Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2822/23.5T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
LITISPENDÊNCIA
LEGITIMIDADE ADJETIVA
PEDIDO
ACOMPANHANTE
MINISTÉRIO PÚBLICO
NULIDADE PROCESSUAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
QUESTÃO NOVA
Data do Acordão: 11/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
O primado da vontade do beneficiário reflectido no regime jurídico do maior acompanhado não é de molde a neutralizar a excepção de litispendência.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO



1.AA, na qualidade de requerente e beneficiária, instaurou ( 9/2/2023) acção de acompanhamento de maior, com forma de processo especial.

Alegou, em resumo:

A requerente tem tido sérios problemas económico financeiros, tanto que foi declarada Insolvente, com exoneração do passivo restante, no processo de insolvência n.º Processo n.º 2603/20.8... j... do Tribunal de Comércio de ..., a 15 de Junho de 2020, com despacho de exoneração do passivo restante e respectivo período de cessão de 3 anos a terminar a 27/10/2023.

Neste processo e especialmente noutro processo de inventário 2290/09.4... local cível j... do tribunal judicial da Comarca do ... - ainda pendente - tem graves desentendimentos com os seus dois irmãos, BB e CC

Tem a necessidade de requerer a presente acção pois está sem capacidade de - temporariamente organizar e gerir economicamente a sua vida – face à insolvência e face ao facto de o seu filho Menor DD, no âmbito do processo n.º 216/11.4... do j... do Tribunal de Família e Menores do ..., lhe ter sido por sentença judicial retirada a guarda do mesmo, tendo ficado períodos de mais de um ano sem ver o seu Filho.

Precisa de ser internada por um período nunca inferior a 15 dias num estabelecimento de tratamento especializado em alcoologia. Vive sozinha com a presença num anexo de “um caseiro”, que a ajuda nas lides da casa, compras, alguma limpeza da mesma, que está em desarrumo pois está a ser lentamente “limpa” para uma melhor venda da sua residência no processo de insolvência.

A única pessoa idónea para acompanhante será um administrador judicial - que se sugere que seja o actual administrador de insolvência e fiduciário da mesma, o Dr EE - Rua ....

Razão pela qual deve ser nomeado para desempenhar a função de acompanhante e indica-se como vogais do conselho de família (que considera indispensável para supervisão do acompanhamento) vd., 1952º do CC– o aqui mandatário e o irmão CC.

Quanto ao protutor sugere a sua Prima FF, vd., art.º 1955º do CC.

Quanto às medidas, que considera adequadas – art.º 892º n.º2 al., b) CPC, e como Pedido:

A – internamento imediato, sob estrita supervisão de V ª Exa, vd., art.º 148º n.º1 e 2 do CC , curto entre 15 a 30 dias e temporário num estabelecimento público ou privado de tratamento intensivo de alcoologia. A única medida urgente e provisória. Podendo ser renovado com correcta fundamentação.

B – Ser gerida na sua vida corrente/pessoal e patrimonial - o que na prática já acontece - pelo Dr EE, seu fiduciário, até o fim do processo de exoneração do passivo restante, sendo que se reavaliará após o encerramento do processo, no essencial o acompanhamento geral do art.º 145º n.º2 do CC, com cuidado de alojamento, vestuário, alimentação, despesas correntes, saúde, resolução , ainda que por delegação em terceiro idóneo, de tratar assuntos correntes como banca, telecomunicações, serviços públicos como AT e SS).

C – Avaliação das suas patologias 899º do CPC – incapacitantes ou não – e ser efectivado um relatório de medicina forense no IMNL, com os seguintes quesitos: 1º - as doenças são incapacitantes, 2º vão piorar mesmo com tratamento, 3º o tratamento de alcoologia funcionou, entre outros quesitos que as partes e Vª Exa entendam por bem colocar.

Nestes termos, e nos demais de direito, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, consequentemente, ser decretado acompanhamento de adulto por anomalia psíquica deAA, com todas as legais consequências.

