Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2250/19.7T8VFX.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: TESTAMENTO
ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
USURA
REQUISITOS
CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
O testamento pode ser anulado por usura, desde que os factos provados permitam considerar preenchidos os três requisitos previstos na lei:

1. Uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem;

2. A exploração desta situação;

3. Para obter para si ou para terceiro a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. A Associação … intentou a presente acção de processo comum contra AA, e esposa, BB, e CC, pedindo que, pela procedência da acção:

a) seja decretada a anulação, por usura, por força do disposto no art.º 282º do CC, de testamento celebrado pela falecida D. DD, lavrado em ... de Junho de 2015, no Cartório Notarial de ..., sito em ..., com todas as consequências legais daí decorrentes,

ou, caso assim não se entenda,

b) seja declarada a nulidade do mesmo testamento, por força do disposto no art.º 2186º do CC, face à circunstância de o fim que determinou a sua realização, ser ofensivo dos bons costumes e constituir uma violação ao princípio da boa-fé, e em consequência,

c) seja declarada a validade de testamento celebrado pela falecida D. DD, em ... de Junho de 2013, no Cartório Notarial de ..., sito em ..., com todas as consequências legais daí decorrentes, ordenando-se o cancelamento de inscrição matricial e predial competente a favor do 1º Réu, e este ainda,

d) condenado a entregar o prédio misto, com a área total de 10.080,04 m2, denominado “Quinta da . . .”, sito em ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 3151/20100531, e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 22, secção I e na matriz predial urbana, sob o artigo 2818 (ex- artigo 1299), à Autora.

2. Regularmente citados para contestarem (cfr. fls. 38 e ss.), os Réus deduziram a Contestação de fls. 41 e ss., invocando a ilegitimidade passiva das e Rés, a par da impugnação parcial da factualidade alegada.

3. Foi proferido despacho saneador, por escrito, que absolveu as 2ª e 3ª Rés da instância, julgando procedente a arguida excepção de ilegitimidade passiva, no mais dispensando-se a audiência prévia, despacho que não foi objecto de reclamações (fls. 61 e ss.).

4. Realizou-se audiência de discussão e julgamento, conforme consta das actas respectivas.

5. Após o despacho saneador não ocorreu qualquer questão prévia, nulidade ou excepção de que cumprisse conhecer e que obstasse à apreciação do mérito da causa, pelo que veio a ser proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:

“Nestes termos e em face do exposto, julgo a presente acção totalmente procedente, por provada, e em consequência determino a anulação do testamento celebrado pela falecida D. DD, lavrado em ... de Junho de 2015, no Cartório Notarial de ..., sito em ..., com todas as consequências legais daí decorrentes, ou seja o cancelamento da inscrição matricial e descrição predial, de aquisição, por deixa testamentária, a favor do 1º Réu, e a entrega do prédio, melhor identificado em 4) dos factos provados, à aqui Autora.

As custas em divida a juízo ficam a cargo do 1º Réu, dado o seu decaimento (cfr. art.º 527, n.ºs 1 e 2 do C.P.C.).

Registe e notifique.”

6. Não se conformando com a sentença, o R. apresentou recurso de apelação, conhecido pelo Tribunal da Relação de Lisboa e que culminou com a prolação de acórdão, com o seguinte segmento decisório:

“Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso e, por consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo Apelante.”

7. Esse acórdão teve um voto de vencido, onde a magistrada subscritora disse:

Por entender que os pontos da matéria provada 23, 26, 36 e 37 face à prova produzida nos autos deveriam merecer decisão diferente.

Quanto ao ponto 23 (O 1º Réu, aproveitando dessa qualidade de Presidente da Direcção, com toda a notoriedade que lhe era por isso conferida e liberdade que as funções concretamente desempenhadas na Autora, lhe permitiram, decidiu destituir informalmente o Sr. EE das suas funções, apenas relativamente ao casal em causa, e substituir-se-lhe nessa atuação, dirigindo-se diariamente, para o efeito, a casa daquela, a fim de lhe providenciar as refeições, pagas pela Autora, e com o intuito de desta se aproximar),

Relativamente a este ponto da matéria provada não foi feita prova de que o Recorrente tenha usado as suas funções de Presidente de Direcção da Associação para destituir informalmente o Sr. EE de levar as refeições a DD, passando o Recorrente a fazê-lo com o intuito de dela se aproximar, ou se tal se deveu a organização de tarefas no âmbito da instituição.

Há que considerar que conforme resulta da prova efectuada nos autos, o Sr. EE era o encarregado da manutenção da Recorrida e a mesma não prestava apoio domiciliário, sendo a testadora e antes da morte do marido, também este, as únicas pessoas a quem eram entregues refeições no domicílio.

O que acontecia por terem feito testamento a favor da Recorrida, porquanto pretendiam que na sua quinta, única bem que possuíam, fosse construído um lar para idosos, tendo para o efeito procurado a presidente da sua Junta de Freguesia, que os acompanhou à Sra Presidente da Câmara que lhes indicou que a Recorrida era a Instituição que cumpriria a vontade do casal e assim efectuaram o testamento a favor da Recorrida. A Recorrida iniciou diligências para implementação do projecto do lar para idosos, mas o projecto foi abandonado.

Quanto ao ponto 26 ( E assim, sem que nada o fizesse prever ou anunciasse, no dia ... de Junho de 2015, a Sra. DD, celebrou novo testamento, pelo qual instituiu como seu único e universal herdeiro, e de todos os seus bens, móveis e imóveis, o 1º Réu, então igualmente Presidente da Autora, e caso este não lhe sobrevivesse, instituiu, em sua substituição, como suas únicas e universais herdeiras, a sua mulher e filha, ora 2ª e 3ª Rés, respetivamente, tudo conforme doc. 11 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido),

A expressão “E assim, sem que nada o fizesse prever ou anunciasse” mostra-se uma asserção conclusiva não havendo qualquer referência aos factos em que assenta, pelo que se suprime do ponto 26 da matéria provada esta expressão, mantendo-se o restante deste ponto 26 da matéria provada.

Quanto ao ponto 36 (Nas datas referidas de 5) a 21), o 1º Réu era considerado por todos, uma figura indissociável da Associação, aqui Autora, em virtude de todo o seu empenho e dedicação demonstrados, ao longo de 30 anos, situação que de maneira geral gerou nas pessoas que com ele lidaram, um sentimento de confiança, e bem assim, em face da história e importância social e cultural, para a freguesia e concelho de ..., da Associação Autora)

Atendendo à prova produzida, nomeadamente os depoimentos de FF e o do próprio Recorrente, durante muito tempo, mesmo antes da celebração do 1º testamento por DD, o mesmo era uma figura indissociável da Recorrida, inspirando confiança nas pessoas dado o caracter social da actividade da Recorrida, pelo que está abrangido o espaço de tempo delimitado pelas datas referidas no ponto 36 da matéria provada. Considera-se, assim, que este ponto da matéria considerada provada deve manter-se.

Quanto ao ponto 37 (Nos cerca de dois anos, após o decesso do Sr. GG, até à outorga do testamento de 2015, o 1º Réu desenvolveu da forma supra descrita com a falecida D. DD, uma relação de auxílio e de amizade, muito em parte, a expensas da Autora, no que tange ao custeamento das refeições e das despesas de representação do 1º Réu (deslocações de carro, etc), e apesar de não terem quaisquer laços de parentesco ou afinidade ) da matéria considerada provada, consideramos que atendendo ao ponto 11 resulta provado nos autos que as refeições que o Recorrente levada a DD eram pagas pela Recorrida, por outro lado resultou do depoimento das testemunhas HH e II e do próprio Recorrente, que que este apoiava DD, visitando-a, dando-lhe atenção e resolvendo questões relacionadas com as consultas médicas de DD, resultando ainda destes depoimentos que não havia qualquer relação de parentesco entre o Recorrente e DD, mas não tendo sido apurado se as despesas dessas deslocações eram pagas ao Recorrente como despesas de representação da Recorrida, quanto à parte deste ponto da matéria provada “muito em parte, a expensas da Autora, no que tange ao custeamento das refeições e das despesas de representação do 1º Réu (deslocações de carro, etc)” deve ser suprimida . Este ponto da matéria provada passaria assim a ter a seguinte redacção: “Nos cerca de dois anos, após o decesso do Sr. GG, até à outorga do testamento de 2015, o 1º Réu desenvolveu da forma supra descrita com a falecida D. DD, uma relação de auxílio e de amizade, apesar de não terem quaisquer laços de parentesco ou afinidade.”

Considero assim que ao longo do tempo de convívio que se estabeleceu entre a testadora e o Réu, foram sendo estabelecidos laços de amizade e também com a família deste que prestavam apoio à testadora nomeadamente a filha do Réu que acompanhava a testadora a consultas medicas que determinaram que a testadora tenha alterado a disposição dos seus bens para depois da morte, não esquecendo que a testadora via que o projecto do lar para a terceira idade que era a sua vontade e do seu marido não iria ser construído na quinta, único bem que possuía.

O art. 282 do CCivil diz que é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados. São assim requisitos da verificação deste vicio do negócio juridico:

a) Existência de uma situação de inferioridade do declarante;

b) Exploração da situação de inferioridade pelo usurário;

c) Lesão, isto é, promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro.

A inferioridade decorre da situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter.

