Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3239/20.9T8CBR-A.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
RESPONSABILIDADE CIVIL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
DIREITO À IMAGEM
JOGADOR DE FUTEBOL
DOMICÍLIO
CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
REQUISITOS
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. De acordo com a jurisprudência anterior do STJ: (i) São internacionalmente competentes para conhecer o mérito de uma acção de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, os tribunais do país onde se encontra o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados por essa ofensa; (ii) Os tribunais portugueses são, pois, internacionalmente competentes, nos termos do art. 62.º, b), do CPC, para decidirem uma acção em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua actividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem em videojogos produzidos nos ... e divulgados por todo o mundo.

II. Nos casos em que os danos se prolongam no tempo e o centro de interesses do lesado vai variando ao longo desse tempo, localizando-se em diferentes Estados, a acção em que se reclama o pagamento de uma indemnização por tais danos poderá ser intentada em qualquer uma das respectivas jurisdições, desde que se verifique um elo suficientemente forte entre a causa e o foro escolhido para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais.

III. No caso dos autos, constata-se que não é possível seguir-se o critério enunciado em I., uma vez que, entre os diferentes países em que o lesado desenvolveu a sua actividade profissional, não é possível identificar um que seja entre todos prevalecente e, portanto, não é possível identificar a existência de um centro de interesses predominante.

IV. Quanto à aplicação do critério enunciado em II., considera-se que, ao interpor a presente acção nos tribunais portugueses, optou o autor por uma das jurisdições nas quais os danos terão ocorrido (art. 62.º, al. b), do CPC), a qual configura, no contexto concreto da factualidade alegada, um elo suficientemente intenso entre a acção e o foro escolhido, que, por isso mesmo, merece acolhimento.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA, jogador de futebol profissional, de nacionalidade portuguesa e com residência indicada em Portugal, interpôs acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Electronic Arts Inc., sociedade com sede nos Estados Unidos da América (EUA), pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome nos jogos ..., produzidos e comercializados pela R. nos ..., ... e ..., jogos igualmente comercializados em Portugal por uma sua subsidiária, dessa actuação resultando os danos alegados, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe:

- A título de indemnização por danos patrimoniais a quantia de € 84.000,00 (oitenta e quatro mil euros), acrescida dos juros vencidos, no montante de € 23.988,16 (vinte e três mil, novecentos e oitenta e oito euros e dezasseis cêntimos), tudo no total de € 107.988,16 (cento e sete mil, novecentos e oitenta e oito euros e dezasseis cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal;

- Montante não inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 2.313,97 (dois mil, trezentos e treze euros e noventa e sete cêntimos), tudo no total de € 7. 313,97 (sete mil, trezentos e treze euros e noventa e sete cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal.

Peticionou ainda o pagamento das custas e procuradoria condigna, incluindo honorários do mandatário.

Contestou a R., invocando, no que ora importa, a incompetência internacional dos tribunais portugueses para apreciação da presente acção, por não se verificar qualquer dos factores de atribuição de competência internacional previstos nos arts. 62.º e 63.º do Código de Processo Civil, tendo em conta que o A. alega na p.i.: que reside e trabalha na ...; que a R. é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América, e se dedica à exploração, distribuição e venda de jogos nos ..., ... e ...; que a R. não vende, em Portugal, os jogos ... e ...; que não são alegados danos decorrentes de acto praticado pela R. que se produzam em Portugal.

Em resposta, veio o A. pronunciar-se pela competência dos tribunais portugueses para apreciar e decidir a presente acção, invocando a aplicabilidade do critério de competência territorial constante do art. 71.º, n.º 2, do CPC, para efeitos da alínea a) do art. 62.º do mesmo Código; mais alegando que os danos se verificaram também em território nacional por os referidos jogos serem aqui vendidos e divulgados, integrando-se a causa no disposto no art. 62.º, alínea b), do CPC.

Em 11 de Maio de 2021 foi proferida a seguinte decisão:

«Apreciando:

Estatui o art. 59.º do CPC, sob a epígrafe “competência internacional”: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.

Para a determinação da competência internacional, só se aplicam os critérios de conexão a que se refere o artigo 59º do Código de Processo Civil se não existirem tratados, convenções, regulamentos comunitários ou leis especiais ratificadas ou aprovadas, que vinculem internacionalmente os tribunais portugueses, porque estes prevalecem sobre os restantes critérios. In casu, não se perspectiva a aplicabilidade de qualquer instrumento internacional de regulação do foro aplicável.

A competência fixa-se no momento da propositura da acção e afere-se nos termos em que a acção é proposta e não à luz dos factos ou razões aduzidas pelo demandado: a determinação do tribunal internacionalmente competente está condicionada à natureza da relação jurídica configurada pelo autor, ou seja, da causa de pedir por este invocada e ao pedido formulado.

O pedido indemnizatório funda-se exclusivamente em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos: condenação por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, na quantia de € 84.000,00 (oitenta e quatro mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 23.988,16 (vinte e três mil, novecentos e oitenta e oito euros e dezasseis cêntimos) e bem assim, montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 2.313,97 (dois mil, trezentos e treze euros e noventa e sete cêntimos), tudo no total de € 7. 313,97 (sete mil, trezentos e treze euros e noventa e sete cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal.

Dispõe o art.º 96.º do CPC que a violação das regras sobre competência internacional determina a incompetência absoluta do tribunal, a qual, por força do efeito constante do art.º 99.º do CPC, determina a absolvição do réu da instância.

A incompetência resultará da impossibilidade de incluir a relação jurídica plurilocalizada na previsão de uma das normas do art. 62º do CPC: são critérios aferidores da competência internacional dos tribunais portugueses, o domicílio do réu, a exclusividade, a causalidade e a necessidade, critérios estes que são entre si autónomos e independentes entre si, bastando a ocorrência de apenas um deles para se poder aferir a competência dos tribunais portugueses.

São normas de competência internacional aquelas que atribuem a um conjunto de tribunais de um Estado o complexo de poderes para o exercício da função jurisdicional em situações transnacionais.

O artigo 62.º do CPC estabelece os factores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses, nomeadamente, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Quando foi praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

É relevante para a boa decisão da excepção a seguinte factualidade:

1.  Com a presente ação, o autor- de nacionalidade portuguesa- nascido a .../.../1987 no ..., de nacionalidade portuguesa, portador do passaporte Português n.º ..., emitido a 21 de Dezembro de 2018 e válido até 21 de Dezembro de 2023, contribuinte fiscal número ..., indicando como residência a ... ..., ..., ..., e a trabalhar como jogador profissional num clube estrangeiro ..., pretende obter uma compensação pecuniária no montante de € 115.302,14 (cento e quinze mil trezentos e dois euros e catorze cêntimos), por danos alegadamente decorrentes da utilização não autorizada da sua imagem na conhecida série de jogos eletrónicos ... (abreviadamente, jogos ...), produzidos e comercializados pela mesma.

2.     A ré é uma sociedade norte-americana, que se dedica à exploração, distribuição e venda de jogos eletrónicos, conteúdos e serviços online para consolas de jogos, telemóveis e computadores, exclusivamente nos ..., ... e ... – cfr. documento 1, extraído do website …, não procedendo à comercialização dos jogos na Europa

3.   A ré tem sede nos …, e através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, é uma empresa líder global em entretenimento digital interativo;

4.   A ré tem várias subsidiárias na Europa que assumem a responsabilidade pela venda de produtos a não residentes nos ..., ... e ..., destacando nesse desiderato a sociedade “E... SARL” com sede na ...;

5.   A ré defende-se, além do mais, referindo - no que diz respeito à utilização da imagem de jogadores de futebol nos jogos ...-, que celebrou um contrato de licença com a FIFPRO ( Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol), a única organização representativa a nível mundial para jogadores profissionais de futebol, da qual, desde 1985, faz parte o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol, que confere à ré o direito de utilização da imagem coletiva dos jogadores de futebol representados por essa entidade(Acordo de Afiliação outorgado em 2001 e renovado em 2008 e no qual se reforçam os direitos de representação da FIFPRO, que passam a ter caráter exclusivo)- cfr. art.º 38.º, n.º 4 do Contrato Coletivo de Trabalho.

6.     Invoca o autor a prática pela ré de facto ilícito consistente na utilização abusiva da sua imagem, em jogos eletrónicos ..., ... e o modo de jogo ..., mediante a venda, a nível mundial, do jogo.

7.  Os jogos propriedade da ré são comercializados e distribuídos mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal; qualquer consumidor pode adquirir tais jogos; a utilização e divulgação ocorre, obviamente, em qualquer lugar onde os jogos podem ser e são jogados; essa utilização e divulgação ocorre, obviamente, em qualquer lugar onde os jogos podem ser e são jogados, pelo que sendo os jogos da ré, melhor identificados nestes autos, comercializados e distribuídos em Portugal, a utilização ilícita da imagem, nome e características do autor, acontece (também) no nosso país.

Retomando as enunciações legais e doutrinais acertadamente apontadas pelas partes, diremos, em síntese, do exposto que a lei determina três factores para a atribuição da competência internacional:

a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;(princípio da coincidência)

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram;(princípio da causalidade)

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo, senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real. (princípio necessidade).


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Desde já afastamos a subsunção à alínea c): da petição inicial não perpassa uma situação de impossibilidade de efectivação do direito nem se alega uma dificuldade apreciável na propositura (aliás, nenhuma alegação foi feita a este respeito em sede de petição inicial - e como vimos, a competência afere-se nos termos em que a acção é proposta; e não podemos afirmar que se configura um facto notório não carecido de alegação (cf. art. 5º, nº 2, al. c), 1ª parte) – in casu, o autor é um jogador internacional, perfeitamente inserido numa sociedade globalizada, não se impondo uma dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro.