Seguindo-se os demais trâmites processuais até final, nomeadamente, e só a publicidade a existir com Sentença e só com a comunicação da sentença à

Conservatória do Registo Civil, nos termos do disposto nos Arts.78º, ns.º 1 e 2, “ex vi” art.º 1º, al. h) e 69º, n. 1, al. g), todos do Cód. Reg. Civil e Arts. 147º, 156º e 1920º - B, todos do Cód. Civil, e 893º do CPC.

Para tanto, requer-se a Vª Exª que, se digne ordenar a afixação dos editais e a publicação do anúncio a que se refere o art.º 893º do C.P.C.

Indica-se:

Para acompanhante, Dr EE - Rua ...

Para acompanhante substituto nos termos do art.º 900º n.º2 do CPC: Conselho de família.”

2. O Ministério Público foi citado e arguiu a excepção de litispendência, por correr já um outro processo, em que é requerente, sob o nº 576/23.4..., acção da mesma natureza - acção de acompanhamento de Maior, relativamente à aqui Requerente AA.

No âmbito dos autos nº 576/23.4... – JLC/J1, a Beneficiária - AA

AA foi citada – citação pessoal, no dia 09.02.2023, pelas 09h00 – cfr. Certidão de Citação por Oficial de Justiça dos autos nº 576/23.4... – JLC/J....

O Requerimento Inicial que deu início à presente acção deu entrada em juízo no mesmo dia em que AA foi citada no âmbito dos autos nº 576/23.4... - dia 09.02.2023, pelas 18h49.

Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

A presente acção é idêntica à acção nº 576/23.4... – JLC/J..., na medida em que são os mesmos: o sujeito (mesma Beneficiária), o pedido (aplicação de medidas de Acompanhamento) e a causa de pedir (factos concretizadores da necessidade de Acompanhamento), nos termos dos artºs580º e 581º do C.P.C.

Verifica-se, pois, a excepção de litispendência, a qual se invoca na presente acção proposta em segundo lugar.

Nestes termos e nos demais de direito deverá ser julgada procedente a invocada Excepção de Litispendência ao abrigo do disposto nos artºs 580º e 581º do C.P.C. com a subsequente absolvição da instância – artº 278º, nº 1, al. e) do C.P.C.

2. Por sentença de 27/3/2023 julgou-se procedente a excepção de litispendência.

Exarou-se a seguinte fundamentação:

«Factos provados:

Por documentos e/ou confissão considero provado:

A) - A requerente interpôs a presente ação a 09-02-2023.

B) - O Ministério Público foi notificado a 23-02-2023.

C)- O Ministério Público interpôs ação de maior acompanhado em que é requerida a ora requerente e que corre termos sob o n.º 576/23.4..., j..., deste juízo local cível do ....

D)- Nos referidos autos a requerida foi citada no dia 09-02-2023.

Cumpre apreciar e decidir:

Dispõe o artigo 580.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que «se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência». Da factualidade apurada verifica-se que estão pendentes duas ações que têm em vista a aplicação de medidas de acompanhamento à ora requerente. Estamos assim perante uma situação de litispendência definida no artigo 580.º do CPC - repetição de causas pendentes entre os mesmos sujeitos e com o mesmo objeto substanciado na referida causa de pedir.

A litispendência visa impedir inútil repetição de causas (princípio da economia processual) e evitar várias decisões repetidas ou contraditórias.

Nestes termos, considero verificada a exceção de litispendência a qual foi conhecida na ação proposta em segundo lugar (artigo 582.º, n.º 1 do Código de Processo Civil). A litispendência constitui uma exceção dilatória, obstando ao conhecimento do mérito da causa (artigo 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea e) do Código de Processo Civil).

Assim, resulta à evidência que a presente ação não poderá prosseguir.

Decisão:

Face ao exposto, considerando verificada a exceção de litispendência, com a consequente absolvição da instância

Custas pela Requerente (artigo 527 nº1 e 2 CPC).

Registe e notifique”.

