Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1358/19.3T8PTM.E2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: REAPRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
PRESUNÇÃO JUDICIAL
FACTOS PROVADOS
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - Os ónus de impugnação que o recorrente deve cumprir nos termos do art 640 nº1 do CPC, não são exigíveis nos casos em que a Relação se limite a aplicar as regras vinculativas do direito probatório material, integrando oficiosamente na decisão o facto que a 1ª instância tenha considerado não provado ou retirando dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado.

II - Os outros casos em que é permitido à Relação intervir oficiosamente na prova fixada na sentença são os previstos nas als. a) e b) do art. 662 do CPC quanto à renovação da prova e à produção de novos meios as quais ordena e realiza.

III - Não tendo havido impugnação da matéria de facto pelo recorrente, não tendo o Tribunal da Relação decidido a existência de violação das regras de direito probatório material e não tendo acionado o art. 662 nº1 als. a) e b) do CPC, apenas lhe seria permitido acrescentar aos factos provados na sentença os que pudessem ser retirados por presunção judicial dos factos julgados como provados na sentença.

IV - A apreciação dos meios probatórios (produzidos em audiência) segundo as regras de experiência e a fixação a partir desta atividade de um determinado facto como provado não pode significar, nem significa, que esse facto tenha sido extraído por presunção por que esta se extrai de factos provados e não de qualquer meio de prova.

V - Tendo o tribunal recorrido julgado como provados factos que a sentença julgara não provados com fundamento numa diferente convicção sobre os mesmos meios de prova em que a sentença se fundara é nula a inclusão desses novos factos por o recorrente não ter impugnado a matéria de facto e os mesmos não terem sido extraídos por presunção.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Relatório

AA propôs a presente ação contra o Estado Português, pedindo que o réu seja condenado a reconhecer-lhe o direito de propriedade privada do sobre os prédios que identifica não obstante os mesmos estarem parcialmente implantados em área do domínio público marítimo.

Alegou que ser dono desses prédios por haver adquirido a nua propriedade por doação de seus pais que por sua vez os haviam adquirido em ... de julho de 2001; que ambos os prédios, inscritos na matriz predial com os artigos 495 e 496 da ..., concelho de ..., em tempos fizeram parte da área do prédio urbano, designado por “Forte de ...”, vulgarmente conhecido por “Fortaleza . ..”, sito na Estrada ..., freguesia da ..., concelho de ...; os seus prédios encontravam-se na propriedade de particulares desde data anterior a 1894 e foram desanexados do prédio denominado “Fortaleza . ..”.

O Ministério Público apresentou contestação, defendendo a existência de uma situação de litispendência e dizendo que não estava demonstrada a integração inequívoca dos prédios da ação na área do prédio mãe “Fortaleza . ..”, concluindo que os prédios da ação ultrapassam a área do suposto prédio mãe.

Instruídos os autos veio a ser proferida sentença que julgou a ação improcedente.

Interposto recurso, o Tribunal da Relação de Évora ordenou a repetição do julgamento e a realização de um levantamento topográfico e de uma perícia.

Após a realização das diligências ordenadas, o Tribunal «a quo» proferiu nova sentença que decidiu julgar improcedente a suscitada exceção de caso julgado e julgar totalmente improcedente o pedido formulado pelo Autor e absolver o Réu do pedido.

Interposto pelo autor de novo recurso de apelação veio este a ser julgado procedente e, revogando a sentença, foi a ação julgada procedente

Deste acórdão interpõe agora o réu recurso de revista concluindo que:

“ 1.ª- Atendendo à legitimidade e posição processual da intervenção do Ministério Público, nos termos do artigo 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 4.º, n.º 1, alíneas h) e r) e 9.º, n.º 1, alíneas f) e g) do Estatuto do Ministério Público (Lei 68/2019, de 27–08), do artigo 31.º do Código de Processo Civil, o Ministério Público intervém em nome próprio nos processos judiciais que visam conhecer e decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, conforme dispõe o artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 15–11, tendo em conta que lhe cabe defender e contestar tais ações, por contenderem com interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais.

2.ª- Não havendo dupla conformidade das decisões, o presente recurso é admissível porque interposto nos termos dos artigos 671.º, n.º 1, 674.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil, por incidir sobre acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, e que conheceu do mérito da causa ao revogar a sentença de 1.ª instância, alterando a matéria de facto, que acrescentou àquela que vinha fixada pela 1.ª instância, sem que a apelação do A tivesse cumprido ou sequer invocado o disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, usando para o efeito de presunções judiciais; porém, de forma ilegítima.

3.ª- Está, pois, a decisão do Tribunal da Relação de Évora viciada por erro de interpretação e de aplicação da lei processual a respeito dos poderes da Relação na modificabilidade da matéria de facto, por violar o disposto nos artigos 662.º e 640.º do Código de Processo Civil, e viciada também está por erro de interpretação e aplicação de normas de Direito substantivo ou material, além de viciada por nulidades, como de seguida se alegará.

4.ª- A presente ação declarativa constitutiva, sob a forma única, tem por objeto o reconhecimento da propriedade privada do A sobre dois prédios implantados em área do domínio público marítimo, localizados na Avenida dos ..., n.º 3 e n.º 5, ..., freguesia da..., concelho de ..., inscritos, respetivamente, na matriz predial urbana sob os números 496 e 495.

5.ª- Proferida sentença pela 1.ª instância (Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Cível de ... - Juiz 3), foi julgado totalmente improcedente o pedido e absolvido o R do pedido, designadamente dando por não provados os factos inscritos nos artigos 7.º, 9.º, 10.º, 11.º, 26.º, segunda parte, 32.º, 37.º, parte final, 38.º, todos da petição inicial, tendo o A apelado, invocando, entre o mais, contradição entre os fundamentos e a decisão, a nulidade da mesma, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, e erro de julgamento, entendendo que dos factos provados por documentos, do depoimento da testemunha e da perícia, resultava um juízo sério de suficiente probabilidade de que os prédios do A haviam sido desanexados efetivamente do domínio público aquando da venda em hasta pública do prédio da Fortaleza, já que dele faziam parte, aquando dessa venda em 26-7-1894.

6.ª- Neste douto Tribunal da Relação de Évora veio a ser proferido o acórdão, submetido à presente revista, que:

a. Aditou à matéria de facto provada os artigos 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º, 34.º, 35.º e 36.º, dando por provados os factos tidos por não provados na 1.ª instância.

b. Julgou improcedente a invocada nulidade da sentença assente na contradição alegada.

c. Apreciou o erro de julgamento invocado, alterando a matéria de facto nos termos referidos, usando dos poderes de que se julgou investida, reavaliando, por raciocínio dedutivo, indutivo e segundo regras de experiência, a prova testemunhal, pericial e documental constante dos autos, após o que, segundo presunções e lógica inferencial, justificou a alteração da matéria de facto e, também mediante presunções e lógica inferencial, concluiu estar provado que os prédios do A (495 e 496) foram desanexados do prédio-mãe (a Fortaleza . .. – 494) aquando da venda desta por hasta pública, em 1894; na sequência do que julgou a ação procedente.

Da violação das leis de processo.

Violação pela Relação dos poderes na modificação da matéria de facto – violação dos artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil e nulidades inerentes.

7.ª- Do que se anunciou no douto acórdão – ainda que sem esclarecimento sobre os standards de prova inerentes a direitos indisponíveis ou a prova vinculada exigida à prova da propriedade de bens imóveis (artigos 363.º, 369.º, 370.º, n.º 1, 371.º, 393.º, n.º 1 e 2 e 394.º, n.º 1, todos do Código Civil), o douto Tribunal da Relação de Évora justificou, a nosso ver, incorretamente, a alteração à matéria de facto, ou seja, substitui o seu juízo valorativo ao juízo da 1.ª instância, usando de presunções para fixar nova matéria de facto provada e para julgar de mérito a ação, reconhecendo o erro de julgamento apontado pelo apelante.

8.ª- Para demonstrar a violação das leis de processo pela decisão recorrida, importa ter presente que em ... de julho de 1984 foi vendido em hasta pública o prédio urbano designado por “Forte de ...” e seus anexos, inicial artigo matricial 494 da ..., até aí propriedade da Fazenda Nacional (cf. Artigos 9 a 14 dos factos provados), que nos autos passou a ser designado por “prédio da Fortaleza” ou “Fortaleza . ..” e que até à referida data pertenceu ao Estado Português.

9.ª- A tese do A é a de que essa venda, que entende ser uma desafetação do Domínio Público Marítimo (DPM), é indício suficiente de que os prédios 495 e 496, de que é proprietário, por pertencerem originariamente ao prédio da Fortaleza, também foram, na mesma data, desafetados do domínio público, não só da propriedade do Estado, mas também do domínio público marítimo, e pede o consequente reconhecimento da propriedade privada desses prédios por via dessa desafetação do DPM.

10.ª- Ou seja, o A, não assenta a sua causa de pedir na invocação de que os seus prédios eram propriedade privada anterior a 1894 (ano da arrematação do prédio da Fortaleza em hasta pública) – o que seria irrelevante juridicamente, pois o imóvel pertencia ao Estado e estava, portanto, no domínio público -, ou que fossem privados antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, como exige o artigo 15.º, n.º 2 da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, antes assenta a causa de pedir na desanexação ou desafetação dos seus prédios ocorrida em 26 de julho de 1894 aquando da desafetação do prédio da Fortaleza . .. do domínio público por via da sua venda em hasta pública, como resulta dos autos, pelo que a causa de pedir apenas se pode reconduzir ao artigo 15.º, n.º 5, alínea a), da Lei n.º 54/2005, que dispõe que:

- “5 - O reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis pode ser obtido sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos números anteriores nos casos de terrenos que:

a) Hajam sido objeto de um ato de desafetação do domínio público hídrico, nos termos da lei;”.

