Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
314/22.9PDPRT.P1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
REINCIDÊNCIA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I- Aquilo que distingue o crime de tráfico de estupefacientes previsto no art. 21.º, do DL n.º 15/93 do previsto no art. 25.º (tráfico de menor gravidade), reside apenas na menor ilicitude da conduta punida neste último dispositivo. Constituem, entre outros, fatores relevantes dessa menor ilicitude, i)os meios utilizados na venda do estupefaciente ii) a modalidade e circunstância em que a conduta é realizada, iii)a qualidade e quantidade do produto vendido, entre outros fatores que, atento o caso concreto, possam diminuir a ilicitude da conduta realizada. Assim, tem-se considerado que será a partir de uma análise global dos factos que se procederá à atribuição de um significado unitário quanto à ilicitude do comportamento, avaliando-o segundo aqueles critérios como o lucro obtido, o facto de a atividade constituir ou não modo de vida, a utilização do produto da venda para a aquisição de produto para consumo próprio, a duração e intensidade da atividade desenvolvida, o número de consumidores/clientes contactados e o “posicionamento do agente na cadeia de distribuição clandestina”.

II- O artigo 21.º, do DL 15/95 em aplicação assume «cariz matricial» em relação ao crime do artigo 25.º, sendo certo que só quando se provem as contingências deste último artigo se deve afastar a conduta da previsão do artigo 21.º, n.º 1. A lei enumerou diversos índices, de forma não taxativa, lançando mão dos chamados «exemplos padrão», atinentes à própria acção típica e ao seu objecto. O corpo do preceito refere-se à qualidade das plantas, substâncias ou preparações cujos efeitos dependem do tipo de drogas, da dose ingerida, da via de administração, dos antecedentes do consumo, da disposição de espírito daquele que se droga e de outros factores. Os «meios utilizados» hão-de revelar a organização e a logística do agente do crime no objectivo de se determinar se se está perante um grande ou pequeno traficante. Com a « modalidade ou circunstâncias da acção», tem-se em vista avaliar o grau de perigosidade revelado em termos da difusão da substância não sendo necessária a verificação cumulativa das circunstâncias enunciadas no preceito, o que significa que outras circunstâncias podem ser atendidas de forma a concluir que estamos perante tráfico de gravidade diminuída.

III- Pretende-se que o julgador possa distinguir os casos de tráfico importante e significativo, do tráfico menor, mas que apesar de tudo não pode, nem deve, ser «aligeirado», existindo alguns casos cuja gravidade não se apresenta como significativa, sem que, porém, se possa concluir existir uma considerável diminuição da ilicitude. Será aquilo que o Supremo Tribunal integrou no que designou como “zona cinzenta”, em que “o juiz fica na dúvida sobre a real dimensão do tráfico em causa e, nesses casos, deverá, tendencialmente, aplicar uma pena cuja medida concreta é coincidente com a moldura penal abstracta do crime de tráfico comum e na do crime de tráfico menor gravidade, a qual, conforme se pode verificar pelos artigos 21.º e 25.º, se situa entre os 4 e os cinco anos de prisão. Em tais casos de «zona cinzenta», o legislador apontou para que se aplicasse o crime regra – o do art.º 21.º - mas permitiu que a sua moldura mais baixa convergisse com a penalidade própria do art.º 25.º

IV- Para efeitos de reincidência, o cômputo do prazo de 5 anos mencionado no arº 75º, nº2 do CP tem de ser efectuado tendo em conta o desconto do tempo de prisão sofrido.

V- Considerando a qualificação pelo artº 21º do DL 15/93 com a agravação por reincidência a medida da pena – quantum- nunca poderia ser inferior a um mínimo moldural de 5 anos e 4 meses de prisão, ficará arredada a possibilidade de suspensão da execução prevista no artº. 50º do Código Penal.

VI- A pena de 6 anos de prisão é proporcional e adequada, considerando que a arguida já cumprira duas penas de prisão de 6 anos (uma) e (outra) de 6 anos e 6 meses também por tráfico de estupefacientes, tendo mesmo beneficiado de liberdade condicional, mas posteriormente revogada, que o seu percurso de vida revela um nível de inserção familiar conturbado, (com vários familiares próximos a terem cumprido penas de prisão), revelando distanciamento relativamente à factualidade provada e, não obstante a sua confissão (detida em flagrante), encarar os seus antecedentes criminais adoptando uma postura de desculpabilização e de vitimização justificada por dificuldades económicas, apresentando ainda um discurso autocentrado nos custos pessoais e familiares e na precaridade económica sendo o prognóstico de recuperação social muito reservado, nada indicando, com razoabilidade que uma pena inferior pudesse servir de advertência eficaz para o seu repetente comportamento anómico.”

Decisão Texto Integral:

Recurso 314/22.9PDPRT.P1.S1- 5ª Secção Criminal.


Relator: Agostinho Torres


Adjuntos: António Latas e Orlando Gonçalves


Tribunal recorrido: Colectivo do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Central Criminal do... - J... ..;


Recorrente (s): arguida AA


Sumário: Tráfico de estupefacientes- qualificação do crime (artº 21º ou artº 25º do DL 15/93?); reincidência (aplicabilidade); medida da pena e sua desproporcionalidade.


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ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 5ª SECÇÃO CRIMINAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I-RELATÓRIO


1.1 - Por acórdão de 18.04.2023 do Tribunal Colectivo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Central Criminal do ... - .... .. no PCC n.º 314/22.9PDPRT foi decidido, entre o mais:


“Condenar AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, agravado pela reincidência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 75º, 76º do CP e art.º 21.º, n.º 1 do Dec. Lei n.º 15/93, de 22.01, na pena de 6 anos de prisão.”


1.2 – Inconformada, a arguida recorreu directamente para este Supremo tribunal esgrimindo a sua discordância apontando a seguinte argumentação conclusiva:


(dada a prolixidade e falta de síntese das conclusões originais, transcrevemos somente as que mais relevam para a boa compreensão do recurso tendo ficada, assim, alterada a numeração inicial )


“(…)

1. Entende a Recorrente, que a identificada decisão padece de vícios que versam Matéria de Direito:


Erro de qualificação jurídica e Medida da Pena.


Uma vez que, o crime perpetrado pela aqui arguida se insere no art. 25º do mesmo diploma legal.

2. O Supremo Tribunal de Justiça, concluiu no Acórdão de 23-11-2011, que a integração dos factos no crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, deverá respeitar os seguintes critérios (transcrição) (que indica por transcrição) (…):

3. Em todo o caso, a imagem global da ilicitude do comportamento do recorrente terá de resultar da interligação das várias circunstâncias relevantes e no seu significado unitário em termos de ilicitude.”

4. No caso sub judice a conforme explicitado pela arguida AA em sede de audiência de discussão e julgamento os estupefacientes que detinha ao momento da sua detenção visavam um único e isolado transporte a um indivíduo de ..., que lhe prometera dobrar o valor investido. Com o referido produto do transporte, a Recorrente visava exclusivamente saldar uma dívida que possuía para com outro individuo da mesma etnia, que a ameaçava a si e aos seus familiares mais próximos no caso de não pagamento atempado. Ou seja, agiu num puro acto de desespero e forte receio. O produto foi apreendido e precisamente por isso não foi escoado;

5. A arguida não vendeu, nem pretendia vender a ninguém o produto que foi encontrado.

6. Relativamente à quantidade que foi apreendida no momento da sua detenção, (111 embalagens individuais de heroína, com o peso liquido total de 10,107 gramas com grau de pureza de 25,1% e correspondente a 25 doses diárias; vários pedaços de cocaína (éster metílico), com o peso liquido total de 44,50 gramas, com um grau de pureza de 31,7% e correspondente a 470 doses diárias) esta afirma que o produto estupefaciente, na prática, pertencia ao outro individuo da ..., que lhe havia convencido realizar o transporte com vista a ter possibilidade de saldar a sua divida. Tal situação pessoal da Recorrente era do conhecimento do agente supramencionado;

7. O período de duração da actividade é, na verdade, inexistente, pois conforme já explicitado em causa estava unicamente um único transporte e não qualquer intenção de venda. De todo o modo sempre se dirá, que nos presentes autos não há investigação por parte do Ministério Público. O que deu origem à condenação em causa foi a apreensão mencionada;

8. Não ocorreram operações de cultivo nem de corte. A embalagem do produto era pouco sofisticada, da forma que lhe chegou à posse, assim entregaria;

9. Não existe qualquer meio de transporte in casu, somente o amplamente escalpelizado na douta Decisão;

10. Os proventos que iria obter seriam unicamente a liquidação da sua dívida para com o indivíduo referido, não tendo qualquer intenção de lucrar com a citada actividade.

11. A actividade em causa foi exercida em área geográfica restrita, cingindo-se ao bairro social …, visto que a arguida nunca saiu da referida zona, tendo sido imediatamente interceptada e por isso não chegou a ser distribuído;

12. Não se verifica o preenchimento de nenhuma das alíneas do disposto no art. 24.º do DL 15/93.

13. Destarte, a construção e a estrutura dos crimes de tráfico de estupefacientes, como crimes de perigo, e com a descrição típica alargada, pressupõe, porém, a graduação em patamares distintos dos diferentes padrões de ilicitude. Pelo que, o legislador julgou pertinente definir uma escala dos crimes de tráfico, respondendo às diferentes realidades, atendendo ao agente em si e às condutas por si adoptadas, designadamente: 1 - a delimitação pensada para o grande tráfico (artigos 21º e 22º do Decreto-Lei nº. 15/93); 2 - para os pequenos e médios traficantes (artigo 25º);


3 - para os traficantes-consumidores (artigo 26º).