3.- A Requerente recorreu de apelação e a Relação do Porto, por acórdão de 12/7/2023 decidiu negar provimento ao recurso e confirmar a sentença.

4. Inconformada, a Requerente interpôs recurso de revista excepcional, com as seguintes conclusões:

“1ª – Com efeito foi a aqui recorrente que deu entrada, de motu próprio, a presente acção de adulto/maior acompanhado.

2 ª A R., admite que o efeito útil – ser acompanhada nos termos dos arts.º 122º e ss do CC e 891º e ss do CPC e Lei 49/2018, é o mesmo, mas os termos são diferentes.

3ª – O presente processo está incluído no Livro V, dos processos especiais no CPC, pelo que tem especialidades face à Lei geral, maxime é urgente, vd., art.º 891º do CPC, que reduz, inclusive o prazo de recurso, art.638º n. º1 do CPC, corre em férias, etc.

4ª- Deve se reduzir ao mínimo de intromissão nas liberdades dos cidadãos, só restringindo as DLG’ s no estritamente necessário e adequado às concretas especificidades do caso.

5ª – Tem carácter subsidiário, ou seja, só se a devida assistência e cooperação familiar falhar é que é aplicado o instituto de maior acompanhado.

6ª – As medidas que o tribunal possa aplicar devem ser flexíveis, e podem ser retiradas a qualquer momento e obrigatoriamente revistas a cada 5 anos.

7ª - Pelo conteúdo do art.º 141º n.º 1 do CC, a regra geral é que deve ser o próprio maior a acompanhar a propor acção, sendo o suprimento a excepção.

8ª – De modo que, se o legislador positivou a questão do suprimento, a contrario, interpreta a R., que, 1º a questão é juridicamente, em termos jurídicos pertinente, e 2º, absolutamente subsidiária à prioridade de se considerar que deve ser o próprio requerente a interpor a acção.

9ª – No caso em que o maior acompanhar propõe a acção, a acção proposta pelo MP, deve cair, (ser dada sem efeito) pois, esta é subsidiária e o efeito útil é atingido, com o controlo do magistrado que sempre estará presente nas audiências do presente processo.

10ª – A R., interpreta a lei no sentido que Deve ser dada preferência ao seu pedido da Requerente/autora e já não ao processo requerido por terceiros/MP, que só faria sentido continuar se a R., nada fizesse. Ao actuar e agindo, deve o presente processo prosseguir face à excepcionalidade/especialidade do caso de maior acompanhado e as limitações que acarreta na vida do acompanhado.

11ª – Pelo contrário, a R., ao actuar em sua protecção, agindo, deve o presente processo prosseguir, e já não o segundo n.º 576/23.4... perante os princípios da excepcionalidade/especialidade/subsidiariedade, dos processos de maior acompanhado e as restrições na vida do acompanhado.

12ª - No art.º 582º n. º2 do CPC está previsto que acção é considerada proposta em 2º lugar quando o R, seja citado em 2º lugar.

13ª – Porém, quando é a própria R., a propor a acção, este não é, obviamente citada, logo esse critério é afastado, na óptica da R, pois a R., nunca seria nem será citada no presente processo.

14ª – Apesar deste detalhe, a R considera que a questão da litispendência não é clara no seu preenchimento de requisitos.

15ª – Como infra se alegou, a presente acção não foi, de todo, proposta nos mesmos precisos termos, p.e., indica como acompanhante pessoa diferente da acção proposta pela MP.

16ª – Desta feição, ainda que as acções incidam sobre o mesmo bem a proteger, (P.e., a saúde da R) os termos são distintos, e a R., considera que poderá não haver a excepção dilatória de litispendência.

17ª - Vd., Ac., ST de 27/06/2000, Relator Pais Sousa, proc., n.º 00A420.

“ (…)

18ª – No presente processo, a R, invocou diferentemente o seguinte: a indicação de acompanhante diferente, com diferentes factos, com indicação que os irmãos são parciais e estão patrimonialmente interessados em gerir a vida da Irmã face à Partilha da Herança do Pai, pelo outro lado, naquela 2ª acção, os sugeridos irmãos para acompanhantes são os proponentes junto do MP, querem até que fique inibida de testar, não indicaram que há partilhas, etc.