11.ª- Tendo o Tribunal da Relação de Évora passado a conhecer o erro de julgamento invocado pelo A, enfrentou a questão de saber se tinha poderes para alterar, em sede de apelação a matéria de facto fixada em 1.ª instância e “…apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, atuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados”.

12.ª- Porém, incorretamente. Na verdade, o Tribunal da Relação de Évora assentou a sua decisão mais em considerações gerais e vagas sobre os critérios de valoração da prova do que sobre a prova que, nos autos, impusesse decisão diversa e oposta ao decidido pela 1.ª instância, além de que o recurso de apelação não objetivou corretamente um recurso em matéria de facto em condições legais ou processuais de poder ser atendível.

13.ª- Para julgar a matéria de facto por via do impulso do apelante, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.

14.ª- Na verdade, em nenhum lugar das alegações de recurso de apelação, em particular nas conclusões, que fixam o objeto do recurso, o A invoca o disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, sendo ainda certo e evidente que o recorrente, não cumpriu o ónus primário imposto pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil – que se refere à exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, conforme previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do citado artigo 640.º, que visa fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e tem por função delimitar o objeto do recurso; e nem cumpriu o ónus secundário imposto pelo mesmo artigo - que consiste na exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo, e visa possibilitar um acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida –, que no caso eram de cumprir por estarmos perante um depoimento escrito da única testemunha que depôs.

15.ª- É pacífico na doutrina e na jurisprudência - que nestas alegações se citam -, que o não cumprimento dos aludidos ónus acarreta a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, de acordo com o estatuído no citado artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil não havendo, nestes casos, lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento; e é o que também resulta do disposto no artigo 652.º, nº 1, al. a), do Código de Processo Civil, que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º”, o qual não contempla a inobservância dos mencionados ónus.

16.ª- Tratando-se de ónus cumulativos, devemos concluir que, em face do incumprimento pelo recorrente dos indicados ónus primário e secundário, e desde logo daquele que mais essencialmente delimita o âmbito do recurso, de obrigatoriamente especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, impunha–se a imediata rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, não sendo consequentemente de apreciar as alusões que efetuou no corpo das alegações à prova documental, pericial e testemunhal que, no seu entender, consubstanciavam o invocado erro de julgamento.

17.ª- Logo, a «rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se numa das seguintes situações:

g) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;

h) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;

i) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);

j) Falta de indicação exata das passagens da gravação em que o recorrente se funda;

k) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;

l) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 128 e 129).

18.ª- «[À] Relação não é exigido, nem lhe é permitido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova.

Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para delimitar o objeto do recurso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2020, pág. 338, com bold apócrifo).

19.ª- Tendo a decisão da Relação sido, no caso, a contrária ao disposto na lei, pois em vez de rejeitar o recurso, como se impunha, entrou o seu julgamento de mérito, valorou por presunções a prova testemunhal, pericial e documental, revertendo a convicção da 1.ª instância, para depois ampliar a matéria de facto provada e decidir de Direito, “a modos” que oficiosamente, mas sem poderes para tal, pois decidiu em desconformidade com a lei de processo, já que a decisão devida deveria ser a de rejeição do recurso de apelação, violando assim, o disposto no artigo 640.º e 662.º do Código de Processo Civil.

20.ª- A entender-se diferentemente, então o disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil para nada serve e deve ter-se por não escrito, o que seria no mínimo caprichoso ou arbitrário.

21.ª- Na medida em que a Relação conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, o acórdão é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), ex vi artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o que constitui também fundamento do recurso de revista nos termos do artigo 674.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

Da violação das leis de processo

Violação pela Relação dos poderes na modificação da matéria de facto – Inexistência de prova que impusesse decisão diversa – violação do artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e a nulidade da decisão recorrida.

22.ª- Lê-se no artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa». Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas; pelo que a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2 do mesmo diploma).

23.ª- Porém, fora dos casos do artigo 640.º do Código de Processo Civil, os poderes da Relação na modificação da matéria de facto só devem operar quando, nomeadamente, estiverem em causa situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no Código Civil), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.

24.ª- Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena – cuja falsidade não tenha sido suscitada (artigos 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil), ou quando exista acordo das partes (artigo 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (artigo 358.º do Código Civil, e artigos 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do Código de Processo Civil), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos artigos 351.º e 393.º, ambos do Código Civil).

25.ª- Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa, ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).

26.ª- Ora, não se apresentava ao Tribunal da Relação de Évora nenhuma das regras imperativas ou vinculativas que, sobre a valoração da prova efetuada pela 1.ª instância, tivessem sido violadas ou incumpridas, nem o Tribunal da Relação de Évora as demonstrou.

27.ª- Portanto, não se impunha ao Tribunal da Relação de Évora a prolação de decisão diversa, pois ainda que estivesse tentada a fazê-lo, só poderia reapreciar a matéria de facto se os ónus exigidos à apelação estabelecidos no artigo 640.º do Código de Processo Civil tivessem sido cumpridos (cf. Ac. do TRG, de 22-10-2020, Maria João Matos, Processo n.º 5397/18.3T8BRG.G1 e a jurisprudência aí citada).

28.ª- Na medida em que, também, a Relação usou de poderes de alteração da matéria de facto, fora dos pressupostos exigidos pelo artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, mas sem que para tal, oficiosamente, o pudesse fazer, por não estarem em causa situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material que impusessem decisão fáctica diversa, a decisão recorrida violou, por erro de interpretação e de aplicação, as leis de processo, designadamente o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

29.ª- E, na medida em que a Relação conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, o acórdão é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), ex vi artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o que constitui também fundamento do recurso de revista nos termos do artigo 674.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

Do erro de Direito e violação de lei substantiva

Uso ilegítimo de presunções judiciais; a nulidade por contradição entre os factos provados, a par com a violação de princípios e normas de processo civil.

Sem prejuízo,

30.ª- Toda a decisão do douto Tribunal da Relação de Évora assenta, como nos parece evidente, em presunções judiciais para reconhecer a propriedade privada dos prédios do A e subtraí-los ao domínio público marítimo, presunções que extraiu dos documentos juntos, da prova pericial e testemunhal, e que o levaram à conclusão de que foram desafetados do domínio público aquando da venda da Fortaleza . .., de que fariam parte.

31.ª- Além de a Relação não ter poderes, por falta de base legal, para alterar a matéria de facto e para refazer o julgamento de facto e direito da ação, como acima se alegou, ao fazer apelo exclusivo às presunções judiciais e, com isso, alterar ilegitimamente os factos provados relevantes para a decisão da causa, a nosso ver, excedeu manifestamente o alcance dos artigos 349. ° e 351. °, ambos do Código Civil, como se demonstrará.

32.ª- Ora, as presunções judiciais não são meios de prova, mas ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, nos termos do artigo 349.º do Código Civil e é regra jurisprudencial assente que as presunções judicias só são legítimas e lícitas se essas ilações resultarem da matéria de facto dada por provada, mas sem alterarem os factos que foram objeto de prova e das respostas do julgador (cf. Acórdão do STJ de 19.10.94, BMJ n.º 440, pp, 361-366).

33.ª- Porém, as presunções judiciais em que o Tribunal da Relação de Évora se baseou para inverter a decisão de 1.ª instância, não assentou nos factos provados na 1.ª instância, mas nos factos provados que entendeu acrescentar à decisão da matéria de facto, ainda que sem os poderes para o efeito e também eles resultado de presunções. Ou seja, as presunções judiciais não podem, nem podiam, suprir as respostas negativas aos pontos da matéria de facto.

34.ª- De igual modo, também não poderia ter assente em presunções judiciais – só possíveis depois de ter reapreciado a matéria de facto, que, porém, não foi impugnada nos devidos termos conforme artigo 640.º do Código de Processo Civil -, a decisão de Direito que veio a recair sobre os factos provados - também ela resultado de presunções de base - ditando que os prédios do A resultaram da desafetação do domínio público marítimo aquando da venda da Fortaleza . ...

35.ª- Em suma: o douto Tribunal da Relação de Évora usou de presunções para acrescentar aos factos provados os factos que a 1.ª instância havia dado por não provados e, depois, usou de presunções judiciais sobre os factos assim provados presuntivamente para julgar procedente a ação, o que nos parece algo original, como se os factos tivessem sido submetidos a uma “cama de Procrustes”.

36.ª- Ora, sendo esse o resultado das presunções circulares ou presunções sobre presunções que o Tribunal da Relação de Évora invocou para fundamentar o

seu juízo de mérito, não o poderia fazer porque tal juízo inferencial não assentou nos factos provados e não provados pela 1.ª instância, ou que tivessem legitimamente sido impugnados nesta instância superior.

37.ª- Na verdade, as presunções, sendo inferências, assentam num modelo de raciocínio conjetural, mas que tem por base factos provados, conhecidos, concludentes e sustentados por elementos de prova submetidos ao contraditório.

Não pode ter por base outras presunções, que não têm a condição de prova, não sendo admissível presunções de 2.º grau, pelo que o Tribunal da Relação de Évora infringiu a máxima praesumtio de praesumtiones non admititur, mostrando-se violado o disposto nos artigos 349.º e 351.º do Código Civil.

Acresce o seguinte:

38.ª- Além do exposto, o Tribunal da Relação de Évora usou de presunções, de forma ilegal, porque também nem sequer se podem considerar cobertas por qualquer lógica dedutiva, válida e verdadeira, pois retirou ilações da prova documental, pericial e testemunhal, que essas provas não consentem.

39.ª- Quanto à invocação das ilações extraídas da prova testemunhal, a Relação não poderia extrair dela as ilações que justificaram a alteração da matéria de facto, com o acrescento dos factos provados 29.º a 36.º, pois a testemunha disse que:

- “Relativamente aos prédios em causa não foi identificada a existência de qualquer Auto de Delimitação publicado.