No caso dos autos não estão apurados factos de que resulte que DD estivesse numa situação de necessidade, fosse inexperiente ou sofresse de dependência, nomeadamente do Recorrente e da sua família. DD dava-se com o casal HH e II com quem falava estar agradada com a atenção e acompanhamento que lhe era dado pelo Recorrente e referiu à Sra Notária que lavrou o testamento, Dra JJ, que o Recorrente a tratava muito bem e que era como um filho.

Assim, embora considere que o regime da usura é de aplicação a qualquer negócio jurídico, mesmo unilateral, como o testamento, entendo que no caso dos autos não se verificam os pressupostos da sua aplicação pelo que revogaria a sentença por se manter a validade do testamento a favor do Recorrente.”

8. Novamente inconformado, o R. apresentou recurso de revista, no qual formula as seguintes conclusões (transcrição):

“A. O Acórdão ora proferido pelo Venerando Tribunal a quo ao julgar improcedente, com voto de vencido, o Recurso ora interposto pelo aqui Recorrente, violou normas legais, princípios de direito e a lei do processo;

B. Os factos dados como provados, sobre os quais o Venerando Tribunal a quo assentou a decisão, não permitem o resultado jurídico a que chegou a decisão objeto deste recurso;

C. Para a anulação de um negócio jurídico por usura é necessário a verificação, cumulativa, de três requisitos:

• 1º Requisito: Existência de uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter do Declarante;

• 2º Requisito: Exploração da situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter pelo usurário;

• 3º Requisito: Obtenção, para o usurário ou para terceiro, da promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados por parte do Declarante;

D. Perante os factos que resultaram provados, nunca o Venerando Tribunal a quo poderia ter decidido no sentido de proferir, com voto de vencido, a decisão de anulação, por usura, do testamento ora celebrado a favor do aqui Recorrente, uma vez que não se encontram preenchidos os referidos requisitos;

E. O Venerando Tribunal a quo violou a lei substantiva no que diz respeito à aplicação ao caso concreto do artigo 282º do Código Civil, doravante CC (Negócios usurários);

F. O Venerando Tribunal a quo deu, erradamente, como verificado o 1º Requisito, sem que para o efeito tenha qualquer facto dado como provado que permita o preenchimento do mesmo;

G. Aliás, não só tais factos não existem como, pior, o Venerando Tribunal a quo formula conclusões desligadas de qualquer enunciação de factos provados que as sustentem;

H. Em sentido oposto, e bem, foi a fundamentação do voto vencido ora proferido pelo Exma. Sra. Juíza Desembargadora, no qual enunciou que não se provou nenhuma situação de necessidade ou dependência por parte de DD e que entre esta e o aqui Recorrente foi desenvolvida uma relação de amizade;

I. Nunca poderia o Venerando Tribunal a quo dar como verificado o 1º Requisito da anulabilidade do testamento ora celebrado a favor do aqui Recorrente, por usura;

J. O Venerando Tribunal a quo dá, erradamente, como verificado o 2º Requisito sem que para o efeito tenha qualquer facto dado como provado que permita o preenchimento do mesmo;

K. O Venerando Tribunal a quo para dar como verificado este 2ª Requisito recorre, erradamente, aos factos dados como provados nº 22 e nº 23;

L. Os factos dados como provados nº22 e 23 não são aptos a afirmar que em causa há uma exploração da situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de DD, pelo aqui Recorrente;

M. No que diz respeito ao facto dado como provado nº23, não se pode deixar de referir que da fundamentação do voto vencido pela Exma. Sra. Juíza Desembargadora resulta que não foi produzida qualquer prova no sentido de dar este facto como provado;

N. Em sentido contrário aos factos que foram dados como provados e aos quais o Venerando Tribunal a quo recorreu, erradamente, para dar como preenchido este 2º Requisito (Facto dado como provado nº22 e nº23), está parte do facto dado como provado nº 37 que refere que entre o aqui Recorrente e DD foi desenvolvida “(…) uma relação de auxílio e de amizade (…)”;

O. Nunca poderia o Venerando Tribunal a quo dar como também verificado o 2º Requisito da anulabilidade do testamento ora celebrado a favor do aqui Recorrente, por usura;

P. O Venerando Tribunal a quo dá, erradamente, como verificado o 3º Requisito, sem que para o efeito, mais uma vez, tenha qualquer facto provado que permita o preenchimento do mesmo;

Q. Mais uma vez, não só tais factos não existem como, pior, o Venerando Tribunal a quo formula conclusões desligadas de qualquer enunciação de factos provados que as sustentem;

R. Nunca poderia o Venerando Tribunal a quo dar como também verificado o 3º Requisito da anulabilidade do testamento ora celebrado a favor do aqui Recorrente, por usura;

S. O testamento ora celebrado a favor do aqui Recorrente nunca poderia ser anulado, por usura, porquanto não foi dado como provado qualquer facto que permitisse a verificação dos 3 Requisitos cumulativos exigidos para este instituto;

T. Tal como aliás, foi também o entendimento da Exma. Sra. Juíza Desembargadora que terminou a sua fundamentação referindo que “(…) no caso dos autos não se verificam os pressupostos da sua aplicação pelo que revogaria a sentença por se manter a validade do testamento a favor do Recorrente (…)”;

U. Nunca poderia a decisão do Venerando Tribunal a quo, com voto de vencido, numa vertente de subsidiariedade, apontar para a nulidade do testamento por ofensa aos bons costumes e violação do princípio da boa-fé, porquanto não foram dados como provados quaisquer factos que permitissem respaldar tal decisão;

V. O Venerando Tribunal a quo violou a lei substantiva no que diz respeito à aplicação, ainda que a título subsidiário, ao caso concreto dos artigos 280º, nº2, e 2186º do CC;

W. O aqui Recorrente nunca adotou qualquer comportamento contrário à boa-fé ou aos bons costumes face à aqui Recorrida, tanto assim é que não foi dado como provado qualquer facto nesse sentido;

X. Apenas numa mera hipótese académica, mesmo que se verificasse a adotação de um comportamento contrário à boa-fé ou aos bons costumes por parte do aqui Recorrente para com a aqui Recorrida, nunca se poderia fazer o raciocínio lógico/jurídico de se estender tal conduta à alteração da vontade de DD, no que diz respeito ao testamento;

Y. A decisão do Venerando Tribunal a quo, ao anular o testamento ora celebrado a favor do aqui Recorrente, sem que para o efeito estivessem preenchidos os requisitos exigidos cumulativamente, violou não só o direito de testar e de revogar, mas também um princípio fundamental, consagrado no artigo 2º da CRP que é o principio da Segurança Jurídica, na sua vertente de Principio da Confiança;

Z. De acordo com o Princípio da Segurança Jurídica, na vertente de Princípio da Confiança, tem-se em vista garantir que todos os atos praticados pelas pessoas, desde que não contrários à Lei, deverão ter os efeitos jurídicos que se pretendem com os mesmos, sob pena de se violar, no caso em concreto, a última vontade da testadora, que confiou nas normas jurídicas que lhe permitiam dispor de todos os seus bens;

AA. A decisão do Venerando Tribunal a quo violou o Princípio a observar em casos de dúvida, nos termos do artigo 414º do CPC;

BB. A dúvida sobre a ocorrência de um facto equivale à falta de prova desse facto, pelo que resulta em desvantagem para a parte que tinha o ónus de o provar.”

9. Foram apresentadas contra-alegações, onde se conclui (transcrição):

“A) O instituto dos negócios usurários é aplicável aos negócios jurídicos unilaterais, designadamente ao testamento.

B) O Tribunal a quo considerou, corretamente, que se estava perante um negócio usurário na medida em que dos factos provados decorre a existência de uma situação de inferioridade da declarante, a exploração da situação de inferioridade pelo usurário e a concessão de benefícios excessivos para o usurário.

C) A caracterização da testadora realizada pela 1.ª instância e pelo Tribunal a quo, encontra-se totalmente alicerçada nos factos provados.

D) Perante a factualidade provada o Tribunal a quo decidiu corretamente ao qualificar a situação da testadora como sendo de inferioridade.

E) A fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo para concluir que houve exploração da situação de inferioridade pelo usurário encontra-se integralmente alicerçada nos factos dados como provados e não se cinge aos pontos 22 e 23 da matéria de facto provada.

F) Estando assente na matéria de facto o motivo pelo qual o Réu pretendia proceder à entrega das refeições, não podia o Tribunal a quo ignorar este motivo.

G) A celebração do novo testamento ocorreu aproximadamente dois anos depois do Recorrente passar a deslocar-se diariamente a casa da testadora, sendo que apenas este, a sua mulher e a sua filha, prestavam cuidados e assistência à testamentária.

H) Para se alimentar a testamentária dependia exclusivamente das refeições que lhe eram levadas.

I) Foi o Recorrente que marcou a escritura e convocou as testemunhas.

J) O Recorrente tinha conhecimento da situação de inferioridade da testamentária e da causa dessa inferioridade.

K) O Recorrente não recebia qualquer contrapartida por tais serviços.

L) O Tribunal a quo socorre-se de simples presunções judiciais, sendo-lhe lícito desenvolver a matéria de facto fixada em 1ª Instância, mediante presunções judiciais alicerçadas nas regras da experiência, não cabendo ao Tribunal ad quem sindicar o conteúdo e substância de tais juízos probatórios.

M) Em face da factualidade provada o Tribunal a quo decidiu corretamente ao considerar que in caso se verificava o requisito da exploração da situação de inferioridade pelo usurário.

N) A fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo para concluir que houve concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário encontra apoio integral na factualidade dada como provada.