19ª – Torna-se claro que os termos são díspares, logo a identidade do pedido não é rigorosamente a mesma, assim a R., conclui que não há litispendência, devendo ser revogada a Sentença pelo facto de 581º n.º 1 a 3 do CPC não estar inteiramente preenchido em sede de litispendência, violou esta norma e deveria ter concluído, após leitura atenta do processo n.º 576/23.4... (art.º 639º n.º 2 al., a) e b) do CPC) que os termos são diferentes e não esta preenchida a litispendência.

20ª – Não obstante a questão da litispendência, não ser surpresa e poder e dever ser suscitada e decidida ex officio, sendo aliás previsível a sua discussão, vd., art.º 578 do CPC.,

21ª - A R., nada tem a opor, ao conhecimento oficioso, mas já tem com a forma como se chegou à decisão.

22ª - mas como esta acção especial apenas prevê dois articulados, vd., arts., 892º e 896º do CPC.

23ª – Por conseguinte, a Requerente apenas exercer o contraditório do requerimento do MP junto aos autos que precedeu a Sentença em audiência de audição da R., ou convidado pelo Tribunal em sede de contraditório para responder à excepção dilatória ou requerer o que considerar conveniente no patrocínio da sua cliente. Não sucedeu, violando o Tribunal o art.º 3º n. º3, pois devia ter concedido prazo para contraditório.

24ª - A matéria litispendência era previsível, admite a R., mas esta tem sempre direito a não concordar/contraditar ou requerer outras soluções para defesa da R., nomeadamente, dentro do princípio do aproveitamento dos actos processuais, art.º 193º do CPC.

25ª Tinha sempre o direito a requerer a apensação, ou igualmente a requerer que o no 1º processo o juiz pudesse aproveitar a petição inicial, com as nossas testemunhas, aliás, neste processo n.º 576/23.4... com aplausos, o próprio MP, solicitou ao juiz o aproveitamento/adicionamento de testemunhas constantes da nossa petição inicial.

26ª – Na Lei existem remédios para que as ambições da R., sejam precavidas e não sejam lesadas, ainda que in casu o suprimento – a existir litispendência – seja legalmente não permitido, vd., art.º 576º n. º2 e 278º n. º1 al., e) – havendo sempre a hipótese do n. º2 ser eventualmente possível ultrapassar abarreira da absolvição da instância com o reenvio remetido para outro tribunal.

27ª – Para os devidos efeitos, a R se argui renovadamente a nulidade nos termos do art.º 195º ex vi do art.º 3º n. º3 do CPC.

28ª - Devendo se revogada o Acórdão de modo que a R., deve ser convidada a pronunciar-se sobre a questão da litispendência.

29ª - Vem a aqui R., arguir de forma clara, adequada e de modo a criar uma obrigação de pronúncia expressa ao Tribunal vd., art.º 205º da CRP, nos termos do art.º 70º da LTC, que a interpretação dos arts.º 195 n.º1, ex vi do art.º 3º n.º 3 e o 576º n.º1 a 3, 581º e 582º, ambos do CPC - pois o princípio do contraditório tem consagração constitucional no art.º 20º n.º1 e 4 da Constituição da República Portuguesa de concluir/decidir no sentido em que o Tribunal se pronunciou, ou seja, não concedendo qualquer possibilidade à A, de previamente de ampla e efectiva oportunidade ao sujeito processual de a discutir, de a contestar e de a valorar, no regular exercício para contraditório, é uma violação do seu direito de Defesa (sim defesa porque é um processo especial que limita as suas DLG’s, in casu, ficando apenas pendente o que foi proposto contra si), por violação do art.º 20º n.º1 e 4 da CRP, direito a um processo equitativo, contraditório e garantia de defesa da A.