Ademais, a determinação do tribunal internacionalmente competente precede a questão de saber qual a lei material aplicável, pois é ao sistema de regras de conflito do Estado do foro – depois de afirmada a sua competência internacional – que há que recorrer para a resolver os critérios de aplicação das regras de direito substantivo, ou seja, a lei substantiva aplicável decorre das leis de direito internacional privado do tribunal que seja internacionalmente competente.


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Destinando-se a acção a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu. (cf. nº 2 do art. 71º do CPC): no quadro do direito português, relevante é o lugar onde ocorreu o facto e não o lugar onde ocorreu o dano. Assim, se o comportamento do agente ocorreu fora do território português, mesmo que os danos tenham ocorrido neste, à luz da mencionada alínea a) não há tribunal português territorialmente competente.

Como se verteu anteriormente na decisão de caso idêntico e no respeitante ao n.º 3 do art. 80.º do CPC, tal norma é inaplicável ao caso dos autos. Trata-se de uma disposição geral, que deve ser articulada com as disposições contidas nos números anteriores do mesmo artigo, a qual cede perante as normas especiais previstas nos artigos anteriores, designadamente, com a regra prevista no n.º 2 do art. 71.º do CPC. Efectivamente, a regra do art.º 80.º, n.º 3 é uma norma supletiva em matéria de competência territorial, pelo que, existindo a regra especial estabelecida no art.º 71.º, n.º 2 do CPC, nunca seria aplicável o critério do domicílio do autor.

Importa desta feita, e para efeitos desta al. a) saber qual o locus delicti commissi.

O direito à imagem é efectivamente violado quando (e sempre) que ocorre a utilização da mesma, não precedida do consentimento da pessoa retratada, que se enquadre no âmbito geral do n.º 1 do artigo 79.º do CCivil. Os jogos propriedade da ré são comercializados e distribuídos mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal ocorrem essas violações - sendo um facto notório e do conhecimento comum, nos termos do art.º 5.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil: na verdade, é possível a qualquer consumidor adquirir tais jogos, nos quais tem lugar a exploração indevida da imagem e do nome do autor, em território nacional. E essa utilização e divulgação ocorre, obviamente, em qualquer lugar onde os jogos podem ser e são jogados, sendo os jogos da ré comercializados e distribuídos em Portugal.

Mas o facto ilícito da ré reside na produção e venda sendo que a comercialização - utilização e divulgação da imagem, nome e demais características do autor, sem o consentimento deste, decorrente da sua comercialização e utilização generalizada situa-se a jusante desse facto.

E na verdade, a exploração, distribuição e venda de jogos eletrónicos, conteúdos e serviços online para consolas de jogos, telemóveis e computadores, levada a cabo pela ré restringe-se exclusivamente aos ..., ... e ... – cfr. documento 1, extraído do website …, não procedendo à comercialização dos jogos na Europa. Na alegação do autor, é a E... SARL, pessoa colectiva registrada no Registo de Pessoas Colectivas de ... com o número ... que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos ..., ... e ....

Afigura-se-nos que o pretenso facto ilícito da ré ocorre efectivamente em território estrangeiro, invalidando-se a invocação de competência internacional com recurso a este critério.


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Mas se o factor de conexão previsto nas alíneas a) é de afastar no caso em apreço, por não se encontrar verificado, uma vez que o pretenso facto ilícito foi praticado nos ..., segundo a versão veiculada na petição inicial, já consideramos verificado o factor de conexão mencionado na alínea b): Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram (à causa de pedir).

Consabidamente causa de pedir nas acções fundadas na responsabilidade civil extracontratual é complexa, integra todos os pressupostos, a saber, o facto ilícito, a culpa, o nexo de causalidade e os danos, o que implica, "segundo as circunstâncias, a alegação da matéria de facto relacionada com o evento, a ilicitude, a conduta culposa, ou uma situação coberta pela responsabilidade objectiva, os prejuízos e o nexo de causalidade adequado entre o evento e os danos". [Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. I, 3.ª Reimpressão, pág. 205].

A obrigação de reparação decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial - a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem.

Se em regra o dano é uma consequência meramente eventual do ilícito, - o dano é requisito indispensável para a configuração da obrigação ressarcitória, mas não para a constituição do ilícito." (Luiz Guilherme MARINONI e Sérgio Cruz ARENHART, p. 454 do seu Manual do processo de conhecimento. São Paulo: RT, 2001), no caso, na sua dimensão pessoalíssima, reside nessa utilização abusiva de imagem.

O dano moral tem como causa a injusta violação de uma situação jurídica subjetiva existencial protegida pelo ordenamento jurídico por meio da cláusula geral de tutela da pessoa humana e para a configuração do dano moral não é necessário provar que a vítima sofreu algo negativo, como vexame ou humilhação, fobia ou sofrimento psicológico pela sua exposição….

Ora, o dano ocorre globalmente, assim também no lugar do domicílio do autor sito em Portugal.

Nesta medida, concorda-se com o autor quando refere: o próprio dano/facto danoso resultante dessa exploração indevida mostra-se, também, consumado em Portugal. E tal está efectivamente alegado no 16.º da petição inicial onde é expressamente referido que os jogos da Ré se tornaram mundialmente conhecidos, pelo que “…a repercussão da imagem do Autor não se insere apenas ao âmbito nacional, mas é utilizada pela Ré a nível global.”. (sublinhado e negrito nossos); …na verdade, “os jogos propriedade da Ré são comercializados, distribuídos, jogados e a sua imagem, nome e demais caraterísticas são utilizadas, mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal…

Por todo o exposto, julgo este tribunal português internacionalmente competente e, [em] consequência, determino o prosseguimento dos ulteriores trâmites processuais.». [negrito nosso]

Inconformada, interpôs a R. recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, pedindo a revogação da decisão recorrida.

Por acórdão de 26 de Outubro de 2021, foi o recurso julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, e substituindo-a por outra que, julgando os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para o conhecimento da acção, absolveu a R. da instância.


2. Vem o A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«a) Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido nos autos que julgou o recurso interposto, pela ré/recorrente Electronic Arts Inc, procedente e, em consequência, revogou a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julga os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para o conhecimento da acção e, em consequência, absolve a ré da instância (artºs 576 nºs 1 e 2, 577 a) do C.P.C.).

b) Assim, salvo diferente entendimento, o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, objecto do presente recurso, padece dos vícios previstos nas alíneas a) e c) do artigo 674.º do Código de Processo Civil.

c) A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados.

d) Entende o ora Recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida.

e) O Autor, aqui Recorrente, considera, desde logo, que o Tribunal a quo, com o acórdão recorrido incorre em erro de julgamento (por alegada subsunção errada dos factos ao direito) porque os fundamentos invocados apontam num certo caminho e a decisão final toma um sentido completamente contrário, padecendo de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

f) A este respeito, o Tribunal a quo no acórdão recorrido, considera, como matéria relevante, que: (i) a ré tem como actividade o “…desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à internet, dispositivos móveis e computadores pessoais…”; (ii) que a ré “…é uma empresa líder global em entretenimento digital interativo;”; (iii) que “Os jogos electrónicos ..., ... e ... são lançados anualmente, permitindo actualizações semanais, via internet.”; e que (iii) “Estes jogos são ainda utilizados para a realização de torneios a nível nacional e internacional, incluindo o “..., organizado e patrocinado pela R.”. (negrito e sublinhados nossos)

g) Mas, considerados esses fundamentos, e em manifesta contradição com os mesmos, o Tribunal acaba por concluir, que a “… divulgação destes jogos utilizando a imagem e o nome do A., sem sua autorização (…)” se localiza exclusivamente “…em solo norte-americano…”.

h) Isto porque, no que respeita ao caso concreto e ao uso indevido da imagem do Autor, os jogos da ré, com o conteúdo lesivo, são difundidos por esta, para serem utilizados e guardados em vários instrumentos tecnológicos, de diversas pessoas, a qualquer momento, em qualquer lugar.

i) É o que sucede, por exemplo, com a colocação dos jogos em linha/ambiente digital, altamente potenciada com a expansão do uso da Internet e da qual a ré beneficia largamente para aumentar a divulgação e exploração comercial dos seus jogos e, bem assim, os avultados lucros daí advenientes.

j) Salvo o devido respeito não pode o Tribunal a quo considerar que os jogos da ré são colocados em linha e em ambiente digital, para depois concluir o seu contrário, i.e., que a sua divulgação apenas ocorre em solo norte-americano.

k) Acresce que, conforme demonstrado nos autos, inclusive, através de diversa documentação junta com a petição inicial, os jogos da ré são comercializados em suporte físico em Portugal, nas mais variadas lojas, como por exemplo, nas lojas da especialidade, nas grandes superfícies, na Worten, na Fnac, na Mediamarket, entre tantas outras.

l) E imagine-se que, alguém escrevia um livro em sua casa denegrindo ou simplesmente fazendo uso não autorizado da imagem da personalidade “A” ou até que esse alguém pintava um quadro com uma imagem menos abonatória dessa mesma personalidade “A”.

m) Apenas não poderia ser invocado qualquer dano pela personalidade “A” pela utilização ilícita da sua imagem, se tal livro e tal quadro não saíssem nunca da casa do seu autor.

n) O mesmo já não se pode afirmar se tal livro e/ou tal quadro fossem promovidos, divulgados e comercializados por todo o mundo, inclusive, no local de residência daquela personalidade “A”, nomeadamente, em estabelecimentos de toda a espécie.

o) É assim, manifesto que os danos ocorreriam em todos os locais onde essa comercialização e divulgação tivesse lugar.