O) O avanço do projeto de construção do lar de idosos, por parte da Associação, encontrava-se inteiramente dependente do impulso ou não do Recorrente.

P) O Recorrente urdiu uma relação de dependência alicerçada em realidades integralmente custeadas pela Recorrida.

Q) Está provada e demonstrada a intenção do Recorrente em pessoalizar em si e nos seu familiares, o apoio que era concedido pela Associação, de modo a gerar uma relação interpessoal de dependência, através da obteve um benefício exclusivamente pessoal para si e para os seus familiares, claramente excessivo e injustificado, quando o desejo anteriormente expresso da testadora e do seu falecido marido, conhecido pelo Recorrente, era o de que no prédio objeto do testamento fosse erigido um lar de idosos.

R) Em face da factualidade provada e elencada o Tribunal a quo decidiu corretamente ao considerar que se verificava o requisito da promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro.

S) Há dupla conforme quanto à questão do testamento ser nulo por violação do disposto no artigo 280.º e 2186.º do CC, uma vez que o Acórdão impugnado confirma integralmente o decidido pela 1.ª instância, sem que o voto de vencido tenha abordado esta questão, na medida em que se cinge à discussão da aplicação do instituto dos negócios usurários.

T) A tutela da confiança na manutenção dos negócios jurídicos diz respeito, apenas e só, a negócios jurídicos válidos, existindo fundamento para anulação, o ordenamento jurídico-constitucional não protege esses negócios.

U) Encontra-se vedado a utilização do recurso de revista para alterar a matéria de facto com fundamento numa alegada violação do artigo 414.º do CPC.

V) Ainda que tal fosse possível, o Recorrente não cumpre com o ónus decorrente do artigo 640.º do CPC.

10. No Tribunal recorrido o recurso de revista foi admitido.

Colhidos os vistos legais cumpre analisar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

De Facto

11. Da discussão da causa –realizada nas instâncias -, resultaram provados os seguintes factos (a negrito os alterados pelo Tribunal da Relação):

1. A Autora é uma instituição particular de solidariedade social, sob a forma de associação, sem fins lucrativos, regida pelas disposições da lei aplicável e, em especial, pelos presentes estatutos;

2. E tem como fins e actividades principais a prestação de serviços e outras iniciativas de promoção do bem-estar e qualidade da vida das pessoas, famílias e comunidades, conforme resulta dos seus Estatutos, juntos a fls. 82 verso e ss. dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido;

3. O Réu foi eleito Presidente da Direção da Autora, cargo que exerceu por várias décadas, competindo-lhe especialmente enquanto Presidente de órgão social, “(…) b) Assegurar e representar institucional a Associação; (…)”, conforme Estatutos da Autora, juntos a fls. 82 verso e ss. dos autos”.

4. GG, e DD, casados sob o regime da comunhão geral de bens, foram os únicos donos e legítimos proprietários do prédio rústico, com a área de 10.000 m2, sito em ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 22, secção I e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 3151/20100531, bem como do prédio urbano, com a área de 80,04 m2, sito em ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1299 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 10/19800708, doravante designado, no seu todo, por “Quinta da . . .”, tudo conforme os docs. 1 e 2 juntos com a Pi, cujo teor aqui se por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

5. Por não terem descendentes ou ascendentes vivos, os identificados GG e DD, decidiram que deveriam deixar o seu património imobiliário, em herança, a uma entidade ou instituição de solidariedade social do seu local de residência, ...;

6. E como pretendiam que no seu Prédio, fosse erigido um lar de idosos, e que dessa forma ficasse acautelada a sua situação, na velhice,

7. não sabendo a quem mais recorrer, solicitaram o auxílio da então Sra. Presidente da Câmara Municipal de ..., Dra. KK, para que lhes indicasse uma instituição para este fim;

8. A mesma sugeriu a ora Autora, Associação . . ., Instituição Particular de Solidariedade Social, de relevo na freguesia e no concelho, o que aqueles prontamente e de bom grado aceitaram;

9. E em sessão pública, que teve lugar na Quinta dos ..., sede da Associação . . ., em ..., a então Sra. Presidente da Câmara Municipal de ..., Dra. KK, anunciou aos presentes que os senhores GG e DD manifestaram a intenção de deixar em testamento, a “Quinta da . . .” à ora Autora, para aí ser erigido um Lar;

10. Logo que tomou conhecimento desta intenção, séria e anunciada publicamente, a Autora instruiu um dos seus funcionários, o Sr. EE, para se deslocar diariamente a casa dos senhores GG e DD, pessoas de idade avançada, a fim de lhes ser providenciada a entrega das refeições diárias, o que aquele fez, durante ainda algum tempo e pelo menos desde data não concretamente apurada de 2011 e até Junho de 2013;

11. E, de modo informal, uma vez que os referidos senhores GG e DD, não estavam regularmente inscritos na referida Associação, como seus utentes, custeando a Associação o dispêndio com as suas refeições e entrega domiciliária;

12. Com a expetativa séria de vir a integrar a “Quinta da . . .” no seu património imobiliário, por testamento, a Autora começou a fazer planos para a construção de um Lar naquele terreno – aliás como era intenção dos senhores GG e DD - tendo solicitado a realização de um estudo prévio para o efeito, e a realização de um levantamento topográfico do prédio, conforme doc. 3 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais;

13. O referido levantamento topográfico, do prédio do casal, teve um custo para a Autora de € 817,95 (oitocentos e dezassete euros e noventa e cinco cêntimos), conforme doc. 4 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais;

14. Decorrido um período de tempo, não concretamente apurado, mas de mais de dois anos desde o referido anúncio público, no dia 14 de junho de 2013, os senhores GG e DD, formalizaram a sua já anunciada publicamente intenção de doar o prédio, mediante a celebração e assinatura de dois testamentos cruzados, nos quais dispunham, cada um dos testadores, que, no caso de o seu respetivo cônjuge, seu único e universal herdeiro, não lhes sobreviver, instituíam como sua única e universal herdeira, a Autora, a Associação . . ., da freguesia e concelho de ..., tudo conforme doc. 5 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais;

15. Na data referida em 14), ambos, com as idades de 87 anos e 78 anos, respectivamente, estavam no pleno gozo das suas capacidades mentais;

16. Sucede que, apenas três dias depois, da celebração dos referidos testamentos, no dia ... de Junho de 2013, vem a falecer o senhor GG, conforme doc. 6 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais;

17. E deixa como sua única e universal herdeira, a esposa DD, tudo conforme docs. 6 e 7 juntos com a PI, cujo teor aqui se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais;

18. No dia ... de Julho de 2013, com o auxílio da Sra. Dra. LL, Advogada da Autora, foi celebrada escritura de habilitação de herdeiros do Sr. GG, sendo nomeada como cabeça de casal, a Sra. DD, na qualidade de sua única e universal herdeira, a qual passou a deter a propriedade plena dos prédios rustico e urbano, supra identificados, tudo conforme doc. 7 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais;

19. Posteriormente, a Sra. DD, igualmente representada pela Sra. Dra. LL, Advogada da Autora, requereu o registo de aquisição destes prédios, à 1ª Conservatória do Registo Predial de ..., bem como o averbamento do prédio urbano descrito sob o nº 10/19800708, no prédio rústico descrito sob o nº 3151/20100531, que assumiu, desta forma, a natureza de prédio misto, tudo conforme doc. 8 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

20. A Sra. D. DD, que em ... de julho de 2013 confere uma procuração à I. Mandatária, passou, então, a ser a única titular dos prédios supra identificados, agora unificados num só prédio, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3151/20100531, tudo conforme docs. 8 e 9 juntos com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

21. No entretanto, mais concretamente no dia ... de junho de 2013, a Direção da Autora reuniu, tendo o seu então Presidente, aqui 1º Réu, informado formalmente os restantes membros da Direção, que o casal GG e DD haviam outorgado testamento a favor da Autora, e em contrapartida, a Autora comprometia-se a prestar à D. DD, “todos os cuidados e assistência que esta necessitasse, até ao final da sua vida”, deliberação que foi consignada em Ata número 13, de 2013 da Reunião de Direção, tudo conforme doc. 10 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

22. Mas a partir dessa data, junho de 2013, as idas diárias a casa da Sra. D. DD, para lhe dar as refeições, que até então eram realizadas pelo Sr. EE, conforme já referido supra em 10), passaram a ser realizadas pelo então Sr. Presidente da Direcção da Autora, o ora 1º Réu, por sua única e exclusiva iniciativa, oferecendo-se esporadicamente, numa primeira fase, para o fazer, e acabando, enfim, por fazê-lo de forma recorrente e exclusiva;

23. O 1º Réu, aproveitando dessa qualidade de Presidente da Direcção, com toda a notoriedade que lhe era por isso conferida e liberdade que as funções concretamente desempenhadas na Autora, lhe permitiram, decidiu destituir informalmente o Sr. EE das suas funções, apenas relativamente ao casal em causa, e substituir-se-lhe nessa atuação, dirigindo-se diariamente, para o efeito, a casa daquela, a fim de lhe providenciar as refeições, pagas pela Autora, e com o intuito de desta se aproximar;

24. Aliás, este foi o único caso, com este tipo de intervenção ou atuação, no seio da Autora, veja-se deslocações do próprio Presidente da Direção, a casa de idosos, não utentes da Autora, e ao longo das várias décadas em que aquele, exerceu as referidas funções de Presidente de Direcção para a Autora;

25. Sucede que, volvidos cerca de dois anos, em 2015, o 1º Réu continuava a deslocar-se diariamente a casa da Sra. DD, conforme iniciara em junho de 2013, sem que ali se deslocasse outro funcionário da Autora, só o 1º Réu e na sua impossibilidade, a filha ou esporadicamente, a esposa;

26. No dia ... de Junho de 2015, a Sra. DD, celebrou novo testamento, pelo qual instituiu como seu único e universal herdeiro, e de todos os seus bens, móveis e imóveis, o Réu, então igualmente Presidente da Autora, e caso este não lhe sobrevivesse, instituiu, em sua substituição, como suas únicas e universais herdeiras, a sua mulher e filha, ora e Rés, respetivamente, tudo conforme doc. 11 junto com a PI, cujo teor aqui se por integralmente reproduzido”.

