Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
898/22.1T8VRL.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: AÇÃO POPULAR
COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO CÍVEL
PROCESSO PENAL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
CONTRAORDENAÇÃO
CRIME
TRIBUNAL CRIMINAL
AÇÃO PENAL
INCOMPATIBILIDADE ABSOLUTA
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: FERREIRA LOPES
Sumário :
I - O juízo central cível é incompetente em razão da matéria para julgar uma acção popular em que se imputa à ré a prática de ilícitos penais e contraordenacionais, relativamente aos quais o Ministério Público já instaurou o competente procedimento;

II - Por força do princípio da adesão obrigatória fixado no art. 71º do CPPenal, o pedido de indemnização cível fundado na alegada prática de crimes deve ser deduzido no processo crime;

III - A violação do princípio da adesão obrigatória acarreta a incompetência material do tribunal cível.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Citizens Voice - Consumer Advocacy Association e AA instauraram no Tribunal Judicial de ..., acção popular contra Rodáreas Alvão Área de Serviço Unipessoal, Lda, pedindo a condenação da Ré a:

A) reconhecer que cometeu os crimes contra a economia, nomeadamente o crime de especulação, previsto e punido no artigo 35 do decreto-lei 28/84, em qualquer uma das suas vertentes;

B) reconhecer que cometeu o crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido no artigo 258 do Código Penal, em qualquer uma das suas vertentes.

C) reconhecer que violou qualquer um dos artigos do decreto-lei 57/2008, nomeadamente, os artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1,b,d), 9 (1,a) desse diploma:

D) reconhecer que violou os artigos da Lei 24/96, nomeadamente, os artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7, (4) e 8 (1, a, c, d) (2) desse diploma;

E) reconhecer que violou o artigo 2 (1) da Lei 67/2003

F) reconhecer que violou o artigo 11 da Lei 19/2012;

G) reconhecer que violou o artigo 102 do TFUE;

H) reconhecer que o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e tido com os autores populares, é ilícito;

I) reconhecer que agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, com os autores populares;

J) reconhecer que com a totalidade ou parte desses comportamentos lesaram gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores;

e em consequência, deve a ré ser condenada a:

K. a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

a. a determinar nos termos do artigo 609 (2) do CPC;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal,

L. Subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

a. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, determinado em pelo 1,65 euros em cada abastecimento;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

M. Ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

a. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, mas nunca inferior a 10 euros por cada abastecimento;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

N. Ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos, danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:

a. nos termos do artigo 9 (2) da lei 23/2018 ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

O. Ser a ré condenada a pagar todos os encargos que os autores intervenientes tiveram ou venham ainda a ter com o processo e em particular com o incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3) do CPC como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexo e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) pela B..., Ltd, sociedade criada de acordo com as leis de Belize, the International..., com sede em ... e escritórios (corporate office) na Europa na ..., ..., United Kingdom, e registada junto da autoridade tributaria portuguesa com o número de pessoa equiparada a pessoa coletiva .......65, entre outros financiadores que venham a ser necessários.

P. Porque o artigo 22 (2) da Lei 83/95 estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, assim como AA, agindo como autores intervenientes neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2) do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes. Q. Requer-se ainda que Vossa Excelência decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 14, apesar de tal decorrer expressamente da Lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido.

R. Requer-se também que Vossa Excelência decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 15, apesar de tal decorrer expressamente da Lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido.”.

Alegaram para tanto e em síntese:

A A. é uma associação que tem como finalidade a defesa dos consumidores e o A. é um consumidor dos produtos fornecidos pela R.

A R. realizou “práticas de especulação de preços e de falsificação de notação técnica”, no posto de abastecimento de combustível de ... (A7 sentido ...), consistentes no facto de, ter adulterado o controlo metrológico dos equipamentos de abastecimento, que exibiam os respetivos selos de validade e conformidade, de forma que, no início de cada abastecimento, após o reinício do contador, antes de ser pressionado o manípulo da agulheta do equipamento do utilizador, o contador se alterava automaticamente, iniciando a contagem em € 1,65, antes de qualquer abastecimento real de combustível.

