Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
268/19.9T8CTB-A.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: PARTILHA DA HERANÇA
EMENDA À PARTILHA
ANULAÇÃO DA PARTILHA
INVENTÁRIO
OFENSA DO CASO JULGADO
MAPA DA PARTILHA
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
PRINCÍPIO DA ECONOMIA E CELERIDADE PROCESSUAIS
CONCLUSÕES DA MOTIVAÇÃO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
Data do Acordão: 11/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12-10-2021, proferido no processo de inventário ao qual estes autos correm por apenso, que decidiu a anulação da partilha, ficando prejudicadas as restantes questões, não tem a virtualidade de esvaziar o objeto da presente ação declarativa, em que se pede a emenda da partilha.

II - Apesar de, formalmente e no plano da operatividade jurídica, a sentença homologatória, que incorporou o mapa da partilha cuja correção se pretende através do presente pleito, já não existir, do ponto de vista material, a nova sentença homologatória veio a absorver um mapa de partilha substancialmente igual àquele.

III – Esta é a solução que decorre do princípio da economia de processual, na vertente da economia de processos, segundo o qual cada processo deve resolver o maior número possível de litígios.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. AA instaurou ação contra BB, peticionando a anulação da partilha efetuada e, subsidiariamente, a condenação da Ré a reconhecer a incorreta descrição dos bens, incluindo quanto ao seu valor, bem como reconhecer quer o excesso, quer a falta de relacionamento de bens que compõem o acervo hereditário, procedendo-se à avaliação dos bens e à emenda da partilha, com a anulação, se disso for caso, da venda do imóvel a que corresponde a verba nº 4 da primeira relação de bens apresentada.

2. Realizada audiência prévia em 21.01.2021, foi proferida decisão de absolvição da instância da Ré, quanto ao pedido de anulação da partilha, que transitou em julgado.

3. Subsistindo o pedido subsidiário, foi ordenada a suspensão dos autos até que a sentença homologatória de partilha proferida no âmbito do processo de inventário transitasse em julgado.

4. No âmbito dos autos de inventário, AA interpôs recurso da sentença homologatória da partilha.

5. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 12.10.2021, foi julgado parcialmente procedente o recurso, tendo sido decidido julgar improcedente a arguição da falta de citação e demais nulidades, mas decidiu-se anular o mapa da partilha, bem como a subsequente sentença homologatória da mesma, devendo ter lugar o mapa informativo a que se referia o artigo 60º do RJPI, e ser notificada a interessada AA para exercer as faculdades do artigo 61º desse diploma legal.

6. Devolvido o processo ao Cartório Notarial para os fins determinados pelo Tribunal da Relação, e cumprido o mesmo nos termos determinados e não havendo reclamações pelas partes, foi proferida, em 26.04.2022, sentença homologatória de partilha, tendo transitado em julgado em 01.06.2022.

7. Nesta ação, por despacho de 08.06.2022 foram as partes convidadas para, querendo, exercer o contraditório sobre a eventual extinção da instância.

8. Por fim, foi proferida a decisão em crise, declarando extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide (em síntese porque “a partilha sob escrutínio no caso apreço – subsumível no mapa da partilha de 20.10.2018 e subsequente sentença homologatória do mesmo de 02.03.2019 - já não poderá ser emendada, pois que anulada que foi por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido nos autos em 12.10.2021, ou seja, a presente acção deixou de ter objecto”).

9. Inconformada, a Autora recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, que julgou procedente o recurso e revogou a sentença, ordenando o prosseguimento dos autos.

10. Inconformada a ré interpôs recurso de revista, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

«I. No acórdão recorrido, os venerandos desembargadores julgaram o recurso de apelação procedente, revogando a decisão recorrida e ordenando o prosseguimento dos Autos, decisão com a qual, com o devido respeito, não se pode concordar.

II. Diz o douto acórdão recorrido “Entendeu a decisão recorrida que, se o acórdão anulou a partilha sob escrutínio, subsumível ao mapa da partilha de 20.10.2018 e subsequente sentença homologatória do mesmo de 02.03.2019, aquela já não poderá ser emendada, pois que foi anulada, ou seja, a presente ação deixou de ter objecto.”