14. Não existe qualquer investigação que esteja na base dos presentes autos. Na verdade, com o devido respeito, foi a aqui Recorrente condenada pelos seus antecedentes criminais e por ter sido interceptada com o produto estupefaciente e com a quantia monetária de 6.420,00€ (seis mil quatrocentos e vinte euros) e o Tribunal a quo por convicção entendeu que a aqui arguida cometeu o crime de tráfico de estupefacientes agravado pela reincidência, não podemos concordar com tal entendimento, que na nossa perspectiva, peca por excesso. a ser a Recorrente condenada por tráfico de estupefacientes, tendo em conta as circunstâncias do caso e os elementos que efectivamente o Tribunal dispõe, estamos perante um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade nos termos do art. 25º do DL 15/93.

15. Com efeito, segundo a versão da arguida, esta estava amedrontada e acatou realizar esta actividade ilícita por estar sob coação e com vista à liquidação da dívida que não conseguia saldar, baseando-se num só acto isolado, numa zona restrita e utilizando meios arcaicos e rudimentares

16. Sem mais delongas, pugnamos que a imagem global e todas as circunstâncias do caso, que se prendem com um modus operandi simples, arcaico e rudimentar da arguida, caracterizado pelo mero transporte de quantidades diminutas, pela sua intervenção de forma não organizada e a actuação numa área geográfica restrita, bem como o facto de o produto não ter sido escoado, não poderão conduzir senão à punição pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artº. 25º do DL15/93 de 22 de janeiro.


Da não aplicação do instituto da reincidência

17. O conceito de reincidência está ligado à ideia de recaída, de algo que se repete. E esta recaída será sempre a recaída num crime. O erro que o agente volta a cometer é, a prática de um novo crime depois de já se ter cometido outro anteriormente. E daqui, retiramos dois elementos essenciais associados ao conceito de reincidência, designadamente: um sujeito único, ou seja, o agente, aquele que comete os crimes; e uma pluralidade de delitos.

18. A estes vectores acresce um terceiro, que se afigura fundamental à definição de reincidência e que consiste na necessidade de uma decisão judicial condenatória pela prática do primeiro crime.

19. É precisamente este último elemento que permite distinguir a figura da reincidência dos demais casos de repetição de delitos e que vem justificara agravação da moldura penal pela prática dos crimes posteriores. no caso sub judice os requisitos objectivos da aplicação da reincidência não se encontram verificados, uma vez que a ora Recorrente foi condenada no âmbito do Processo Comum Colectivo nº 62/09.5..., no Tribunal Judicial de …, por acórdão proferido em 18-05-2012 e transitado em julgado em11-02-2013, pela prática em 06-2010 de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, tendo cumprido pena de prisão efectiva.

20. Com efeito, o último crime foi praticado em 2010, transitado em 2013 e o actual foi cometido em 04 de Agosto de 2022, mais de 10 anos após a práctica do último, o que significa que objectivamente, se encontra afastada a reincidência.

21. No nosso modesto entendimento, o conceito de reincidência não tem aplicação no caso vertente pois também não se verifica o seu requisito subjectivo: isto é, tendo em conta as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.

22. De facto, com a introdução deste requisito, tornou-se evidente que não basta a prática pelo agente de um crime doloso punível com pena de prisão superior a 6 meses, antes de terem decorrido 5 anos da prática de um outro crime doloso também ele punido com pena de prisão efectiva superior a 6 meses e cuja condenação tenha transitado em julgado.

23. Não é suficiente a reunião desse conjunto de requisitos para que de uma forma imediata o agente seja declarado reincidente sem mais. Na verdade, o legislador exige a verificação de um requisito relativo à personalidade do arguido, através do qual seja possível provar que a condenação ou condenações anteriores não lhe serviram de suficiente advertência contra o crime.

24. Mas como é que se faz prova de que o agente não se sentiu devidamente intimidado pela condenação anterior, sendo por isso merecedor de uma condenação penal mais grave nesse novo processo? Paro o efeito, exige-se uma averiguação das circunstâncias do caso, de onde se possa concluir que de facto o agente assume uma postura contrária ao direito.

25. Assim, afigura-se fundamental avaliar as circunstâncias do caso, tais como por exemplo, a motivação para a prática dos factos e a personalidade da arguida de modo a concluir que entre os crimes anteriores e o crime actual, no qual se pondera a sua punição como reincidente, existe uma conexão, nomeadamente a nível de motivos e forma de execução, relevantes no que diz respeito à censura e à culpa, que permita constatar, com segurança, que a reiteração radica na personalidade da arguida, onde se enraizou um hábito de praticar crimes, e a quem a anterior condenação em prisão efectiva não serviu de suficiente advertência contra o crime.

26. In casu, não se nega a existência de crimes reiterados, mas tal não implica a conclusão automática de que àquela que repete o mesmo crime deve ser aplicada a moldura da reincidência.

27. Como referimos nas palavras de Figueiredo Dias, podemos estar perante causas de degradação económica, falta de apoio familiar, dificuldade em encontrar emprego, a experiência criminógena da prisão ou outras que impeçam o agente de retomar uma vida conforme ao direito sem que isso implique considerações desfavoráveis sobre a sua personalidade.

28. Posto isto, no caso em apreço, com o devido respeito – que é muito – discordamos da aplicação do conceito da reincidência, pois não se verificam o requisitos subjectivos e objectivos, que têm por base a aplicação da mesma.

29. Em termos práticos, o não se verifica o requisito objectivo, pois já decorreram mais de cinco anos entre a prática do penúltimo crime relativamente ao último.

30. Mais releva que, não existe qualquer investigação nos presentes autos, há uma única apreensão de dinheiro e de produto estupefaciente, que não chegou a ser escoado por ter sido a arguida interceptada nesse momento.

31. Sinceramente consideramos que, estas circunstâncias que se verificaram na vida da Recorrente não permitem concluir que esta é reincidente, pelo contrário, houve uma série de razões emocionais que levaram a que a arguida cometesse o crime em questão, circunstâncias essas, a nosso ver, susceptíveis de afastar a conexão.

32. Em suma, in casu, não poderá ser aplicado o instituto da reincidência por não se encontrar verificado o requisito objectivo nos termos do art. 75º nº 2 do Código Penal, nem os requisitos subjectivos, atendendo às circunstâncias.


DA MEDIDA DA PENA

33. Aqui chegados, importa antes de mais, reforçar que, com o devido respeito – que é muito – consideramos que a pena aplicada se afigura excessiva.

34. Importa atentar na questão atinente à dosimetria da pena de prisão aplicada à Recorrente, que considera que o Tribunal a quo além da injustiça e injustificável severidade, não levou em conta as suas condições pessoais, nos termos do art. 71° nº 2 do Código Penal. Ademais a decisão que ora se recorre não fez correcta aplicação dos artigos 40º nº 1 e 2 e 70º do Código Penal.

35. A este propósito, com o devido respeito – que é muito – entendemos que o Tribunal a quo, considerou todas as circunstâncias que depõem contra a arguida, mas por outro lado, não teve em consideração todas as circunstâncias que depõem a favor da mesma.

36. Assim, apesar de ter reconhecido que a arguida confessou, no essencial, os factos, não valorou devidamente: o relatório social, elemento fundamental para se aferir em como a arguida é merecedora de uma oportunidade, o facto de beneficiar de apoio familiar, de ter hábitos de trabalho, de possuir enquadramento habitacional, o facto de se mostrar arrependida.

37. Vejamos, possui enquadramento habitacional, social, familiar e laboral.

38. Fez uma confissão de parte dos factos da acusação, cooperando para a descoberta da justiça e da verdade material.

39. Demonstrou um arrependimento sincero.

40. A família da arguida e mesmo a própria, são bem vistos por toda a vizinhança e conhecidos pela postura de seriedade e responsabilidade sendo pessoas de bem.

41. No Estabelecimento Prisional onde se encontra assume um comportamento incriticável e exemplar.

42. Tem visitas por parte dos filhos, irmãos e netos. Estabelece contactos telefónicos diários com a família.

43. Uma vez colocada em liberdade, vai residir juntamente com os seus filhos e netos.

44. Explicou o motivo pelo qual se dedicou à práctica dos factos, devendo ser ponderado pelo Tribunal, tal como prevê o art. 71º 2 al. c) do Código Penal. Na verdade, a aqui Recorrente contraiu uma dívida para poder investir em material para vender nas feiras, ficou numa situação delicada financeiramente que ameaçava a sua sobrevivência e a da sua família, a um individuo de ... que proferiu diversas ameaças a si e aos seus familiares com vista a pressionar para o pagamento. Amedrontada com a possibilidade de concretização das ameaças, e com vista a proteger a sua integridade física e a da sua família, acatou a sugestão de outro individuo no sentido de ir buscar o produto estupefaciente que lhe foi apreendido e lhe entregar, amealhando com esse acto isolado a quantia suficiente para liquidar a dívida em causa. Na sua ótica, não passaria de um pequeno transporte que duraria uns escassos minutos, sem ter de realizar qualquer venda.

45. É necessário ter em consideração que somente foi dado como provado na decisão de que se recorre (vd. Quesitos 2, 3, 4, 5, 6 e 7 dos factos dados como provados do douto Acórdão) que a aqui Recorrente, foi intercetada à saída do Bairro... e submetida a revista, tendo sido apreendidos os estupefacientes constantes nos autos. Daqui se retira que não existe qualquer prova no sentido de que a arguida fizesse do tráfico modo de vida ou que tenha existido diversas transações. Na realidade, os autos são unicamente compostos por o auto de notícia da revista à mesma.

46. Não existiram proventos com a actividade e a arguida encontrava-se inserida.

47. O julgador deve ter sempre em mente o vertido no já referido art. 40º nº 1 do Código Penal, que determina que o verdadeiro objectivo das penas é a reintegração do agente em sociedade. Com efeito, a pena de prisão só deve ser aplicada como último recurso, devendo o Tribunal dar preferência a penas não privativas da liberdade.