Esta conduta da R., causou danos aos consumidores, traduzidos no sobrepreço cobrado a quem abasteceu combustível, na preocupação e incómodos causados pela quebra de confiança gerada nos consumidores e nos incómodos decorrentes de verificarem que os seus veículos faziam menos kms com o mesmo tipo de combustível.

Por tais factos, o Ministério Público no DIAP de ..., instaurou o processo nº58/22.1...

A interveniente Fidelidade - Companhia de seguros, S.A., apresentou contestação, invocando, entre o mais, a incompetência material do tribunal para conhecer da causa.

Notificados os A.A. e o Ministério Público, para se pronunciarem sobre as exceções invocadas pela Interveniente, nada disseram.

Foi proferida sentença, com data de 17.03.2023, com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julgo o juízo central cível materialmente incompetente para conhecer da causa e, em consequência, absolvo a R. e a Interveniente, da instância.

Custas a cargo dos A.A., solidariamente, que se fixam em apenas 3/10 das custas que

seriam devidas - arts. 527º, do C.P.C. e 20º, n º 3 e 5, da Lei n º 83/95, de 31-08, levando-se também em conta que, não há lugar ao pagamento da 2ª prestação da taxa de justiça - art. 14º-A, d), do R.C.P.

Fixo à causa o valor de € 60.001,00 - arts. 296º, n º 1, 297º, n º 1 e 2, 299º, n º 4, 303º, n º 1 e 306º, n º 1 e 2, do C.P.C.

Do assim decidido, os AA interpuseram recurso per saltum para o STJ, , cujas alegações rematam com as seguintes conclusões:

1ª. Os recorrentes, autores populares, interpõe o presente recurso por entenderem que o tribunal a quo não fez a melhor e mais correta interpretação do direito quanto às questões mencionadas supra em §1 ao entender verificada, por intermédio de uma sentença, a exceção dilatória da incompetência material do tribunal para conhecer a presente ação.

2. O presente recurso vem na modalidade da revista per saltum, por recair apenas sobre a matéria de direito, o que é feito nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1), aplicável ex vi artigo 644 (1,a) e 678 (3), todos do CPC.

3. Os autores têm legitimidade para interpor o presente recurso acompanhado das respetivas alegações sob a matéria de direito (cf. artigo 631 do CPC) e estão em tempo de o fazer (cf. artigo 638 do CPC).

4. Os recorrentes, mui respeitosamente, discordam da douta sentença pelas razões vertidas no § 5 supra, para onde se remete para uma completa compreensão e evitando aqui uma repetição fastidiosa e prolixa do que aí se encontra de forma resumida.

5. Mas que, resumindo, se estriba no facto de não concordarem que se verifica a exceção dilatória da competência material do tribunal para apreciar a ação, porquanto estamos perante um pedido meramente cível, e que nunca poderia ser enxertado no processo penal, na medida em que a causa de pedir não assenta exatamente nos mesmos factos que são pressupostos da responsabilidade criminal, desde logo porque vários danos invocados no pedido de indemnização cível –respeitantes, por exemplo, à distorção da equidade de concorrência e danos morais– não podem ser atendidos no processo penal, desde logo porque pode não se verificar a existência dos crimes, que se pede que a ré seja condenada a reconhecer ter cometido [pedido (A) e (B)], mas poder verificar-se, no presente processo, os demais ilícitos.

6. Mesmo um entendimento que a relação jurídica em causa é de natureza criminal porquanto dois dos pedidos [(A) e (B) do peticionário] respeitam à responsabilidade penal, estando então em causa matéria de natureza penal, tal nunca poderia levar à decisão de absolver as rés quanto a esses pedidos. Muito menos, relativamente aos pedidos de C. a R., onde o que é pedido, inclusivamente, que o tribunal condene as rés a reconhecerem o direito dos consumidores e o direito à justa indeminização.

