tráfico de estupefacientes constitui um crime de perigo abstracto - “através destes crimes são incriminadas certas condutas adequadas à produção de perigos que ameaçam, de forma comum, a vida e a saúde dos homens” -Figueiredo Dias, RDE, IV-3), entendendo-se pela abstracção, “a circunstância da lei não exigir a verificação concreta do perigo de lesão resultante de certos factos, mas supõe-o iuris et de iure” (Eduardo Correia, Dir. Criminal, 1963, I vol., pg. 287).

Neste caso concreto, deve ainda ter-se em conta especiais razões de prevenção geral (negativa) e especial (negativa); aquela, para evitar que potenciais delinquentes sigam o exemplo, e esta, para advertir o arguido que a sua conduta é censurável, como tal, deve pôr-lhe fim. Mas também há que ponderar as prevenções geral positiva e especial positiva. Importa garantir a protecção das expectativas comunitárias na manutenção e reforço da norma violada, bem como as exigências decorrentes da circunstância do arguido não ser capaz de ter uma conduta um fiel ao direito

É também de ponderar a dimensão do tráfico, sendo que o arguido, em co-autoria, desenvolvia uma actividade com acentuada dimensão e consideravelmente organizada.

A gravidade das consequências também é significativa, pois a droga tem elevados efeitos nefastos, na saúde das pessoas, na vivência comunitária em solidariedade e na privação de convicções e valores.

Resta dizer que os sentimentos manifestados no cometimento do crime (comportamento egoístico e socialmente desajustado) e os motivos e fins determinantes (ganhar dinheiro, completamente indiferente aos males que causa o consumo e a dependência de estupefacientes) são altamente censuráveis.

Por conseguinte, tendo em conta a elevada intensidade da culpa, o acentuado grau de ilicitude, as especiais exigências de prevenção geral (positiva e negativa) e especial (positiva e negativa), a dimensão internacional da actividade criminosa, a sua organização, a gravidade das consequências e os censuráveis sentimentos manifestados no cometimento do crime, a pena de prisão de 10 (dez) anos em que foi condenado – exactamente no meio da moldura - é justa, ponderada e adequada.

Improcede na íntegra o recurso do arguido AA.

(…)

3. Relativamente ao objeto do recurso, o recorrente não podia ser mais claro ao afirmar, logo na conclusão C, que o mesmo era constituído por toda a matéria de direito e de facto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa1!

Acontece, porém, que tendo em atenção os poderes de cognição deste Supremo Tribunal, nos termos do disposto no art. 434.º, do C.P.P., não nos cabe apreciar matéria de facto que ficou estabilizada com o acórdão do Tribunal da Relação e relativamente à qual já não é admissível recurso.

Por outro lado, constitui jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça2 que, em relação aos vícios previstos no art. 410.º n.º 2, do C.P.P., este Tribunal, nesta situação, apenas os poderá conhecer oficiosamente e não a pedido dos sujeitos processuais recorrentes.

Nesta conformidade, tais vícios não poderão constituir objeto do recurso para o STJ, podendo somente este Tribunal conhecer deles, ex officio, se resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum3.

Porém, o recorrente invoca, mais uma vez, os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova, que, aliás, não concretiza minimamente, pois, como é evidente, não resultam do texto da decisão em causa, nos termos assinalados.

Do mesmo modo, a invocação da violação do princípio in dubio pro reo é, no contexto que atrás mencionámos, claramente deslocada e sem sentido.

Insurge-se também o recorrente contra a agravação resultante da alínea c) do art. 24.º do DL n.º 15/934, que, em seu entender, deveria decair.

Ora, em face da factualidade dada como provada e, numa ponderação global de todos os fatores, assiste, neste segmento, razão ao recorrente, uma vez que não ficou provado que, com a conduta praticada, tivesse obtido ou pretendido obter uma avultada compensatória remuneratória5.

Nestes termos, o arguido será condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/01.

Perante tal, fica prejudicado o conhecimento da alegada nulidade, prevista no art. 379.º n.º 1 b), do C.P.P.