Compulsados os arquivos deste Instituto, não foi igualmente identificada a existência de qualquer processo administrativo, no âmbito do qual pudesse ter sido iniciado procedimento de delimitação do DPM”

- “Com efeito, salvo melhor leitura, não me é possível encontrar a prova da desanexação dos prédios da Ação do prédio da Fortaleza ....”.

- O prédio possuía também, até 1894, sobre ele o Domínio Público Militar- Defesa que o rei Dom Carlos, desfeito por venda em hasta pública por já não ter utilidade militar.

- Quando sejam desafetados das utilidades que justificam a sujeição ao regime da dominialidade, os imóveis deixam de integrar o domínio público, ingressando no domínio privado do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais, podendo ser vendidos.

- A aplicação do regime simplificado de prova de propriedade, ao abrigo da alínea a) nº5, artigo 15º da Lei nº54/2005 (alterada e republicada pela Lei 31/2016), requerem a existência de uma desafetação do domínio público marítimo.

- Face as razões apresentadas, e salvo melhor opinião, não se consideram suficientemente válidas, nem suportadas legalmente, para ser possível o reconhecimento da propriedade privada em DPM dos prédios da Ação.

40.ª- Quanto à invocação da prova documental, a Relação também não poderia extrair dela as ilações que justificaram a alteração da matéria de facto, com o acrescento dos factos provados 29.º a 36.º, pois, na verdade, nenhum dos documentos juntos aos autos, e que o princípio da aquisição processual impõe que se valorem, comprovam a alegada desanexação dos prédios do A da “Fortaleza . ..” e consequente desafetação do DPM, pois não foi produzido qualquer meio de prova sobre essa desanexação, até porque o próprio autor alega a sua inexistência.

41.ª- Por fim, quanto à invocação da prova pericial, a Relação também não poderia extrair dela as ilações que justificaram a alteração da matéria de facto, com o acrescento dos factos provados 29.º a 36.º, pois o perito coloca hipóteses, algo contraditórias, pelo que a Relação não podia extrair ilações de ilações, já que estas não são factos conhecidos de que se possam extrair factos desconhecidos, pois mais não são do que especulações, hipóteses, abduções, valorações opinativas, que não podem, nem devem suportar, por seu turno, presunções judiciais. Lê-se no relatório pericial:

- “O Perito desconhece se os muros foram construídos em simultâneo e no ano de 1900, mas ponderando toda a informação respeitante à localização e origem dos prédios envolvidos, admite essa hipótese como plausível. Essa certeza implicaria uma avaliação por parte de técnico da área de engenharia civil e/ou arqueologia.”

- Respondendo à questão de saber se os prédios propriedade do Autor, no ano de 1894 integravam a área do prédio da “Fortaleza . ..”, pertencendo à área que foi desafeta do domínio público pela venda em hasta pública a BB, em 26.07.1894?

Sim. É da opinião do Perito que existe uma elevada probabilidade de tal se verificar.

- Acresce ainda que a conclusão do perito “O Perito concluí assim que o espaço físico ocupado pelo primitivo prédio designado “Forte de ...”, inscrito com o art.º 494, teria uma elevada probabilidade de englobar os prédios do Autor, objeto da presente ação, inscritos com os artigos 495 e 496, na data em que o mesmo foi vendido em hasta pública a BB e a sua área foi desafeta ao Domínio Público”, não tem qualquer apoio documental que comprove a assumida desafetação dos prédios do A do DPM, pois ele próprio concluiu que da documentação histórica ou bibliográfica consultada apenas se descreve o Forte propriamente dito pois é este o principal elemento militar e que é hoje imóvel classificado. Não existe qualquer referência a anexos e moradias isoladas e com quintal.

42.ª- Pois bem, a prova documental, pericial e testemunhal invocada pela Relação para extrair ilações que levaram à alteração e acrescento da matéria de facto provada os artigos 29.º a 36.º impunha uma inferência contrária à que foi delas extraída pela Relação, pelo que não há qualquer lógica, no sentido de uma inferência verdadeira ou conclusão válida extraída por lógica dos dados fornecidos pela prova documental, pericial e testemunhal, que possa ter nessa prova a base necessária para dar por provados factos desconhecidos.

43.ª- Designadamente não é lógica a conclusão de que os prédios do A resultaram da divisão do prédio inicial com o n.º 494 (artigo 29.º dos factos provados acrescentados pela Relação); ou que os prédios com os artigos 494, 495 e 496, eram um todo (artigo 33.º dos factos provados acrescentados pela Relação); ou que da Fortaleza . .., à data com o artigo 494, foram desanexados os prédios do Autor (artigo 35.º dos factos provados acrescentados pela Relação); ou que os prédios inscritos na matriz predial com os artigos 495 e 496 da freguesia da ..., integravam a área cuja desafetação do domínio público já se encontrava realizada desde 26/07/1894 (artigo 36.º dos factos provados acrescentados pela Relação).

44.ª- São, portanto, ilógicas a ilações que da prova documental, pericial e testemunhal a Relação extraiu para alterara matéria de facto, acrescentando os factos provados 29.º a 36.º, pelo que violou o disposto nos artigos 349.º e 351.º do Código Civil, e bem assim o artigo 607.º, n.º 4, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.


Para além desta ilegalidade, acresce a seguinte contradição, que importa nulidade da decisão recorrida:

45.ª- Constata-se que dos factos provados consta o seguinte sob o n.º 25.º:

- “25. Não constam do Serviço de Finanças de ...quaisquer documentos físicos que comprovem a inscrição matricial dos artigos 495 e 496 da freguesia da ..., prédios objeto da presente ação.”.

46.ª- Porém sob o n.º 35.º e 36 dos factos provados acrescentados pela Relação consta o contrário:

- “35. Da Fortaleza . .., à data com artigo matricial 494, foram desanexados os prédios do Autor, dando origem aos artigos matriciais 495 e 496 da mesma freguesia da ... (parte final do artigo 37º da petição inicial).

- 36. Os prédios inscritos na matriz predial com os artigos 495 e 496 da freguesia da ..., integravam a área cuja desafetação do domínio público já se encontrava realizada desde 26/07/1894 – certidão emitida pela Direção de Infraestruturas do Comando da Logística do Ministério da Defesa Nacional, incorporada através do documento nº12 (artigo 38 da petição inicial).

47.ª- Do que se expõe resulta que as conclusões extraídas, ilicitamente, por via de presunções para dar como provados e acrescentados os factos n.ºs 35.º e 36 dos factos provados acrescentados pela Relação, originaram também uma manifesta contradição com a matéria de facto dado por provada e inserida no artigo 25.º dos factos provados, pelo que a decisão aqui contestada, contendo factos inconciliáveis ou incongruentes, subjacentes ao litígio, para sustentar uma inferência escorreita e uma adequada solução jurídica, resultam numa decisão ambígua, obscura, por falta de clareza e segurança de raciocínio, por se prestar a interpretações com diferentes sentidos e não, necessariamente, àquela que foi assumida pela decisão recorrida.

48.ª- O que, impõe o reconhecimento de que o acórdão padece da nulidade que resulta dos artigos 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 4, 2.ª parte, artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil), sindicável por via de recurso de revista, nos termos do artigo 674.º, alínea c), e 615.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 682.º, n.º 3, do mesmo Código.

49.ª- A decisão recorrida também acabou revelar uma deriva em relação ao objeto do processo e à causa de pedir invocada pelo A, ao ter resumido o seu julgamento à seguinte síntese: O artigo 15º da Lei 54/2005 prevê as condições excecionais em que os particulares podem pedir o reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, exigindo sempre que seja reconstituída a situação das parcelas em causa.

50.ª- Essa deriva tornou-se patente quando o Tribunal da Relação de Évora resumiu o objeto da ação e da fase recursiva nos seguintes ternos: “… Para tanto, a parte ativa alegou que os mencionados prédios se encontravam na propriedade de particulares desde data anterior a 1894 e que foram desanexados do prédio denominado “Fortaleza . ..”.

51.ª- Ou seja, deixou de ser a desafetação do DPM - invocada como causa de pedir - o centro da decisão recorrida, para passar a ser, por presunções circulares, a prova de que a propriedade privada dos imóveis do A vem desde a desafetação desses prédios aquando da venda da Fortaleza . .., ou seja, desde 1894, como se em causa estivesse uma usucapião, não invocada pelo A (cf. Artigos 1292.º e 303.º do Código Civil), nem possível de ser invocada, como acima referimos e de seguida melhor veremos.

52.ª- Ora, estando os prédios do A em área abrangida pelo DPM, nunca este tipo de bens poderia ser suscetível de aquisição por usucapião (cf. artigo 19.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, aprovado pelo DL n.º 280/2007, de 07 de agosto), isto é, a posse (ainda que prolongada no tempo), por parte de um particular, sobre bens imóveis do domínio público não lhe permitirá ser proprietário dos mesmos (ao contrário do que ocorre no domínio do direito privado, nos termos do artigo 1287.º e ss. do Código Civil).

53.ª- Daí que a decisão recorrida, ao reconhecer a propriedade privada do A sobre os dois prédios com os artigos matriciais 495 e 496, ficando assim os mesmos desafetados do domínio público marítimo, porque foi reconstituída a situação dos prédios em causa (cf. o sumário da decisão recorrida), mas que só pode ter retroagido até 1894 (ano da venda da Fortaleza . .. a particulares, com a consequente desafetação desta do Domínio Público), é uma decisão ilegal por dois motivos:

- Na medida em que pressupõe a possibilidade de a demonstração da propriedade dos prédios em causa, por reconstituição da sua situação desde 1894, em resultado da usucapião, como modo de aquisição originária, tal decisão redunda num resultado manifestamente ilegal, pois os bens que integram o domínio público são insuscetíveis de aquisição prescritiva (cf. artigo 19.º do DL n.º 280/2007, de 07 de agosto).