48. Diga-se ainda que se o legislador com a reforma dada ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, no que diz respeito à condenação dos arguidos, teve a intenção de esgotar primeiro todas as hipóteses de aplicação de penas de prisão antes da aplicação da prisão efetiva aos condenados, esta intenção foi seguramente redobrada com a reforma dada pela Lei nº 94/2017, de 23/08.

49. Para o efeito, a pena de prisão suspensa, ainda que sujeita a certas obrigações, é a reacção penal por excelência susceptível de exprimir um juízo de desvalor ético-social e que propicia ao condenado, a sua reintegração na sociedade, que é um dos vectores dos fins das penas, que se prende finalidades de prevenção especial positiva.

50. A aplicação da pena suspensa in casu, é uma possibilidade, se for a mesma reduzida em 1 ano (atendendo à condenação da arguida com uma pena de prisão de 6 anos), hipótese essa reforçada, quer com a condenação pelo art. 21º DL 15/93 de 22 de janeiro (porque a moldura penal assim o permite), quer com possibilidade de condenação pelo crime de tráfico de menor gravidade como se pretende e como já foi referido supra.

51. A solução passa por afastar a Recorrente do apanágio e da influência negativa da comunidade prisional julgada pelos mesmos crimes e sujeitá-la a uma pena suspensa, ainda que sujeita a regime de prova.

52. Neste sentido, é certo que o pressuposto formal de aplicação do instituto da suspensão da execução da pena é que a pena seja de prisão em medida não superior 5 (cinco) anos, ao abrigo do art. 50º do Código Penal, pressuposto que se preenche caso seja reduzida a pena em 1 ano.

53. Verificando-se o pressuposto formal, há que averiguar se o pressuposto material se encontra preenchido, ou seja, que o Tribunal, no momento da prolação da decisão, que não o da prática dos factos, tendo em conta a personalidade do agente e as circunstâncias do crime, conclua que a simples censura dos factos e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

54. A este propósito, pelas circunstâncias já mencionadas supra, consideramos que as exigências materiais também se encontram preenchidas, sendo por isso possível formular um juízo de prognose favorável à arguida sobre o seu comportamento futuro.

55. Face ao exposto, consideramos que, a condenação do caso sub judice para além de se apresentar contrária aos princípios e aos fundamentos legais e constitucionais expostos, constituiu uma opressão desnecessária do direito à liberdade da arguida, pelo que se apresenta manifestamente injustificada, severa, excessiva e injusta.

56. Atendendo a todos os elementos suprarreferidos, estamos em crer que a arguida AA, a ser condenada pelo crime de tráfico de menor gravidade, nos termos do art. 25º do dl 15/93 de 22 de janeiro, em pena de prisão suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova, garantiria, de forma cabal, o cumprimento das necessidades de prevenção geral e especial do caso concreto.”


1.3 - Em resposta disse o MºPº, em apertada síntese:


1 – A douta sentença ora em recurso captou com rigor a prova produzida na audiência de julgamento e operou uma correcta subsunção jurídica e aplicação do direito.


2- Perante a factualidade dada como provada, em face da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, a conduta da recorrente integra a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., pelo art.º 21, n.º 1 do Dec. Lei n.º 15/93 de 22/01 e não da prática do crime previsto no art.º 25 do Dec. Lei n.º 15/93 de 22/01.


3- Verificados que estão todos os pressupostos, a arguida/recorrente foi condenada, como reincidente;


4 - Em face dos elementos relevantes para a determinação da medida concreta da pena apresenta-se adequada e justa a pena de 6 anos de prisão, uma vez que, não excedendo a medida da culpa, satisfaz plenamente as exigências preventivas, gerais e especiais.


5 - Não foram violados os art.º 21, n.º 1 e 25 do Dec. Lei n.º 15/93 de 22/01, nem os arts.º 40 e 71, n.º 1 e 2, 75º e 76º do C. Penal.


Nestes termos e nos demais de direito negando-se provimento ao recurso


1.4 - Admitido o recurso e remetido a este Supremo Tribunal de Justiça, o MºPº emitiu parecer no sentido da sua total improcedência.


Nomeadamente, argumentando:


“(…) o grau de ilicitude da conduta da recorrente situa-se num patamar superior ao exigido pelo tipo privilegiado do art. 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e que, por conseguinte, a sua primeira pretensão carece de fundamento.


A questão da reincidência


No caso em apreço, contrariamente ao sustentado, de forma desatenta, pela recorrente, é inequívoca a verificação dos pressupostos formais do instituto.


Com efeito, o crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que empresta objeto aos autos foi cometido em 4 de agosto de 2022 e foi punido, sem a consideração da reincidência, com a pena de 5 anos e 6 meses de prisão (pág. 14 do acórdão).


(…)


Antes disso a arguida havia sido condenada no processo 62/09.5..., por acórdão transitado em 11 de fevereiro de 2013, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão pela prática, durante os anos de 2010 e 2011, de um outro crime de tráfico de estupefacientes, esse na forma agravada, p. e p. pelos arts. 21.º, n.º 1, e 24.º, al. b), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.


É verdade que entre os dois crimes interpuseram-se cerca de 11 anos.


Todavia, a arguida esteve preventivamente presa e em cumprimento de pena, de forma ininterrupta, entre 6 de julho de 2011 e 8 de outubro de 2019 (factos provados 36, 38, 39 e 40).


Ora, descontando este período de tempo com a duração de 8 anos e 2 meses e 4 dias, facilmente se verifica que entre a prática dos dois referidos crimes de tráfico não decorreram mais de 5 anos.


Desta forma, considerando ainda, em primeiro lugar, que a arguida regista uma outra condenação, proferida no processo 268/04.3..., de 6 anos de prisão, integralmente cumpridos, igualmente pela prática, em 14 de outubro de 2004, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e a sua atitude introspetiva negativa, com a adoção de uma postura de «desculpabilização» e de «vitimização justificada por dificuldades económicas» (facto provado 25), e, em segundo lugar, que não ficaram provadas quaisquer «razões emocionais que levaram a que (…) cometesse o crime», também neste particular o acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal do... não é merecedor de censura.


A questão da medida da pena


In casu, o tribunal coletivo teve em consideração (sic):


«(…)


• O dolo manifestado, consubstanciado sempre na forma mais intensa da vontade dolo directo;


• Os antecedentes criminais da arguida, a revelarem serem muito elevadas as necessidades de prevenção especial;


As fortes exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir, pelo alarme social que o crime em apreço gera e sua danosidade social;


• O forte grau de ilicitude dos factos, atenta a quantidade e qualidade de estupefaciente em causa, as circunstâncias em que os factos ocorreram e os meios utilizados.


• O relevante grau de culpa da arguida;


• As apuradas condições socioeconómicas e familiares da arguida e o seu percurso de vida;


• A idade da arguida, na data dos factos uma adulta;


• O comportamento em audiência da arguida que confessou, no essencial, os factos. (…)».


Com respeito às circunstâncias que a recorrente invoca em seu abono, o arrependimento sincero e atuação condicionada pela necessidade de pagar uma dívida a um terceiro que a vinha intimidando não ficaram provadas. O denominado «enquadramento habitacional», o apoio familiar [pouco auspicioso, diga-se, face ao envolvimento de diversos membros da família «com o sistema de justiça penal» (cf. facto provado 30)] e os hábitos de trabalho como feirante, já foram devidamente sopesados no acórdão e têm de ser relativizados pois nunca travaram a sua trajetória criminosa. Da mesma forma, o «adequado» e «globalmente ajustado» comportamento prisional da arguida (assim está adjetivado nos factos provado 26 e 31) pouca impacto têm nas exigências de prevenção especial face aos antecedentes criminais, à sua já mencionada «postura de desculpabilização e de vitimização». Por fim, a confissão dos factos «no essencial» (facto provado 13), também já tida em consideração, diante do facto de a arguida ter sido surpreendida em flagrante delito, é praticamente irrelevante em termos atenuativos.


Neste quadro, é incontestável que a pena de 6 anos de prisão, numa moldura penal cujos limites mínimo e máximo, por força do disposto no art. 76.º, n.º 1, do Código Penal, são de 5 anos e 4 meses e de 12 anos de prisão, respetivamente, ajusta-se aos critérios emergentes dos arts. 40.º e 71.º do Código Penal, respeita o limite inultrapassável da culpa e responde equilibradamente às exigências de prevenção que se verificam em concreto, de modo algum se podendo considerar exagerada ou desproporcionada.


Confirmando-se a pena, fica prejudicada a possibilidade de suspender a sua execução por falhar o pressuposto formal, previsto no art. 50.º, n.º 1, do Código Penal”


A defesa não apresentou resposta ao parecer.


1.5- Após exame preliminar e vistos legais foram remetidos os autos à Conferência, cumprindo agora explicitar a deliberação efectuada.


II- CONHECENDO


2.1- Sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art.º 410º, n.º2 do CPP o âmbito do recurso delimita-se pelas questões sumariadas em face das conclusões extraídas da respectiva motivação, visando permitir e habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância da decisão recorrido. Este entendimento tem sido a posição pacífica da jurisprudência (1).


O recurso é admissível nos termos do artº 432º nº1 alínea c) do CPP.


2.2-Está em discussão para apreciação e em síntese (no limite dos contornos das conclusões enunciadas):


-Erro na qualificação jurídica


A matéria provada é subsumível na qualificação por crime de tráfico de estupefacientes punível nos termos do art.º 21º ou, antes, de menor gravidade, nos termos do art.º 25º do DL15/93?


Da reincidência.


Não se verificam os requisitos subjectivos e objectivos que têm por base a aplicação da mesma?


DA MEDIDA DA PENA


A pena aplicada é excessiva e o Tribunal a quo não levou em conta as condições pessoais da arguida, não valorando devidamente, na perspectiva da recorrente, o relatório social, para se aferir se a arguida merece uma oportunidade pelo facto de beneficiar de apoio familiar, ter hábitos de trabalho, possuir enquadramento habitacional e de se mostrar arrependida?