27. Desta intenção nada foi informado à Autora;

28. E, pela assinatura deste segundo testamento, a Sra. DD revogou o seu anterior testamento, que instituía como sua única e universal herdeira a Autora, vontade aliás igualmente expressa lucidamente pelo seu falecido marido, em dois testamentos cruzados;

29. E fê-lo, a testadora, com o auxílio do 1º Réu, que diligenciou quer na marcação da escritura, quer na convocação de duas testemunhas para o ato, as mesmas que foram convocadas para os anteriores testamentos;

30. Em ... de agosto de 2016, aos 81 anos de idade, faleceu a Sra. D. DD, tudo conforme doc. 12 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

31. E em face do falecimento da Sra. DD, o 1º Réu foi instituído como seu único e universal herdeiro, e passou a deter a propriedade plena da “Quinta da . . .”, cuja titularidade alterou na respetiva Caderneta Matricial, conforme docs. 13 e 14 juntos com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

32. Somente no funeral da Sra. D. DD, souberam os demais presentes, do referido em 31), pelo que alguns dos seus familiares e amigos, ficaram extremamente surpreendidos, e alguns revoltados;

33. Quanto à Autora, somente em 8 de janeiro de 2019, tomaram posse os novos órgãos sociais da Autora, eleitos a 14 de dezembro de 2018, para o quadriénio de 2019/2022, tendo sido eleito um novo Presidente da Direção, em substituição do 1º Réu, que então cessou funções, conforme doc. 15 junto com a Pi, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

34. E foi por decisão desta nova Direção da Autora, já em 27 de março 2019, que a Autora, através de mandatário, remeteu três cartas para os três Réus, cartas que foram recebidas por estes, em 29 de março de 2019, no sentido de os interpelar para procederem à restituição da Quinta da . . . à Autora, face à anulabilidade do testamento celebrado pela D. DD em ... de julho de 2015, conforme docs. 16, 17 e 18, juntos com a Pi, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

35. Por carta datada de 3 de abril de 2019, recebida em 5 de abril de 2019, os três Réus respondem à Autora, através do seu mandatário, afastando a pretendida hipótese de entrega do prédio à Autora, negando a verificação de qualquer facto que pudesse implicar a anulabilidade do último testamento celebrado pela D. DD, tudo conforme doc. 19 junto com a Pi, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

36.O Réu era considerado por todos, uma figura indissociável da Associação, aqui Autora, em virtude de todo o seu empenho e dedicação demonstrados, ao longo de 30 anos, situação que de maneira geral gerou nas pessoas que com ele lidaram, um sentimento de confiança, e bem assim, em face da história e importância social e cultural, para a freguesia e concelho de ..., da Associação Autora”.

37. Nos cerca de dois anos, após o decesso do Sr. GG, até à outorga do testamento de 2015, o 1º Réu desenvolveu da forma supra descrita com a falecida D. DD, uma relação de auxílio e de amizade, muito em parte, a expensas da Autora, no que tange ao custeamento das refeições e das despesas de representação do 1º Réu (deslocações de carro, etc), e apesar de não terem quaisquer laços de parentesco ou afinidade;

12. E vieram não provados os seguintes factos:

a. A então Sra. Presidente da Câmara Municipal de ..., Dra. KK limitou-se a apresentar o casal Sr. GG e Sra. DD, ao 1º Réu, informando-lhes que este “seria a pessoa ideal para os ajudar na intenção de testar”;

b. Em face do referido nos factos provados, tal ainda gerava uma incerteza nas pessoas, sobre o grau de autonomia da Autora face ao Réu, inclusive levando as pessoas a acreditarem que o Réu era o “dono” da Autora;

c. A partir da manifestação pública da intenção do falecido casal, Sr. GG e Sra. DD, de testar a favor da Associação . . ., nem sempre era o funcionário EE, quem ia a casa daqueles, levar as refeições diárias, a mando da Autora, pois

d. desde o início, que o Réu, na medida do possível, também o fazia,

e. não se limitando só a entregar as ditas refeições, mas também a prestar-lhes a sua companhia;

f. O referido em 14), ocorreu porque o identificado casal, tinha uma consciência errada da relação entre o 1º Réu e a Autora, acreditando que o património imobiliário por si legado, ficaria sob o domínio e a posse exclusivos, do Réu;

g. O referido em 14), ocorreu de forma precipitada e apressada, em virtude do agravamento do estado de saúde do Sr. GG;

h. E a sua vontade não se encontrava verdadeiramente esclarecida;

i. Em face do referido em 26), a testadora expressou a sua vontade, consciente e livre, de beneficiar quem a ajudou e acompanhou, efectivamente, razão porque ainda contemplou, nesse testamento, a esposa do 1º Réu e a filha deste;

j. O acompanhamento levado a cabo pelo 1º Réu, esposa e filha, em momento algum foi enganador ou manipulador, teve apenas por base uma atitude totalmente altruísta e desinteressada;

k. Postura que, aliás, sobretudo o 1º Réu, desenvolveu nas últimas décadas ainda com terceiros, utentes ou não utentes da Autora;

l. O 1º Réu foi surpreendido com a “mudança de vontade” da testadora, no referido ano de 2015, mais concretamente apenas soube disso, no próprio dia da outorga do testamento, pois que até esse momento, sempre agiu sabedor e consciente de que a beneficiário do testamento daquela, era a Associação Autora.

De Direito

13. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

14. O Recorrente imputa ao Acórdão a violação das seguintes normas substantivas e processais:

i. artigo 282.º do Código Civil, doravante CC,

ii. subsidiariamente, artigos 280.º e 2186.º do CC,

iii. artigo 2.º da Constituição da Républica Portuguesa, doravante CRP e

iv. artigo 414.º do CPC.

15. Questão prévia – da admissibilidade do recurso – dupla conforme?

O recurso de revista em causa é apresentado de acórdão que se pronuncia sobre o mérito da causa, confirmando a sentença, mas contém um voto de vencido, reportado à reapreciação da matéria de facto, realizada pelo Tribunal da Relação – art.º 671.º do CPC.

Na sua apreciação a magistrada que votou vencida explicou que entende não estarem preenchidos os requisitos de anulação do testamento, à luz do regime do art.º 282.º do CC, por usura, que foi a linha de argumentação principal usada na sentença e no acórdão recorrido.

Em face disto, não há dupla conforme impeditiva da revista.

16. Entrando na análise das questões suscitadas na revista.

17. Questão de saber se estão preenchidos os requisitos do art.º 282.º do CC

Como questão transversal à análise que se irá empreender, cumpre referir que o STJ é um tribunal que conhece de direito, aplicando-o aos factos apurados pelas instâncias.

E é isso que o recorrente pede: saber se à luz dos factos provados o direito foi devidamente aplicado.

17.1. Na sentença a situação da usura e anulação do testamento foi assim analisada (extracto)

“ … Em face da factualidade provada e não provada, temos no caso em apreço, uma acção de anulação de testamento, com fundamento em usura, por força do disposto no art.º 282º do CC, numa situação em que se verifica uma sucessão de testamentos, entre 2013 e 2015, com o decesso do de cujus em 2016.

Só subsidiariamente, se peticiona a declaração de nulidade, do mesmo testamento, com base no disposto no art.º 280º do CC.

Preceitua o citado art.º 282º do Código Civil que “é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental, ou fraqueza de caráter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.”

Ou seja, existe um negócio usurário quando se verifiquem, cumulativamente, os respetivos requisitos:

1. Uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem;

2. A exploração desta situação;

3. Para obter para si ou para terceiro a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados,

como refere a Autora, no seu articulado inicial, mais demonstrando que vem sendo pacificamente aceite quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, a aplicação deste Instituto, ainda aos negócios jurídicos unilaterais, como o testamento, citando para o efeito o Acórdão do STJ de 23.06.2016, relatado pela Exma. Sra. Conselheira Maria da Graça Trigo, que se debruça sobre a dificuldade da transposição do instituto da usura e seus pressupostos, para o negócio jurídico uniliteral, testamento.

A este propósito aí se refere “(…) VI – Enquanto a transposição dos requisitos subjectivos relativos ao declarante e ao usurário não oferece especiais dúvidas, maiores dificuldades suscita a transposição do requisito objectivo da “lesão”, já que, por natureza, o testamento é apto a atribuir benefícios que excedem, total ou parcialmente, os merecimentos de quem os recebe. VII – Embora a usura não possa, por definição, existir sem um elemento objectivo, a sua aplicação ao testamento apenas poderá afirmar-se em circunstâncias muito excepcionais em que esse negócio jurídico se insira num contexto mais alargado, no qual a factualidade provada imponha uma diferente valoração, associada ao recurso à concepção de “sistema móvel” considerando-se que, se for particularmente intensa a prova de factos que revelam um dos pressupostos do art.º 282º, n.º 1 do C.C., será aceitável um menor grau de exigência na verificação de um outro pressuposto. (…)”.