Passando, por último, à medida concreta da pena6, a pena de 10 anos de prisão, aplicada pelo tribunal a quo, que confirmou a pena de prisão fixada pelo tribunal da primeira instância, teve por base a condenação do arguido pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. e pelo art. 21.º n.º 1 e 24 c), do DL n.º 15/93, sendo agora este crime “convolado” para o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º n.º 1, do mesmo diploma, cuja moldura penal, em abstrato, vai dos 4 anos aos 12 anos de prisão.

Como é sabido, o crime de tráfico de estupefacientes é um crime contra a saúde pública, onde as necessidades de prevenção geral de integração da norma e de proteção de bens jurídicos são, particularmente, prementes, sendo também o “sentimento jurídico da comunidade” nada consentâneo com a sua punição através de penas leves ou meramente simbólicas.

Considerando ainda a culpa intensa do arguido, a elevada gravidade da ilicitude, a natureza do produto apreendido (droga dura), os meios logísticos envolvidos, o papel ativo do arguido e a dimensão e organização da atividade desenvolvida, para além, naturalmente, das exigências de prevenção, em especial da prevenção geral, que são muito fortes, a que já fizemos referência, entendemos que, não obstante a alteração da qualificação jurídica, se justifica uma pena não muito diferente da anteriormente aplicada, ou seja, um pouco superior ao ponto médio da referida moldura, que se fixa em 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão, por reconhecermos ser a necessária, adequada, justa e proporcional, ficando, assim, excluída a possibilidade da pretendida suspensão da execução da pena (art. 50.º n.º 1, do Cód. Penal).

IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em

a) rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso do arguido AA, na parte em que impugna a matéria de facto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e relativamente aos vícios que invoca previstos no art. 410.º n.º 2 a) e c), do C.P.P.; e

b) conceder parcial provimento ao recurso do mesmo arguido e, em consequência, revogar-se o acórdão recorrido, na parte em que o condenou pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. pelos arts. 21.º n.º 1 e 24 c), do DL n.º 15/93, de 22/01, por ref. à Tabela I-B anexa, e condenar-se, agora, o mesmo pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/01, por ref. à Tabela I-B anexa, na pena de 9 (nove) anos e seis (meses) de prisão, mantendo-se, no mais, o acórdão recorrido.

Sem custas (art. 513.º n.º 1, do C.P.P.)

Lisboa, 8 de novembro de 2023

(processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Ana Barata de Brito (Adjunta)

Lopes da Mota (Adjunto)


_____


1. Sublinhado nosso.

2. Entre outros, os acórdãos de 9/3/2023 e de 1/3/2023, cujos relatores são, respetivamente, a Senhora Conselheira Helena Moniz e o Senhor Conselheiro Ernesto Vaz Pereira, Procs. n.ºs 1368/20.8JABRG.G1.S1 e 589/15.0JABRG.G2.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

3. Também a violação do princípio in dubio pro reo , como princípio atinente à apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicada pelo STJ dento dos seus limites de cognição, devendo por isso resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º n.º 2. Cfr. Acórdão do STJ de 25/10/2023, relator o Senhor Conselheiro Lopes da Mota, in www.dgsi.pt.

4. Sobre a agravante avultada compensação remuneratória, consagrada na citada al. c) do art. 24.º do DL n.º 15/93, vejam-se, v.g., os acórdãos do STJ de 3/2/2021 (rel. o Senhor Conselheiro Sénio Alves), 5/2/2020 (Senhor Conselheiro Francisco Caetano), 25/102017 (Senhor Conselheiro Gabriel Catarino) e 26/1/2005 (Senhor Conselheiro Henriques Gaspar), Procs. n.ºs 99/16.8JELSB.L1.S1, 895/18.1T9PDL.L1.S1, 163/15.0JELSB.C1.S1 e 04P4221, no sítio indicado.

5. Relembre-se que no art. 84.º dos factos provados, ficou apenas consignado que «Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o propósito concretizado de introduzir em Portugal e ter consigo o mencionado estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conheciam, com o fito de o entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias», o que se mostra, na verdade, insuficiente, para efeitos de qualificação do crime. Vejam-se também os arts. 79.º e 80.

6. Cfr., por todos, Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pg. 213 e ss., e Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2.ª ed., Almedina, pg. 53 e ss.