A aplicação da pena por tráfico ( artº 21º) ou mesmo por tráfico de menor gravidade (artº 25º) deveria beneficiar de redução e suspensão na sua execução sendo possível formular um juízo de prognose favorável à arguida sobre o seu comportamento futuro, mediante sujeição a regime de prova, garantindo assim, de forma cabal, o cumprimento das necessidades de prevenção geral e especial do caso concreto?


2.3- A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL


2.3.1- Para a correcta compreensão do contexto, vejamos em primeiro lugar a narrativa da fundamentação a quo:


Fundamentação.


Factos Provados:


Instruída e discutida a causa resultaram apurados os seguintes factos, com interesse e relevância para a decisão da causa:


1. No dia 4 de Agosto de 2022, a arguida, residente no concelho de ..., deslocou-se, por meio não concretamente apurado, a esta cidade do ..., com o propósito de adquirir produto estupefaciente para depois, vender a um terceiro na área da sua residência.


2. Assim, animada desse propósito, a arguida dirigiu-se ao Bairro ..., na cidade do ....


3. Após adquirir o estupefaciente a indivíduo não identificado, a arguida accionou o serviço da Táxis I......, tendo sido recolhida, juntamente com duas netas menores de idade, na Rua... com destino à paragem de transportes públicos da empresa R... ....., sita na Rua ..., onde tomaria o autocarro que a transportaria à cidade de ....


4. Sucede que, na Rua ..., pelas 16h45, nesta cidade do ..., na sequência de uma operação de fiscalização levada a cabo pela Polícia de Segurança Pública, foi dada àquele veículo de aluguer, com a matrícula AL-..-EF, ordem de paragem.


5. Seguidamente, e porque aquele local é conotado com o tráfico de estupefacientes, foi a arguida questionada acerca da sua presença naquele lugar, ao que a mesma respondeu ter-se deslocado ao Bairro ... com o intuito de visitar uma prima e que se dirigia para ... para casa de uma filha.


6. Contudo, uma vez que a arguida não conseguiu justificar cabalmente a sua presença naquele local, por ordem da PSP, a arguida saiu do interior daquele veículo automóvel.


7. Entretanto, sujeita a revista, foi detectado no interior da bolsa que transportava a tiracolo, uma outra bolsa em plástico transparente e uma outra em pele de cor branco, as quais continham no seu interior a quantia global de 6.420,00 (seis mil quatrocentos e vinte euros), composta por: - 8 (oito) notas com o valor facial de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o valor de €40,00 (quarenta euros); - 142 (cento e quarenta e duas) notas com o valor facial de € 10,00 (dez euros), perfazendo o valor de €1.420,00 (mil quatrocentos e vinte euros); - 193 (cento e noventa e três) notas, com o valor facial de €20,00 (vinte euros), perfazendo o valor de € 3.860,00 (três mil oitocentos e sessenta euros); - 22 (vinte e duas) notas, com o valor facial de € 50,00 (cinquenta euros), perfazendo o valor de € 1.100,00 (mil e cem euros).


8. No bolso interno da bolsa que a arguida transportava foi, ainda, encontrado um canto plástico, o qual continha no seu interior: - 111 (cento e onze) embalagens individuais de heroína, com o peso líquido total de 10,107 gramas, com um grau de pureza de 25,1% e correspondente a 25 doses diárias; - vários pedaços de Cocaína (éster metílico), com o peso líquido total de 44,50 gramas, com um grau de pureza de 31,7% e correspondente a 470 doses diárias.


9. A arguida comprou o estupefaciente pelo valor de €1.000,00, sendo que o ia vender ao terceiro referido em 1) pelo dobro do preço da aquisição.


10. A quantia monetária acima referida, transportada pela arguida, era resultado do comércio de estupefacientes (compra/venda) e encontrava-se dividida em 11 (onze) grupos de notas, da seguinte forma; -1 (um) grupo composto da quantia de €130,00 (cento e trinta euros); - 1 (um) grupo composto da quantia de €450,00 (quatrocentos e cinquenta euros); - 1 (um) grupo composto da quantia de €890,00 (oitocentos e noventa euros); - 1 (um) grupo composto da quantia de €1.450,00 (mil quatrocentos e cinquenta euros); - 7 (sete) grupos compostos da quantia de €500,00 (quinhentos euros).


11. A arguida conhecia bem as características, natureza e efeitos dos produtos estupefacientes que detinha, os quais se destinavam à venda a terceiro, sempre com a intenção de obter proveitos económicos.


12. A arguida agiu de forma livre, deliberada, consciente e premeditada, bem sabendo que a posse, detenção, venda ou cedência a terceiros dos referidos produtos estupefacientes eram contrárias à Lei e, por essa razão, proibidas e punidas criminalmente.


13. A arguida confessou os factos no essencial.


14. Na data dos factos o arguido tinha 57 anos de idade.


15. O processo de desenvolvimento de AA decorreu no seio de uma família numerosa, cuja dinâmica familiar foi orientada por valores culturais próprios do grupo de .... Ao nível do ensino, veio a concluir o 1º ciclo em meio prisional aquando do cumprimento de uma pena de prisão.


16. Desde muito nova, AA exercia a actividade de feirante na venda de artigos de vestuário, actividade que vinha mantendo com a ajuda de familiares e até à data da sua reclusão.


17. Viúva desde os 26 anos de idade, ficou com cinco filhos menores a seu cargo, sobrevivendo com várias dificuldades económicas, recorrendo, em situações de maior carência, a instituições de apoio social.


18. O seu percurso de vida revela-se ao nível de inserção familiar conturbado, relevando-se o facto de vários familiares próximos terem cumprido penas de prisão. De igual modo, a arguida já cumpriu pena de prisão, pela mesma tipologia de crime, tendo beneficiado de liberdade condicional, posteriormente revogada.


19. Há cerca de dois anos, AA integrou uma habitação social, cedida pela Câmara Municipal de ..., pela qual não paga qualquer tipo de renda. Na referida habitação coabitavam com a arguida dois filhos maiores de idade, BB e CC, e os respectivos filhos destes no total de sete netos da arguida. Este agregado familiar mantém-se a viver nesta habitação mesmo após a detenção de AA.


20. A dinâmica familiar foi descrita pela filha da arguida como afectivamente positiva, funcional e de entreajuda, ainda que, por vezes, afectada pelos problemas decorrentes do quotidiano, por se tratar de família numerosa, mas de fácil e rápida resolução, constituindo a arguida, antes da sua detenção, um forte elemento de suporte nas diversas tarefas domésticas, bem como no apoio aos menores.


21. A situação económica do agregado familiar era considerada como equilibrada, subsistindo os seus elementos da atribuição do rendimento social de inserção, bem como do abono familiar das crianças a par dos proventos resultantes da venda de artigos em feiras e do subsídio relativo ao curso de formação que a filha da arguida, BB, frequenta, valores que esta não soube especificar, mas que se aproxima dos 1000€/mensais.


22. A habitação está inserida num bairro na cidade de ... sem conotação com problemáticas sociais e/ou criminais. É composta apenas por R/C e integra três quartos, uma casa de banho, sala/cozinha e um pátio nas traseiras, com boas condições de habitabilidade e conforto.


23. No meio residencial, é conhecida a situação de reclusão de AA e os factos que estiveram na sua origem, o que provocou alguma censura social, verbalizando os locais algum desconforto e insegurança.


24. AA encontra-se presa preventivamente desde 05.08.2022 à ordem dos presentes autos, não sendo a sua primeira reclusão.


25. A arguida apresenta uma postura de distanciamento relativamente à factualidade descrita nos presentes autos. Quanto aos seus antecedentes criminais, assume-os, adoptando uma postura de desculpabilização e de vitimização justificada por dificuldades económicas.


26. Em meio prisional, tem mantido comportamento adequado. Está inscrita na terapia ocupacional, uma vez que tem dificuldades de visão (cataratas). É acompanhada pelos serviços clínicos na consulta de psicologia.


27. O presente processo causou surpresa no seio familiar de AA, porquanto verbalizaram desconhecer a prática dos factos que deram origem à instauração do mesmo. Contudo, estão dispostos a prestar-lhe todo o apoio necessário ao seu processo de ressocialização.


28. AA protagonizou um processo de desenvolvimento de acordo com as normas e valores culturais da sua etnia de pertença.


29. Relativamente à natureza dos factos pelos quais está acusada, em abstracto, verbaliza reconhecer a tipologia do crime em causa, porém, apresentando um discurso autocentrado nos custos pessoais e familiares, na precaridade económica e no afastamento dos familiares próximos.


30. Paralelamente, ainda que dispondo de um enquadramento familiar de origem solidário, o próprio enferma das mesmas fragilidades, como envolvimento de diversos dos seus membros com o sistema de justiça penal.


31. Em contexto prisional, tem adoptado um comportamento globalmente ajustado, evidenciando problemas de saúde a nível da visão e mantendo acompanhamento regular em psicologia.


32. Em caso de condenação, as necessidades de intervenção no processo de reinserção social da arguida situam-se essencialmente ao nível da interiorização da censurabilidade jurídico-penal da conduta criminal e do desenvolvimento de competências que potenciem a sua integração social de forma sustentada e regular.


33. Por acórdão proferido no dia 12/03/2007, transitado em julgado no dia 27/03/2007, no âmbito do Processo n.º 268/04.3..., que correu termos no Tribunal Judicial …, a arguida foi condenada na pena de 6 (seis) anos de prisão efectiva, pela prática, em 14/10/2004, do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/01.


34. Por acórdão proferido no dia 18/05/2012, transitado em julgado no dia 11/02/2013, no âmbito do Processo n.º 62/09.5..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de … paços, a arguida foi condenada na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva, pela prática, durante os anos de 2010 e 2011, do crime de tráfico de estupefacientes, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 21º, n.º 2 e 24º, al. b) do DL n.º 15/93, de 22/01.