7. Atento ao pedido na causa de pedir, percebe-se com elevada nitescência que existe uma cumulação e pluralidade de pedidos, mas com um único desiderato: a condenação da ré a indemnizar os autores pelos danos a estes causados com o seu comportamento culposo -seja a título doloso ou negligente.

8. A cumulação de pedidos é meramente aparente, uma vez que tal deriva única e exclusivamente do carácter processual.

9. Ou seja, quando os autores pedem a declaração do reconhecimento que a ré teve vários comportamentos ilícitos para com os autores populares, que podem entrar inclusivamente no arco da negligência ou do enriquecimento sem causa, vão muito para além dos pedidos (A) e (B)., as quais consubstanciam crime, visando unicamente atingir o fim que é o pedido de indemnização dos autores populares pelos danos provocados pelo comportamento ilícito da ré.

10. Os autores não estão, na realidade, a formular pedidos substancialmente distintivos e muito menos, de forma alguma, a peticionar a condenação criminal das rés, estão sim, a formular os pedidos de maneira que o tribunal possa operar sequencial e estruturadamente por forma atingir o fim último da ação: a condenação da ré a indemnizar os autores pelos danos que lhes foram causados e se encontram perfeitamente indicados e peticionados.

11. Sem prejuízo, ainda que se entenda que alegação de factos subsumíveis a matéria penal conduz a uma pluralidade de causas de pedir (o que não acorre, uma vez que o pedido tem um fim único de natureza meramente civil), nunca seria possível admitir a competência material de um tribunal para uma parte e a de outro tribunal para outra, isto porque é a causa de pedir dominante que determina a competência material do tribunal. O mesmo relativamente à forma de processo.

12. Assim, é consabido que a atribuição da competência em razão da matéria é daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão dominante e de fundo tal como configurada pelos autores. A mesma lógica aplica-se ao tipo de processo.

13. Trata-se, de matéria de direito, cujo Vossas Excelências, Colendos(as) Conselheiros(as), é que melhor que ninguém podem aplicar para que se faça a necessária justiça.

14. Os autores, obviamente, aqui estarão para acatar e respeitar o melhor entendimento de Vossas Excelências sobre esta questão de direito, tendo em mente a importância desse mais alto tribunal da nação, como farol da boa e correta interpretação das leis e da feitura da mais ajustada justiça – sendo que esta decisão terá impacto em aproximadamente 10 outras ações populares com idêntica configuração.

15. Diga-se, a este respeito, as várias decisões que têm saído do Tribunal da Relação de Lisboa, quanto à pedidos de indemnização cível, também em ações populares, em processos que correm termos no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, que também tiveram estribo em processos crime e contraordenacionais da autoridade da concorrência, sem que tal subtraísse a competência material ao Tribunal da Concorrência para apreciar tais questões no âmbito dos pedidos de indeminização cível – aliás, os ali autores poderem, sim, aproveitar-se da prova já produzida pela autoridade da concorrência, tal como sustentando em quatro pareceres, assinados pelo Senhor Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Doutor José Lebre de Freitas, o Senhor Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Doutor António Menezes Cordeiro, o Senhor Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Doutor António Barreto Menezes Cordeiro, a Senhora Professora Catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Doutora Paula Costa e Silva, a Senhora Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Doutora Maria José Capelo e a Senhora Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Doutora Carolina Cunha.

Contra alegou a interveninente Fidelidade, tendo formulado as seguintes conclusões:

1ª. Nas alíneas A) e B) do pedido, de cuja procedência ou "reconhecimento" do ali peticionado depende a pretensão indemnizatória formulada nos autos, o Recorrentes pedem ao Juiz Cível que seja a Ré condenada a reconhecer que cometeu os factos integradores dos crimes que lhe são imputados, ou melhor dizendo, os crimes de que vem acusada, pela prática dos factos integradores das condutas criminais cujo reconhecimento se pretende.