- Por outro lado, é irrelevante que o A demonstre que os prédios estão na propriedade privada desde 1894, data da venda da Fortaleza . .. e da sua desafetação do domínio público, de que esses seus prédios fariam parte, pois apenas é relevante para o reconhecimento dessa propriedade privada a demonstração documental e judicialmente declarada de que tais prédios eram, por título legitimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31-12-1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22-3-1868, conforme é exigido pelo artigo 15.º, n.º 2, da Lei 54/2005, que nunca constituiu ou constitui a causa de pedir da ação

54.ª- Ora, tal decisão, não só viola lei substantiva e encerra em si mesma um flagrante erro de Direito, como ofende princípios fundamentais do processo civil, entre eles:

a. O princípio do dispositivo, pois a causa de pedir invocada pelo A e o pedido consistiram na invocação da desafetação dos seus prédios do domínio Público (cf. Artigo 53.º da PI) e no reconhecimento, em consequência, do seu direito de propriedade em detrimento do DPM, conforme artigo 15.º, n.º 5, alínea a) da Lei n.º 54/2005 (cf. Artigo 51.º da PI), desafetação essa ocorrida aquando da venda da Fortaleza . .. em 1894, e não o reconhecimento da propriedade privada desses prédios em razão da demonstração da sua posse desde a mesma ocasião ou em razão da reconstituição da respetiva situação de desafetação do DPM desde a mesma ocasião.

b. Ora, o acórdão não poderia ter decidido objeto diverso do que foi pedido, pelo que atropelou o disposto nos artigos 3.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea e) e 609.º, todos do Código de Processo Civil. c. Viola o princípio do contraditório e do direito de acesso aos tribunais e a um processo equitativo, pois o Ministério Público apresentou a sua defesa em relação à causa de pedir e pedido invocado pelo A, e não em relação àquela que a decisão recorrida veio a revelar, pelo que a decisão atropelou a garantia de participação das partes no desenvolvimento da lide, através da possibilidade de, em igualdade, influenciarem os seus elementos, quer sejam factos, quer provas, etc., violando assim o disposto nos artigos 3.º, do Código de Processo Civil.

d. Viola também o princípio da igualdade das partes, que significa que são iguais em direitos, deveres, poderes e ónus, colocadas em condições de paridade e gozando idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida, pois a causa de pedir e o pedido nesta ação, assentando na subsunção dos factos alegados e provados (com ou sem o acrescento introduzido pelo acórdão recorrido) ao disposto no artigo 15.º, n.º 5, alínea a) da Lei 54/2005, não podia ter obnubilado o ónus da prova que recaía sobre o A em função dos factos integrantes dessa causa de pedir, tendo a decisão recorrida transfigurado o pedido e a causa de pedir ao ditar que, uma vez que se achava reconstituída a situação das parcelas em causa, o artigo 15.º da lei 54/2005 (sem indicar que número desse artigo) consentia, nas condições excecionais que prevê, o reconhecimento da propriedade privada do A sobre os dois prédios com os artigos matriciais 495 e 496 (acima melhor identificados), ficando assim os mesmos desafetados do domínio público marítimo.

e. Viola o princípio da legalidade, pois a decisão tem um conteúdo e um efeito não permitido pela lei e pelos factos considerados provados, designadamente pelo disposto no artigo 19.º do DL n.º 280/2007, de 07 de agosto e o disposto no artigo 15.º, n.º 2, da Lei 54/2005, não tendo a decisão objetivado em que termos o artigo 15.º, n.º 5, alínea a) da Lei 54/2005 – que constituía a causa de pedir da ação -, se mostrava preenchido ou não.

55.ª- Face ao que se expõe, resulta estarmos perante uma decisão-surpresa, pois o Tribunal da Relação de Évora decidiu uma questão que não era objeto da ação, que se reconduzia aos termos do artigo 15.º, n.º 5, alínea a) da Lei n.º 54/2005, por nele assentar a causa de pedir.

56.ª- A decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil), dado que o acórdão se pronunciou sobre uma questão que ia para além do quadro jurídico atinente e sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se podia pronunciar.

57.ª- Deste modo, o Tribunal da Relação de Évora exerceu poderes fora dos pressupostos e condicionalismos legais, decidiu por excesso em relação à matéria de que podia conhecer e que estava limitado a conhecer, o que redunda na nulidade do acórdão por consubstanciar uma decisão–surpresa, que não pode deixar de acarretar igualmente a respetiva nulidade, por violação do princípio do contraditório, em desrespeito pelo estatuído no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, tratando–se de uma nulidade decisória, nos termos do artigo 615, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma e que em sede de recurso pode ser arguida (artigo 615.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).

58.ª- Sendo assim, nos termos defendidos, o Tribunal da Relação de Évora decidiu, também aqui, de forma que é nula, por excesso de pronúncia, conforme decorre do disposto nos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil

59.ª- Como é bom de ver, a amálgama em que ficou a ajuizamento da causa de pedir não nos pode distrair do essencial, que é o facto de que só seria de reconhecer a propriedade privada dos prédios do A, e sobrepô-la à dominialidade marítima, se prova houvesse de que tais prédios eram privados antes de 1864 ou antes de 1868, nos termos do artigo 15.º, n.º 2, da Lei 54/2005, e essa prova só documentalmente seria admissível.

60.ª- Facto é, porém, que dos autos resulta como inequívoco que os prédios do A, a assumir-se como plausível a sua tese, eram propriedade do Estado em 1894, e portanto, não poderia o acórdão do Tribunal da Relação de Évora ter concluído como concluiu, pois nem prova direta havia de que os prédios do A foram desafetados do domínio público em 1894 ou posteriormente, como, muito menos, haveria prova de que estivessem na propriedade privada antes dessa data e que a situação das parcelas em causa fora reconstituída de forma legalmente relevante, ou seja, documentalmente, provando que tais parcelas eram particulares antes de 1864 ou 1868.

61.ª- Pelo que o Supremo Tribunal de Justiça deve anular a decisão do Tribunal da Relação de Évora, em conformidade com o artigo 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

– B –

(Fundamentação do recurso) Do erro de Direito e violação de lei substantiva

Nulidade por omissão de pronúncia. Erro de interpretação e aplicação da regra do ónus a prova – o artigo 15.º, n.º 5, alínea b), da Lei n.º 54/2005.

62.ª- A questão que a Relação não enfrentou devidamente consistia em saber se a prova de uma alienação de bem pertencente ao domínio público, que no caso se provou apenas ter sido a Fortaleza . .. (edifício), equivale e é sinónimo jurídico de desafetação do DPM, quer dessa Fortaleza (prédio 494), quer, na tese do A, dos seus prédios 495 e 496, ocorrida em 1894.

63.ª- E não a enfrentou porque, salvo o devido respeito, laborou em erro de citação bibliográfica ao invocar o estudo do Senhor Desembargador Manuel Bargado, publicado na Revista Julgar on line, página 20 a 24, que sobre o reconhecimento da propriedade privada sobre terrenos do domínio público assumiu uma posição doutrinal já desatualizada, pois assentou na versão do artigo 15.º, n.º 3, da Lei n.º 54/2005, na sua versão originária, e não na versão que foi introduzida pela Lei n.º 34/2004, de 19-6, posterior à posição doutrinária invocada no acórdão recorrido e acima citada para o julgamento de Direito, e que veio alterar o artigo 15.º da Lei 54/2005, a qual, relativamente à desafetação, passou a dispor o que hoje dispõe o artigo 15.º, n.º 5, designadamente a sua alínea a).

64.ª- Ora, outra é hoje a posição assumida pelo autor citado, assumida em versão atualizada do mesmo estudo em 2016, conforme citámos nas alegações.

Segundo a posição atual do citado autor, o art. 15.º, n.º 5, dispensa o regime de prova estabelecidos nos números anteriores no caso de terrenos que: «a) Hajam sido objeto de um ato de desafetação do domínio público hídrico, nos termos da lei; (…) De acordo com o artigo 19.º da Lei n.º 54/2005, existe uma reserva de lei em matéria de desafetação de bens do domínio público hídrico, não sendo admissível que tal operação seja promovida mediante ato administrativo.

65.ª- Portanto, quando a causa de pedir assentar no disposto no artigo 15.º, n.º 5, alínea a) da Lei 54/2005 – como é o caso da presente ação - a desafetação do DPM de determinado imóvel tem que ser provada por quem quer ver reconhecido o seu direito de propriedade, não havendo possibilidade de invocar e muito menos reconhecer, para o efeito, qualquer usucapião, por não ser legalmente possível ou invocável (cf. artigo 19.º, do DL n.º 280/2007, de 7-8 – Os imóveis do domínio público não são suscetíveis de aquisição por usucapião).

66.ª- Vale por dizer que a decisão recorrida incorre em manifesto erro de Direito quando conclui: De acordo com o conspecto factual apurado e após a operação de reavaliação da prova, julga-se procedente a ação, uma vez que o Autor logrou demonstrar o direito de propriedade privada sobre os dois prédios com os artigos matriciais 495 e 496 e que os mesmos se mostram desanexados do domínio público marítimos em circunstância de tempo e modo perfeitamente reconstituíveis e de acordo com as exigências legais.

67.ª- Ora, como acima vimos, a usucapião não foi, nem poderia ser causa de pedir na presente ação, face à natureza dos direitos em jogo, pelo que a decisão de Direito é incorreta.

68.ª- Afigura-se-nos então que o Tribunal da Relação de Évora não enfrentou a questão essencial que deveria ter enfrentado por ter laborado em erro sobre os pressupostos da ação, pelo que a solução deveria e teria que ser outra.