III. E ainda “O pedido que está em apreciação nestes autos diz respeito à emenda da partilha, nos termos do qual foi pedido que a Ré fosse condenada a reconhecer a incorreta descrição dos bens imóveis, aqui se incluindo o seu valor, bem como a reconhecer quer o excesso, quer a falta de relacionamento de bens que compõem o acervo hereditário, procedendo-se à avaliação dos bens imóveis e à emenda da partilha, com a anulação, se disso for caso, da venda do imóvel a que corresponde a verba nº 4 da primeira relação de bens apresentada.”

IV. Porém, a decisão do tribunal de 1.ª instância assentou, não só, mas também, conforme consta das alegações da Ré, nos factos que se passam a explanar:

V. O Tribunal da Relação de Coimbra proferiu acórdão que julgou parcialmente procedente o recurso interposto pela Autora, que culminou na anulação do mapa de partilha de 20 de Outubro de 2018 e na ulterior sentença homologatória

VI. Assim, teve lugar o mapa informativo, nos termos do instituído no artigo 60.º do RJPI e a notificação da Autora para que pudesse praticar, assim querendo, os actos determinados pelo artigo 61.º do mesmo diploma legal.

VII. Tendo a Autora sido notificada para, se assim o entendesse, requerer a composição dos seus quinhões ou reclamar o pagamento das tornas; requerer que as verbas em excesso ou algumas lhe fossem adjudicadas pelo valor resultante da licitação, até ao limite do seu quinhão; escolher, de entre as verbas em que licitou, as necessárias para preencher a sua quota.

VIII. “Sendo o requerimento feito por mais de um interessado e não havendo acordo entre eles sobre a adjudicação, o notário decide, por forma a conseguir o maior equilíbrio dos lotes, podendo mandar proceder a sorteio ou autorizar a adjudicação em comum na proporção que indicar”(cfr. n.º 4.º do artigo 61.º do RJPI).

IX. Pelo que, após elaboração de novo mapa informativo da partilha (em 13 de Dezembro de 2021) foram a Autora e a Ré, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 60.º e 61.º do RJPI, dele notificadas.

X. Uma vez que Autora tinha direito a tornas, pelo facto de a cabeça-de-casa haver licitado em mais verbas do que as necessárias para preencher a sua quota, requereu a Autora, a 13 de Janeiro de 2022, a composição do seu quinhão, requerendo também a rectificação do mapa informativo.

XI. Por decisão de 24 de Janeiro de 2022 foi elaborado um novo mapa informativo da partilha, do qual as interessadas, notificadas do mesmo, não apresentaram reclamações.

XII. Tendo sido elaborado novo mapa de martilha a 02 de Março de 2022, foram a Autora e a Ré notificadas do seu teor para, se assim o entendessem, requerem qualquer rectificação ou reclamarem qualquer irregularidade, nos termos do disposto no artigo 63.º do RJPI ou, ainda, para reclamar o pagamento de tornas, nos termos do artigo 61.º do mesmo diploma legal.

XIII. Vieram então, a Autora e a Ré, reclamar o pagamento das tornas que lhe eram devidas.

XIV. A 26 de Abril de 2022, uma vez que nenhuma das partes apresentou qualquer reclamação contra o mapa da partilha, foi então proferida sentença homologatória da partilha, tendo transitado em julgado a 01 de Junho de 2022.

XV. Como referido, e bem, na douta sentença recorrida, como dispõe o n.º 1, do artigo 1126.º do Código de Processo Civil, pode a partilha, “ainda que a decisão homologatória tenha transitado em julgado, ser emendada no próprio inventário, por acordo de todos os interessados, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das ou na falta de acordo quando à emenda nos termos do n.º 2 da citada norma”.

XVI. Desta forma, anulado que foi o mapa da partilha em crise por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido nos autos a 12 de Outubro de 2021 e uma vez transitada em julgado a homologação da partilha no âmbito do processo de inventário n.º 268/19.9T8CTB e assim estabilizada, e tendo em consideração o peticionado pela Autora, a continuação da lide não teria qualquer utilidade, carecendo de objecto, tendo-se tornado supervenientemente inútil, resultando na extinção da instância.