p) Esta lógica é, pois, plenamente aplicável aos jogos da ré, pelo que estando os jogos disponíveis a nível mundial, o dano não é provocado só nos Estados Unidos.

q) Por isso, a tese sufragada no acórdão recorrido, apenas faria sentido, salvo o devido respeito, se os jogos, com a imagem do Autor, apenas fossem produzidos em solo norte-americano e não transpusessem as suas fronteiras, para ser comercializados pela ré por todo o mundo sob todas as formas disponíveis, ou seja, online e em suporte físico.

r) E, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.

s) Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, sendo que a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua divulgação mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afetadas por este.

t) Neste sentido, e no que respeita a situações análogas já analisadas pelo TJUE quanto a esta matéria salientam-se os acórdãos Shevill e eDate Advertising GmbH, cujos textos, para efeitos de argumentação, aqui se dão por reproduzidos e ainda a doutrina já fixada no douto acórdão desse Supremo Tribunal de Justiça de 25-10-2005.

u) É este o contexto que nos encontramos, mas que o Tribunal a quo desconsidera totalmente, desvalorizando, de igual modo a protecção que a pessoa humana e a sua imagem merecem no ciberespaço.

v) O Julgador não pode deixar de estar atento à evolução tecnológica e à expansão dos fenómenos dela resultantes, de forma a evitar decisões totalmente desfasadas da realidade em que vivemos actualmente.

w) O facto constitutivo essencial desta causa reporta-se à produção e divulgação dos jogos utilizando a imagem e o nome do Autor, sem sua autorização, mas – ao contrário do referido no acórdão recorrido - a sua divulgação não se localiza, exclusivamente, em solo norte-americano.

x) Conforme demonstrado, essa divulgação ocorre em todo o mundo e, também, em Portugal, pelo que há, obviamente, uma repercussão do facto danoso, também, em todo o território nacional.

y) O centro de interesses do Autor é em Portugal, pelo que estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da acção.

z) E, estando em causa a violação, pela ré, de direitos de personalidade do Autor, com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional, cfr. artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º e 72.º do Código Civil e sendo arguida pelo Autor, aqui Recorrente, a inconstitucionalidade do artigo 38.º n.º 4 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, por se considerar que o mesmo é ofensivo do conteúdo de um direito fundamental (o já invocado artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) não se concebe como o poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país.

aa) Mais se diga ainda que, eventuais, dificuldades de aplicação do critério da materialização do dano não podem pôr em causa a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo ilícito está disponível em qualquer ponto do globo, como sucede in casu.

bb) Não podia, pois, o Tribunal a quo deixar de concluir, in casu, pela verificação do factor de conexão previsto na alínea b) do artigo do artigo 62.º do Código de Processo Civil: ter sido pratica do em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram (à causa de pedir).

cc) Teria, assim, de improceder a deduzida excepção de incompetência internacional do Tribunal a quo, aduzida pela ré, por verificação do elemento de conexão constante da alínea b) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.

dd) A obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem.

ee) Tal como a Primeira Instância decidiu. E bem!

ff) Face ao que antecede, o acórdão em crise padece de nulidade, a qual se invoca ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, tendo ainda violado o disposto nos artigos 62.º, alínea b) e 71.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, o artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 70.º, 72.º e 79.º do Código Civil.».

Termina pedindo que o recurso seja julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a decisão da 1.ª instância.

A Recorrida contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:

«a) O presente recurso de revista, interposto pelo autor, visa a revogação do acórdão de 26.10.2021, pelo qual se declarou procedente a exceção de incompetência internacional porque esta ação não reúne os necessários elementos de conexão com a ordem jurídica Portuguesa.

b) O recurso interposto pelo autor deverá ser rejeitado, improcedendo os dois únicos fundamentos invocados: (i) erro de julgamento na apreciação do fator de conexão da alínea b) do art.º 62.º do CPC e (ii) nulidade por contradição entre os factos e a fundamentação jurídica.

c) In casu, a exceção de incompetência internacional submetida à apreciação deve ser dirimida, exclusivamente, à luz do regime interno, por inexistir qualquer instrumento internacional de regulação do foro aplicável, incluindo de fonte europeia.

d) Neste recurso está apenas em causa a apreciação do fator de conexão consagrado na alínea b) do art.º 62.º do CPC, relativo ao princípio da causalidade.

e) Não só o acórdão conheceu em detalhe os fundamentos que o autor vem reiterando nos autos para sustentar a competência internacional da ordem jurídica portuguesa, como explicitou detalhadamente as razões de facto e de direito que justificam a decisão proferida.

f) Tendo-se estabelecido, na decisão revidenda, a seguinte factualidade relevante:

Quanto ao autor:

(i) O autor refere ser jogador de futebol (artigo n.º 3 da petição inicial);

(ii) O autor refere encontrar-se estabelecido na ... desde 2017/2018 (artigos n.º 4.º e 9.º da petição inicial).

Quanto à ré:

iii) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América;

(iv) A ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o autor não alega que a ré o faz em Portugal (artigo 1.º e 2.º da petição inicial);

(v) O autor refere que “…a ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a E... SARL…” (artigo 2.º da petição inicial), o que evidencia que a ré não atua em Portugal ou, sequer, na Europa;

Quanto ao facto ilícito imputado à ré:

(vi) Em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré vende, em Portugal, os jogos ... e ..., chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros (artigos n.º 26.º e 37.º da petição inicial).

(vii) Nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, na petição inicial, como ocorrendo em Portugal.

g) Contra este quadro factual e com vista ao preenchimento do fator de conexão, previsto na alínea b) do art.º 62.º do CPC, o autor sustenta que o facto ilícito ocorre também em Portugal.

h) Sucede que, não basta, neste contexto, sustentar que foram alegados factos praticados em território nacional com base na afirmação que os jogos ... são vendidos em todo o mundo, incluindo Portugal.

i) É o próprio autor quem declara, no já identificado art.º 2.º da petição inicial, que a ré apenas comercializa os jogos nos ..., ... e ..., não tendo qualquer atividade no resto do mundo, incluindo em Portugal.

j) O que significa que a ré não pratica qualquer ato integrador da causa de pedir no nosso país (nem os factos alegados na petição inicial ou os documentos juntos são, em tese, aptos a tal).

k) Não foi também concretizado qualquer dano sofrido pelo autor, tampouco em território nacional.

l) Sendo igualmente de afastar quaisquer referências a “factos danosos”, mencionadas de forma puramente conclusiva e abstraída de qualquer suporte factual, confundindo dois requisitos autónomos da responsabilidade civil: a ação/omissão e o dano.

m) O autor, órfão de factos para sustentar a conexão com Portugal, procura compensar esse vazio, retratando, como um único facto, realidades autónomas e com diferentes esferas de imputação, a saber:

(i) alegação de vendas, por terceiros, em Portugal; e

(ii) alegação de atos praticados pela ré no estrangeiro.

n) Partindo dessa conjugação artificial, num único facto, o autor imputa à ré a produção de danos, de forma conclusiva e sem os localizar territorialmente.

o) Sucede que tais factos têm de ser apreciados como realidades individuais e não forjando- se uma síntese entre ambos. Ou seja, tais factos não se podem confundir porque (i) os atos praticados pela ré ocorrem no estrangeiro e (ii) os atos de comercialização em Portugal não são atribuíveis à ré.

p) Nenhum destes factos permitindo, autonomamente, assacar à ré a prática de qualquer ato em Portugal gerador de responsabilidade civil.

q) Trata-se de factos ou conclusões sem conexão com o território nacional e muito menos em termos relevantes, para permitir que os nossos tribunais avoquem a competência internacional para este pleito.

r) A comercialização plurilocalizada dos jogos e, na Europa, por entidades que não a ré, não pode ser tida como um fator distintivo no contexto da causa de pedir e que atribua relevância suficiente para a afirmação da competência dos nossos tribunais.

s) Como refere o acórdão do TRL, acima identificado, “…para que se estabeleça a competência internacional dos tribunais portugueses é necessário que os factos materiais localizados em Portugal sejam relevantes e caraterísticos do facto jurídico e que, de entre a massa de factos que constituem a causa de pedir, tenham sido praticados em Portugal factos suficientes que justificam a conexão da ação com a ordem jurídica portuguesa.”.

t) O que manifestamente não se verifica neste pleito, já que a comercialização dos jogos ..., a nível mundial, revela ligação identicamente ténue com todos esses territórios e, nessa medida, não assume particular conexão que justifique a atribuição de competência internacional a Portugal.

u) Na verdade, a consideração da venda, por terceiros, como fator de conexão geraria uma situação de conflito positivo de competência internacional, já que qualquer tribunal do mundo, considerar-se-ia competente para esta lide, hipótese que as normas de competência internacional visam evitar.

v) A alegação do autor, posterior à petição inicial, acerca da ocorrência de danos globalmente e, por isso, também no seu domicílio, apelando ao conceito de centro de interesses, não permite colmatar a falta de invocação de quaisquer danos em Portugal, por três motivos:

(i) apenas a factualidade constante da petição inicial é relevante para a averiguação da competência;

(ii) não são alegados danos concretos, tampouco verificados em Portugal; e

(iii) a alegação de que o dano ocorre em todo o mundo e também na residência do autor não traduz, como vimos, uma conexão suficiente ou relevante com a jurisdição portuguesa.

w) Ora, além de o conceito de centro de interesses (figura desenvolvida pelo TJUE a propósito de normas europeias) ser inaplicável a estes autos, a sua invocação não é suscetível de preencher os requisitos de competência internacional dos tribunais portugueses.