69.ª- Segundo é defendido por Diogo Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes (Comentário à lei dos terrenos do domínio hídrico, Coimbra: Coimbra editora, 1978, pp 126 e ss.) no que se refere à prova a que se encontra adstrito quem pretende ser reconhecido como proprietário de uma parcela de leito ou margem do DPM alegadamente desafetado do DPM, em anotação ao artigo 8.º, n.º 4, do DL n.º 468/71, de 5-11, idêntica à norma do artigo 15.º, n.º 5, alínea a), da Lei n.º 54/2005, o interessado pode provar que o terreno foi desafetado do domínio público nos termos da lei.

70.ª- A desafetação poder ter-se verificado em qualquer data para aquém de qualquer das que são indicadas no artigo 15.º, n.º 2,da Lei n.º 54/2005 (anterior artigo 8.º, n.º 1, do DL n.º 468/71) [1864 ou 1868] e prova-se normalmente pela referência ao diploma ou por certidão do despacho de que resultou.

71.ª- Defendem os autores citados que: a desafetação direta dos bens do domínio público hídrico só é possível por lei ou por diploma fundado em autorização legal e que … todo o ato administrativo que tenha por objeto a alienação de um bem do domínio público tem de considerar-se nulo e de nenhum efeito, por ser ato de objeto impossível. De outro modo, aliás, o domínio público seria de facto alienável…Resulta desta nossa opinião que o ato de alienação não produz nenhuma eficácia jurídica, mesmo enquanto não for a sua nulidade pela Administração ou pelos tribunais: fica, pois, excluída toda e qualquer equiparação prática entre a alienação e a desafetação. …. Esta parece ser a solução rigorosa decorrente dos princípios que integram o estatuto do domínio público.

72.ª- A decorrência do que vem de ser alegado impunha assim que que o Tribunal da Relação de Évora declarasse a nulidade da alienação originária de que dependia a alegada aquisição privada dos prédios do A, pois a nulidade é invocável a todo o tempo e é oficiosamente conhecida e declarada pelo tribunal – cf. Artigos 287.º e 280.º, ambos do Código Civil.

73.ª- Na medida em que o Tribunal da Relação de Évora não se pronunciou sobre a referida nulidade conforme era seu dever, o acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, conforme decorre do disposto nos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil; o que constitui também fundamento do recurso de revista nos termos do artigo 674.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

Por fim,

74.ª- Divorciada a decisão recorrida da causa de pedir e do objeto da ação, a decisão recorrida naufraga, por fim, na violação da regra do ónus da prova, que deveria ter observado e não observou, pois o artigo 15.º, n.º 5, alínea a) da Lei 54/2005 exigia a prova da desafetação dos prédios do A do DPM. 75.ª- Em primeiro lugar, estando a ação intentada pelo A assente na causa de pedir que o artigo 15.º, n.º 5, alínea a) da Lei 54/2005 enuncia, teria que demostrar e provar que uma lei retirou a natureza dominial marítima e não apenas dominial

76.ª- Em segundo lugar, dispensando a lei exigências probatórias particulares, a ação é de simples apreciação, mas não dispensa a invocação da lei (artigo 19.º, da Lei n.º 54/2005) que retirou a natureza dominial do bem em relação ao qual se pretende ver reconhecida a propriedade privada; ou seja, o reconhecimento da propriedade privada de imóvel desafetado do domínio público não dispensa a invocação/demonstração vinculada da lei que procedeu a essa desafetação, sendo desnecessário o recurso a prova testemunhal, pericial ou documental.

77.ª- Em terceiro lugar, não sendo demonstrada, nos termos exigidos, a desafetação dos prédios do A do DPM, não podia a ação proceder, pelo que a decisão de 1.ª instância é a legalmente devida e errada é a decisão recorrida.

78.ª- Em quarto lugar, a alienação em 1894 da Fortaleza . .., até aí bem do domínio público, nem sequer se pode dizer que seja equiparável a um ato de desafetação do DPM, pois a doutrina tende a rejeitar essa equiparação (cf. Diogo Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, Comentário à lei dos terrenos do domínio hídrico, Coimbra: Coimbra editora, 2008, p. 135 a 139), pelo que provada a alienação da Fortaleza . .., que passou para a propriedade privada, não podia decorrer dessa alienação, juridicamente, a desafetação do DPM, quer da mesma Fortaleza, quer dos prédios do A, como ele alega.

79.ª- Como alegado pelo Ministério Público ao longo dos autos, o A não demonstrou que os seus prédios advieram da desanexação/desafetação da Fortaleza . .. do DPM, pelo que não era legalmente permitido que o douto Tribunal da Relação de Évora tivesse concluído o contrário; para mais com base em presunções judiciais circulares que serviram para dar por provados factos não provados pela 1.ª instância para depois deles extrair novas inferências presuntivas, mas não consentidas pelo regime legal pertinente, sendo inglório o esforço de extrair essas presunções da prova testemunhal, pericial ou documental atenta a causa de pedir em que assentava a ação, além da ilogicidade e ilegalidade em que assentaram.

80.ª- Do que vem de ser alegado só pode, pois, concluir-se, que o Tribunal da Relação de Évora, com os termos e fundamentação de mérito da decisão recorrida, violou lei substantiva, designadamente os artigos 15.º, n.º 1, 2 e 5, alínea a), da Lei n.º 54/2005, a par com a violação de normas processuais e nulidades invocadas, como acima se alegou, importando assim que o Supremo Tribunal de Justiça, através da presente revista, reverta a decisão recorrida, nos termos dos artigos 671.º, n.º 1 e 674.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 682.º, todos do Código de Processo Civil, reconhecendo o incumprimento dos deveres legais a que o douto Tribunal da Relação de Évora estava obrigado e substituindo-se no seu cumprimento.

Normas jurídicas violadas e sentido com que deveriam ter sido interpretadas e aplicadas

81.ª- Assim, em respeito à violação das leis processuais e às nulidades invocados, o acórdão recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 640.º, 662.º, n.º 1, 652.º, n.º 1, alínea a), 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1 , alínea c) e alínea d), artigos 3.º, 552.º, n.º 1, alínea e) e 609.º, todos do Código de Processo Civil, sendo o recurso de revista admissível neste particular, nos termos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, alíneas b) e c), do mesmo Código.

82.ª- Em respeito à violação das leis substantivas ou materiais o acórdão recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 349.º, 351.º, 363.º, 369.º, 370.º, n.º 1, 371.º, 393.º, n.º 1 e 2 e 394.º, n.º 1, 342.º, n.º 1, 287.º e 280.º, todos do Código Civil, a par com a violação do disposto no artigo 15.º, n.º 5, alínea a), da Lei 54/2005, sendo o recurso de revista admissível neste particular, nos termos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.

Deve ser concedido provimento ao presente recurso, requerendo–se que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça:

- Supra as nulidades invocadas – artigo 684.º, n.º 1, do Código de Processo Civil;

- Reconheça e declare as invocadas violações de lei de processo e das leis materiais invocadas e que, em decorrência, revogue o acórdão recorrido e em sua substituição decida que, face à prova a atender e fixada pela 1.ª instância, o pedido da A. é improcedente – artigos 674.º, n.º 1, e artigo 682.º, do Código de Processo Civil e artigo 15.º, n.º 5, alínea a), da Lei n.º 54/2005, de 15–11.

… …

O recorrido contra alegou defendendo a inadmissibilidade da revista por o Tribunal da Relação ter poderes para oficiosamente ampliar a matéria de facto mesmo sem haver impugnação da mesma pelas partes e, no mais, defende a confirmação da decisão recorrida.

Cumpre decidir

… …

Fundamentação

A decisão recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número 4062, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 495, o prédio urbano sito na Av. dos ..., n.º 5, ..., concelho de ....

2. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número 4061 e inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo 496 o prédio urbano sito na Av. dos Pescadores, n.º 3, ..., concelho de ..., com as seguintes confrontações: norte, herdeiros de CC; sul, DD; nascente, rua; poente, BB.

3. O prédio descrito em 1 é composto de edifício de 1 piso com quintal, destinado a habitação, com uma área total de 303.92 m2, área coberta de 56 m2 e descoberta de 247,92 m2.

4. O prédio descrito sob a alínea 2 é composto de edifício de 1 piso com quintal, destinado a habitação, com uma área total de 303.93 m2, área coberta de 56 m2 e descoberta de 247,93 m2.

5. Os prédios encontram-se inscritos a favor do Autor.

6. Os prédios foram adquiridos por EE, casado no regime de comunhão geral de bens com FF, pais do Autor, por escritura de compra e venda celebrada no Cartório Notarial de ... .

7. O Autor adquiriu a nua propriedade dos supra descritos prédios, por doação de seus pais, EE e FF, outorgada em 17/07/2017, com reserva de usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo.

8. Os prédios são contíguos e estão ambos inseridos na parcela da margem das águas do mar, ou seja, a uma distância inferior a cinquenta metros da linha limite do leito.

9. O prédio urbano designado por “Forte de ...”, sito na Estrada ..., freguesia da ..., concelho de ... encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número 2479, actualmente inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 7268, que proveio do artigo 494 da referida freguesia.

10. O primeiro registo predial deste prédio resulta da inscrição número 3152, datada de 4 de Agosto de 1894, através da qual se procedeu ao registo da 1 A referida compra foi efetuada a 05/07/2001 e surgem como vendedores DD e GG, sendo que o comprador marido havia adquirido metade daquele prédio por partilha e doação conforme resulta do ponto 27 dos factos provados. aquisição a favor de BB, por arrematação em hasta pública, realizada em 26 de Julho de 1894.