2. Este Tribunal não é materialmente competente para condenar, apurar e reconhecer a responsabilidade criminal e, em função dessa responsabilidade criminal judicialmente declarada, condenar alguém, no caso a Ré, a reconhecer que cometeu tais crimes, e na consequente obrigação de indemnizar.

3. Aliás, reiterando o alegado em sede de contestação, estamos perante um pedido impossível formulado nas alíneas A) a J) da PI, e consequentemente, os pedidos indemnizatórios dependentes de tal reconhecimento, porquanto não se pode condenar alguém, no caso uma sociedade, a reconhecer que cometeu um crime ou outras práticas ilícitas.

4. O acto do "reconhecimento" peticionado nas alíneas A) a J) é de natureza pessoal do agente, que não pode ser "ordenado" por via de decisão judicial, só podendo ser obtido em sede processual por via da confissão do agente.

5. O que se pode é pedir a declaração, por via de uma sentença condenatória, de que alguém, no caso a Ré, praticou factos integradores dos ilícitos a que se alude no pedido, competência atribuída à jurisdição penal, no âmbito da qual e perante a "questão dominante e de fundo tal como configurada pelos Autores", estes podiam e deviam constituir-se assistentes, nos termos do art.º 25º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, que reconhece o Direito de Participação Procedimental e de Acção Popular também em sede penal.

6. À acção popular aplicam-se os princípios processuais que regem a jurisdição penal e civil, nomeadamente, normas especiais dos art.ºs 71º a 73º do Código de Processo Penal (CPP), sobre a competência material dos tribunais penais, para conhecerem de Pedido de Indemnização Cívil (PIC) por factos que integrem um ilícito criminal.

7. De acordo com a forma como é alegada a "questão dominante e de fundo tal como configurada pelos Autores", a presente acção é configurada como um incidente deduzido por apenso ao processo crime identificado no art.º 14º da PI, atenta a manifesta dependência entre esta acção popular e aquela que é configurada como a "causa principal", ou seja, o processo da jurisdição penal, para o qual se remete a própria alegação dos factos integradores da causa de pedir desta acção.

8. É manifesta a incompetência material da jurisdição cível e do Tribunal recorrido, o que constitui matéria de excepção dilatória, nos termos do art.º 577º, alínea a) do CPC e determina a absolvição da instancia das Recorridas.

9. A única virtude que se reconhece aos argumentos aduzidos nas alegações dos Recorrentes, é a constatação de que os Recorrentes não visam proteger consumo de bens ou serviços, prevenindo, cessando ou perseguindo factos praticados no exercício da actividade económica da Ré, que poderiam pôr em causa tais bens.

10. Não está em causa a violação de um interesse difuso a tutelar através do recurso à acção popular, mas apenas uma finalidade indemnizatória de interesses individuais e individualizados, “a ser dirimida nos meios próprios” - sic. jurisprudência supra citada - no âmbito da jurisdição penal materialmente competente, que eventualmente venha a satisfazer os pedidos aqui formulados, de a Ré ser condenada a “reconhecer que cometeu os crimes contra a economia” de que vem acusada nestes autos!

Nestes termos (…) o recurso interposto da sentença proferida nos autos deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida (…).

A Recorrida Rodáreas, também respondeu ao recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

1ª. Os Apelantes sua P. I. dão conta de que tem conhecimento de que na sequência de acção inspectiva desenvolvida pela ASAE foi instaurado processo de inquérito que corre termo no DIAP sob o nº 58/22.1..., autos nos quais se estribam, por remissão, para estruturar os presentes autos. Por conseguinte sabendo os Apelantes da pendência de tal inquérito seria processualmente exigível que nele exercessem os alegados direitos, e já não que viessem autonomamente, sem qualquer justificação, intentar a presente acção.

2ª. Calcorreando a causa de pedire os pedidos formulados pelos Apelantes, que reputam como constitutivos de ilícitos criminais, concluem pelo pedido de condenação da Apelada a reconhecer que cometeu tais crimes, e peticionam a sua condenação em indenização estribada nesses alegados ilícitos criminais, pelo que logo se concluiu que tais pedidos que são típicos do foro penal e não do foro Civil.