35. Entre o dia 25/10/2005 e 17/12/2008 a arguida esteve presa e em cumprimento de pena à ordem do processo n.º 268/04.3...


36. Entre o dia 06/07/2011 e 12/12/2013 a arguida esteve presa em prisão preventiva e em cumprimento de pena à ordem do processo n.º 62/09.5...


37. Por decisão transitada em julgado a 03.10.2013 foi revogada a liberdade condicional concedida à arguida e determinada a execução da pena de prisão ainda não cumprida no processo nº. 268/04.3...


38. Entre o dia de 12/12/2013 a 16/10/2016 a arguida esteve em cumprimento da pena remanescente, resultante da revogação da liberdade condicional, no âmbito do processo 268/04.3...


39. Entre o dia 16/10/2016 e 8/10/2019 a arguida esteve em cumprimento de pena de prisão à ordem do processo n.º 62/09.5..., tendo esta pena, após concessão de liberdade condicional, sido extinta em 07/11/2020.


40. A arguida AA esteve ininterruptamente presa preventivamente e em cumprimento de pena entre os dias 06 de Julho de 2011 a 08 de Outubro de 2019.


41. Apesar das condenações sofridas e após ter estado presa em cumprimento de penas de prisão, como resulta da factualidade supra exposta, a arguida voltou a incorrer na prática de novo crime da mesma natureza dos anteriores crimes elencados, pelos quais foi condenada e esteve em reclusão, não tendo as condenações anteriores e o tempo de prisão sofrido servido de advertência e de dissuasão suficiente para a afastar da prática de novos ilícitos criminais, antes tendo aquela optado por continuar a praticar actos ilícitos, demonstrando indiferença patente perante o sistema de justiça e uma manifesta propensão para a prática de crimes cujo bem jurídico primariamente protegido é o da saúde pública.


(…)


Motivação.


O decidido fundamenta-se na análise crítica e comparativa da globalidade da prova, a saber e de forma resumida:


A arguida confessou, no essencial, os factos.


Referiu que foi ao Bairro... onde comprou por 1000 euros o estupefaciente que lhe foi apreendido.


Tal estupefaciente tinha como destinatário apenas uma pessoa em ... a quem o ia vender pelo dobro do preço da aquisição.


Referiu que fez um empréstimo a uma pessoa de ..., cujo pagamento só se vencia no final do mês, mas já estava a ser ameaçada por aquele, motivo pelo qual, com receio, foi comprar estupefaciente para daí conseguir pagar o dito empréstimo.


O dinheiro apreendido era precisamente o dinheiro que lhe havia sido emprestado há 3 ou 4 dias e era para ir comprar fatos de treino e fazenda, para vender nas feiras.


Quando foi interceptada pela policia disse que tinha ido à ... ver uma prima e depois ia a ... ver uma filha.


Mais disse renovar as declarações que prestou em sede de interrogatório judicial, e que se mostram praticamente idênticas às prestadas em sede de audiência de julgamento. Resumindo, a arguida confessou os factos integradores de responsabilidade criminal, apenas não reconhecendo que o dinheiro que tinha na sua posse era proveniente do comércio do tráfico.


Conjuntamente com as declarações da arguida, valorou-se:


- O auto de notícia por detenção de fls. 2 a), relativamente aos seus dados objectivos;


- O auto de apreensão de fls. 5; - Os testes rápidos de fls. 6 e 7;


- O termo de entrega de menores de fls. 11; O relatório de exame pericial de fls. 58;


- A certidão de fls. 159 a 236 e a informação de fls. 245;


- O certificado de registo criminal com a referência ......95 e relatório social com a referência ......68.


Tendo a arguida confessado os factos integradores de responsabilidade criminal importa motivar a factualidade provada no que concerne ao dinheiro que foi apreendido à arguida.


A arguida insistiu que agiu sob coacção do indivíduo que lhe havia emprestado dinheiro e que a ameaçava, a si e seus familiares, para que lho entregasse, pelo que com medo que lhe matassem os familiares foi comprar estupefaciente para assim obter mais rapidamente o dinheiro.


Não colhe, neste segmento, a versão dos factos apresentada pela arguida, não só porque a mesma se revela inconsistente, como contraditória nos seus próprios termos (ainda não era devido o pagamento (cujo vencimento era só no final do mês) e já estava a ser ameaçada// o dinheiro foi emprestado 3 ou 4 dias antes dos factos em apreço e destinava-se a comprar fatos de treino e fazenda, para, posteriormente, vender nas feiras); acresce que se revela contrário às regras da experiência comum e juízos de normalidade que alguém sem ligações seguras ao tráfico de estupefacientes se dirija ao Bairro ... com € 7.420,00 em dinheiro vivo e aí compre estupefaciente no valor de €1.000,00, mantendo na sua posse € 6.420,00.


A arguida, nas circunstâncias em que foi àquele Bairro e aí comprou estupefaciente, revela desenvoltura e à vontade na sua forma de actuação; como referiu, ia ter um lucro de 100% com a venda de estupefaciente, sendo que não podia desconhecer que tal produto estupefaciente ia, de novo, ser revendido.


Acresce a forma como o dinheiro apreendido se encontrava repartido. Não tendo a arguida dado qualquer justificação minimamente crível para se encontrar na posse de tal quantia monetária e conjugando o que vai dito com as regras da experiência comum e juízos de normalidade, somos a concluir seguramente que tal dinheiro transportado pela arguida era resultado do comércio de estupefacientes (compra/venda).


Assim, analisada a prova na sua globalidade, tendo presente as declarações confessórias da arguida e a prova documental/pericial junta aos autos, sempre em conjugação com as regras da experiência comum e os juízos de normalidade, dúvidas não subsistiram quanto à veracidade dos factos levados à matéria de facto provada.


(…)”


2.3.2- As questões em análise


A) Da qualificação do crime: artº 21º ou art 25º do DL 15/93?


O tribunal a quo decidiu qualificar os factos provados como crime de tráfico p.p. nos termos do artº 21º do DL15/93.


Para tanto, exarou a seguinte fundamentação de direito, além das considerações genéricas sobre a tipologia e natureza do crime:


“ No presente caso, da matéria de facto resulta uma provada actividade de tráfico de estupefacientes (compra, detenção, transporte e venda), com recurso à aquisição e transporte de uma só vez de quantidades elevadas de estupefaciente (470 doses de cocaína), para posterior venda a terceiro pelo dobro do preço da aquisição, com vista, ainda, à posterior revenda, por este, a consumidores na Cidade de..., pelo que temos por preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de tráfico de estupefaciente p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do Dec. Lei n.º 15/93, de 22.01.


***


Recordemos também, segundo se lê da matéria de facto provada que ao caso agora mais interessa:


“(…)sujeita a revista, foi detectado no interior da bolsa que transportava a tiracolo, uma outra bolsa em plástico transparente e uma outra em pele de cor branco, as quais continham no seu interior a quantia global de 6.420,00 (seis mil quatrocentos e vinte euros), composta por: - 8 (oito) notas com o valor facial de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o valor de €40,00 (quarenta euros); - 142 (cento e quarenta e duas) notas com o valor facial de € 10,00 (dez euros), perfazendo o valor de €1.420,00 (mil quatrocentos e vinte euros); - 193 (cento e noventa e três) notas, com o valor facial de €20,00 (vinte euros), perfazendo o valor de € 3.860,00 (três mil oitocentos e sessenta euros); - 22 (vinte e duas) notas, com o valor facial de € 50,00 (cinquenta euros), perfazendo o valor de € 1.100,00 (mil e cem euros).


8. No bolso interno da bolsa que a arguida transportava foi, ainda, encontrado um canto plástico, o qual continha no seu interior: - 111 (cento e onze) embalagens individuais de heroína, com o peso líquido total de 10,107 gramas, com um grau de pureza de 25,1% e correspondente a 25 doses diárias; - vários pedaços de Cocaína (éster metílico), com o peso líquido total de 44,50 gramas, com um grau de pureza de 31,7% e correspondente a 470 doses diárias.


9. A arguida comprou o estupefaciente pelo valor de €1.000,00, sendo que o ia vender ao terceiro referido em 1) pelo dobro do preço da aquisição.


10. A quantia monetária acima referida, transportada pela arguida, era resultado do comércio de estupefacientes (compra/venda) e encontrava-se dividida em 11 (onze) grupos de notas, da seguinte forma; -1 (um) grupo composto da quantia de €130,00 (cento e trinta euros); - 1 (um) grupo composto da quantia de €450,00 (quatrocentos e cinquenta euros); - 1 (um) grupo composto da quantia de €890,00 (oitocentos e noventa euros); - 1 (um) grupo composto da quantia de €1.450,00 (mil quatrocentos e cinquenta euros); - 7 (sete) grupos compostos da quantia de €500,00 (quinhentos euros).


Com base nesta factualidade o tribunal a quo considerou, assim, tratar-se de um crime previsto no mencionado artº 21º. Não fez qualquer referência ou abordagem à possibilidade de outra qualificação, v.g ao abrigo do artº 25º do DL 15/93 como agora pretende a recorrente.


Na motivação, foi claramente explicada a razão pela qual a versão da arguida não teve acolhimento e que agora repristina no presente recurso mas trata-se de matéria de facto subtraída à valoração e conhecimento por parte deste Supremo Tribunal pois que este conhece apenas de matéria de direito sem prejuízo do disposto no nº2 e 3 do artº 410º do CPP, situações estas que ao caso agora não importa conhecer por não se verificarem.


Como dissemos, a recorrente entende que deveria ter sido punida pelo crime previsto no art. 25.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93 — norma esta que pune os casos de tráfico de menor gravidade quando a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída.