x) Daí que se conclua que não se verifica o fator de conexão previsto na alínea b) do art.º 62.º do CPC, já que inexiste alegação factual sobre a causa de pedir ou qualquer facto que a integre, praticado em Portugal.

y) O recurso deve igualmente ser rejeitado na parte em que invoca nulidade pela alegada contradição entre os factos estabelecidos pelo TRC e a fundamentação de direito.

z) Não há qualquer incongruência em se estabelecer que os jogos são vendidos mundialmente e se concluir que a divulgação destes jogos, pela ré, se localiza em solo norte-americano.

aa) Em Portugal os jogos são comercializados por terceiros, facto que o autor (e bem) assumiu na sua petição inicial.

bb) Com efeito, o TRC, tendo presente que os jogos são vendidos em todo o mundo, esclarece, com assaz clarividência, não só que essa divulgação não é imputável à ré, mas também que não é o elemento de conexão relevante na presente lide de responsabilidade civil extracontratual.

cc) Devendo, por isso, ser rejeitada a arguição de nulidade do acórdão do TRC.

dd) Em suma, o recurso de revista interposto deve improceder in totum, dado que também as alíneas a) e c) do art.º 62.º do CPC e respetivos fatores de conexão não se mostram preenchidos (conforme argumentação detalhada na motivação e na contestação).

ee) Como já concluído pelo Tribunal a quibus, os factos alegados pelo autor, nestes autos, não revelam a verificação de quaisquer fatores de conexão relevantes que atribuam competência internacional à ordem jurídica Portuguesa.

ff) Devem por isso improceder todas as conclusões do recurso do autor.».


3. Por acórdão da conferência de 18 de Janeiro de 2022, o tribunal a quo pronunciou-se no sentido da não verificação da invocada nulidade do acórdão recorrido.


4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

- Nulidade do acórdão recorrido por contradição entre a fundamentação e a decisão (art. 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC);

- Competência dos tribunais portugueses para conhecer da presente acção.


5. Com relevo para a apreciação das questões objecto de recurso vem provado o que consta do relatório do presente acórdão.


6. Alega o Recorrente que o acórdão recorrido padece de nulidade por contradição entre a fundamentação e a decisão (art. 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC).

Vejamos.

De acordo com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, tal vício da decisão, gerador de nulidade:

«[P]ressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la» (acórdão de 11.01.2018, proc. n.º 779/14.2TBEVR-A.E1.S1, não publicado).

Neste sentido, cfr., entre muitos outros, os acórdãos de 12.01.2021 (proc. n.º 1801/19.1T8CSC.L1-B-A.S1), de 21.01.2021 (proc. n.º 3384/16.5T8GMR.G1.S1) e de 04.02.2021 (proc. n.º 22/17.2T8CLB.C1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.

Como tem sido repetidamente afirmado por este Supremo Tribunal, a nulidade em análise não se confunde com o erro de julgamento:

«[A] contradição entre os fundamentos e a decisão corresponde a um vício formal, na construção lógica da decisão e o erro de julgamento, a um vício substancial, concretizado, p. ex., na errada subsunção dos factos concretos à correspondente hipótese legal.» (sumário do acórdão de 04.02.2021, proc. n.º 22/17.2T8CLB.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Neste mesmo sentido, ver, entre outros, os acórdãos de 08.09.2020 (proc. n.º 148/14.4TVLSB.L1.S1), de 07.10.2020 (proc. n.º 705/14.9TBABF.E1.S1), de 08.10.2020 (proc. n.º 361/14.4T8VLG.P1.S1), de 20.10.2020 (proc. n.º 6024/17.T8VNG.P1.S1) e de 17.11.2020 (proc. n.º 6471/17.9T8BRG.G1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.

Ora, não apenas – lida e apreciada a decisão recorrida – não se detecta qualquer vício de construção lógica da decisão, como a ponderação dos termos em que a questão da nulidade é suscitada pelo Recorrente («o Tribunal a quo, com o acórdão recorrido incorre em erro de julgamento (por alegada subsunção errada dos factos ao direito) porque os fundamentos invocados apontam num certo caminho e a decisão final toma um sentido completamente contrário, padecendo de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil») se reporta antes a um alegado erro de subsunção dos factos ao direito, isto é, a um erro de julgamento).

Conclui-se, assim, pela não verificação da arguida nulidade.


7. Sobre a questão da competência dos tribunais portugueses para conhecer da presente acção, importa ter presente que, em 24 de Maio de 2022, foi proferido, nesta Secção do Supremo Tribunal de Justiça, acórdão em acção (processo n.º 3853/20.2T8BRG.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt, idêntica à presente acção, cuja fundamentação – dada a sua relevância para a apreciação e resolução do caso dos autos – se transcreve na íntegra:

«1. A questão

Está em discussão neste recurso a competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar o mérito da presente ação.

Com a sua propositura, o Autor pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização, por violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem.

Para tanto, invoca que a Ré, que tem sede no Estado da Califórnia, dos Estados Unidos da América, utiliza, sem a sua autorização, o seu nome e a sua imagem, que inclui as suas características pessoais e profissionais, nos videojogos ... e ..., 2011, 2012, 2013 e 2014, os quais são produzidos pela Ré nos Estados Unidos e comercializados em todo o mundo por empresas “subsidiárias” da Ré (destacando-se na Europa a E... SARL que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos ..., ... e ...), resultando dessa atuação a ofensa do direito ao nome e à imagem do Autor.

Os danos invocados pelo Autor são a exposição do seu nome e da sua imagem sem o recebimento de qualquer contrapartida, a influência negativa que a invenção de atributos físicos e técnicos àquele, nos referidos videojogos, poderá ter na sua vida profissional e pessoal, e os estados psicológicos de perturbação, desgosto, tristeza e revolta que o Autor sentiu ao constatar a utilização não consentida do seu nome e da sua imagem.

A causa de pedir invocada pelo Autor é plurilocalizada, uma vez que tem contactos com diferentes ordenamentos jurídicos. O Autor tem nacionalidade portuguesa e reside em Portugal, a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América (no Estado da Califórnia), a produção dos jogos ocorreu precisamente nesse local, a difusão comercializada do nome e da imagem do Autor, sem consentimento deste, verificou-se por todo o mundo, e os sentimentos negativos experienciados pelo Autor sucederam nos locais onde ele se encontrava durante todo este período.

O acórdão recorrido, em consonância com anteriores acórdãos das Relações proferidos em ações idênticas, interpostas por outros jogadores de futebol profissional[1], decidiu que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para julgar a presente ação, com o principal argumento de que não se verificaram em território nacional os danos causados pela invocada atuação ilícita da Ré, uma vez que não é o local onde o jogo é vendido ao consumidor final que constitui o elemento relevante para atribuição da competência internacional, mas antes o local onde o referido jogo foi criado e posto em circulação, por ser nesse local que ocorreram os factos constitutivos do direito invocado pelo Autor, incluindo os danos diretos invocados.

2. A competência internacional dos tribunais portugueses

O artigo 37.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Sistema Judiciário, incumbe a lei de processo de fixar os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, dispondo o artigo 59.º do Código de Processo Civil que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º do mesmo diploma.

O Regulamento Europeu que rege a competência judiciária em matéria cível e comercial é o denominado Regulamento Bruxelas I bis (Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012). Com exceção das ações previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 2, 24.º e 25.º deste Regulamento, onde não se inclui a presente ação, é condição de aplicabilidade das regras nele contidas que o demandado tenha domicílio num Estado Membro. Se este requisito não se verificar, como sucede na presente ação, dado que a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América, o referido Regulamento determina que a competência dos tribunais dos Estados Membros seja a definida pelas leis internas destes (artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis).

Como não existe nenhum instrumento internacional que vincule o Estado Português em matéria de competência judiciária aplicável à presente ação, é, portanto, à luz do disposto nos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I, bis, que deve ser determinada a competência dos tribunais portugueses para decidir a presente ação.

No artigo 62.º do Código de Processo Civil são enunciados os três critérios autónomos de atribuição da competência internacional, com origem legal, aos tribunais portugueses – o da coincidência (alínea a), o da causalidade (alínea b) e o da necessidade (alínea c). A escolha destes critérios visou corresponder à exigência de uma tutela efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, conferindo competência aos tribunais portugueses quando, pela sua proximidade com as partes e com as provas, se encontrem em condições de melhor dirimirem os litígios que necessitam de uma intervenção jurisdicional.

Segundo o critério da coincidência, que recorre a uma técnica legislativa de remissão intrasistemática[2], os tribunais portugueses são competentes sempre que a ação possa ser proposta em Portugal, segundo as regras específicas da competência territorial, estabelecidas na lei portuguesa (artigo 70.º e seguintes do Código de Processo Civil), atribuindo-se, assim, a estas regras a funcionalidade suplementar de determinarem a competência internacional dos tribunais portugueses, para além de definirem a competência territorial interna. A ideia que inspira a adoção deste critério é a de que os elementos de conexão utilizados para estabelecer a competência territorial interna traduzem um elo suficientemente forte entre a causa e o Estado português para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais.

No presente caso, estamos perante uma ação em que se pretende efetivar a responsabilidade civil extracontratual, pela violação, por ato ilícito, de direitos de personalidade, dispondo o artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que se a ação se destinar a efetivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.

ALBERTO DOS REIS[3] justificou a opção por este critério instrumental, no Código de Processo Civil de 1939, por ser no lugar onde o facto foi praticado que devem encontrar-se as melhores provas da ocorrência e dos danos por ele produzidos. É a proximidade do tribunal com as provas dos factos que integram os diferentes elementos da causa de pedir de uma ação de responsabilidade extracontratual que é determinante da escolha do forum delicti comissi.