XVII. Devendo, desta forma, julgar-se procedente o presente recurso, mantendo-se integralmente a decisão do tribunal de 1.ª Instância, revogando-se a decisão recorrida, com todas as legais consequências, fazendo-se assim a acostumada e sã Justiça.

Nestes termos,

E nos mais de direito que VV. Exas. doutamente suprirão, julgar-se procedente o presente recurso, mantendo-se integralmente a decisão do tribunal de 1.ª Instância, revogando-se a decisão recorrida, com todas as legais consequências, com o que se fará a ACOSTUMADA e SÃ JUSTIÇA!»

8. A recorrida apresentou contra-alegações, em que formulou as seguintes conclusões:

«I. Veio a Recorrente, insurgindo-se contra o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que, julgando procedente o recurso de apelação interposto, revogou a sentença proferida e ordenou o prosseguimento dos autos, daquele interpor recurso de revista.

II. Antes de mais, o recurso de revista interposto é inadmissível, uma vez que a decisão colocada em crise não conheceu do mérito da causa, sequer colocou termo ao processo, cfr. art. 671º, nº 1 do CPC.

III. Pelo que o recurso interposto não pode ser admitido.

IV. Sem conceder, a Recorrente não atribuiu quaisquer erros, vícios, violações, nulidades e/ou desconformidades à decisão recorrida, cfr. art. 674º do CPC.

V. A Recorrente limitou-se a, após fazer uma transcrição do que consta da decisão da 1ª Instância, concluir, também nos precisos termos daquela, que a continuação da lide não tem qualquer utilidade, face ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.10.2021 e tramitação dos autos principais.

VI. Pelo que é evidente que a Recorrente não aduz qualquer fundamento que coloque em crise o Acórdão recorrido.

VII. Sequer indica a Recorrente as normas jurídicas violadas e/ou incorrectamente interpretadas e aplicadas no Acórdão recorrido.

VIII. Ora, a Recorrente não cumpriu com o seu dever de alegar.

IX. Por outro lado, a Recorrente não cumpriu ainda com o dever de apresentar conclusões.

X. Se atentarmos às conclusões do recurso de revista interposto, as mesmas correspondem, ipsis verbis, ao corpo das alegações.

XI. Logo, porque as conclusões não consubstanciam a imperativa sintetização da alegação, estamos perante uma verdadeira ausência de conclusões.

XII. Pelo que, também por esta via, há que rejeitar o recurso, e não proceder ao convite a que alude o nº 3 do art. 639º do CPC, uma vez que não estamos no domínio de conclusões obscuras, deficientes, complexas ou sem as especificações a que alude o nº 2 do mesmo preceito legal, mas antes perante uma reprodução nas conclusões, do que consta da motivação, o que equivale à falta de conclusões, o que se requer.

XIII. Sem conceder, e caso assim não se entenda, o que por mera hipótese académica se admite, deve ser negado provimento ao recurso, não merecendo o Acórdão recorrido qualquer reparo ou censura.

XIV. Pois que bem andou o Tribunal a quo ao decidir como o fez.

XV. Além do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 12.10.2021 nos autos principais não ter decidido sobre as demais questões suscitadas, sequer as que correspondem ao pedido em apreço nestes autos,

XVI. Apesar de anulado o mapa de partilha do dia 20.10.2018, os bens objecto de partilha permaneceram precisamente os mesmos.

XVII. E dizendo o pedido sob apreciação respeito aos bens objecto de partilha, aos bens constantes da relação de bens patente nos autos, o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 12.10.2021 não tem a virtualidade de esvaziar de objecto os presentes autos.

XVIII. Mantém-se pois a apontada incorrecta descrição dos bens imóveis, mantém-se quer o excesso, quer a falta de relacionamento de bens que compõem o acervo hereditário, mantém-se a necessidade de avaliação dos bens imóveis, e, em consequência a necessidade de se proceder à emenda da partilha, em conformidade, com a anulação, se disso for caso, da venda do imóvel a que corresponde a verba nº 4 da primeira relação de bens apresentada.

XIX. O Acórdão desse Venerando Tribunal da Relação de 12.10.2021 não extinguiu nem a causa de pedir nem o pedido formulado.