Ora em face da factualidade provada, estamos efectivamente na presença de uma situação, em que a testadora - pessoa idosa, que adoece com o falecimento do seu marido, que fica triste, só e deprimida, que vive sozinha, num local isolado e desacompanhada de tudo e de todos, que não tem verdadeiro apoio familiar, nem sequer social, senão aquele que encontra ainda em vida juntamente com o seu marido, através da Autarquia junto de uma Instituição Particular de Solidariedade Social, da sua área de residência, aqui Autora e antes do seu marido falecer - encontra-se numa situação de acentuada inferioridade, por necessidade, tanto física como afectiva e psíquica, em relação a um terceiro, dependência que por atuação desse terceiro, o aqui 1º Réu, se transformou em dependência deste, e que a explorou (tal dependência), para assim conformar a vontade da testadora, o que por sua vez, se traduziu na outorga de um segundo testamento, revogatório do primeiro, que fora celebrado em 2013, já no ano de 2015, mediante o que logrou que esta lhe atribuísse por morte a titularidade de todos os seus bens imóveis e móveis, não podendo sequer equacionar-se a hipótese de modificação dos negócios, nos termos do que o art.º 283º, n.º 2 do CC preconiza, por não ter sido pedido.

É assim anulável, tal negócio jurídico unilateral, testamento, por usura.

É facto que se entendem preenchidos os três citados pressupostos para considerar um negócio, usurário, mas o primeiro dos referidos pressupostos, conforme citado aresto, do Supremo Tribunal de Justiça, está de forma tão evidente e intensamente provado, em face da factualidade que resultou provada, que se aceita um menor grau de exigência na verificação dos demais, no caso, da exploração da situação da falecida D. DD, pelo 1º Réu, e da intenção deste, de assim obter para si (ou para terceiros, caso não lhes sobrevivesse) a concessão de benefícios injustificados, veja-se de alguém que por ser, conforme os Estatutos da Autora (art.º 29º), o seu representante, em juízo e fora dele, consegue dessa forma aproximar-se de forma relevante e não justificada, de alguém em situação de manifesta inferioridade e dependência (por variadíssimas razões, pela idade, pela viuvez, pela situação de saúde e pelo isolamento social), e conforma a sua vontade, obtendo para si uma vantagem que não teria, de alguém que de outra forma não conheceria, e a quem como aliás aos demais idosos que conheceu na Instituição, não faria o que fez, não se aproximaria como se aproximou, não colocaria na sua total dependência, como fez, apenas com vista a obter tal finalidade.

Deste exemplo flagrante é ainda de forma que nos parece clara, as incongruências, entre a alegação factual na Contestação, e nas declarações de parte do Réu, ao afirmar que faria retornar tal património imobiliário, à Autora quando se revelou evidente que tal nunca foi a sua intenção, antes pelo contrário, foi assegurar-se de que só após o decesso da D. DD, se soubesse da revogação do primeiro testamento, e inflexão por conformação da vontade desta.

Sobre situação idêntica, debruçou-se igualmente o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28.02.2019, relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Cristina Neves, que considerando um minus a anulabilidade de deixa testamentaria em relação á nulidade da mesma, em face do que preceitua o art.º 2196º, n.º 1 do CC, considera anulável um testamento, com fundamento em usura, conforme art.º 282º do CC, por verificados “(…) estes requisitos quando alguém pelo seu estado de saúde, idade ou pelo seu estado psíquico (diminuído por força da doença ou da própria idade), esteja numa situação de inferioridade ou dependência do usurário (quer porque se encontra a ser por ele cuidado ou tratado, fora dos casos previstos nos art.ºs 2192º e 2194º do CC, quer no âmbito de uma relação amorosa, em que a pessoa mais jovem assume ascendente sobre a pessoa mais idosa) e seja concedido por via testamentária um benefício excessivo (tendo em conta a natureza dessa relação, o período de tempo em que decorreu, se existia um projecto devida em comum, etc….). (…)”.

Mas se se entende que o testamento outorgado em 2015, pela D. DD deve ser anulado, por usura, diga-se desde já, que se assim não fosse, seria ainda de declarar a sua nulidade por ofensa aos bons costumes e violação do principio da boa-fé, conforme art.º 280º, n.º 2 do CC e peticionado pela Autora, em face do que alega nos art.ºs 43º e ss. da PI.

É facto que a atuação do 1º Réu, com relação à Autora, IPSS, cuja Direcção presidiu durante várias décadas (33 anos, declarou), e do seu conhecimento pessoal e institucional da intenção da testadora, e da intenção do seu falecido marido, nos anos que antecederam 2015, aliás desde 2008/2009, de doar à IPSS o seu património imobiliário, para aí serem cuidados e acompanhados e quando possível, aí ser erigido um Lar de 3ª idade, como os demais que a Autora construiu noutros terrenos que lhe foram doados, o que aliás, conforme os seus Estatutos (art.º 34º), necessariamente conhecidos pelo Réu, constitui o seu património, é contrária à boa fé e aos bons costumes, não é comummente aceite, não é ético e choca, como chocou, pelo menos, os funcionários da Autora que com ele privaram vários anos.

Toda a conduta do Réu, direcionada a instrumentalizar a vontade de uma pessoa idosa, só, débil, isolada e (como referido por testemunhas) sem calor humano, levando a alterar a sua própria vontade, livre, consciente e justificada (como resulta dos factos provados e não provados), para beneficio pessoal e familiar, fazendo uso da sua posição institucional, viola os mais elementares ditames da boa fé e é contrário ao que é eticamente aceite pela Sociedade e corresponde ao comportamento adotado por pessoas honestas e correctas, colocadas em situação semelhante.

Seria assim nulo, por violação do que dispõem os art.ºs 280º e 2186º ambos do CC, o testamento celebrado em 2015, não fosse o mesmo anulável, por usura, como supra se concluiu.

As consequências legais de tal anulação de testamento, são a vigência plena do testamento outorgado em 2013, pela Sra. D. DD, e referido em 14) dos factos provados, com as legais consequências, de cancelamento dos registos, entretanto efectuados a favor do 1º Réu e entrega do prédio em causa, à Autora.”

17.2. No tribunal recorrido, a maioria que fez vencimento decidiu e justificou a decisão assim:

“2-Perante a factualidade dada como assente, importa agora analisar se o testamento em análise nos autos é anulável por usura, pois essa é a causa de pedir na presente acção.

Subsidiariamente, peticiona-se a declaração de nulidade, do mesmo testamento, com base no disposto no art.º 280º do CC.

Dispõe o art.º 282º do Código Civil que “é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental, ou fraqueza de caráter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.”

Ou seja, existe um negócio usurário quando se verifiquem, cumulativamente, os respetivos requisitos:

(i)existência de uma situação de inferioridade do declarante;

(ii) exploração da situação de inferioridade pelo usurário;

(iii) lesão, isto é, promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro.

Está pacificamente aceite, quer pela Doutrina1 quer pela Jurisprudência2 a aplicabilidade deste instituto aos negócios jurídicos unilaterais como é o caso do testamento.

Importa verificar se, em face da matéria de facto provada podem considerar-se verificados os referidos requisitos.

Exige o primeiro requisito uma situação de inferioridade do declarante. Perante os factos provados, poderemos concluir que a testadora se encontrava numa situação de inferioridade por necessidade ou dependência? Não temos quaisquer dúvidas a esse respeito.

Tal como bem caracterizou a sentença recorrida “(…) estamos efectivamente na presença de uma situação, em que a testadora - pessoa idosa, que adoece com o falecimento do seu marido, que fica triste, só e deprimida, que vive sozinha, num local isolado e desacompanhada de tudo e de todos, que não tem verdadeiro apoio familiar, nem sequer social, senão aquele que encontra ainda em vida juntamente com o seu marido, através da Autarquia junto de uma Instituição Particular de Solidariedade Social, da sua área de residência, aqui Autora e antes do seu marido falecer - encontra-se numa situação de acentuada inferioridade, por necessidade, tanto física como afectiva e psíquica, em relação a um terceiro, dependência que por atuação desse terceiro, o aqui 1º Réu, se transformou em dependência deste (…). É patente a fragilidade e vulnerabilidade da testadora, quer a nível físico quer a nível psíquico, quer em virtude da avançada idade, quer em virtude da falta de apoio familiar e da solidão e isolamento em que vivia.

E foi neste contexto que o Réu, aproveitando dessa qualidade de Presidente da Direcção da Associação ... (Associação . . .), com toda a notoriedade que lhe era por isso conferida e liberdade que as funções concretamente desempenhadas na Autora, lhe permitiram, decidiu destituir informalmente o Sr. EE das funções que tinha que incluíam levar diariamente as refeições à D. DD e passou a substituir-se-lhe nessa atuação, dirigindo-se diariamente, para o efeito, a casa daquela, a fim de lhe providenciar as refeições e com o intuito de desta se aproximar.3 E esta aproximação, atentas as circunstâncias não teve outro objectivo senão conseguir como efectivamente conseguiu que a mencionada DD alterasse o sentido do testamento, a seu favor e da sua mulher e filha. Na verdade, o Réu, na qualidade de Presidente da Direcção da Associação ..., tinha perfeito conhecimento da existência do testamento realizado a favor da Associação de que era Presidente. E sabia também que era vontade dos testadores que fosse construída uma residência para assistência a idosos4 no imóvel que era objecto do testamento a favor da Associação.... Por outro lado, não era normal que fosse o Presidente da Associação a deslocar-se a casa de uma pessoa que nem sequer era associada, para lhe fornecer refeições, quando a instituição tinha funcionários que o poderiam fazer, como acontecia até Junho de 2013. Demonstram os factos, à saciedade que houve uma exploração da situação de dependência da DD com vista à realização do testamento ora impugnado. Verifica-se também este segundo requisito.