No entanto, a aplicação deste critério para aferir a competência territorial interna revela algumas dificuldades e divergências quando a ação ofensiva decorre em local diferente onde se produzem os danos, uma vez que, nesse caso, as provas dos factos que integram a causa de pedir se encontrarão espacialmente dispersas, registando-se opiniões no sentido de que, em caso de dissociação entre o lugar do facto causal e o lugar onde o dano se produziu, o lesado pode propor a ação respetiva em qualquer um destes lugares[4], à semelhança do que ocorre quando a ação se desenvolve plurilocalizadamente, em contraponto com posições menos flexíveis que sustentam que, nessas situações, releva apenas o local onde ocorreu o comportamento do agente violador de direitos do lesado[5].

Cremos, no entanto, que essas dificuldades não se colocam quando o artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, funciona como norma ad quam, das regras definidoras da competência internacional, uma vez que, segundo o critério da causalidade (artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil), os tribunais portugueses têm competência para decidir os litígios em que algum dos factos que integram a sua causa de pedir ocorra em território português[6]. Sendo o dano um dos elementos essenciais da causa de pedir nas ações de responsabilidade extracontratual, não se pode deixar de admitir que o local onde este se verificou possa conferir competência aos tribunais portugueses para decidirem as ações em que o dano aconteceu em Portugal, uma vez que as provas desse importante elemento da causa de pedir se localizarão em território português, sem prejuízo dessa competência também poder ser determinada pela localização de outros elementos relevantes da causa de pedir[7].

No entanto, nestas situações, deve exigir-se, de modo a evitar que a competência determinada por este critério possa ser considerada exorbitante, que esses elementos da causa de pedir traduzam uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, designadamente que um significativo acervo das provas a produzir presumivelmente se situe em Portugal, numa aplicação da teoria do forum non conveniens[8].

É essa, aliás, a leitura que também tem sido feita pelo Tribunal de Justiça da União Europeia das normas gémeas do artigo 7.º, 2), do Regulamento Bruxelas I bis, e dos artigos 5.º, n.º 3, dos anteriores instrumentos legais europeus que tiveram por objeto o estabelecimento de regras comuns de competência judiciária em matéria cível e comercial, a Convenção de Bruxelas, de 27.09.1968, a Convenção de Lugano de 16.09.1988, a Convenção de Lugano II, de 30.10.2007, e o Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, tendo, nesses casos, o Tribunal aplicado, com temperança, a regra da ubiquidade [9] [10].

3. A jurisprudência do TJUE

Mas, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem também uma importante jurisprudência precisamente em matéria de competência internacional, relativa a ações de responsabilidade civil extracontratual por violações de direitos de personalidade, como os direitos ao nome, à imagem e à honra, através de meios de exposição globais, aplicando o artigo 7.º do Regulamento Bruxelas I bis e as normas que lhe antecederem contidas nos artigos 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas, de 27.09.1968, da Convenção de Lugano de 16.09.1988, da Convenção de Lugano II, de 30.10.2007, e do Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000[11].

O artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis, nas situações em que o demandado não tenha domicílio num Estado-Membro, como ocorre no presente caso, ao determinar uma remissão para as regras do direito processual civil do Estado Membro cujo tribunal é chamado a pronunciar-se, em matéria de competência internacional, sendo estas as normas aplicáveis nessas situações, denuncia que essas regras internas também fazem parte de um mesmo sistema de regras de conflito de competências instituído pelo Regulamento, que se pretende global e coerente[12]. Não deixamos, pois, de estar também aqui perante uma remissão intrasistemática, apesar da sua aparência extrasistemática[13]. Este convívio, por efeito desta remissão, no nosso ordenamento jurídico das regras de direito europeu sobre a competência internacional dos tribunais dos Estados Membros da União Europeia, incluindo os tribunais portugueses (neste caso, o Regulamento Bruxelas I bis), e as regras do direito processual civil português sobre a mesma matéria, embora com um âmbito de aplicação distinto, exige a preservação da coerência sistémica do nosso ordenamento jurídico. Não só o conteúdo das normas internas sobre competência internacional não deve conduzir a soluções díspares com os princípios que regem o direito europeu nessa matéria, o que tem sido objeto de preocupação do legislador nacional, como a sua interpretação deve ter em consideração a leitura que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem efetuado das normas europeias que estabeleçam critérios idênticos às normas de direito interno. A harmonia do ordenamento jurídico pede que critérios idênticos na definição da competência internacional dos tribunais, apesar de provirem de fontes distintas, tenham uma aplicação coincidente, sendo certo que a jurisprudência do TJUE tem um papel fundamental na interpretação do direito europeu.

O TJUE, no Acórdão de 7.03.1995, Fiona Shevill, Ixora Trading Inc, Chequepoint SARL e Chequepoint Internacional Ltd contra Presse Alliance, S.A.[14], relativamente à propositura de uma ação em que se pedia o pagamento de uma indemnização por difamação cometida através de um artigo publicado no jornal France Soir, à venda em vários países europeus, incluindo Inglaterra, onde a vítima residia, começou por sustentar que a expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, utilizada no artigo 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas de 27.09.1968, deveria ser interpretada no sentido de que a vítima pode intentar uma ação de indemnização contra o editor da publicação difamatória quer nos órgãos jurisdicionais do Estado onde se situa o estabelecimento da editora, quer nos órgãos jurisdicionais de cada Estado em que a publicação foi divulgada e onde a vítima alega ter sofrido um atentado à sua reputação, os quais seriam competentes para conhecer apenas dos danos causados no Estado do tribunal onde a ação foi proposta.

Neste aresto, o Tribunal considerou:

(...)

21. (...) que o lugar do evento causal, do ponto de vista da competência jurisdicional, pode constituir um critério de vinculação não menos significativo do que o critério do lugar onde o dano se materializou, podendo cada um deles, segundo as circunstâncias, revelar-se especialmente útil do ponto de vista da prova e da organização do processo.

(...)

23. Estas considerações, feitas a propósito de danos materiais, devem ser válidas também, pelas mesmas razões, no caso de prejuízos não patrimoniais, nomeadamente os causados à reputação e à consideração de uma pessoa singular ou coletiva por uma publicação difamatória.

(...)

28. O lugar de materialização do prejuízo é o local em que o facto gerador, implicando a responsabilidade extracontratual do seu autor, produziu efeitos danosos em relação à vítima.

29. No caso de uma difamação internacional através da imprensa, o atentado feito por uma publicação difamatória à honra, à reputação e à consideração de uma pessoa singular ou coletiva manifesta-se nos lugares onde a publicação é divulgada, quando a vítima é aí conhecida.

30. Daqui resulta que os órgãos jurisdicionais de cada Estado contratante onde a publicação difamatória foi divulgada e onde a vítima invoca ter sofrido um atentado à sua reputação são competentes para conhecer dos danos causados nesse Estado à reputação da vítima.

31. Com efeito, de acordo com o imperativo de uma boa administração da justiça, fundamento da regra de competência especial do artigo 5., n. 3, o tribunal de cada Estado contratante em que a publicação difamatória foi divulgada e onde a vítima invoca ter sofrido um atentado à sua reputação é territorialmente o mais qualificado para apreciar a difamação cometida nesse Estado e determinar o alcance do prejuízo correspondente.

(...)

No entanto, uns anos volvidos, no importante Acórdão de 25.10.2011, e-Date Advertising GmbH contra X e Olivier Martinez contra MGN Limited [15], relativamente à propositura de ações de responsabilidade civil pela publicação em portais noticiosos na Internet de referências à condenação de X pelo homicídio de um conhecido ator e aos encontros amorosos de Kyllie Minogue e Oliver Martinez, já se entendeu que o artigo 5.º, ponto 3, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, deveria ser interpretado no sentido de que, em caso de alegada violação dos direitos de personalidade através de conteúdos colocados em linha num sítio na Internet, a pessoa que se considerar lesada tem a faculdade de intentar uma ação fundada em responsabilidade extracontratual pela totalidade dos danos causados, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro do lugar onde se situa o estabelecimento da pessoa que emitiu esses conteúdos, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro onde se encontra o centro dos interesses do lesado.

Neste aresto, após se transcreverem múltiplas passagens do anterior acórdão Fiona Shevill, Ixora Trading Inc, Chequepoint SARL e Chequepoint Internacional Ltd contra Presse Alliance, S.A., acima mencionado, discorre-se nos seguintes termos:

(...)

45. Todavia, como alegaram tanto os órgãos jurisdicionais de reenvio como a maioria das partes e dos interessados que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça, a colocação em linha de conteúdos num sítio na Internet distingue-se da difusão, circunscrita a um território, de um meio de comunicação impresso, na medida em que visa, em princípio, a ubiquidade dos referidos conteúdos. Estes podem ser consultados instantaneamente por um número indefinido de internautas em todo o mundo, independentemente de qualquer intenção da pessoa que os emitiu, relativa à sua consulta para além do seu Estado-Membro de estabelecimento e fora do seu controlo.

46. Afigura-se, portanto, que a Internet reduz a utilidade do critério relativo à difusão, na medida em que o âmbito da difusão de conteúdos colocados em linha é, em princípio, universal. Além disso, nem sempre é possível, no plano técnico, quantificar essa difusão com certeza e fiabilidade relativamente a um Estado-Membro em particular, nem, por conseguinte, avaliar o dano exclusivamente causado nesse Estado-Membro.

47. As dificuldades de aplicação, no contexto da Internet, do referido critério da materialização do dano decorrente do acórdão Shevill, já referido, contrastam, como o advogado‑geral salientou no n.° 56 das suas conclusões, com a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo que viola o referido direito está disponível em qualquer ponto do globo.