Socorrendo-nos, entre outros, sobretudo da clara exposição sobre a caracterização deste tipo de ilícito na sua dimensão e moldura, já feita no Proc. n.º 2/20.0GABJA.S1 (Relatora Helena Moniz) constante do Ac de 25 de Maio de 2023, diremos também e concordantemente:


“(…) O crime de tráfico de estupefacientes, nos termos do art. 21.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 15/93, integra como conduta típica uma série muito diferenciada de ações — cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, colocar à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver produtos estupefacientes. Tendo em conta a abrangência das condutas típicas, partindo de uma análise do crime quanto à conduta, e tendo em conta a dicotomia desta classificação, entre crime de mera atividade e crime de resultado, isto é, entre os casos em que a conduta é logo punida independentemente da verificação (ou não) de um resultado, e os casos em que só é punida a conduta que produza um resultado espácio-temporalmente distinto da ação, podemos concluir que haverá casos em que se pode entender que existe um resultado distinto da simples conduta — como no ato de cultivar a planta, em que da conduta, cultivar, surge um resultado, a planta, distinto quer no tempo, quer no espaço, daquela — e outros em que o tipo pune a conduta independentemente da verificação do resultado e, por isto, se tem entendido que se trata de um crime de mera atividade.


Quanto ao bem jurídico, tem sido este classificado como um crime de perigo abstrato, considerando-se que daquelas atividades descritas no tipo decorre já um perigo de lesão do bem jurídico da “saúde pública”; protege também diversos bens jurídicos pessoais, como a integridade física e a vida dos consumidores, embora o bem jurídico primariamente protegido seja o da saúde pública. Ou, mais precisamente, “o escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia. Assim, o tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes; e, demais, afecta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos2; ou nas palavras de Lourenço Martins3o bem jurídico primordialmente protegido pelas previsões do tráfico é o da saúde e integridade física dos cidadãos vivendo em sociedade, mais sinteticamente a saúde pública. (…) Em segundo lugar, estará em causa a protecção da economia do Estado, que pode ser completamente desvirtuada nas suas regras (…) com a existência desta economia paralela ou subterrânea erigida pelos traficantes”.


Aquilo que distingue o crime de tráfico de estupefacientes previsto no art. 21.º, do DL n.º 15/93 do crime previsto no art. 25.º, do mesmo diploma, reside apenas na menor ilicitude da conduta punida neste último dispositivo. Segundo a lei, constituem, entre outros, fatores relevantes dessa menor ilicitude, os meios utilizados na venda do estupefaciente, a modalidade e circunstância em que a conduta é realizada, a qualidade e quantidade do produto vendido, entre outros fatores que, atento o caso concreto, possam diminuir a ilicitude da conduta realizada.


Sem curar de analisar a problemática inerente a um tipo que deixa em aberto a caracterização da ilicitude da conduta como diminuta, teremos de recorrer à jurisprudência para que, com alguma constância, possamos determinar o que integra a menor ilicitude num comportamento de tráfico de estupefacientes.


Assim, tem-se considerado que será a partir de uma análise global dos factos que se procederá à atribuição de um significado unitário quanto à ilicitude do comportamento4, avaliando não só a quantidade como a qualidade do produto vendido, o lucro obtido, o facto de a atividade constituir ou não modo de vida, a utilização do produto da venda para a aquisição de produto para consumo próprio, a duração e intensidade da atividade desenvolvida, o número de consumidores/clientes contactados e o “posicionamento do agente na cadeia de distribuição clandestina”5.


Numa tentativa de estabelecer critérios para o que se possa designar de tráfico de menor gravidade, em acórdão de 20116 foi então considerado que integram esta categoria aqueles casos em que cumulativamente se verifiquem as seguintes circunstâncias:


a) A actividade de tráfico é exercida por contacto directo do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet);


b) Há que atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto;


c) O período de duração da actividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado;


d) As operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas.


e) Os meios de transporte empregues na dita actividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos;


f) Os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes;


g) A actividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita;


h) Ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.º 24.º do DL 15/93.”


Veja-se entre outros, também os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2011, (Processo 127/09.3PEFUN.S1, in www.dgsi.pt), e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/10/2007, (Processo 07P3317, in www.dgsi.pt)


O artigo 21.º, do diploma em aplicação assume assim, «cariz matricial» em relação ao crime do artigo 25.º, sendo certo que só quando se provem as contingências deste último artigo, se deve afastar a conduta da previsão do artigo 21.º, n.º 1.


Como refere Carlos Rodrigues de Almeida (in “Legislação penal sobre drogas: Problemas de aplicação”, R.M.P., ano 11, n.º 44), “o tráfico de drogas, enquanto problema que aflige a sociedade actual, é uma actividade organizada e prolongada no tempo, que se desenrola através de uma multiplicidade de actos quotidianos que visam fomentar o fornecimento lucrativo de substâncias estupefacientes a terceiros para seu consumo pessoal”. É com esta actividade organizada que a sociedade se deve preocupar, é dela que provém o perigo de disseminação do consumo, de destruição de valores e culturas, de degradação humana.


De notar que a incriminação do tráfico de estupefacientes pretende proteger diversos bens jurídicos, mas que em última análise serão englobados num mais abrangente – a saúde pública em geral, ou dito de outra forma, «a saúde física e mental da população» enquanto «valor socialmente difuso».


Pretende-se evitar a degradação e a destruição de seres humanos que o consumo de estupefacientes provoca e que o tráfico, sem sombra de dúvida, potencia.


A doutrina e a jurisprudência são unânimes no sentido de estarmos perante um crime de perigo abstracto e presumido.


“A omnicompreensividade descritiva do tipo expresso no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 (à semelhança de legislações como a alemã, a italiana, a espanhola) mostra bem até que ponto se recuou na antecipação da tutela penal, relativamente às consequências lesivas que se pretendem evitar (cfr. Eduardo Lobo, in Droga, Decisões de Tribunais de Primeira Instância, Comentário ao Acórdão de 28/05/93 do Tribunal de Círculo da Anadia, Proc. n.º 750, pág. 192).”


Pode qualificar-se como um crime de perigo, sendo que o legislador não exigiu, para a respectiva consumação, a efectiva lesão dos bens jurídicos tutelado.


Nele se protege protege ainda uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal.


Finalmente é um crime de perigo abstracto, porque não pressupõe nem dano nem perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo para um desses bens jurídicos.


De notar que este crime não exige qualquer intenção lucrativa, mas é necessário que se prove o dolo genérico: com conhecimento por parte do agente, do facto ilícito que realiza (eis o elemento cognoscitivo ou intelectual) relacionado com a vontade de realizar esse facto (elemento volitivo).


Concluímos assim que «os casos» de tráfico são os dos artigos 21.º e 22.º; o artigo 25.º só intervém se vier a verificar-se que a ilicitude do facto está consideravelmente diminuída, tendo em conta os critérios ou factores quer de ordem qualitativa (meios utilizados, a modalidade ou circunstâncias da acção) quer de ordem quantitativa (as razões de distinção entre as duas alíneas do artigo 25.º).


A lei enumerou diversos índices, de forma não taxativa, lançando mão dos chamados «exemplos padrão», atinentes à própria acção típica e ao seu objecto.


O corpo do preceito refere-se à qualidade das plantas, substâncias ou preparações. Os seus efeitos dependem do tipo de drogas, da dose ingerida, da via de administração, dos antecedentes do consumo, da disposição de espírito daquele que se droga, do ambiente daquele que se droga, e de outros factores.


Quanto aos «meios utilizados» hão-de revelar a organização e a logística do agente do crime, no objectivo de se determinar se se está perante um grande ou pequeno traficante.


No que concerne «à modalidade ou circunstâncias da acção», tem-se em vista avaliar o grau de perigosidade revelado em termos da difusão da substância.


Como refere Lourenço Martins (in Droga e Direito, Aequitas, Ed.Noticias, 94, p.153), não é necessária a verificação cumulativa das circunstâncias enunciadas neste preceito, o que significa que outras circunstâncias podem ser atendidas de forma a concluir que estamos perante tráfico de gravidade diminuída.


De qualquer modo, com este preceito pretende-se que o julgador possa distinguir os casos de tráfico importante e significativo, do tráfico menor, mas que apesar de tudo não pode, nem deve, ser «aligeirado».


Dito isto.


Considerado pois que será a partir de uma análise global dos factos que se tomará uma decisão e procederá à atribuição de um significado unitário quanto à ilicitude 7, avaliando não só a quantidade como a qualidade do produto vendido, o lucro obtido, o facto de a atividade constituir ou não modo de vida, a utilização do produto da venda para a aquisição de produto para consumo próprio, a duração e intensidade da atividade desenvolvida, o número de consumidores/clientes contactados e o “posicionamento do agente na cadeia de distribuição clandestina.


A arguida não funcionou em contacto directo com consumidores tudo apontando para actuar como abastecedora e intermediária.


As quantidades apreendidas e vendidas antes não eram compatíveis com um contacto apenas directo adequadas ao consumo individual dos consumidores nem sugerem compatibilidade com pequenas vendas num período de tempo razoavelmente curto;


A quantidade e dinheiro apreendidos não apontam para período de duração da actividade até a um período tal que não se possa considerar a agente como mera “abastecedora”, a quem os consumidores recorressem sistematicamente em certa área há mais de um ano, ou num território bem delimitado sendo este extenso no caso da arguida ( ...- ...)


Os proventos obtidos nas circunstâncias da apreensão, ultrapassavam os necessários para a subsistência própria ou de familiares dependentes, não se revelando dos autos um nível de vida necessariamente modesto ou semelhante ao das outras pessoas do meio social ou cultural onde vivesse a arguida e mostrando que no caso (veja-se a quantidade de euros apreendida) eram mais do que necessários à utilização por exemplo, no consumo próprio de produtos estupefacientes;


A actividade em causa não estava ser exercida em área geográfica restrita;


As substâncias estupefacientes tinham elevado poder aditivo e as posses da arguida quando detida revelavam proventos bem acima dos normalmente detectados em habituais traficantes num quadro de menor gravidade.