11. É a seguinte a descrição do prédio número 3152: “Prédio no sítio e freguesia de .... Consta de um forte e seus anexos, esplanadas, de uma casa isolada e de outra casa com seu quintal contíguo e confronta do norte com D. HH, do leste com Caminho da praia, do sul com a praia, nascente e poente com praia e caminho da C....... Valor venal d’este prédio 290$000 R. A superfície total do forte e seus anexos é de 2293m2,52, sendo 183m2,52 a da parte urbana e 2110 metros quadrados a parte rústica. O documento donde extrai esta descrição foi apresentado sob o n.º 3 de 4 de Agosto de 1894”.

12. No ficheiro dos prédios militares, o prédio encontra-se descrito da seguinte forma: “O forte de ... e seus anexos, sito na freguesia do mesmo nome compõe-se do forte propriamente dito, de suas esplanadas, de uma casa isolada e de outra casa com um quintal contíguo. Confronta de norte com prédio de D. HH, de leste com caminho para a praia, do sul com a praia do mar e do poente com a praia e com o caminho da C......”.

13. Sob a epígrafe “Superfície” consta que o referido forte tinha uma área de terreno de “21 ares e 10 centiares” e uma área urbana de “1 are e 83,52 centiares”, o que perfaz uma área de superfície total de “22 ares e 93,52 centiares”.

14. Da Carta de Arrematação n.º 26375 A, datada de 26 de Julho de 1894, extraída do Livro 592 das Cartas de Arrematação do Ministério das Finanças consta o seguinte: “Faço saber aos que esta carta de pura e irrevogável venda virem, que, precedendo as diligencias, annuncios e solemnidades da lei e estylo, arrematou em hasta publica na repartição da fazenda do districto de ... no dia 26 de Julho de 1894 BB pela quantia de 290$000 reis, (palavra ilegível) na conformidade da lei de 22 de dezembro de 1870, a seguinte propriedade que pertencia à fazenda nacional e sob o av.4 foi posta à venda no leilão 936-37; a saber: Concelho de ... – O forte de ... e seus anexos, situado na freguesia de ..., que se compõe do forte e suas esplanadas, de uma casa isolada e de outra casa com um quintal contíguo; confronta de norte com D. HH, do leste com caminho da praia, do sul com a praia do nascente e poente com a praia e caminho da C....... O quintal está sujeito ao ónus de arrendamento em favor de D. HH até 28 de Setembro de 1897 pela renda de 700 reis pagas adiantadas em 15 de Setembro de cada ano; o forte e as duas casas estão também arrendadas a BB até 30 de Novembro de 1894 – A superfície total do forte e seus anexos é de 2:293 m2,52 sendo 183 m2, 52 a da parte urbana e 2.110m2 a da parte rústica. = E tendo o arrematante satisfeito no dia 13 de Agosto na agência do Banco de Portugal em ... para pagamento do preço da arrematação as quantias de 96,666 r. em (palavra ilegível) moeda corrente e 203$000 reis em uma letra, o pagamento da qual ficou a mesma propriedade hippotecada, como consta do registo da conservatória e do recibo n.º 286 do (palavra ilegível) Banco. Hei por bem transmitir-lhe, por irrevogável e pura venda, toda a posse e domínio que na referida propriedade tinha a fazenda nacional para que o arrematante seus herdeiros e sucessores o gosem, possuam e desfrutem como próprio…”.

15. A mesma descrição consta do documento número 2170, fls. 262v, ano 1894, do livro de Demarcação Foros e Bens da Fazenda Nacional, da Direção de Finanças de ....

16. Até 26 de Julho de 1894, o referido prédio da Fortaleza, com a supra referida descrição e confrontações, pertenceu ao Estado Português, tendo sido, nessa data, desafeto do Ministério da Defesa Nacional e do Domínio Público, e vendido em hasta pública ao Sr. BB.

17. O prédio da Fortaleza, inscrito na matriz predial com artigo matricial 494 da freguesia da ..., situa-se a sul do prédio objeto da presente ação, inscrito na matriz com o artigo 495 da mesma freguesia, sendo com ele confinante.

18. O prédio da “Fortaleza . ..”, aparece atualmente descrito sob o número 5595 (constituído pelo antigo n.º 2479 e parte omissa) e apresenta uma área total de 1.741,80 m2, confrontando a norte com II, e está inscrito na matriz com o artigo n.º 7268 que proveio do artigo n.º 494.

19. O prédio primitivamente com a descrição 4043, que confronta a sul com o prédio objeto da presente ação, inscrito com o artigo 496, tem a seguinte descrição: “Prédio Urbano no sítio e freguesia da Senhora da ... desta comarca. Consta de uma morada de casas térreas que confrontam do norte com JJ, sul BB, nascente rua da ... e poente KK”.

20. A Câmara de..., na sessão ordinária realizada no dia 20/01/1900, a solicitação de BB, autorizou a construção do muro da vedação junto à ....

21. Passou a constar da inscrição do prédio da “Fortaleza . ..” o nome de II pois a mesma resulta do facto de BB ter deixado à sua irmã (II) em testamento o usufruto da terça parte de todos os seus bens por testamento cerrado aberto em 09/05/1904: “À minha irmã II, solteira, de maior idade e que vive em minha companhia; deixo-lhe o usufruto vitalício da terça de todos os meus bens, e a propriedade da mesma terça às minhas duas filhas, LL e MM, que só tomarão posse depois da morte da minha irmã”.

22. Em 08 de Fevereiro de 1966, a metade do prédio da Fortaleza correspondente ao atual prédio da Fortaleza, onde está edificada a Fortaleza propriamente dita, passou a estar registado em nome de apenas uma das filhas de BB – LL – por lhe ter sido adjudicada por partilha celebrada em 28/09/1904, tendo-se mantido o usufruto da outra metade em nome da II, pela mesma partilha.

23. II já era detentora do usufruto de metade da antiga Fortaleza em conjunto com NN, uma vez que ambos constam da referida escritura de partilhas celebrada em 28/09/1904, como confrontantes a norte da verba Segunda que constitui o prédio da fortaleza, onde a referida verba Segunda é descrita como “Segunda – Um prédio urbano com altos e baixos, quintal murado e pequena cerca até ao mar, na antiga Fortaleza . .. e que confronta a nascente com caminho que vai para a praia, sul com o mar, poente com a C...... e norte com casas da outorgante Dona II e quintal de NN, inscrito e descrito na Conservatória d’esta Comarca, sob o número três mil cento e cinquenta e dois a folhas cento e noventa do livro B oitavo, a que dão o valor de seiscentos mil reis”.

24. Com a mesma data, 08 de Fevereiro de 1966 consta registada uma alteração na composição do prédio e nas suas confrontações, passando a constar definitivamente como confrontação a norte a irmã de BB, II e NN, tendo-se alterado igualmente nessa data a composição do prédio que passou a ter a seguinte composição: “O prédio supra n.º 3152 compõe-se de casas de 1º andar com 18 vãos e 9 divisões, rés-do-chão com um compartimento, sendo a área coberta de 168m2,50, um terraço com 64 m2, um jardim com 135 m2 e um quintal com 224 m2, situado na antiga Fortaleza, no povo e freguesia da ..., concelho de ..., a confrontar do norte com II e NN; do sul, com o mar, do nascente, com caminho que vai para a praia; e do poente, com a C......”.

25. Não constam do Serviço de Finanças de... quaisquer documentos físicos que comprovem a inscrição matricial dos artigos 495 e 496 da freguesia da ..., prédios objeto da presente ação.

26. Os prédios inscritos sob os artigos 495 e 496 tiveram como titulares do rendimento inscritos de metade OO e PP e metade QQ.

27. Em 02/07/1968 foi celebrada escritura de partilha e doação e após inscrito como titular do rendimento, na respetiva caderneta predial urbana DD .

28. O identificado prédio da Fortaleza, à data, inscrito com o artigo matricial 494 da freguesia da ..., já foi reconhecido o direito de propriedade privada por sentença proferida em 23/10/2013, transitada em julgado em 28/11/2013.

29. Ambos os prédios objeto da presente ação, inscritos na matriz predial com os artigos 495 e 496 da ..., concelho de ..., em tempos fizeram parte da área do prédio urbano, designado por “Forte de ...”, vulgarmente conhecido por “Fortaleza . ..”, sito na Estrada ..., freguesia da ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o artigo 5595, antigo 2479, atualmente inscrito com o artigo 7268 que proveio do artigo 494, da referida freguesia, tendo ambos resultado da divisão do prédio inicial com o artigo 494 (artigo 7º da petição inicial).

30. Existe um único muro de vedação da área do “Forte de ...”, que abrange a área do atual prédio da Fortaleza e a área dos prédios do Autor (artigo 9º da petição inicial).

31. O muro de vedação da área do “Forte de ...” está parcialmente destruído e, dentro da área anteriormente vedada, encontra-se já construído um muro de divisão do “Forte de ...” dos prédios do Autor, o qual ainda hoje é visível no local (artigo 10º da petição inicial).

33. À época o prédio inscrito com o artigo 494 e os posteriores artigos 495 e 496 eram um todo (segunda parte do artigo 26º da petição inicial

34. A metade do prédio da Fortaleza onde se inserem os prédios objeto da presente ação, foi posteriormente vendida por NN a QQ que ficou detentor de metade e a OO que ficou detentor da outra metade, tendo-lhes sido atribuídos os artigos matriciais 495 e 496 – como resulta da certidão emitida pela Repartição de Finanças de ..., em 28/06/1968 (artigo 32º da petição inicial).

35. Da Fortaleza . .., à data com artigo matricial 494, foram desanexados os prédios do Autor, dando origem aos artigos matriciais 495 e 496 da mesma freguesia da ... (parte final do artigo 37º da petição inicial).

36. Os prédios inscritos na matriz predial com os artigos 495 e 496 da freguesia da ..., integravam a área cuja desafetação do domínio público já se encontrava realizada desde 26/07/1894 – certidão emitida pela Direção de Infra-estruturas do Comando da Logística do Ministério da Defesa Nacional, incorporada através do documento nº12 (artigo 38 da petição inicial).