48. Há, portanto, que adaptar os critérios de conexão recordados no n.° 42 do presente acórdão no sentido de que a vítima de uma violação de um direito de personalidade através da Internet pode intentar, em função do lugar da materialização do dano causado na União Europeia pela referida violação, uma ação num foro a respeito da integralidade desse dano. Tendo em conta que o impacto de um conteúdo colocado em linha sobre os direitos de personalidade de uma pessoa pode ser mais bem apreciado pelo órgão jurisdicional do lugar onde a pretensa vítima tem o centro dos seus interesses, a atribuição de competência a esse órgão jurisdicional corresponde ao objetivo de boa administração da justiça recordado no n.° 40 do presente acórdão.

49. O lugar onde uma pessoa tem o centro dos seus interesses corresponde em geral à sua residência habitual. Todavia, uma pessoa pode ter o centro dos seus interesses igualmente num Estado-Membro onde não reside habitualmente, na medida em que outros indícios, como o exercício de uma actividade profissional, podem estabelecer a existência de um nexo particularmente estreito com esse Estado.

50. A competência do órgão jurisdicional do lugar onde a pretensa vítima tem o centro dos seus interesses é conforme ao objetivo de previsibilidade das regras de competência (v. acórdão de 12 de Maio de 2011, BVG, C-144/10, ainda não publicado na Coletânea, n.° 33), igualmente a respeito do demandado, dado que a pessoa que emite o conteúdo danoso está, no momento da colocação em linha desse conteúdo, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas que são objeto deste. Deve, portanto, considerar-se que o critério do centro de interesses permite simultaneamente ao demandante identificar facilmente o órgão jurisdicional a que se pode dirigir e ao demandado prever razoavelmente o órgão jurisdicional no qual pode ser demandado (v. acórdão de 23 de Abril de 2009, Falco Privatstiftung e Rabitsch, C-533/07, Colect., p. I-3327, n.° 22 e jurisprudência referida).

51. Por outro lado, em vez de uma ação fundada em responsabilidade pela totalidade do dano, o critério da materialização do dano decorrente do acórdão Shevill, já referido, confere competência aos órgãos jurisdicionais de cada Estado-Membro em cujo território um conteúdo colocado em linha esteja ou tenha estado acessível. Estes são competentes para conhecer apenas do dano causado no território do Estado-Membro do órgão jurisdicional em que a ação foi intentada.

(...)

Mais tarde, no Acórdão de 17.10.2017, Bolagsupplysningen OU e Ingrid Ilsjan contra Svensk Handel AB[16], relativamente à propositura de uma ação de responsabilidade civil pela publicação numa página da Internet de dados incorretos e comentários difamatórios sobre uma sociedade comercial estónia, entendeu-se que o artigo 7.º ponto 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, deveria ser interpretado no sentido de que uma pessoa coletiva que alega que os seus direitos de personalidade foram violados pela publicação de dados incorretos a seu respeito na Internet e pela não supressão de comentários a ela relativos pode intentar uma ação destinada a obter a retificação desses dados, a supressão desses comentários e a reparação da totalidade do dano sofrido nos tribunais do Estado-Membro no qual se situa o seu centro de interesses.

Neste aresto, após se transcreverem múltiplas passagens do acórdão antes mencionado, acrescenta-se:

(...)

32. No contexto específico da Internet, o Tribunal de Justiça declarou, contudo, num processo relativo a uma pessoa singular, que, em caso de alegada violação dos direitos de personalidade através de conteúdos colocados em linha num sítio Internet, a pessoa que se considerar lesada tem a faculdade de intentar uma ação fundada em responsabilidade pela totalidade dos danos causados nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro onde se encontra o centro dos seus interesses (acórdão de 25 de outubro de 2011, eDate Advertising, C-509/09 e C-161/10, EU:C:2011:685, n.º 52).

33. Quanto a esses conteúdos, a alegada violação é, com efeito, geralmente sentida mais intensamente no centro de interesses da pessoa visada, tendo em conta a reputação de que goza nesse local. Assim, o critério do «centro de interesses da vítima» traduz o local onde, em princípio, o dano causado por um conteúdo em linha se materializa, na aceção do artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, de modo mais significativo.

(...)

 Finalmente, no recente Acórdão de 21-12-2021, Gtflix Tv contra DR[17],  relativamente à propositura de uma ação de responsabilidade civil pela publicação em sítios e fóruns Internet de afirmações depreciativas da sociedade Gtflix Tv que se dedica à produção e difusão de conteúdos audiovisuais para adultos, voltou a ser reafirmada a jurisprudência dos acórdãos anteriormente mencionados, com transcrição das suas passagens mais relevantes, pronunciando-se no sentido que a ação indemnizatória poderá sempre ser proposta nos órgãos jurisdicionais de cada Estado-membro onde aquelas afirmações depreciativas tenham estado acessíveis ao público, mesmo que esses órgãos não sejam competentes para conhecer dos pedidos de retificação e supressão desses conteúdos.

4. A aplicação ao caso concreto

Na resolução da questão que é colocada neste recurso, designadamente na aplicação do critério da causalidade constante do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, iremos seguir de perto a linha definida por esta jurisprudência, não só porque a isso aconselha a preservação da coerência e harmonia do nosso ordenamento jurídico, mas também porque reconhecemos nessa linha um equilíbrio ponderado da valorização dos critérios a adotar na determinação do(s) tribunal(ais) que se encontra(m) em melhores condições para administrar a justiça, numa situação de violação de direitos de personalidade através de meios de divulgação global. Note-se que a valorização do local onde se situa o centro de interesses do lesado, como um dos elementos de conexão que poderá determinar a competência internacional dos tribunais desse país, não significa que se despreze o denominado centro de gravidade do conflito, uma vez que a aplicação daquele critério poderá ser afastada sempre que se verifique que a dimensão dos danos localizados no país do foro é diminuta, não sendo aí que previsivelmente se encontra um número significativo das provas dos factos que fundamentam a pretendida responsabilização. 

O facto daquela jurisprudência se debruçar, na maioria das situações, sobre violações de direitos de personalidade, através da Internet, não desaconselha a sua transposição para o presente caso, em que o instrumento da ofensa a esses direitos são videojogos mundialmente comercializados, em larga escala, uma vez que também a exposição dos seus conteúdos se carateriza pela ubiquidade, não tendo uma divulgação circunscrita a um território. Eles são visionados e operados por um número indefinido de jogadores, espalhados por todo o mundo, fora de qualquer controle do seu produtor, pelo que as ponderações efetuadas pelo TJUE, tendo em consideração a divulgação mundial de conteúdos ofensivos dos direitos de personalidade pela Internet, são aplicáveis a este caso.

Relembre-se que, na presente ação, o Autor fundamenta o pedido indemnizatório, por responsabilidade extracontratual, na violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem, no facto de um “seu avatar” ser um dos muitos protagonistas dos videojogos mundialmente comercializados ... e ..., 2011, 2012, 2013 e 2014, produzidos pela Ré, sem que tenha dado autorização para que o seu nome e imagem fossem utilizados, invocando como danos a ressarcir a exposição pública não autorizada do seu nome e imagem sem qualquer contrapartida, a influência negativa que a invenção dos seus atributos físicos e técnicos naqueles jogos poderá ter na sua vida profissional e pessoal e os estados psicológicos de perturbação, desgosto, tristeza e revolta que aquela utilização não autorizada lhe provocou. Na versão apresentada na petição inicial, esses videojogos foram produzidos nos Estados Unidos da América (no Estado da Califórnia) e foram e são comercializados e difundidos por todo o mundo por empresas “subsidiárias” da Ré, (destacando-se na Europa a E... SARL que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos ..., ... e ...), tendo o Autor domicílio em Portugal e jogado profissionalmente desde 2003-2004 até aos dias de hoje em clubes portugueses, com exceção das épocas de 2013/2014 e 2014/2015, em que jogou no ..., na ....

Antes de iniciarmos a verificação da relevância dos diversos elementos de conexão, convém frisar que, consoante já afirmava Manuel de Andrade [18], citando o processualista italiano Enrico Redenti, a competência internacional afere-se pelo quid disputatum, isto é, pelos termos como o autor configura a relação jurídica controvertida, e não, pelo que, mais tarde, será o quid decisum.

Conforme já acima tínhamos concluído, dado estarmos perante uma ação com uma causa de pedir complexa, do ponto de vista da competência jurisdicional, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, podem constituir critérios de vinculação quer o lugar do evento causal, quer o lugar onde o dano se materializou, podendo cada um deles, segundo as circunstâncias, revelar-se especialmente útil, do ponto de vista da prova e da organização do processo, para se determinar qual é o tribunal ou tribunais que se encontram em melhores condições para proferir uma decisão de mérito informada.

Relativamente ao lugar onde ocorreu a ação causal do dano, há que ter em consideração, que a ação violadora do direito ao nome e à imagem, através de um conteúdo divulgado de forma difusa por todo o mundo, compreende não só a produção dos videojogos em causa, processo em que se inclui o nome e se representa a imagem num determinado suporte físico ou digital, mas também a sua exposição pública através da comercialização mundial generalizada desses suportes [19]. Apesar de na petição inicial se dizer que essa comercialização era efetuada por empresas “subsidiárias” da Ré, designadamente por E... SARL, que assumia a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos ..., ... e ..., não deixa o Autor de imputar a divulgação pública apenas à Ré, responsabilizando-a por todos os danos resultantes desses atos. Não devendo, neste momento, efetuar-se qualquer juízo sobre a imputabilidade da ação ilícita alegada pelo Autor para dele retirar a competência do tribunal, há que apenas relevar a perspetiva do Autor, apresentada na petição inicial, de que a Ré é a responsável pela produção, lançamento no mercado e divulgação por todo o mundo dos videojogos ... e ....