30ª – A Relação também violou o princípio do contraditório ao incluir na sua decisão questões novas não incluídas no recurso que estava vedada pelos arts.º 635º, n.ºs 3 a 5, e 639º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, sem que antes, pelo menos tenha concedido prazo de regular exercício de contraditório, nos termos do art.º 3º n.º3 do CPC.

31ª – Deve, assim, nessa parte ser revogado o Aresto, ora em crise, e ser concedido o requerido prazo de contraditório, ou ser afastado de todo a colação de questões novas.

32ª – Vem a R., arguir de forma clara, adequada e de modo a criar uma obrigação de pronúncia expressa ao Tribunal vd., art.º 205º da CRP, nos termos do art.º 70º da LTC, que a interpretação dos arts 635º, n.ºs 3 a 5, e 639º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, no sentido de incluir questões e factos não incluídos no recurso de Apelação sem que antes o Tribunal conceda à Recorrente um prazo razoável para o regular exercício do contraditório – art.º 3º n.º3 do CPC,e pronúncia sobre os factos que ex officio trouxe à decisão do processo é ou não uma interpretação não constitucional por violação do art.º 20º n.º1 e 4 da CRP, por violação do direito a um processo equitativo e ao efectivo direito ao recurso e controlo da matéria de facto incluída ex novo no recurso de apelação.

33ª- Subsidiariamente, a R., peticiona junto do Supremo que em sede do princípio da substituição do tribunal a quo – vd., art. º679º que remete para o art.º 665º do CPC – que no caso de considerar a litispendência, procedente, que, ainda assim, ordene ou a apensação dos presentes autos ao processo n.º 576/23.4... e/ou o aproveitamento dos actos processuais, art.º 193º do CPC, de modo que os direitos da R., sejam acautelados neste processo n.º 576/23.4...

5. O Ministério Público contra-alegou no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – O objecto do recurso

As questões submetidas a revista, delimitada pelas conclusões, são as seguintes:

A nulidade por violação do contraditório e o excesso de pronúncia;

A excepção da litispendência.

2.2.- A violação do contraditório

A arguição da nulidade por violação do contraditório quanto à decisão sobre a procedência da excepção de litispendência carece de fundamento.

Em primeiro lugar, contrariamente ao alegado, a excepção da litispendência foi previamente arguida pelo Ministério Público na sua resposta, e não conhecida oficiosamente pelo tribunal, como decisão surpresa.

Depois, a requerente foi, em 14/3/2023, expressamente notificada, com cópia da resposta, e nada disse.

Muito embora o art.3 nº4 CPC preceitue que à excepções deduzidas em último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou não havendo lugar a ela, no início da audiência final, a verdade é que não se procedeu a audiência prévia, tendo-se proferido sentença.

No entanto, atendendo à natureza do processo de acompanhamento do e à circunstância da questão ter sido debatida no recurso, pode afirmar-se que na sua essência, o direito de defesa da requerente não foi violado, como justificou a Relação:

“O processo de acompanhamento de maior é um processo especial, ao qual se aplicam as disposições dos processos comuns e dos de jurisdição voluntária: art.º 549º e 891º do CPC.

Assim, nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art.º 987º CPC).

No caso, a exceção da litispendência conhecida no despacho saneador foi invocada pelo Mº Pº; a Requerente foi notificada da resposta do Mº Pº, medida em que ficou consciente, ou pelo menos alertada, da possibilidade de o tribunal lhe dar acolhimento.

Ora, a questão da litispendência é de índole estritamente jurídica. Atendendo à urgência do processo e ao critério de oportunidade subjacente à jurisdição voluntária, pode considerar-se que a medida de boa gestão processual seria no sentido de imediata decisão, dado que nenhum prejuízo daí advinha à Requerente; ao contrário, a situação mais rapidamente ficava decidida, como se pretende num processo urgente.

Nesta medida, face aos contornos particulares da situação, não se justificaria vir agora a proceder-se a uma anulação, apenas para notificar a Requerente para se pronunciar sobre a litispendência.