XX. Os presentes autos continuam a revestir-se de utilidade para as partes, nomeadamente para a aqui Recorrida.

XXI. Por fim, o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha não tem igualmente a virtualidade de consubstanciar uma impossibilidade superveniente da lide, atento o disposto no art. 1126º, nº 2 do CPC.

XXII. Uma vez que o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha não obsta à emenda da mesma, quer por acordo, quer na sua falta.

XXIII. Pelo que, por tudo o exposto, porque não merece a decisão recorrida qualquer reparo, devendo ser mantida, deve ao recurso de revista ser negado provimento, o que se requer, tudo com as legais consequências.

TERMOS EM QUE E SEMPRE,

Invocando-se o DOUTO SUPRIMENTO DESSE VENERANDO TRIBUNAL não deve admitido o recurso de revista interposto, porque legalmente inadmissível, face o estatuído no nº 1 do art. 671º do CPC, o que se requer, tudo com as legais consequências.

Caso assim não se entenda, deve ser rejeitado o recurso de revista interposto, por absolutamente ausência de alegação e apresentação de conclusões, o que se requer, tudo com as legais consequências.

Caso assim não se entenda, deve ser negado provimento ao recurso de revista, e, em consequência, confirmada e mantida a decisão recorrida, o que se requer, tudo com as legais consequências.

PORÉM VOSSAS EXCELÊNCIAS DECIDIRÃO COMO FOR DE JUSTIÇA!»

11. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:

I – Questões prévias suscitadas pela recorrida nas contra-alegações:

a) - Admissibilidade do recurso de revista

b) - Cumprimento pela recorrente do ónus de alegação e do ónus de conclusão

II – Questão suscitada pela recorrente (thema decidendum):

- Ofensa do caso julgado

II – Fundamentação

I. a) - Admissibilidade do recurso de revista

1. No âmbito da presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, instaurada por AA contra BB, veio a ré interpor recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que revogou a decisão do tribunal de 1.ª instância, que havia decidido declarar extinta por impossibilidade superveniente da lide, e determinou o prosseguimento dos autos.

Em sede de contra-alegações, suscita a recorrida-autora a questão da inadmissibilidade do recurso, alegando que o acórdão recorrido não se enquadra nas situações previstas no n.º 1 do artigo 671.º do CPC, por não ter conhecido do mérito da causa nem colocado termo ao processo.

O Relator, no Tribunal da Relação, admitiu o recurso, pela circunstância de estar em causa o âmbito do caso julgado inerente ao anterior acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 12-10-2021, no processo de inventário ao qual correm por apenso os presentes autos.

Vejamos:

2. No presente caso, o tribunal de 1.ª instância, relativamente ao pedido que subsistiu após a absolvição da ré da instância quanto ao pedido principal de anulação da partilha – o pedido subsidiário de emenda da partilha – considerou que tal partilha, que se mostra reconduzível ao mapa da partilha de 20.10.2018, e subsequente sentença homologatória do mesmo, de 02.03.2019, já não poderá ser emendada, uma vez que foi anulada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido nos autos principais em 12-10-2021. Neste conspecto, considerou o primeiro grau que a presente ação deixou de ter objeto, concluindo pela extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide.

3. Em sentido diverso, entendeu o tribunal recorrido que, não obstante a anulação do mapa de partilha, o que está subjacente a tal mapa é o conjunto de bens, o qual não foi emendado, mantendo-se a necessidade de julgar a incorreta descrição dos bens, incluindo o seu valor, que terá viciado a vontade das partes.

4. Através do presente recurso, a recorrente vem insurgir-se contra este entendimento, defendendo que o objeto da presente lide se extinguiu na sequência da anulação do mapa da partilha determinada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do processo principal de inventário, em 12-10-2021.

O que a recorrente veio, pois, e em substância, alegar nos pontos XV e XVI das suas conclusões de recurso é a ofensa, por banda do acórdão recorrido, do caso julgado inerente ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-12-2021, sustentando que o mesmo foi desrespeitado, ao considerar-se que a presente instância deveria prosseguir, tendo em conta a subsistência do seu objeto.