Assim, a ação causal imputada à Ré, pelo Autor, nesta ação, ocorre inicialmente nos Estados Unidos da América (a produção dos videojogos) e desenvolve-se, posteriormente, em todo o mundo (a comercialização dos videojogos), uma vez que a lesão deste tipo de bens de personalidade ocorre com a divulgação pública não autorizada do nome e da imagem do lesado[20].

Coisa diferente da lesão destes direitos de personalidade, são os danos que dela terão resultado na versão apresentada pelo Autor. Se a ação lesiva dos direitos do Autor se inicia, mas não se completa com a produção dos videojogos contendo o nome e a imagem do Autor sem o seu consentimento, já, os danos, ou seja, as consequências negativas para o lesado que resultaram dessa ação causal poderão ou não ocorrer no mesmo lugar em que essa ação teve lugar [21]. É sobretudo neste ponto que nos afastamos da tese do acórdão recorrido e dos demais acórdãos da Relação acima referenciados na nota 1. Os danos na ofensa aos direitos de personalidade ao nome à imagem são realidades distintas do ato lesivo e claramente diferenciadas quando este é apenas resumido à atividade criadora do suporte que contém o conteúdo lesivo, não se considerando a atividade de divulgação púbica generalizada.

Quanto ao lugar onde os danos invocados pelo Autor se verificaram, revelando-se uma tarefa impossível avaliar com certeza e fiabilidade os danos causados em cada um dos países onde o conteúdo que utilizava o seu nome e imagem foi exposto, deve seguir-se o critério apontado pela jurisprudência do TJUE, segundo o qual, em princípio, o impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorrem nestas circunstâncias verifica-se predominantemente no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses, aí se encontrando a maioria das provas dos prejuízos sofridos, pelo que a atribuição de competência aos tribunais desse país para apreciar a integralidade dos prejuízos sofridos satisfaz o objetivo da boa administração da justiça.

Nos casos em que os danos se prolongam no tempo e o centro de interesses do lesado vai variando ao longo desse tempo, localizando-se em diferentes Estados, a ação em que se reclame o pagamento de uma indemnização desses danos poderá ser intentada em qualquer uma das jurisdições desses Estados, desde que se verifique um elo suficientemente forte entre a causa e o foro escolhido para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais, evitando-se, com esta restrição, os inconvenientes do denominado forum shopping.

Na presente ação, durante os anos em que o Autor situa a violação do direito ao seu nome e imagem (desde finais de 2009, pelo ... e finais de 2018, pelo ...), com exceção das épocas desportivas de 2013/2014 e 2014/2015, que o Autor jogou numa equipa romena, o seu centro de interesses localizava-se em Portugal, uma vez que foi aí que o Autor praticou, profissionalmente, a sua atividade desportiva.

Esta localização presumida dos danos pelos quais o Autor responsabiliza a Ré é confirmada pelo tipo de danos diretos, e não meramente reflexos, alegados na petição inicial. Foi em Portugal que a utilização do seu nome e imagem poderá ter influído na comercialização dos referidos videojogos, uma vez que foi, predominantemente, nas competições desportivas portuguesas que o Autor interveio como jogador profissional; foi em Portugal que se poderá ter refletido a influência negativa provocada pela invenção dos seus atributos físicos e técnicos naqueles videojogos, prejudicando a sua vida profissional e pessoal, uma vez que foi aí que o Autor, predominantemente, desenvolveu a sua atividade profissional e viveu; e foi em Portugal que o Autor poderá ter experienciado a alegada perturbação, desgosto, tristeza e revolta que a utilização do seu nome e imagem não autorizada lhe terão provocado, pois foi aí que o Autor, com exceção das épocas de 2013/2014 e 2014/2015, se encontrava.

Estando o centro de interesses do Autor predominantemente localizado em Portugal desde o momento em que este situa o início da violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem (finais de 2009, relativamente ao ... e finais de 2018, relativamente ao ...), tendo sido aí que terão ocorrido os danos invocados pelo Autor, não há razões para que, a coberto do critério da causalidade admitido pelo artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, não se considerem os tribunais portugueses competentes para julgar esta ação, uma vez que, estando nós, perante uma causa de pedir complexa, os danos alegados terão ocorrido predominantemente em Portugal, pelo que será no nosso país que se encontrará um significativo acervo das provas a produzir com vista à realização da justiça.

Esta conclusão não constitui de forma alguma o reconhecimento de uma competência exorbitante, uma vez que releva uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, assim como não fere qualquer interesse legítimo da empresa demandada, uma vez que, atenta a comercialização global dos videojogos por si produzidos, é expetável que possam ocorrer litígios com eles relacionados em qualquer parte do globo, em que sejam chamados a intervir os órgãos jurisdicionais locais, além de que a sua estrutura organizacional, atenta a sua dimensão, sempre lhe permitirá, sem excessivas dificuldades, produzir as provas que entenda necessárias em Portugal.

Por estas razões, deve o recurso interposto ser acolhido, reconhecendo-se competência aos tribunais portugueses para julgarem a presente ação, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil.».

Subscrevemos, sem reservas, a orientação fixada neste aresto (que foi também seguida nos acórdãos deste Supremo Tribunal de 7 de Junho de 2022, proferidos nos processos n.º 24974/19.9T8LSB.L1.S1 e 4157/20.6T8STB.E1.S1), faltando apenas determinar quais as consequências da sua aplicação ao caso sub judice.

Com efeito, se os factos alegados – integradores da causa de pedir – relativos à R. e à sua conduta coincidem essencialmente com a factualidade alegada na acção que culminou no acórdão de 24 de Maio de 2022, supra transcrito, já os factos alegados a respeito da situação do A. da presente acção revestem algumas especificidades.

A tal respeito, em sede de petição inicial, o A. alegou o seguinte:

3.º O Autor é um jogador de futebol Português, nascido .../.../1987 no ....

4.º Actualmente representa o ....

5.º O Autor mantém já uma longa carreira como jogador de futebol profissional, sobejamente conhecido no meio do futebol, tendo exercido a sua profissão, maioritariamente, em clubes portugueses, dedicando-se inteiramente à prática desportiva do futebol, com a qual sempre se sustentou a si e à sua família.

6.º Na qualidade de jogador profissional de futebol, como é normal, o Autor conta com a exposição pública da sua imagem, tanto nos espectáculos desportivos, como fora deles, em participações televisivas, de radiodifusão, meios virtuais etc.

7.º Cabe mencionar que o Autor actuou até ao presente, em mais de 300 partidas oficiais como profissional e sempre se destacou na posição de ..., como é conhecido internacionalmente, tendo actuado no ... (Portugal), ... (Portugal), ... (Portugal), ... (...), ... (...), ... (...), ... (...), entre outros, algo detalhado em pormenor, tal como as competições em que participou e o seu palmarés, em páginas de internet da especialidade, demonstrando a notoriedade do Autor, representadas no Documento 1 1.

8.º O Autor actuou pela Selecção Nacional de Futebol nas categorias sub-16, sub-19 e sub-20 tendo representado Portugal por 7 (sete) vezes, em vários torneios por todo o mundo, alcançando, também dessa forma, bastante notoriedade internacional. (idem cfr. Doc. 1)

9.º Conforme resulta, também, desse Doc.1, o Autor esteve vinculado aos seguintes clubes e nas seguintes épocas:

2019/20       ...                             ...

2018/19       ...                            ...

2017/18       ...                             ...

                    ...            ...

2016/17       ...             ...

2015/16       ...             ...

2014/15       ...                           

      ...             Portugal

...[B]    Portugal

 2013/14 ...                             ...

                               ...                            

                               ...                            

2012/13 ...                           

2011/12 ...            ...             ...

                               ...             ...             ...

2010/11

 2009/10 ...            

   ...                             Portugal

2008/09 ...                  Portugal

2007/08       ...            Portugal

2006/07       ...            Portugal

2005/06       ...            Portugal


11.º O Autor teve conhecimento que a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados ... (também com as designações ... ou ...), nas edições 2009, 2010, 2015 e 2020; ..., nas edições 2009, 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014, ... nas edições 2010, 2015 e 2020 e ... na edição de 2020; todos propriedade da Ré.

103.º Dessa forma, a Ré, agiu (e age) ilegalmente ao explorar a imagem e nome do Autor, atleta famoso, ao comercializar os jogos para consolas (aparelho de jogos de vídeo), ou aplicativos, actualizações, etc. em todo o mundo, obtendo lucros astronómicos com a venda dos mesmos.

104.º Estamos, pois, perante um dano causado ao Autor, pela violação do seu direito à imagem e ao nome.

180.º Por outro lado, o Autor viu a sua imagem corporal ser retratada, o seu nome e as suas características físicas e pessoais, serem divulgados sem o seu consentimento, em milhões de jogos comercializados pela Ré.

Temos, pois, que, com relevância para a questão em apreciação, para além de indicar ter residência em Portugal, o A. alegou:

- Que a violação dos direitos de personalidade do A. se iniciou no ano 2009 e perdura à data da propositura da acção;

- Que entre o ano 2009 e a data da propositura da acção o A. jogou em clubes de futebol de diferentes países europeus (por ordem cronológica: Portugal, ..., ..., ..., ..., novamente Portugal, ... e ...).