A Requerente teve essa possibilidade através deste recurso, incumbindo agora a este Tribunal conhecer das suas razões para a discordância, e reponderando a decisão da litispendência.

Assim, nenhum direito fundamental lhe é, ou foi coartado, designadamente os invocados direito a um processo equitativo, contraditório e garantia de defesa plasmados art.º 20º n.º 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP).”

Concorda-se com a argumentação exposta. Deve acrescentar-se que, havendo dois articulados, a possibilidade de resposta nos momentos previstos no art.3 nº4 CPC não preclude ou inibe a parte de responder à excepção em requerimento autónomo, desde logo porque a tramitação do processo especial de acompanhamento de maiores (arts. 891 e segs. CPC) não prevê a audiência prévia e a audiência final.

A recorrente alega que Relação também violou o princípio do contraditório ao incluir na sua decisão questões novas não incluídas no recurso que estava vedada pelos arts.º 635º, n.ºs 3 a 5, e 639º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, sem que antes, pelo menos tenha concedido prazo de regular exercício de contraditório, nos termos do art.º 3º n.º3 do CPC.

Não tem razão pois a Relação conheceu apenas das questões suscitadas no recurso de apelação (“Se existiu violação do princípio do contraditório; se ocorre a litispendência; se deve ser ordenada a apensação)”, e não de novas questões.

2.3. A excepção da litispendência

O acórdão recorrido julgou procedente a excepção dilatória da litispendência, com a seguinte fundamentação:

“Analisada esta ação e a que decorre sob o nº 576/23.4T8PRT, fácil é verificar que se verifica a tríplice identidade.

Estamos perante um processo de acompanhamento de maior, sendo a Beneficiária a mesma, e com a mesma causa de pedir, alcoolismo crónico e depressão.

Aliás, o que se colhe do recurso é que a Recorrente até aceita essa qualificação jurídica.

O que ela verdadeiramente questiona não põe em causa a ocorrência da litispendência.

Quanto à legitimidade para instauração do processo, trata-se de um pressuposto processual que nada tem a ver com a litispendência.

Acresce que, quando a iniciativa do processo é tomada por algum dos familiares, eles não atuam como “representantes” do beneficiário, mas sim como “partes”. A situação não é, assim de representação, mas de substituição processual voluntária: o beneficiário é a parte substituída e o cônjuge, o unido de facto ou o parente sucessível a parte substituta.

O art.º 141º nº 1 do Código Civil (CC) não contém uma “regra geral” no sentido de conferir a legitimidade ao Beneficiário. Aliás, na grande maioria das situações, o Beneficiário já não está na posse das faculdades que lhe permitam ter consciência da sua incapacidade e lhe permitam agir.

A ação nº 576/23.4T8PRT foi instaurada pelo Mº Pº, que tem legitimidade para o efeito.

O que se subentende é que a discordância da Recorrente reside em que terão sido os seus irmãos a propor essa iniciativa ao Mº Pº e ela tem receio de que as medidas solicitadas tenham em vista a possibilidade de a prejudicarem no inventário e na gestão dos seus bens.

Não há razão para esses receios já que, se à Beneficiária for retirada a capacidade de gestão e disposição dos seus bens, qualquer ato de disposição de bens imóveis terá de ser objeto de autorização judicial prévia: artigos 145º nºs 3 e 4, 1938º nº 1, al. a) e1889º, nº 1 al. a), todos do Código Civil (CC). Tal autorização é conferida no âmbito do procedimento judicial regulado no artigo 1014.º do CPC, sempre com controlo judicial.

Da mesma feita que quem ficar com o encargo da gestão dos bens terá de prestar contas. Em qualquer das situações, a Beneficiária terá direito de intervir através do seu mandatário.

E esses procedimentos serão os mesmos, quer a ação tenha sido instaurada pela Beneficiária, ou por qualquer familiar, ou pelo Mº Pº.

O mesmo se diga para as medidas que poderão vir a ser tomadas; para esse efeito é totalmente irrelevante quem tomou a iniciativa do processo.