Por fim, importa analisar se estará verificado o terceiro requisito, ou seja, a existência de um benefício excessivo ou injustificado para o usurário ou para terceiro.

A este propósito cabe referir que a transposição deste requisito aos negócios gratuitos como é o caso do testamento suscita maiores dificuldades, já que, “por natureza o testamento é apto a atribuir benefícios que excedem, total ou parcialmente, os merecimentos de quem os recebe”5. Porém, no caso em apreço, é por demais evidente o recebimento de um benefício indevido por parte do Réu. Tal resulta da manifesta deslealdade com que o Réu agiu em relação à Associação de que ele próprio era Presidente, sendo aquela a primitiva beneficiária do testamento e perfeitamente ciente de que estava a prejudicar a beneficiária aproveitou das já referidas dependência e fragilidade da testadora para a conduzir à alteração do testamento a seu favor bem como da sua mulher e filha. Através da sua actuação, o Réu pretendia obter um benefício exclusivamente pessoal, seu e dos seus familiares mais próximos, ciente de que frustrava o desejo anteriormente expresso da testadora e do seu falecido marido, muito mais abrangente e colectivo, de que, no prédio objecto do testamento fosse erigido um lar de idosos.

Não podemos pois deixar de concluir, como de resto concluiu a sentença recorrida, pela verificação também deste requisito e, por conseguinte, qualificar este negócio jurídico como usurário, nos termos do art.º 282.º do Código Civil.

E subscrevemos igualmente o entendimento de que dadas as circunstâncias já descritas e plasmadas na factualidade apurada, caso não fosse anulável, por usura, este testamento seria nulo por violação do disposto nos artigos 280.º n.º 2 e 2186.º do Código Civil, ou seja, por ser ofensivo dos bons costumes e violação do princípio da boa –fé.

Tal como supra referido e bem é assinalado na sentença recorrida : “ é facto que a atuação do 1º Réu, com relação à Autora, IPSS, cuja Direcção presidiu durante várias décadas (33 anos, declarou), e do seu conhecimento pessoal e institucional da intenção da testadora, e da intenção do seu falecido marido, nos anos que antecederam 2015, aliás desde 2008/2009, de doar à IPSS o seu património imobiliário, para aí serem cuidados e acompanhados e quando possível, aí ser erigido um Lar de 3ª idade, como os demais que a Autora construiu noutros terrenos que lhe foram doados, o que aliás, conforme os seus Estatutos (art.º 34º), necessariamente conhecidos pelo Réu, constitui o seu património, é contrária à boa - fé e aos bons costumes, não é comummente aceite, não é ético e choca, como chocou, pelo menos, os funcionários da Autora que com ele privaram vários anos.

Toda a conduta do Réu, direcionada a instrumentalizar a vontade de uma pessoa idosa, só, débil, isolada e (como referido por testemunhas) sem calor humano, levando a alterar a sua própria vontade, livre, consciente e justificada (como resulta dos factos provados e não provados), para beneficio pessoal e familiar, fazendo uso da sua posição institucional, viola os mais elementares ditames da boa- fé e é contrário ao que é eticamente aceite pela Sociedade e corresponde ao comportamento adotado por pessoas honestas e correctas, colocadas em situação semelhante.

Seria assim nulo, por violação do que dispõem os art.ºs 280º e 2186º ambos do CC, o testamento celebrado em 2015, não fosse o mesmo anulável, por usura, como supra se concluiu”.

Improcede, pois o recurso, devendo ser confirmada a sentença recorrida.”

17.3. O recorrente entende que foi violado o art.º 282.º do CC, no que respeita à verificação dos seus três pressupostos, por não existirem factos provados que os sustentem.

17.4. Diversa é a posição da recorrida, que detalhadamente, para cada um dos pressupostos da anulação, explica a decisão do tribunal e os factos provados que a suportam.

Assim:

Para justificar a existência de uma situação de inferioridade do declarante, diz a recorrida que a mesma está espelhada nos factos provados:

“7. A caracterização feita, quer pela 1.ª instância, quer pelo Tribunal a quo, encontra-se totalmente alicerçada nos factos provados, designadamente:

a. No Ponto 4, quanto ao isolamento do local em que vivia;

b. No Ponto 5, 1ª parte, relativamente à inexistência de apoio familiar e consequente desacompanhamento.

c. Nos Pontos 7 a 10, em relação à inexistência de apoio social e consequente desacompanhamento, além do que encontra ainda em vida juntamente com o seu marido, através da Autarquia junto de uma Instituição Particular de Solidariedade Social, da sua área de residência, (…) antes do seu marido falecer;

d. No Ponto 16, no tocante ao falecimento do seu marido, de onde decorreu a sua tristeza e que teve com consequência, em articulação com ponto 5, o facto de ficar só e, necessariamente, viver sozinha.

e. Nos Pontos 21, 22 e 25, quanto à necessidade e dependência de cuidados e assistência diária designadamente para alimentação.

f. Nos Pontos 22 a 25, em especial, quanto à dependência da testadora face ao 1.º Réu e do modo como este fomentou aquela dependência, que fica por demais evidenciada no facto provado, que perante a sua impossibilidade em realizar alguma das deslocações diárias não eram outros funcionários da Autora que se deslocavam, mas sim a sua filha ou a sua esposa.

g. No Ponto 30, em articulação com o ponto 26, quanto à qualificação da testadora como pessoa idosa.

8. Refira-se ainda que dos factos provados decorre que a situação de dependência e necessidade, originada pelo Recorrente, era de tal forma intensa, que as deslocações tinham de ser diárias, sendo necessariamente asseguradas, perante a impossibilidade deste, não por outros funcionários da Autora, mas sim por membros da sua família.

9. O afirmado no ponto anterior afasta a tese de que se estaria perante uma mera relação de amizade em que inexistia qualquer tipo de dependência, pois as relações de amizade não impõe deslocações diárias, muito menos a necessidade de substituição por familiares.

10. Em face da factualidade provada e elencada no ponto 7 o tribunal a quo decidiu corretamente ao qualificar a situação da testadora como sendo de inferioridade devido à sua necessidade e dependência, tanto física como psíquica, em relação ao Recorrente que contribuiu de forma activa, para essa situação.

11. Assim sendo o requisito subjetivo da usura relativo ao declarante ocorre de uma forma especialmente intensa e grave.”

Para justificar a existência de uma exploração da situação de inferioridade pelo usurário, diz a recorrida que a mesma está espelhada nos factos provados:

“Verificada a existência de uma situação de inferioridade, o Tribunal a quo aferiu, tendo em conta a factualidade provada, da existência de uma exploração da situação de inferioridade, tendo concluído que também se verifica este requisito, com base a seguinte fundamentação que se transcreve:

E foi neste contexto que o Réu, aproveitando dessa qualidade de Presidente da Direcção da Associação para o Bem - Estar Infantil de ... (Associação . . .), com toda a notoriedade que lhe era por isso conferida e liberdade que as funções concretamente desempenhadas na Autora, lhe permitiram, decidiu destituir informalmente o Sr. EE das funções que tinha que incluíam levar diariamente as refeições à D. DD e passou a substituir-se-lhe nessa atuação, dirigindo-se diariamente, para o efeito, a casa daquela, a fim de lhe providenciar as refeições e com o intuito de desta se aproximar. E esta aproximação, atentas as circunstâncias não teve outro objectivo senão conseguir como efectivamente conseguiu que a mencionada DD alterasse o sentido do testamento, a seu favor e da sua mulher e filha. Na verdade, o Réu, na qualidade de Presidente da Direcção da Associação ..., tinha perfeito conhecimento da existência do testamento realizado a favor da Associação de que era Presidente. E sabia também que era vontade dos testadores que fosse construída uma residência para assistência a idosos no imóvel que era objecto do testamento a favor da Associação.... Por outro lado, não era normal que fosse o Presidente da Associação a deslocar-se a casa de uma pessoa que nem sequer era associada, para lhe fornecer refeições, quando a instituição tinha funcionários que o poderiam fazer, como acontecia até Junho de 2013. Demonstram os factos, à saciedade que houve uma exploração da situação de dependência da DD com vista à realização do testamento ora impugnado. Verifica-se também este segundo requisito".

Defende que “A fundamentação transcrita encontra-se integralmente alicerçada nos factos dados como provados, designadamente:

No ponto 3, quanto às funções desempenhadas pelo Réu;

b. Nos pontos 22 e 23, quanto à destituição informal do Sr. EE e à assunção direta da tarefa antes executada por este com o intuito de se aproximar da Sra. DD;

c. No ponto 26, quanto à alteração do sentido do testamento, a seu favor e da sua mulher e filha;

d. Nos pontos 9 e 21, em relação ao conhecimento da existência do testamento realizado a favor da Associação de que era Presidente

e. No ponto 24, relativamente ao facto do Presidente da Associação não se deslocar a casa de pessoas não associadas, para lhes fornecer refeições, excetuando no caso da Sra. DD.

factualidade que levou o Tribunal a quo a constar que se verificava o requisito a exploração da situação de inferioridade pelo usurário, não se cinge aos pontos 22 e 23 da matéria de facto provada.