Pelo exposto, a qualificação operada a quo foi a correcta, não se extraindo da matéria de facto factor algum caracterizador de ilicitude consideravelmente diminuidora.


Estaremos perante um comportamento a integrar no tipo fundamental de crime de tráfico de estupefacientes, previsto no art. 21.º do DL n.º 15/93, quando estamos perante um vendedor com uma atividade de média ou grande escala provocadora de uma danosidade social média ou elevada, sem que, no entanto, se atinja o grau de ilicitude agravada pressuposto no art. 24.º referido.


É certo que poderemos considerar que existem alguns casos cuja gravidade não se apresenta como significativa, sem que, porém, se possa concluir existir uma considerável diminuição da ilicitude. Será aquilo que este Supremo Tribunal8 integrou no que designou como “zona cinzenta”, em que “o juiz fica na dúvida sobre a real dimensão do tráfico em causa e, nesses casos, deverá, tendencialmente, aplicar uma pena cuja medida concreta é coincidente na moldura penal abstracta do crime de tráfico comum e na do crime de tráfico menor gravidade, a qual, conforme se pode verificar pelos artigos 21.º e 25.º, se situa entre os 4 e os cinco anos de prisão. (...) Naqueles casos a que chamámos de «zona cinzenta», o legislador apontou para que se aplicasse o crime regra – o do art.º 21.º - mas permitiu que a sua moldura mais baixa convergisse com a penalidade própria do art.º 25.º.


Note-se que o legislador não se contentou com uma simples diminuição da ilicitude para enquadrar o crime de tráfico de menor gravidade, pois obrigou a que fosse “consideravelmente diminuída”. Do mesmo modo, não aceitou que o tráfico que é realizado pelo agente com a finalidade de obter droga para o seu consumo seja sempre integrado no crime privilegiado do traficante-consumidor, pois que essa finalidade tem de ser “exclusiva”. Em ambos os casos, o legislador deu um sinal claro ao intérprete de que os crimes privilegiados são a excepção e nunca a regra” 9.


A transformação do negócio ilícito em modo de vida, enquanto modo de conseguir “os proveitos necessários à própria vida em comunidade”10 constitui uma intensa lesão do bem jurídico protegido pelo tipo que não permite atenuar a ilicitude do comportamento e muito menos atenuar “consideravelmente” aquela ilicitude. Ainda que não possamos concluir estarmos perante uma cadeia de tráfico altamente organizada, não se trata de uma atividade menor ou incipiente que nos permitisse integrar a conduta no disposto no art. 25.º, do Decreto-Lei n.º 15/93.


É certo que as circunstâncias desenvolvidas pela jurisprudência constituem meros parâmetros para orientar uma decisão. Porém, não é pelo facto de todas estarem preenchidas ou apenas algumas que automaticamente somos conduzidos para o entendimento de que estamos perante um trafico de menor gravidade.


E, derradeiramente, dado o exposto anteriormente, podemos assim concluir com segurança que o caso da arguida se integra na previsão do artº 21º e não do artº 25º do DL 15/93.


Improcede pois o recurso neste primeiro segmento.


B) Da verificação da reincidência


A arguida foi condenada como reincidente.


Foi fundamental a factualidade provada a tal subjacente.


Os factos da condenação ocorreram a 4.8.22.


O acórdão a quo consignou na fundamentação, neste segmento:


“(…)


33. Por acórdão proferido no dia 12/03/2007, transitado em julgado no dia 27/03/2007, no âmbito do Processo n.º 268/04.3..., que correu termos no Tribunal Judicial …, a arguida foi condenada na pena de 6 (seis) anos de prisão efectiva, pela prática, em 14/10/2004, do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/01.


34. Por acórdão proferido no dia 18/05/2012, transitado em julgado no dia 11/02/2013, no âmbito do Processo n.º 62/09.5..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, a arguida foi condenada na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva, pela prática, durante os anos de 2010 e 2011, do crime de tráfico de estupefacientes, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 21º, n.º 2 e 24º, al. b) do DL n.º 15/93, de 22/01.


35. Entre o dia 25/10/2005 e 17/12/2008 a arguida esteve presa e em cumprimento de pena à ordem do processo n.º 268/04.3...


36. Entre o dia 06/07/2011 e 12/12/2013 a arguida esteve presa em prisão preventiva e em cumprimento de pena à ordem do processo n.º 62/09.5...


37. Por decisão transitada em julgado a 03.10.2013 foi revogada a liberdade condicional concedida à arguida e determinada a execução da pena de prisão ainda não cumprida no processo nº. 268/04.3...


38. Entre o dia de 12/12/2013 a 16/10/2016 a arguida esteve em cumprimento da pena remanescente, resultante da revogação da liberdade condicional, no âmbito do processo 268/04.3...


39. Entre o dia 16/10/2016 e 8/10/2019 a arguida esteve em cumprimento de pena de prisão à ordem do processo n.º 62/09.5..., tendo esta pena, após concessão de liberdade condicional, sido extinta em 07/11/2020.


40. A arguida AA esteve ininterruptamente presa preventivamente e em cumprimento de pena entre os dias 06 de Julho de 2011 a 08 de Outubro de 2019.


41. Apesar das condenações sofridas e após ter estado presa em cumprimento de penas de prisão, como resulta da factualidade supra exposta, a arguida voltou a incorrer na prática de novo crime da mesma natureza dos anteriores crimes elencados, pelos quais foi condenada e esteve em reclusão, não tendo as condenações anteriores e o tempo de prisão sofrido servido de advertência e de dissuasão suficiente para a afastar da prática de novos ilícitos criminais, antes tendo aquela optado por continuar a praticar actos ilícitos, demonstrando indiferença patente perante o sistema de justiça e uma manifesta propensão para a prática de crimes cujo bem jurídico primariamente protegido é o da saúde pública.”


E, em matéria de direito:


““(…)


Estabelece o art. 75º do C.P., no seu n.º 1, que “é punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso o agente for de censurar por a condenação ou condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.”


Nos termos do art. 76º, n.º 1 do C.P., “em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado. A agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.”


A reincidência é uma circunstância modificativa comum que altera a medida abstracta da pena agravando-a. Como pressupostos da reincidência temos, assim:


A) Pressupostos formais:


- Só opera entre crimes dolosos


- Punidos com prisão efectiva superior a seis meses


- A condenação pelo crime anterior tem que ter transitado quando o novo crime é cometido;


- Entre a sua prática e o novo crime tenham decorrido menos de cinco anos (não se contando o tempo durante o qual o arguido tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas de liberdade);


- Que a pena tenha sido total ou parcialmente cumprida; B) Pressupostos materiais:


- Que a condenação ou condenações anteriores não tenham servido ao agente de suficiente advertência contra o crime.


O preenchimento do pressuposto material tem de assentar em factos concretos, tornando-se necessário, além da verificação dos respectivos


pressupostos formais, que haja factualidade demonstrativa de que a arguida não sentiu as anteriores condenações como suficiente advertência para não delinquir (trata-se fundamentalmente de prevenção especial), exigindo-se ainda que, atentas as circunstâncias do caso, ocorra uma íntima conexão entre os crimes reiterados, adequadamente relevante em termos de censura e de culpa.


Face ao que se vem dizendo e tendo em conta a matéria de facto provada em 33) a 41), bem como o facto de a arguida apresentar uma postura de distanciamento relativamente à factualidade descrita nos presentes autos, não obstante a sua confissão, assumir os seus antecedentes criminais adoptando uma postura de desculpabilização e de vitimização justificada por dificuldades económicas, como voltou a fazer nos presentes autos, apresentando um discurso autocentrado nos custos pessoais e familiares e na precaridade económica, temos que se verificam os pressupostos formais e materiais da reincidência, tanto quanto é patente não terem servido as condenações anteriores, em penas longas de prisão pelo mesmo tipo de ilícito, de advertência suficiente à arguida contra a prática de crimes.


Nessa medida a pena mínima de prisão ora aplicável ao crime em apreço passa, por força do mencionado art. 76º do C.P. a situar-se em 5 anos e 4 meses, mantendo-se inalterável o respectivo limite máximo, não podendo a agravação exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.


Tudo ponderado, entende-se por justo e equilibrado condenar o arguido, com a agravante da reincidência, a pena de 6 anos de prisão.”


Ora, vistos os factos à exaustão e as normas do CP aplicáveis já citadas, as condenações sofridas e tendo em conta que “(…)Entre o dia 16/10/2016 e 8/10/2019 a arguida esteve em cumprimento de pena de prisão à ordem do processo n.º 62/09.5..., tendo esta pena, após concessão de liberdade condicional, sido extinta em 07/11/2020; que esteve ininterruptamente presa preventivamente e em cumprimento de pena entre os dias 06 de Julho de 2011 a 08 de Outubro de 2019 (…)”, torna-se claríssimo que a agravante da reincidência tinha de ser aplicada pois todos os pressupostos materiais e formais se revelaram incontornavelmente preenchidos.


Surpreende, sem dúvida, apesar de tamanha clareza, o argumento da sua não verificação ter sido convocado pela defesa, mas sem suporte algum, como se viu, quer de facto quer de direito.


Na verdade, alegou a arguida que “(…) no caso sub judice os requisitos objectivos da aplicação da reincidência não se encontram verificados, uma vez que a ora Recorrente foi condenada no âmbito do Processo Comum Colectivo nº 62/09.5..., no Tribunal Judicial de …, por acórdão proferido em 18-05-2012 e transitado em julgado em11-02-2013,pela prática em 06-2010deum crime de tráfico de estupefacientes agravado, tendo cumprido pena de prisão efectiva. Com efeito, o último crime foi praticado em 2010, transitado em 2013 e o actual foi cometido em 04 de Agosto de 2022, mais de 10 anos após a práctica do último, o que significa que objectivamente, se encontra afastada a reincidência.”