3ª. Ora como se consigna na douta sentença recorrida, para conhecer da pratica de factos constitutivos de ilícitos criminais são competentes os tribunais criminais, vigorando quanto a pretensão indemnizatória de alegados danos decorrentes de tais ilícitos o principio da adesão, nos termos do art.71º do CPP.

4ª. Estabelece o art. 71º, do CPP: “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”. Só nos casos expressamente previstos no art. 72º, n º 1, do C.P.P., é que a ação cível pode ser instaurada em separado do processo-crime, perante o tribunal civil.

5ª. Por conseguinte, atento o principio da adesão, não restam duvidas de que o Tribunal cível não é competente em razão da matéria para reconhecer a alegada responsabilidade criminal da ré nem para consequentemente condenar a Ré na obrigação de indemnizar os alegados danos decorrentes de tais ilícitos.

6ª. Assim é manifesta a incompetência material da jurisdição cível e do tribunal recorrido para conhecer dos pedidos formulados nos autos, o que constitui matéria de excepção dilatória, nos termos do art.º 577º, alínea a) do CPC e determinou a absolvição da instancia das Recorridas, tal como bem se decidiu na sentença recorrida que operou uma correta interpretação e aplicação do disposto nos art, 71º, do CPP,


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Apreciação e decisão.

Estamos perante um recurso per saltum, interposto de sentença do Juízo Central Cível de Vila Real.

Mostram-se verificados os requisitos desta modalidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, fixados no art. 678º do CPC, pelo que nada obsta à sua apreciação.

A questão a apreciar consiste em saber se o tribunal recorrido é competente em razão da matéria para conhecer da presente acção.

A competência em razão da matéria (ratione materiae), respeita à distribuição do poder jurisdicional pelas diversas espécies e ordens de tribunais considerados no mesmo plano, isto é horizontalmente, sem que entre eles exista uma qualquer relação de subordinação ou dependência hierárquica.

Nas palavras de Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pag. 94, “na definição desta competência, a lei atende à matéria da causa, quer dizer ao seu objecto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada. Trata-se, pois, duma competência ratione materiae. A instituição de diversas espécies de tribunais e a demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes.”

O art. 40º, nº2 da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei nº 62/2013 de 26.08, determina a competência em razão da matéria entre os juízos dos tribunais de comarca estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.

É consabido que a competência em razão da matéria determina-se pelo pedido e pela causa de pedir, tal como configurados pelo autor na petição inicial.

O caso presente.

A acção foi proposta no Juízo Central Cível de Vila Real, tendo os AA peticionado, nas alíneas a) a g) a condenação da Ré a:

- reconhecer que cometeu os crimes contra a economia, nomeadamente o crime de especulação, previsto e punido no artigo 35 do decreto-lei 28/84, em qualquer uma das suas vertentes;

- reconhecer que cometeu o crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido no artigo 258 do Código Penal, em qualquer uma das suas vertentes.

- reconhecer que violou qualquer um dos artigos do decreto-lei 57/2008, nomeadamente, os artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1,b,d), 9 (1,a) desse diploma:

- reconhecer que violou os artigos da Lei 24/96, nomeadamente, os artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7, (4) e 8 (1, a, c, d) (2) desse diploma;

- reconhecer que violou o artigo 2 (1) da Lei 67/2003;

- reconhecer que violou o artigo 11 da Lei 19/2012;

- reconhecer que violou o artigo 102 do TFUE;

Além da impropriedade dos termos usados – além de inócuo, ninguém pode ser condenado a reconhecer que cometeu um crime – o tribunal recorrido é incompetente em razão da matéria para conhecer dos pedidos formulados.

Com efeito,

O juízo central cível é um juízo de competência especializada (art. 81º da LOSJ), cuja competência consta do nº1 do art. 117º, a saber:

a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a €50.000,00; b) Exercer, no âmbito das acções executivas de natureza cível de valor superior a €50.000,00, as competências previstas no Código de Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência do juízo ou tribunal;

c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência;

d) Exercer as demais competências conferidas por lei

(…).