15. Acresce que o Recorrente considera que o Tribunal a quo não podia concluir que este decidiu passar a ir levar as refeições com o intuito de se aproximar da Sra. DD, no entanto é precisamente isto que resulta do ponto 23 dos factos provados que se transcreve: “O 1º Réu, aproveitando dessa qualidade de Presidente da Direcção, com toda a notoriedade que lhe era por isso conferida e liberdade que as funções concretamente desempenhadas na Autora, lhe permitiram, decidiu destituir informalmente o Sr. EE das suas funções, apenas relativamente ao casal em causa, e substituir-se-lhe nessa atuação, dirigindo-se diariamente, para o efeito, a casa daquela, a fimde lhe providenciar as refeições, pagas pela Autora, e com o intuito de desta se aproximar (sublinhado e destaque nosso).

16. Estando assente na matéria de facto o motivo pelo qual o Réu pretendia proceder à entrega das refeições, não podia o Tribunal a quo ignorar este motivo que é, sublinhe-se, facto assente, não podendo ser afastado.

17. Acresce que a celebração do novo testamento ocorreu aproximadamente dois anos depois do Recorrente, a sua mulher ou a sua filha, em substituição daquele, passarem a deslocar-se diariamente a casa da testadora (cfr. ponto 25 dos factos dados por provados).

18. Apenas o Recorrente, a sua mulher e a sua filha, prestavam cuidados e assistência à testamentária (cfr. ponto 25 dos factos dados por provados).

19. Para se alimentar a testamentária dependia exclusivamente das refeições que lhe eram levadas pelo Recorrente, pela sua mulher ou pela sua filha.

20. Foi o Recorrente que marcou a escritura e convocou as testemunhas (cfr. ponto 28 dos factos dados por provados).

21. Em face do exposto o Recorrente tinha conhecimento da situação de inferioridade da testamentária e da causa dessa inferioridade

22. O Recorrente não recebia qualquer contrapartida por tais serviços.

23. Acresce que para concluir pela verificação do segundo requisito da usura, o Tribunal a quo socorre-se de simples presunções judiciais, sendo-lhe lícito desenvolver a matéria de facto fixada em 1ª Instância, mediante presunções judiciais alicerçadas nas regras da experiência, não cabendo ao Tribunal ad quem sindicar o conteúdo e substância de tais juízos probatórios, mas apenas verificar o respeito pelos pressupostos subjacentes, designadamente de logicidade da ilação de factos essenciais a partir de factos instrumentais dados como provados.

24. Em face da factualidade provada e elencada o Tribunal a quo decidiu corretamente ao considerar que in caso se verificava o requisito da exploração da situação de inferioridade pelo usurário.”

Para justificar a existência da lesão, isto é, da promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro, diz a recorrida que a mesma está espelhada nos factos provados:

“25. Por último, tendo em consideração o 3.º requisito, que corresponde à promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro, o Tribunal a quo concluiu, corretamente, pela sua verificação tendo em consideração a seguinte fundamentação:

“Porém, no caso em apreço, é por demais evidente o recebimento de um benefício indevido por parte do Réu. Tal resulta da manifesta deslealdade com que o Réu agiu em relação à Associação de que ele próprio era Presidente, sendo aquela a primitiva beneficiária do testamento e perfeitamente ciente de que estava a prejudicar a beneficiária, aproveitou das já referidas dependência e fragilidade da testadora para a conduzir à alteração do testamento a seu favor bem como da sua mulher e filha. Através da sua actuação, o Réu pretendia obter um benefício exclusivamente pessoal, seu e dos seus familiares mais próximos, ciente de que frustrava o desejo anteriormente expresso da testadora e do seu falecido marido, muito mais abrangente e colectivo, de que, no prédio objecto do testamento fosse erigido um lar de idosos 26. Esta fundamentação encontra apoio integral na factualidade dada como provada, designadamente nos pontos 1 a 3, 5 a 9 e 21 a 29.

27. Sendo de frisar que o avanço do projeto de construção do lar de idosos, por parte da Associação, se encontrava inteiramente dependente do impulso ou não do Recorrente, assim como o facto do Recorrente ter urdido uma relação de d e pendência alicerçada em realidades integralmente custeadas pela Recorrida, designadamente as refeições e o transporte.

28. Na situação em análise houve uma clara intenção, provada e demonstrada, do Recorrente em pessoalizar em si e nos seu familiares, o apoio que era concedido pela Associação, de modo a gerar uma relação interpessoal de dependência, através da qual pretendeu obter um benefício exclusivamente pessoal para si e para os seu familiares, claramente excessivo e injustificado, quando o desejo anteriormente expresso da testadora e do seu falecido marido, conhecido pelo Recorrente, era o de que no prédio objeto do testamento fosse erigido um lar de idosos.

29. Em face da factualidade provada e elencada o Tribunal a quo decidiu corretamente ao considerar que se verificava o requisito da promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro.”

17.5. Que dizer?

Dando por definitivos os factos provados – não se podendo conhecer da apreciação da impugnação da matéria de facto realizada pelo tribunal recorrido (que não constitui objecto do recurso, nem é de conhecimento oficioso e, nos casos em que é alegado, tem ainda as limitações do art.º 674.º, n.º3 e 682.º, n.º2 do CPC) – não se duvida que as instâncias decidiram bem, no sentido de os factos apurados serem suficientes para se concluir que os mesmos integram a previsão legal dos três requisitos necessários para que se anule o testamento por usura.

Não se justifica reproduzir novamente as posições das instâncias, mas podemos apontar como elementos seguros da existência de tais factos provados:

a. – situação de inferioridade do declarante:

4. GG, e DD, casados sob o regime da comunhão geral de bens, foram os únicos donos e legítimos proprietários do prédio rústico, com a área de 10.000 m2, sito em ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 22, secção I e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 3151/20100531, bem como do prédio urbano, com a área de 80,04 m2, sito em ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1299 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 10/19800708, doravante designado, no seu todo, por “Quinta da . . .”, tudo conforme os docs. 1 e 2 juntos com a Pi, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

5. Por não terem descendentes ou ascendentes vivos, os identificados GG e DD, decidiram que deveriam deixar o seu património imobiliário, em herança, a uma entidade ou instituição de solidariedade social do seu local de residência, ...;

6. E como pretendiam que no seu Prédio, fosse erigido um lar de idosos, e que dessa forma ficasse acautelada a sua situação, na velhice,

7. não sabendo a quem mais recorrer, solicitaram o auxílio da então Sra. Presidente da Câmara Municipal de ..., Dra. KK, para que lhes indicasse uma instituição para este fim;

10. Logo que tomou conhecimento desta intenção, séria e anunciada publicamente, a Autora instruiu um dos seus funcionários, o Sr. EE, para se deslocar diariamente a casa dos senhores GG e DD, pessoas de idade avançada, a fim de lhes ser providenciada a entrega das refeições diárias, o que aquele fez, durante ainda algum tempo e pelo menos desde data não concretamente apurada de 2011 e até Junho de 2013;

11. E, de modo informal, uma vez que os referidos senhores GG e DD, não estavam regularmente inscritos na referida Associação, como seus utentes, custeando a Associação o dispêndio com as suas refeições e entrega domiciliária;

14. Decorrido um período de tempo, não concretamente apurado, mas de mais de dois anos desde o referido anúncio público, no dia ... de Junho de 2013, os senhores GG e DD, formalizaram a sua já anunciada publicamente intenção de doar o prédio, mediante a celebração e assinatura de dois testamentos cruzados, nos quais dispunham, cada um dos testadores, que, no caso de o seu respetivo cônjuge, seu único e universal herdeiro, não lhes sobreviver, instituíam como sua única e universal herdeira, a Autora, a Associação . . ., da freguesia e concelho de ..., tudo conforme doc. 5 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais;

21. No entretanto, mais concretamente no dia ... de junho de 2013, a Direção da Autora reuniu, tendo o seu então Presidente, aqui 1º Réu, informado formalmente os restantes membros da Direção, que o casal GG e DD haviam outorgado testamento a favor da Autora, e em contrapartida, a Autora comprometia-se a prestar à D. DD, “todos os cuidados e assistência que esta necessitasse, até ao final da sua vida”, deliberação que foi consignada em Ata número 13, de 2013 da Reunião de Direção, tudo conforme doc. 10 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

36.O Réu era considerado por todos, uma figura indissociável da Associação, aqui Autora, em virtude de todo o seu empenho e dedicação demonstrados, ao longo de 30 anos, situação que de maneira geral gerou nas pessoas que com ele lidaram, um sentimento de confiança, e bem assim, em face da história e importância social e cultural, para a freguesia e concelho de ..., da Associação Autora”.