Constata-se, assim, que, no caso dos autos, e diversamente do que sucedia no caso subjacente ao acórdão de 24 de Maio de 2022 (como, aliás, nos casos subjacentes aos, supra referidos, acórdãos de 7 de Junho de 2022, proferidos nos processos n.º 24974/19.9T8LSB.L1.S1 e n.º 4147/20.6T8STB.E1.S1), na interpretação do art. 62.º, alínea b), do Código de Processo Civil, não é possível seguir-se o critério segundo o qual, em princípio, o impacto da violação dos direitos de personalidade em situações em que o lesado desenvolveu a sua actividade e viveu em diversos países se verifica no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses predominante, uma vez que, entre os diferentes países indicados no artigo 9.º da p.i., não é possível identificar um que seja entre todos prevalecente e, portanto, não é possível identificar a existência de um centro de interesses predominante do A..

Deste modo, afigura-se necessário recorrer ao critério supletivo, assim enunciado pelo acórdão de 24 de Maio de 2022 para situações como a dos presentes autos:

«Nos casos em que os danos se prolongam no tempo e o centro de interesses do lesado vai variando ao longo desse tempo, localizando-se em diferentes Estados, a ação em que se reclame o pagamento de uma indemnização desses danos poderá ser intentada em qualquer uma das jurisdições desses Estados, desde que se verifique um elo suficientemente forte entre a causa e o foro escolhido para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais, evitando-se, com esta restrição, os inconvenientes do denominado forum shopping.».

Procurando aplicar este critério ao caso dos autos, temos que, ao longo do período de tempo a que se reporta a alegada lesão dos seus direitos de personalidade, o A. foi passando por diversos países, mas nem todos se afiguram elegíveis como elemento de conexão. Na verdade, duas curtas estadas intercaladas na ... e uma na ... não constituem um factor de conexão relevante com qualquer desses Estados; já nos restantes países onde o A. exerceu a sua actividade profissional (Portugal, ..., ..., ... e ...) temos estadas de duração superior e tendencialmente equivalente (entre um ano e meio e dois anos e meio), o que permite considerar qualquer uma dessas estadas como factor de conexão relevante, podendo o A. eleger a jurisdição de qualquer desses países.

Assim, ao interpor a presente acção nos tribunais portugueses, optouo A.  por uma das jurisdições nas quais os danos terão ocorrido, a qual, por corresponder a Estado em cujo território, entre 2009 e a data da propositura da acção, o A. desenvolveu a sua actividade em dois períodos de tempo, e no qual indicou ter residência, configura, no contexto concreto da factualidade alegada, um elo suficientemente intenso entre a acção e o foro escolhido, que, por isso mesmo, merece acolhimento.

Nas palavras do acórdão de 24 de Maio de 2022, cuja fundamentação vimos acompanhando, e não obstante – repita-se – as especificidades da factualidade alegada no caso ora em apreciação, «esta conclusão não constitui de forma alguma o reconhecimento de uma competência exorbitante, uma vez que releva uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, assim como não fere qualquer interesse legítimo da empresa demandada, uma vez que, atenta a comercialização global dos videojogos por si produzidos, é expetável que possam ocorrer litígios com eles relacionados em qualquer parte do globo, em que sejam chamados a intervir os órgãos jurisdicionais locais, além de que a sua estrutura organizacional, atenta a sua dimensão, sempre lhe permitirá, sem excessivas dificuldades, produzir as provas que entenda necessárias em Portugal.».

Conclui-se, assim, pela competência dos tribunais portugueses para julgarem a presente ação, nos termos do art. 62.º, alínea b), do Código de Processo Civil.


8. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido, e julgando-se improcedente a excepção da incompetência internacional do Juízo Central Cível de Coimbra, determinando-se o prosseguimento do processo.


Custas na acção pelo vencido, a final.

Custas nesta revista e na precedente apelação pela ré.


Lisboa, 23 de Junho de 2022


Maria da Graça Trigo (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

_____

[1] Acórdãos da Relação de Coimbra de 26.10.2021, Proc. 3239/20 (Rel. Cristina Neves), e de 08.03.2022, Proc. 4167/20 (Rel. Pires Robalo), da Relação de Lisboa de 13.01.2022, Proc. 24974/19 (Rel. António Valente), da Relação do Porto de 10.02.2022, Processo 637/20 (Rel. Deolinda Varão), e da Relação de Évora de 24.02.2022, Proc. 4157/20 (Rel. José António Moita), de 08.03.2022.
[2] DÁRIO MOURA VICENTE, A Competência Internacional no Código de Processo Civil Revisto, em “Aspectos do Novo Código de Processo Civil”, LEX, 1997, pág. 84, e LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, vol. III, tomo 1, 3.ª ed., 2019, Almedina, pág. 337, nota 1334. Sustentando a inutilidade deste critério, face à dupla funcionalidade das normas de competência territorial, num alinhamento com o sistema alemão, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A Competência e a Incompetência nos Tribunais Comuns, 3.ª ed., AAFDL, 1990, pág. 54, Apreciação de Alguns Aspectos da Revisão do Processo Civil – Projecto, na Revista da Ordem dos Advogados 55 (1995), pág. 367 e seg., e em Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., LEX, 1997, pág. 99-100.
[3] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1º, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1960, pág. 195.
[4] Vg. REMÉDIO MARQUES, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2011, pág. 336.
[5] V.g. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2018, vol. I, pág. 102.
[6] O aditamento da parte final da redação deste artigo, conferindo competência aos tribunais portugueses quando apenas alguns dos factos que integram a causa de pedir ocorram em território português, foi efetuado pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, que reviu o Código de Processo Civil de 1961, consagrando a orientação jurisprudencial e doutrinal que vinha sendo seguida nesse sentido (v.g. ALBERTO DOS REIS, ob. cit., pág. 136-137, BAPTISTA MACHADO, La Competence Internationale em Droit Portugais, no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 41 (1965), pág. 101, ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declarativo, vol. II, Almedina, 1982, pág. 26-29, e o Assento do S.T.J. n.º 6/94, de 17.02.1994, pub. no D.R. de 30.03.1994), tendo este critério sido reposto pelo Código de Processo Civil de 2013, após a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, o ter suprimido do artigo 65.º do Código de Processo Civil de 1961, com fundadas críticas da doutrina (v.g. LEBRE DE FREITAS, Competência ou Incompetência Internacional dos Tribunais Portugueses ?, na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 69, vol. I/II.
[7] LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 348-349, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, cit., pág. 119, RITA LOBO XAVIER, Elementos de Direito Processual Civil. Teoria Geral. Princípios. Pressupostos, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, pág. 215, nota 31, e LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Almedina, 2018, pág. 155-156. Sobre as vantagens da aplicação do critério da causalidade nas causas de pedir complexas, como sucede nas ações de responsabilidade civil extracontratual, com exemplos elucidativos, LEBRE DE FREITAS, est. cit.
[8] Sobre esta modelação restritiva do princípio da causalidade, FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, Almedina, 2018, pág. 444-445,  RUI MOURA RAMOS, A Reforma do Direito Processual Civil Internacional, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 130, n.º 3879, pág. 167-168, LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 348-349,  RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 204, Almedina, 2018, e JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, AAFDDL, 2022, vol. I, pág. 279.
[9] Sobre essa jurisprudência, RUI MOURA RAMOS, Le Droit International Privé Communautaire des Obligations Extracontractuelles, em “Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional”, vol. II, Coimbra Editora, 2007, pág. 80 e seg., LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 131, JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, ob. cit., pág. 191-193, ISABEL ALEXANDRE, Direito Processual Civil Internacional I, AAFDL, 2021, pág. 203-204, e JOANA COVELO DE ABREU, Tribunais Nacionais e Tutela Jurisdicional Efetiva. Da Cooperação à Integração Judiciária no Contencioso da União Europeia, Almedina, 2019, pág. 143-144.
[10] Sobre a “rule of ubiquity”, na aplicação do artigo 7.º do Regulamento Bruxelas I bis, THOMAS KADNER GRAZIANO, The Law Applicable to Cross-Border Damage to the Environment, Yearbook of Private Law, 2008, vol. 2007, pág. 74-76.
[11] Sobre esta jurisprudência, LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 132-133, ALEXANDRE DIAS PEREIRA, O Tribunal Competente em Casos da Internet Segundo o Acórdão «edate advertising» do Tribunal de Justiça da União Europeia, Revista Jurídica Portucalense, n.º 16, 2014, pág. 3-10, e JOÃO CASTRO MENDES, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, ob. cit., pág. 191-193. Efetuando uma leitura crítica desta Jurisprudência, ELSA OLIVEIRA DIAS, Do Tribunal Competente Para Apreciar Litígios Relativos a Responsabilidade Extracontratual Decorrente da Violação de Direitos de Personalidade, Revista do CEJ, 1.º semestre 2016, n.º 1, que, aderindo à posição do Advogado Geral no processo eDate/Martinez, defende a relevância do local onde se localize o centro de gravidade do conflito entre os bens e os interesses em jogo, convocando a globalidade da situação para determinar a competência do Tribunal.
[12] Neste sentido o Parecer 1/03 do TJUE, de 07.02.2006, § 148.
[13] Sobre estes dois tipos de remissão, BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2021 (reimpressão), pág. 105-108.
[14] Processo C-68/93, EU:C:1995:61
[15] Processos apensos C-509/09 e C161/10, EU:C:2011:685.
[16] Processo C-194/16, EU:C:2017:766.
[17] Processo C-251/2020, EU:C:2021:1036.
[18] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1956, pág. 88-89.
[19] Neste sentido, ELSA DIAS OLIVEIRA, Da Responsabilidade Civil Extracontratual por Violação de Direitos de Personalidade em Direito Internacional Privado, Almedina, 2011, pág. 400-409.
[20] ELSA DIAS OLIVEIRA, ob. cit., pág. 405-407.
[21] ELSA DIAS OLIVEIRA, ob. e loc. cit., pág. 407-410, sobre a distinção entre o lugar da lesão e o lugar dos danos destes direitos de personalidade.