Porém, a defesa esquece que o cômputo do prazo de 5 anos tem de ser efectuado tendo em conta o desconto do tempo de prisão sofrido, nele relevando, como se viu, as condenações anteriores nos termos do artº 75º nº2 do Código penal.


Também a defesa aludiu a que “o conceito de reincidência não tem aplicação no caso vertente pois também não se verifica o seu requisito subjectivo: isto é, tendo em conta as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. (…)”


O facto provado em 41 desmente esta afirmação pois nele se consigna assertivamente aquele requisito subjectivo da falta de dissuasão das anteriores condenações.


Também por aqui o recurso improcede.


C ) A medida da pena- quantum e suspensão da execução


Estabelecido que a pena, na moldura aplicável nunca poderia ser inferior a 5 anos e 4 meses de prisão, fica arredada a possibilidade de redução a 5 anos e sequer com suspensão na execução, tendo em conta a não redutibilidade e o limite ( 5 anos) no artº. 50º do Código Penal.


Resta a questão da medida da pena concreta ser ou não excessiva e desproporcional.


A pena aplicada foi-o muito próximo do limite mínimo (apenas 8 meses mais)


Na perspectiva da arguida “(…) o tribunal não levou em conta as suas condições pessoais, nos termos do art. 71° nº 2 do Código Penal, não teve em consideração todas as circunstâncias que depõem a favor da mesma. Assim, apesar de ter reconhecido que a arguida confessou, no essencial, os factos, não valorou devidamente: o relatório social, elemento fundamental para se aferir em como a arguida é merecedora de uma oportunidade, o facto de beneficiar de apoio familiar, de ter hábitos de trabalho, de possuir enquadramento habitacional, o facto de se mostrar arrependida. Possui enquadramento habitacional, social, familiar e laboral. Fez uma confissão de parte dos factos da Acusação, cooperando para a descoberta da justiça e da verdade material. Demonstrou um arrependimento sincero. A família da arguida e mesmo a própria, são bem vistos por toda a vizinhança e conhecidos pela postura de seriedade e responsabilidade sendo pessoas de bem. No Estabelecimento Prisional onde se encontra assume um comportamento incriticável e exemplar. Tem visitas por parte dos filhos, irmãos e netos. Estabelece contactos telefónicos diários com a família.


Uma vez colocada em liberdade, vai residir juntamente com os seus filhos e netos.


Explicou o motivo pelo qual se dedicou à prática dos factos, devendo ser ponderado pelo Tribunal, tal como prevê o art. 71º 2 al. c) do Código Penal. Na verdade, a aqui Recorrente contraiu uma divida para poder investir em material para vender nas feiras, ficou numa situação delicada financeiramente que ameaçava a sua sobrevivência e a da sua família, a um individuo de ... que proferiu diversas ameaças a si e aos seus familiares com vista a pressionar para o pagamento. Amedrontada com a possibilidade de concretização das ameaças, e com vista a proteger a sua integridade física e a da sua família, acatou a sugestão de outro individuo no sentido de ir buscar o produto estupefaciente que lhe foi apreendido e lhe entregar, amealhando com esse acto isolado a quantia suficiente para liquidar a dívida em causa. Na sua ótica, não passaria de um pequeno transporte que duraria uns escassos minutos, sem ter de realizar qualquer venda. Na verdade, a aqui Recorrente, não pensou do nada, em dedicar-se a qualquer actividade de tráfico, a ideia não partiu de si, tudo aconteceu no seu devido enquadramento. Porém, ficamos com a plena convicção de que, se pudesse voltar atrás no tempo, não cometeria os mesmos factos, não se revê naquela actividade, não faz parte da sua personalidade e encara as consequências como nefastas a todos os níveis.A arguida encontra-se presa preventivamente, tendo-se já mentalizado que o crime não compensa e pretendendo unicamente uma nova oportunidade em liberdade. Ou seja, por sua ideia e vontade seria incapaz de fazer o que quer que seja que lhe levasse a cumprir mais tempo de reclusão. (…)”


Ora, a recorrente continua a insistir, neste último segmento, que agiu pelos motivos que se referiu supra. Porém, voltamos aqui a repeti-lo, essa factualidade não se provou minimamente.


Atentemos ainda a que o seu percurso de vida revela-se ao nível de inserção familiar conturbado, relevando-se o facto de vários familiares próximos terem cumprido penas de prisão. De igual modo, a arguida já cumpriu pena de prisão, pela mesma tipologia de crime, tendo beneficiado de liberdade condicional, posteriormente revogada.


A dinâmica familiar foi descrita pela filha da arguida como afectivamente positiva, funcional e de entreajuda, ainda que, por vezes, afectada pelos problemas decorrentes do quotidiano, por se tratar de família numerosa, mas de fácil e rápida resolução, constituindo a arguida, antes da sua detenção, um forte elemento de suporte nas diversas tarefas domésticas, bem como no apoio aos menores. A situação económica do agregado familiar era considerada como equilibrada, subsistindo os seus elementos da atribuição do rendimento social.


Revela distanciamento relativamente à factualidade descrita nos presentes autos, não obstante a sua confissão, assumir os seus antecedentes criminais adoptando uma postura de desculpabilização e de vitimização justificada por dificuldades económicas, como voltou a fazer nos presentes autos, apresentando um discurso autocentrado nos custos pessoais e familiares e na precaridade económica.


Tal como salientado pelo tribunal a quo, a arguida além de reincidente, o seu meio socio familiar não lhe oferece estabilização consensual e não foi a que existiria antes dos factos que a impediu de agir ilicitamente.


As condenações anteriores, em penas longas de prisão pelo mesmo tipo de ilícito, de modo algum foram dissuasoras.


Apesar da confissão parcial, a mesma decorre de situação em flagrante delito e por isso não apresenta relevo de maior. A arguida continua centrada num processo de vitimização e de desculpabilização, por isso sendo muito duvidoso que o propalado arrependimento seja sincero.


Na ponderação do equilíbrio entre a culpa (dolo directo) e o grau de ilicitude, as exigências de advertência e de censura e as necessidades elevadas de prevenção geral e muito elevadas de prevenção especial, é de concluir que a pena aplicada se, criticável fosse, sê-lo-ia por defeito e não por excesso. O prognóstico de recuperação social da arguida é muito reservado e nada indica com razoabilidade que uma pena inferior pudesse servir de advertência eficaz para o seu repetente comportamento anómico.


Na verdade, na fixação da pena o tribunal teve em conta os factores e circunstâncias disponíveis em face dos factos assentes e segundo os critérios dos artºs 70º e ss do CP:


“O dolo manifestado, consubstanciado sempre na forma mais intensa da vontade – dolo directo –; os antecedentes criminais da arguida, a revelarem serem muito elevadas as necessidades de prevenção especial; As fortes exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir, pelo alarme social que o crime em apreço gera e sua danosidade social; O forte grau de ilicitude dos factos, atenta a quantidade e qualidade de estupefaciente em causa, as circunstâncias em que os factos ocorreram e os meios utilizados; O relevante grau de culpa da arguida; As apuradas condições socioeconómicas e familiares da arguida e o seu percurso de vida; A idade da arguida, na data dos factos – uma adulta; O comportamento em audiência da arguida que confessou, no essencial, os factos; e o facto de a arguida apresentar uma postura de distanciamento e desculpabilização como anteriormente se mencionou.


Consequentemente, apresenta-se totalmente falha de razão a crítica de desconsideração de elementos do relatório social efectuada à decisão do tribunal a quo.


Pelo exposto, é de julgar o recurso totalmente improcedente, mantendo-se pois a decisão recorrida.


III- DECISÃO


3.1 - Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.


3.2 - Taxa de justiça em 6 UC a cargo da recorrente- tabela III do RCP

Lisboa, 11 de Outubro de 2023

Os Juízes Conselheiros

(texto elaborado em suporte informático , revisto e rubricado pelo relator – (artº 94º do CPP)

Agostinho Torres (Relator)


António Latas (1º adjunto)

Orlando Gonçalves (2º adjunto)

___________________________________________________

1. vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95↩︎

2. Ac. do TC n.º 426/91, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19910426.html↩︎

3. Droga e direito, Lisboa: Æquitas/Ed. Notícias, 1994, p. 122.↩︎

4. Neste sentido, ac. do STJ, proc. n.º 111/10.4PESTB.E1.S1, de 07.12.2011, relator: Cons. Rodrigues da Costa, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b0d5a0c6991279928025799e003c8c90?OpenDocument↩︎

5. Ac. do STJ, proc. n.º 17/09.0PJAMD.L1.S1, de 15.04.2010, relator: Cons. Maia Costa, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8a76d4064195af838025771c004b7568?OpenDocument↩︎

6. Cf. Acórdão do STJ, proc. n.º 127/09.3PEFUN.S1, de 23.11.2011, Relator: Cons. Santos Carvalho, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9961da644ecd915e8025795200362d57?OpenDocument.↩︎

7. Neste sentido, ac. do STJ, proc. n.º 111/10.4PESTB.E1.S1, de 07.12.2011, relator: Cons. Rodrigues da Costa, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b0d5a0c6991279928025799e003c8c90?OpenDocument↩︎

8. Cf. Acórdão do STJ de 23.11.2011, supra citado.↩︎

9. Cf. Acórdão do STJ de 23.11.2011, supra citado.↩︎

10. Faria Costa, art. 204/ § 46, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, vol. I, Coimbra: Gestlegal, 2022, p. 85; não estamos a querer dizer que modo de vida constitui uma qualificativa do crime de tráfico de estupefacientes, pois não constitui qualificativa segundo o tipo legal de crime, mas a considerar que constitui elemento que afasta a possibilidade de estamos perante uma ilicitude “consideravelmente diminuída”.↩︎