37. Nos cerca de dois anos, após o decesso do Sr. GG, até à outorga do testamento de 2015, o 1º Réu desenvolveu da forma supra descrita com a falecida D. DD, uma relação de auxílio e de amizade, muito em parte, a expensas da Autora, no que tange ao custeamento das refeições e das despesas de representação do 1º Réu (deslocações de carro, etc), e apesar de não terem quaisquer laços de parentesco ou afinidade;

b. - exploração da situação de inferioridade pelo usurário:

22. Mas a partir dessa data, junho de 2013, as idas diárias a casa da Sra. D. DD, para lhe dar as refeições, que até então eram realizadas pelo Sr. EE, conforme já referido supra em 10), passaram a ser realizadas pelo então Sr. Presidente da Direcção da Autora, o ora 1º Réu, por sua única e exclusiva iniciativa, oferecendo-se esporadicamente, numa primeira fase, para o fazer, e acabando, enfim, por fazê-lo de forma recorrente e exclusiva;

23. O 1º Réu, aproveitando dessa qualidade de Presidente da Direcção, com toda a notoriedade que lhe era por isso conferida e liberdade que as funções concretamente desempenhadas na Autora, lhe permitiram, decidiu destituir informalmente o Sr. EE das suas funções, apenas relativamente ao casal em causa, e substituir-se-lhe nessa atuação, dirigindo-se diariamente, para o efeito, a casa daquela, a fim de lhe providenciar as refeições, pagas pela Autora, e com o intuito de desta se aproximar;

24. Aliás, este foi o único caso, com este tipo de intervenção ou atuação, no seio da Autora, veja-se deslocações do próprio Presidente da Direção, a casa de idosos, não utentes da Autora, e ao longo das várias décadas em que aquele, exerceu as referidas funções de Presidente de Direcção para a Autora;

25. Sucede que, volvidos cerca de dois anos, em 2015, o 1º Réu continuava a deslocar-se diariamente a casa da Sra. DD, conforme iniciara em junho de 2013, sem que ali se deslocasse outro funcionário da Autora, só o 1º Réu e na sua impossibilidade, a filha ou esporadicamente, a esposa;

26. No dia ... de Junho de 2015, a Sra. DD, celebrou novo testamento, pelo qual instituiu como seu único e universal herdeiro, e de todos os seus bens, móveis e imóveis, o Réu, então igualmente Presidente da Autora, e caso este não lhe sobrevivesse, instituiu, em sua substituição, como suas únicas e universais herdeiras, a sua mulher e filha, ora e Rés, respetivamente, tudo conforme doc. 11 junto com a PI, cujo teor aqui se por integralmente reproduzido”.

27. Desta intenção nada foi informado à Autora;

28. E, pela assinatura deste segundo testamento, a Sra. DD revogou o seu anterior testamento, que instituía como sua única e universal herdeira a Autora, vontade aliás igualmente expressa lucidamente pelo seu falecido marido, em dois testamentos cruzados;

29. E fê-lo, a testadora, com o auxílio do 1º Réu, que diligenciou quer na marcação da escritura, quer na convocação de duas testemunhas para o ato, as mesmas que foram convocadas para os anteriores testamentos;

30. Em ... de agosto de 2016, aos 81 anos de idade, faleceu a Sra. D. DD, tudo conforme doc. 12 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

31. E em face do falecimento da Sra. DD, o 1º Réu foi instituído como seu único e universal herdeiro, e passou a deter a propriedade plena da “Quinta da . . .”, cuja titularidade alterou na respetiva Caderneta Matricial, conforme docs. 13 e 14 juntos com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

32. Somente no funeral da Sra. D. DD, souberam os demais presentes, do referido em 31), pelo que alguns dos seus familiares e amigos, ficaram extremamente surpreendidos, e alguns revoltados;

36.O Réu era considerado por todos, uma figura indissociável da Associação, aqui Autora, em virtude de todo o seu empenho e dedicação demonstrados, ao longo de 30 anos, situação que de maneira geral gerou nas pessoas que com ele lidaram, um sentimento de confiança, e bem assim, em face da história e importância social e cultural, para a freguesia e concelho de ..., da Associação Autora”.

37. Nos cerca de dois anos, após o decesso do Sr. GG, até à outorga do testamento de 2015, o 1º Réu desenvolveu da forma supra descrita com a falecida D. DD, uma relação de auxílio e de amizade, muito em parte, a expensas da Autora, no que tange ao custeamento das refeições e das despesas de representação do 1º Réu (deslocações de carro, etc), e apesar de não terem quaisquer laços de parentesco ou afinidade;

c. - concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro:

31. E em face do falecimento da Sra. DD, o 1º Réu foi instituído como seu único e universal herdeiro, e passou a deter a propriedade plena da “Quinta da . . .”, cuja titularidade alterou na respetiva Caderneta Matricial, conforme docs. 13 e 14 juntos com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

32. Somente no funeral da Sra. D. DD, souberam os demais presentes, do referido em 31), pelo que alguns dos seus familiares e amigos, ficaram extremamente surpreendidos, e alguns revoltados.

Improcede, assim, a questão suscitada pelo recorrente.

18. Questão relativa à aplicação do regime do art.º 280.º do CC

18.1. Diz o recorrente que a aplicação da solução do art.º 280.º do CC desrespeitou a lei.

18.2. A recorrida pronuncia-se sobre a inadmissibilidade da revista, na parte em que a decisão recorrida aplicou o regime do art.º 280.º do CC, dizendo:

“há dupla conforme quanto à questão do testamento ser nulo por violação do disposto no artigo 280.º e 2186.º do CC, uma vez que o Acórdão impugnado, também nesta matéria, acompanha integralmente o decidido pela 1.ª instância, sem que o voto de vencido da Senhora Conselheira tenha abordado esta questão, cingindo-se à discussão da aplicação do instituto dos negócios usurários.”

18.3. Na sentença e na decisão recorrida a aplicação do regime do art.º 280.ºdo CC obteve uma pronúncia do tribunal a título subsidiário, conforme o pedido correspondente também havia sido formulado.

Isso significa que o tribunal decidiu julgar a acção procedente em face do primeiro pedido e a apreciação do pedido subsidiário ocorre em regime de obiter dictum, pois já não havia motivos para conhecer do pedido subsidiário quando o principal havia sido deferido.

18.4. No recurso a questão da aplicação do regime do art.º 280.º fica prejudicada por o tribunal estar a conhecer do pedido principal e manter a decisão da sua procedência.

19. O recorrente entende que a decisão recorrida atenta contra alguns princípios constitucionais – o da segurança e o da confiança.

19.1. Segundo a recorrida, em momento algum se pode duvidar que o acórdão recorrido respeita o princípio constitucional da confiança:

“37. O Tribunal a quo respeitou integralmente o princípio da confiança na medida em que a tutela da confiança na manutenção dos negócios jurídicos diz respeito, apenas e só, a negócios jurídicos válidos.

38. Em síntese, existindo, como ficou demonstrado, fundamento para anulação, o ordenamento jurídico-constitucional não protege esses negócios.”

19.2. Conhecendo

É evidente que não está aqui em causa a aplicação de nenhuma norma jurídica que tenha posto em causa o princípio da confiança e segurança dos privados, sendo possível demonstrar-se que um negócio jurídico em que (supostamente) alguém fazia fé estava ferido de invalidade por motivo previsto na lei e cujo apuramento ocorre, dentro dos prazos legais, e segundo as regras de invalidação previstas pelo legislador.

20. Finalmente o recorrente entende que houve violação do regime do art.º 414.º do CPC, que estabelece as regras de repartição do ónus da prova.

20.1. Na posição da recorrida a questão da violação do regime do art.º 414.º do CPC, também não procede, porque:

“40. … encontra-se vedado a utilização do recurso de revista para alterar a matéria de facto com fundamento numa alegada violação do artigo 414.º do CPC, que em concreto nem se verifica.

41. Acresce que ainda que fosse possível o recorrente impugnar matéria de facto este nem cumpre com o ónus decorrente do artigo 640.º do CPC uma vez que não identifica quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados.”

20.2. O recorrente não tem razão – a regra disposta no art.º 414.º do CPC serve para decidir de direito nas situações em que não se provaram determinados factos constitutivos, modificativos ou impeditivos do efeito pretendido com um certo pedido.

Na situação dos autos foram demonstrados os factos necessários – e suficientes – para a aplicação do regime do art.º 282.º do CC, não sendo necessário, ao julgador, socorrer-se da aplicação do art.º 414.º do CPC.

A ser aplicado o regime do art.º 414.º sê-lo-ia a alguns dos factos não provados, que podiam inverter a demonstração feita pela A.

Estamos a pensar nos factos não provados:

j. O acompanhamento levado a cabo pelo 1º Réu, esposa e filha, em momento algum foi enganador ou manipulador, teve apenas por base uma atitude totalmente altruísta e desinteressada;

k. Postura que, aliás, sobretudo o 1º Réu, desenvolveu nas últimas décadas ainda com terceiros, utentes ou não utentes da Autora;

l. O 1º Réu foi surpreendido com a “mudança de vontade” da testadora, no referido ano de 2015, mais concretamente apenas soube disso, no próprio dia da outorga do testamento, pois que até esse momento, sempre agiu sabedor e consciente de que a beneficiário do testamento daquela, era a Associação Autora.

Mas também aqui não se identifica qualquer violação dessa norma, mas tão só a sua aplicação.

Estes factos seriam favoráveis à tese do R e não sendo provados, o direito é de aplicar em situação desfavorável a quem tinha o ónus de demonstrar os correspondentes factos.

Improcedem, assim, as questões suscitadas na revista.

III. Decisão

Pelas razões apontadas, é negada a revista e confirmado o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 12 de Outubro de 2023


Relatora: Fátima Gomes (relatora)

1º adjunto: Dr Lino Ribeiro

2º adjunto: Dr Ferreira Lopes