Como decorre dos arts.º 891º nº 2, 904º nº 2, 986º nº 2 e 988º do CPC, as medidas a tomar podem ser as que foram requeridas, mas também podem ser tomadas oficiosamente pelo juiz e serão aquelas que melhor se adequem à situação; a todo o tempo podem ser revistas, alteradas ou levantadas pelo tribunal, quando a evolução do beneficiário o justifique.

E tudo isto, repete-se, independentemente de quem tenha sido a iniciativa do processo. Daí que, ainda que não ocorresse o obstáculo da litispendência, nenhuma garantia existia nesta ação de que as medidas propostas pela Recorrente viessem a ser aceites.

Concluindo, verificada a litispendência, e sendo esta a ação instaurada em segundo lugar (art.º 582º nº 1 e 2 CPC), deve esta ser julgada extinta (art.º 576º nº 3 e 577º al. i) do CPC) com absolvição da instância do Requerido”.

A recorrente objecta com os seguintes argumentos:

A natureza do processo e o primado da vontade do requerente/beneficiário;

A natureza subsidiária da acção proposta pelo Ministério Público;

A falta de identidade do pedido, porque a acção não foi proposta nos mesmos termos, visto que indica como acompanhante pessoa diferente da acção proposta pelo Ministério Público.

Importa observar, desde já, que os argumentos aduzidos pela recorrente são os mesmos da apelação, mas que a Relação rejeitou com proficiente sustentação. Tendo a Recorrente reproduzido na revista excepcional as alegações da apelação, acolhe-se na integra a fundamentação exposta no acórdão recorrido.

A litispendência pressupõe a repetição da causa (acção) estando pendente uma idêntica, quanto aos sujeitos, causa de pedir e pedido, e consubstancia uma excepção dilatória que implica a absolvição da instância naquela que foi proposta em segundo lugar.

A justificação prende-se essencialmente com a chamada “tutela da coerência”, obviando a casos julgados contraditórios, ou seja, na expressão legal, “evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior” (art.580 nº2 do CC), o que implica a falta objectiva de interesse na propositura da nova acção.

O regime do maior acompanhado foi instituído pela Lei nº 49/2018 de 14/8 que introduziu um novo paradigma para as situações de “discapacidades”, postergando a incapacidade geral e automática do estatuto da pessoa interdita ou inabilitada para o modelo de acompanhamento, assente no respeito da dignidade da pessoa maior vulnerável e dos seus direitos fundamentais, de tal forma que as medidas, sempre sujeitas ao princípio da necessidade, adequação e proporcionalidade, se adaptem às singularidades de cada beneficiário, ou seja, com indispensável flexibilidade, no respeito pela autonomia e direitos pessoais.

Neste contexto, pode afirmar-se que a lei prevê o primado da vontade do beneficiário projectada, por exemplo, na legitimidade activa (art.141 CC) já que o acompanhamento é requerido pelo próprio, ou pelo cônjuge, unido de facto, qualquer parente sucessível, mas neste caso mediante autorização do beneficiário, ou através suprimento judicial da autorização, bem como na escolha do acompanhante e do conselho de família.

Contudo, como bem se adverte no acórdão recorrido, isto nada tem a ver com a litispendência.

O processo do maior acompanhado configura um processo especial, regulado nos arts.891 a 904 CPC. Em bom rigor não se trata, no plano material, de um processo de partes, em que há um conflito de interesses em litígio, pois nele se pretende, com base no “interesse imperioso do beneficiário” a adopção da medida de acompanhamento adequada com vista à sua protecção e bem-estar ( art.140 CC ).Por isso, mesmo que se entenda que a intervenção do cônjuge, o unido de facto ou o parente sucessível se faz em regime de substituição processual, logo assumindo a posição de parte ( no plano formal ), caso em que o beneficiário deve ser chamado, por meio de citação (art.895 CPC), para garantia do contraditório, o objectivo é sempre o mesmo – o apoio ou protecção do beneficiário.