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635 n.º 4 e 639 n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do CPC.

O conhecimento das questões a resolver na presente Revista, delimitado pelo recorrente importa em saber se a decisão recorrida violou os poderes na modificação da matéria de facto, isto é, se julgou como provados outros factos diferentes dos constantes na sentença sem que tenha existido impugnação da matéria de facto e sem que oficiosamente o pudesse fazer; se a decisão recorrida enferma de nulidade por excesso e também por omissão de pronúncia.

… …

Porque a matéria referente à violação das regras do art. 640 do CPC referentes ao cumprimento dos ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto constituem fundamento de recurso de revista, como é entendimento unânime da jurisprudência deste STJ, deixa-se esta referência breve para respaldo da admissibilidade da revista , contra o que o recorrido sustentou nas suas contra alegações.

Abordando o objeto do presente recurso e que, não obstante o recorrente o ter estendido por múltiplas considerações, se resume em saber se a decisão recorrida ampliou oficiosa e indevidamente a matéria de facto por a lei não lhe conceder poderes para tal, importa sublinhar que a sentença fixou como provados os factos 1 a 28 que constam do elenco antes enunciado e que os restantes (do 29 ao 36 inclusive) foi a decisão recorrida que os julgou provados.

Num esforço de organização, simplicidade e clareza, partimos do art. 662 do CPC que colocado na secção II referente ao Julgamento do Recurso, estabelece

“ 1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto , se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou documento superveniente impuserem decisão diversa.

2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;

d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

3 - Nas situações previstas no número anterior, procede-se da seguinte forma:

a) Se for ordenada a renovação ou a produção de nova prova, observa-se, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1.ª instância;
b) Se a decisão for anulada e for inviável obter a sua fundamentação pelo mesmo juiz, procede-se à repetição da prova na parte que esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições;
c) Se for determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições;

d) Se não for possível obter a fundamentação pelo mesmo juiz ou repetir a produção de prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade.

4 – Das decisões da Relação previstas nos nº1 e 2 do não cabe recurso para o Supremo tribunal de justiça.”

Na interpretação do significado e extensão desta norma, reconhecendo a importância decisiva do julgamento da matéria de facto, pretendeu-se um mecanismo eficaz de correção dos eventuais erros de julgamento, mas sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que se encontra previsto no art. 640 do CPC. Isto é, quando esteja em causa a impugnação de matéria de facto cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova de livre apreciação , a Relação deve alterar a decisão sempre que o seu juízo autónomo os elementos de prova se mostrem acessíveis e determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da ponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais” - vd. Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil 7ª ed. p. 333.

Com esta formulação que suscita a questão dos ónus de impugnação da matéria de facto a cargo do recorrente caso pretenda impugnar a matéria de facto (art. 640 CPC) um primeiro trabalho de definição é o de configurar os casos em que o Tribunal da Relação pode modificar por sua iniciativa /oficiosamente a matéria de facto e aqueles outros em que apenas o pode fazer se e quando o recorrente a impugnar.

Dispensando um entendimento que aceitasse sem qualquer limite ou restrição a possibilidade de o Tribunal da Relação alterar a matéria de facto sempre que lhe aprouvesse, independentemente de o recorrente também poder impugnar essa matéria, julgamos que o nosso ordenamento fornece elementos para esclarecer o que neste âmbito da reponderação da prova é oficioso e não é. Dizer-se que a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto, sempre que no seu juízo autónomo os elementos de prova determinem uma solução diversa, não equivale a associar esse juízo autónomo a qualquer oficiosidade mas antes a esclarecer que, quando repondere a matéria de facto porque tal lhe seja legalmente permitido, o Tribunal da Relação formula um juízo independente e próprio sobre a prova, não condicionado pela convicção expressa na sentença e sindicando apenas eventuais erros manifestos. Em expressão exata Abrantes Geraldes sustenta em estudo ao art. 662 que “fica claro que a Relação tem autonomia decisória competindo-lhe formular a sua própria convicção mediante a apreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne aos pontos de discórdia” – op. cit. pág.. 334. Todavia, esta socorrência do princípio do dispositivo traduzida na prévia indicação pelo recorrente dos pontos que entende incorretamente julgados e na exigível indicação dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa – art. 640 nº1 do CPC - , nem sempre é exigível como ocorre nos casos em que a Relação se limite a aplicar as regras vinculativas do direito probatório material, situação em que oficiosamente deverá integrar na decisão o facto que a 1ª instância tenha considerado não provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado – vd. Abrantes Geraldes op. cit. pág. 336.

Para lá desta hipótese de conhecimento oficioso assente no art. 674 nº3 e no chamado direito probatório material, uma outra é a que está prevista nas alíneas do art. nº2 do art. 662 e que reporta à faculdade de o tribunal da Relação ordenar a renovação da prova; a produção de nova prova; anular a decisão da 1ª instância para correção ou ampliação e determinar a baixa dos autos para o tribunal fundamentar a decisão proferida sobre algum facto essencial. Nestas situações há que distinguir as als. a) e b) das outras uma vez que a oficiosidade quanto à renovação da prova e à produção de novos meios são na sua execução da responsabilidade da Relação que realiza preside e realiza essa renovação e produção, enquanto nas als. c) e d) os autos baixam à 1ª Instância para que aí se cumpra o determinado quanto às patologias da prova.

Assim, podemos concluir que oficiosamente, sem que tenha havido impugnação da matéria de facto por parte do recorrente, o Tribunal da Relação apenas pode alterá-la nos casos em que estejam em causa violações do direito probatório material e naqueles outros em que se indague a credibilidade do depoente ou se determine a produção de novos meios de prova.

Atendendo agora aos termos do recurso, o recorrente protesta que a decisão recorrida alterou por sua iniciativa a matéria de facto da sentença, acrescentando outros factos como provados, sem que tivesse existido impugnação nos termos do art. 640 do CPC.

Observando as alegações do recurso de apelação conclui-se que em parte alguma das mesmas o autor aí apelante impugnou a matéria de facto fixada na sentença. Não especificou concretos pontos de facto que comiserasse incorretamente julgados; não indicou quais concretos meios probatórios que impusessem decisão diferente sobre qualquer ponto da matéria de facto impugnada; não indicou a decisão que em seu entender deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Efetivamente e ao contrário destas exigências o apelante sustentou que “os fundamentos estão em clara contradição com a decisão, uma vez que os factos dados como provados, constante dos números 1 a 24 da fundamentação de facto, sustentados pela prova documental junta aos autos pelo Autor, reforçada pela figura II junta ao depoimento da testemunha, e confirmada pelo relatório pericial junto aos autos, impunham necessariamente decisão diversa da recorrida no que se refere à prova de que os prédios do Autor fizeram parte do prédio denominado “Fortaleza . ..”, tendo dele sido desanexados, depois da área já ter sido objeto de desafetação ao domínio público aquando da desafetação ao domínio público do prédio da fortaleza.”

“Impunha-se, pois, à Mma. Juiz a quo, na qualidade de Julgador, que retirasse dos factos que considerou provados (suportados nos documentos carreados para os autos pelo Autor, pelo Réu, pela própria testemunha do Réu e pelo perito do Tribunal), um juízo sério de suficiente probabilidade de que a alegada desanexação terá, efetivamente, ocorrido e que a área dos prédios do Autor foi desafeta ao Domínio Público aquando da venda em hasta pública do prédio da Fortaleza.”

“ (…) existe, claramente, uma oposição entre os factos dados como provados e que constituem a fundamentação de facto da sentença recorrida, e a decisão proferida a final, o que consubstancia uma causa de nulidade da sentença, prevista na al.c) do n.º 1 do art.º 615º do C.P.C., que, desde já e com todos os efeitos legais, se invoca.”

Estes trechos das alegações são expressão exata de o apelante não ter impugnado a decisão da matéria de facto fixada na sentença afirmando expressamente que com os factos provados na sentença e com os quais se conforma, sem serem alterados, as conclusões normativas sobre os mesmos deveriam ter conduzido à procedência da ação só não o tendo sido por ocorrência da nulidade prevista no art. 615 nº1 al. c) do CPC de contradição entre os fundamentos de facto e a decisão.

A decisão recorrida, por sua vez, afrontando a arguição desta nulidade julgou-a improcedente deixando escrito que “Analisada a estrutura da decisão e as conexões existentes entre os motivos de facto e de direito a que faz apelo e o veredicto final verifica-se que existe uma lógica na arquitetura da sentença e, dessa forma, a invocada nulidade não se verifica.

Se a interpretação e a relevância que a sentença deu a certos factos e se a conclusão que deles se extraiu foram, ou não, as mais corretas, é questão que tem a ver com o mérito da decisão e com um eventual erro de julgamento, mas que não está associada à construção lógica da sentença, a qual se mostra corretamente formulada.”. E conclui, assim decidindo, que a sentença não era nula porque os seus fundamentos de facto não estavam em contradição a decisão proferida, mas que poderia questionar-se a relevância que a sentença dera a certos factos e, também, a conclusão que deles extraiu,, pelo que passou a conhecer daquilo a que chamou a “modificabilidade da decisão de facto”. Isto é, a decisão recorrida passou a conhecer da matéria de facto como se o recorrente a tivesse impugnado nos termos do art. 640 do CPC, deixando desde logo acolhido que “Nas conclusões 11, 18, 20 e 28 é suscitada a questão da alteração da matéria de facto não provada.”

Acontece que o teor dessas conclusões é o seguinte:

“ 11. Impunha-se, pois, à Mma. Juiz a quo, na qualidade de Julgador, que retirasse dos factos que considerou provados (suportados nos documentos carreados para os autos pelo Autor, pelo Réu, pela própria testemunha do Réu e pelo perito do Tribunal), um juízo sério de suficiente probabilidade de que a alegada desanexação terá, efetivamente, ocorrido e que área dos prédios do Autor foi objeto de desafetação ao Domínio Público aquando da venda em hasta pública do prédio da Fortaleza.