Não compete ao juízo central cível ajuizar se a Ré cometeu crimes de especulação (art. 35º da Lei nº 28/84), de falsificação de notação técnica p.p. no art. 258º do Código Penal, por serem matérias da competência dos juízos criminais.

Também não é da competência material do juízo central cível apreciar se a Ré violou as disposições dos arts. 4, 5, 7 e 9 do DL nº57/2008 de 26.03, que estabelece o regime jurídico aplicável às práticas comerciais desleais das empresa nas relações com os consumidores, se violou os arts. 3, 4, e 8 da Lei nº 24/96 de 31.07, que aprovou a lei de defesa do consumidor, o Regime jurídico da venda de bens de consumo (lei nº 67/2003), ou se incorreu em abuso de posição dominante, nos termos do art. 11º da Lei nº 19/2012, que aprovou o regime legal da concorrência, em regra ilícitos contraordenacionais puníveis nos termos do DL nº 433/82 de 27.10.


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Quanto à competência do tribunal para conhecer dos pedidos de indemnização.

A Autora formulou pedidos de condenação da Ré a:

K. a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

a. a determinar nos termos do artigo 609 (2) do CPC;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal,

L. Subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

a. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, determinado em pelo 1,65 euros em cada abastecimento;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

M. Ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

a. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, mas nunca inferior a 10 euros por cada abastecimento;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

N. Ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos, danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:

a. nos termos do artigo 9 (2) da lei 23/2018 ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

O. Ser a ré condenada a pagar todos os encargos que os autores intervenientes tiveram ou venham ainda a ter com o processo e em particular com o incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3) do CPC como fora do mesmo preceito], (…).

Está fora do âmbito do recurso saber se estes pedidos são próprios de uma acção popular.

Centremo-nos apenas na questão da competência material do tribunal cível para deles conhecer.

A sentença recorrida considerou que o tribunal era igualmente incompetente para conhecer destes pedidos por força do princípio de adesão, consagrado no art. 71º do Código de Processo Penal segundo o qual “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.

Assim é, com efeito.

Fundando-se os pedidos de indemnização na alegada prática de crimes, é no processo criminal que os lesados civis devem deduzir a sua pretensão indemnizatória, solução justificada não só por razões de economia de meios como também de modo a evitar contradição de julgados.

A violação do princípio da adesão obrigatória acarreta a incompetência material do tribunal cível, conforme decidiu o recente Acórdão do STJ de 21.06.2022, P. 2563718 (Jorge Arcanjo).

Ao decidir neste pendor – que o juízo central cível é incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente ação, e que a infracção das regras da competência em razão da matéria é geradora de incompetência absoluta, constituindo uma exceção dilatória - arts. 96º, a) e 577º, a), do C.P.C., de conhecimento oficioso - art. 578º, do C.P.C., que obsta ao conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição da R. e da Interveniente, da instância - arts. 576º, n º 2 e 278º, n º 1, a), do C.P.C. – a sentença recorrida não merece censura.

Termos em que improcedem na totalidade as conclusões dos Recorrentes.

Sumário, art. 663º, nº7 do CPCivil:

I - O juízo central cível é incompetente em razão da matéria para julgar uma acção popular em que se imputa à ré a prática de ilícitos penais e contraordenacionais, relativamente aos quais o Ministério Público já instaurou o competente procedimento;

II - Por força do princípio da adesão obrigatória fixado no art. 71º do CPPenal, o pedido de indemnização cível fundado na alegada prática de crimes deve ser deduzido no processo crime;

III - A violação do princípio da adesão obrigatória acarreta a incompetência material do tribunal cível.

Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se a sentença recorrida.

Sem custas, art. 4º, nº1, b) do Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 12.10.2023

Ferreira Lopes (relator)

Maria de Fátima Gomes (1ª Adjunta)

Nuno Ataíde das Neves (2ª Adjunta)