Por seu turno, o Ministério Público, que não carece de autorização, está legitimado a requer o acompanhamento, intervindo como parte principal, já que lhe cabe a defesa e promoção dos interesses dos adultos com capacidades diminuídas e pessoas especialmente vulneráveis (art.4 nº1 i) Estatuto do Ministério Público). Também aqui, quando assume a posição de parte, a sua função primordial é a da defesa e protecção do beneficiário.

No entanto, o regime (substantivo e processual) do maior acompanhado não impõe primazia ao processo iniciado pelo beneficiário de forma a implicar a extinção da instância ao primeiro requerido pelo Ministério Público e daí que, como foi sublinhado, não pode confundir-se a legitimidade processual, enquanto pressuposto processual, com a litispendência.

Por isso, o primeiro argumento alegado pela recorrente (a natureza do processo e o primado da vontade do requerente/beneficiário) não é suficiente para postergar a excepção da litispendência.

A circunstância da acção do Ministério Público ser proposta para a defesa e protecção do maior vulnerável não significa que tenha natureza subsidiária, e que opere a extinção da acção em virtude da acção ulteriormente intentada pela própria beneficiária.

Na verdade, não se pode convocar sequer a prejudicialidade, pois partindo-se do critério das relações de dependência entre objectos processuais, uma causa é prejudicial em relação a outra quando aí se esteja a apreciar uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão do outro pleito, ou seja, a relação de dependência assenta no facto de na acção prejudicial se discutir em via principal uma questão que é essencial para a decisão da primeira , o que não sucede aqui.

Note-se que tanto a suspensão por causa prejudicial, como a conexão de processos assentam em diferentes fundamentos, e com efeitos divergentes. Na litispendência há uma igualdade de acções, com tratamento próprio.

Muito menos se poderá apelar à inutilidade superveniente da lide, que se dá quando, por qualquer causa processual ou extraprocessual, o efeito jurídico pretendido através da acção já foi plenamente alcançado, porque a pretensão do autor obteve satisfação fora do esquema da providência pretendida, tornando-se, por isso, a lide desnecessária, ou à impossibilidade superveniente da lide existe quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito, ao objecto do processo e à causa. Ou seja, é a impossibilidade da relação jurídica substancial que cessa por desaparecimento de um dos elementos essenciais, repercutindo-se na relação jurídico-processual, o que não é o caso.

Na situação dos autos verifica-se a identidade dos sujeitos, da causa de pedir e do pedido, como está suficientemente justificado no acórdão recorrido.

O facto de a recorrente haver indicado para acompanhante pessoa diferente não significa divergência do pedido, porque este reconduz-se no essencial à medida pretendida. Além disso, não está inibida de proceder à escolha do acompanhante, porque quer o processo seja por si iniciado, quer o seja pelo Ministério Público, o direito de escolha pertence sempre ao beneficiário (art.143 nº1 CC).

Sendo assim, refutados os argumentos da recorrente impõe-se a confirmação do acórdão recorrido.

O pedido da apensação:

A recorrente peticiona junto do Supremo que em sede do princípio da substituição do tribunal a quo – vd., art. º679º que remete para o art.º 665º do CPC – que no caso de considerar a litispendência, procedente, que, ainda assim, ordene ou a apensação dos presentes autos ao processo n.º 576/23.4... e/ou o aproveitamento dos actos processuais, art.º 193º do CPC, de modo que os direitos da R., sejam acautelados neste processo n.º 576/23.4....

No tocante aos pressupostos da apensação, a Relação indeferiu e remete-se para a respetiva fundamentação, sendo que não opera aqui a invocada substituição.

2.4. – Síntese conclusiva

O primado da vontade do beneficiário reflectido no regime jurídico do maior acompanhado não é de molde a neutralizar a excepção de litispendência.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2)


Sem custas (art.4º nº2 h) RCP).


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Novembro de 2023.

Jorge Arcanjo (Relator)

Maria João Vaz Tomé

Pedro de Lima Gonçalves