18. Donde, forçoso será concluir que os prédios do Autor, à data da desafetação ao domínio público, faziam parte integrante da área de 2.293,52 m2 que pertencia ao prédio da Fortaleza e que foi desafeta ao domínio público em 26.07.1894.

20. Pelo exposto, face à factualidade provada supra elencada, impunha-se decisão contrária baseada na conclusão de que, efetivamente, à data da desafetação do domínio público do prédio da Fortaleza, a área dos prédios do Autor integrava a área da Fortaleza que foi objeto da desafetação.

28. Assim, dúvidas não podem subsistir de que os prédios do Autor, efetivamente, faziam parte integrante da área do prédio da Fortaleza, só assim se justificando ter agora a mesma confrontação a norte que a Fortaleza tinha à data da sua desafetação.”

Julgamos que contrariamente a poder retirar-se destas conclusões com significado útil qualquer impugnação da matéria de facto, resulta delas o afastamento da pretensão de qualquer impugnação porque a oposição do apelante não é contra os factos fixados na sentença (não pretende a inclusão de alguns que tivessem sido julgados não provados) mas sim, e o que é coisa diversa, que fossem as conclusões normativas retiradas na sentença sobre a factualidade da sentença a ter outro alcance, que os factos provados exigiam uma outra compreensão pois deles se desprendia a procedência da ação.

Remetendo a decisão recorrida para os poderes que estão confiados à Relação, e reclamando a responsabilidade de verificar se a decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito, a exposição que a seguir realiza é totalmente omissa quanto às exigências de impugnação da matéria de facto e cumprimentos dos ónus de impugnação do art. 640 do CPC tomando os mesmos por integralmente cumpridos. Por outro lado, depois desta implícita aceitação de cumprimento dos ónus de impugnação e de algumas considerações gerais sobre a valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, a formulação de deduções e induções, a transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido através de presunções a decisão recorrida tomando a análise da prova pericial bem como os elementos registrais e matriciais a decisão recorrida decidiu julgar como provados os factos que inclui nos pontos 29 a 36 justificando que o faziam por “inferência lógica de todo o suporte documental resultarem demonstrados” esses factos.

O exposto coloca como questões de resolução necessária as de saber se existiu impugnação da matéria de facto válida que permitisse ao tribunal recorrido alterar a matéria de facto; se a não ter existido essa impugnação o tribunal recorrido poderia oficiosamente alterá-la; se a matéria de facto acrescentada pelo tribunal recorrido resulta apenas da extração de presunções judiciais de factos que a sentença tivesse julgado provados e se, neste caso, essas presunções obedecem às exigências legais.

Em primeiro lugar, no caso não é de admitir que o autor apelante tenha impugnado a matéria de facto, uma vez que omitiu em absoluto todos os ónus exigidos pelo art. 640 do CPC. De igual, com base no antes explicado, a alteração da matéria de facto realizada pelo tribunal recorrido não se baseou na oficiosidade permitida pelo art. 674 nº3 do CPC pois não teve por fundamento a violação do direito probatório material em qualquer das suas expressões; não avocou para si a indagação da credibilidade de qualquer depoente (renovando a prova nessa parte); tão pouco ordenou e procedeu à produção de novos meios de prova.

Quanto às presunções judiciais estabelece o art. 349 nº1 do CCivil que elas são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido não se reconduzindo a um meio de prova próprio, consistindo antes em juízos de indução ou de inferência extraídos do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência comum - cfr., sobre a noção de prova por presunção Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 214, e Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, págs. 500 e 501 - sendo admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351 do CPC). Em face da competência alargada da Relação, em sede da impugnação da decisão de facto (art. 662 n.º 1, do CPC), com base na prova produzida constante dos autos, A Relação pode reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do art. 607, aplicável por via do art. 663º, n.º 2, ambos do C.PC. Porém, afirmar esta faculdade adverte para que as presunções são extraídas dos factos que se encontrem provados e elas (as presunções extraídas) constituem novos factos que decorrem desses outros e não de qualquer meio de prova.

Dito isto, uma imediata observação sobre os factos acrescentados como provados na decisão recorrida e como o foram, impõe a conclusão de eles não resultarem de qualquer exercício presuntivo em sentido técnico jurídico (não são presunções judiciais), mas sim da conversão em provados de factos que a sentença tinha julgado como não provados, conversão que foi realizada com base exclusiva nos elementos de prova que foram avaliados mediante a livre apreciação do julgador. É a própria decisão que revela que os factos que decidiu acrescentar como provados são “inferência lógica de todo o suporte documental” e não inferência dos factos provados na sentença. Foi na análise da prova pericial, avaliada em termos de convicção de forma diferente do que o fez a 1ª instância e também numa diferente análise e convicção sobre os elementos matriciais e prediais que a decisão recorrida encontrou razões para julgar provados esses factos.

A apreciação dos meios probatórios produzidos em audiência segundo as regras de experiência e a fixação a partir desta atividade de um determinado facto como provado não pode significar, nem significa, que esse facto tenha sido extraído por presunção. Por definição antes enunciada, a presunção identifica-se com ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido - art. 349 do CC - não reportando à atividade de convicção que o julgador empreende quando na livre apreciação da prova, fixa como provado um determinado facto. Contrariamente ao que se realiza quando se certificam factos/realidade a partir de elementos de prova produzida, na presunção não é de quaisquer elementos de prova que se extraem ilações, mas sim de outros factos conhecidos – no sentido de as presunções não serem meios de prova próprios, mas terem de resultar de factos provados conhecidos - veja-se o ac. STJ de 11-4-2019 no proc. 8531/14.9T8LSB.L1.S1 ; ac. STJ de 11-5-2023 no proc. 3154/18.6T8GDM.P1.S1 e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora in Manual de Processo Civil, p. 500.

Pelo exposto, tendo o tribunal recorrido julgado como provados factos que a sentença fixara como não provados sem que tenha havido impugnação da matéria de facto por parte do apelante e sem que tenham sido cumpridos os requisitos exigidos pelo art. 640 nº1 do CPC, não sendo esses factos acrescentado pela Relação correspondentes a presunções judiciais retiradas dos factos que a sentença tinha fixado como provados, deve ser julgado procedente o recurso na parte em que impugnou a alteração da matéria de facto e solicitou que fossem desatendidos esses factos acrescentado na decisão recorrida como 29 a 36 do elenco provados.

Sendo os factos que a sentença julgou provados, e apenas esses, os que servem a decisão, não resultando deles que ambos os prédios objeto da presente ação fizeram parte da área do prédio urbano, designado por “Forte de ...”; que à época o prédio inscrito com o artigo 494 e os posteriores artigos 495 e 496 eram um todo; que da Fortaleza . .., à data com artigo matricial 494, foram desanexados os prédios do Autor, dando origem aos artigos matriciais 495 e 496 da mesma freguesia da ... e que os prédios inscritos na matriz predial com os artigos 495 e 496 da freguesia da ..., integravam a área cuja desafetação do domínio público já se encontrava realizada desde 26/07/1894, não pode a ação julgar-se procedente. Sendo estes factos acrescentados na decisão recorrida aqueles que sustentavam a procedência da ação, ao não poderem ser por deverem ser excluídos do elenco dos provados, tal determina como consequência que a revista deve ser julgada procedente, revogado o acórdão recorrido e a ação julgada improcedente.

Reconhecida a procedência do recurso no que se refere à matéria de facto e excluindo os factos fixados como provados nos pontos 29 a 36 no acórdão recorrido ficam prejudicadas todas as restantes questões suscitadas no recurso e que só teriam relevância e acuidade se tivesse sido acolhida a matéria de facto acrescentada como provada na decisão recorrida e se tivesse sido provado que os prédios do autor haviam feito parte integrante do denominado Fortaleza . ...

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Síntese conclusiva

- Os ónus de impugnação que o recorrente deve cumprir nos termos do art 640 nº1 do CPC, não são exigíveis nos casos em que a Relação se limite a aplicar as regras vinculativas do direito probatório material, integrando oficiosamente na decisão o facto que a 1ª instância tenha considerado não provado ou retirando dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado.

- Os outros casos em que é permitido à Relação intervir oficiosamente na prova fixada na sentença são os previstos nas als. a) e b) do art. 662 do CPC quanto à renovação da prova e à produção de novos meios as quais ordena e realiza.

- Não tendo havido impugnação da matéria de facto pelo recorrente, não tendo o Tribunal da Relação decidido a existência de violação das regras de direito probatório material e não tendo acionado o art. 662 nº1 als. a) e b) do CPC, apenas lhe seria permitido acrescentar aos factos provados na sentença os que pudessem ser retirados por presunção judicial dos factos julgados como provados na sentença.

- A apreciação dos meios probatórios (produzidos em audiência) segundo as regras de experiência e a fixação a partir desta atividade de um determinado facto como provado não pode significar, nem significa, que esse facto tenha sido extraído por presunção por que esta se extrai de factos provados e não de qualquer meio de prova.

- Tendo o tribunal recorrido julgado como provados factos que a sentença julgara não provados com fundamento numa diferente convicção sobre os mesmos meios de prova em que a sentença se fundara é nula a inclusão desses novos factos por o recorrente não ter impugnado a matéria de facto e os mesmos não terem sido extraídos por presunção.

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Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar procedente a revista e, em consequência, revogando a decisão recorrida, julgar improcedente a ação e absolver o réu do pedido.

Custas pelo recorrido.


Lisboa, 12 de outubro de 2023


Relator: Cons. Manuel Capelo

1ª adjunta: Srª. Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

2ª adjunta: Srª. Juíza Conselheira Fátima Gomes