Ora, o artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC contempla uma causa especial de recorribilidade que viabiliza recursos, nos diversos graus de jurisdição, quando os mesmos tenham por objeto a impugnação de decisões relativamente às quais seja invocada a ofensa do caso julgado formal ou material (artigos 620.º e 621.ºdo CPC).

Como ressalta Abrantes Geraldes (Recursos em processo civil, 7.ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, 2022, p. 53), esta ofensa tanto pode emergir da assunção expressa de que a decisão recorrida não traduz essa ofensa, julgando improcedente a exceção dilatória do caso julgado – o que sucede na situação vertente – como da circunstância de ser proferida decisão sem consideração do caso julgado anteriormente formado, omitindo-se a pronúncia a tal respeito, naquela que pode ser perspetivada como uma ofensa implícita.

O mesmo autor sublinha, para o que ora releva, que se o recurso tiver por fundamento a ofensa de caso julgado, “a revista será de admitir fora do condicionalismo geral, ainda que porventura se verifique uma situação de dupla conforme (art. 671.º/3) ou se trate de acórdão que não reúna as condições previstas no n.º 1”(Ibidem, p. 55).

No sentido de os requisitos consagrados no n.º 1 do artigo 671.º do CPC serem prescindíveis quanto a um acórdão relativamente ao qual seja imputada a ofensa de caso julgado, pronunciaram-se igualmente os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-12-2018 (proc. n.º 190/16.0T8BCL.G1.S1) e de 06-07-2023 (proc. n.º 1509/20.5T8VNF-A.G1.S1) – ressalvando que, nos casos em que o acórdão recorrido não haja conhecido do mérito da causa nem colocado termo ao processo, o objeto admissível do recurso se deverá circunscrever ao conhecimento da matéria da ofensa do caso julgado.

Saliente-se, por último, que a admissibilidade do recurso com base no pressuposto processual específico em análise se basta com a alegação da ofensa pelo recorrente, ficando reservada a análise da sua consistência e viabilidade para momento ulterior, de apreciação do mérito do recurso (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, 2022, p. 55, nota 81).

Na situação presente, o acórdão recorrido não colocou termo ao processo – antes determinou o seu prosseguimento – nem conheceu do mérito da causa, já que não se pronunciou sobre a substância de qualquer pedido ou exceção perentória. Efetivamente, a decisão recorrida deteve-se, no plano da consistência da relação processual, na apreciação da subsistência do objeto da causa.

5. Não se subsumindo o acórdão recorrido a qualquer uma das tipologias de decisão previstas no n.º 1 do artigo 671.º do CPC, a sua recorribilidade não deverá, no entanto, ficar obstaculizada, uma vez que o fundamento recursório se reconduz à ofensa do caso julgado - devendo, todavia, o âmbito de cognoscibilidade do recurso ficar circunscrito à apreciação da questão atinente a tal ofensa.

6. Em conclusão, admite-se o recurso de revista para conhecer da questão da ofensa do caso julgado (artigo 629.º, n.º 2, al a), in fine, do CPC).

I. b) - Cumprimento do ónus de alegação e de conclusão:

7. A recorrida coloca, ainda, duas questões prévias que cabe ao Supremo conhecer:

- que a recorrente não cumpriu o ónus de alegação, por não ter aduzido qualquer fundamento que coloque em crise o acórdão recorrido nem indicado as normas jurídicas violadas e/ou incorretamente interpretadas e aplicadas.

- que a recorrente não cumpriu o ónus de apresentar conclusões, já que as mesmas correspondem, ipsis verbis, ao corpo das alegações, havendo que rejeitar o recurso, sem proceder ao convite a que alude o nº 3 do artigo 639º do CPC (uma vez que não estamos no domínio de conclusões obscuras, deficientes, complexas ou sem as especificações a que alude o nº 2 do mesmo preceito legal).

8. Apreciando.

De acordo com o que dispõe o artigo 639.º do CPC:

1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.

3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.

4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.

5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.

No caso, versando o recurso sobre matéria de direito, a recorrente, efetivamente, absteve-se de especificar nas conclusões – e mesmo na motivação do recurso - as normas jurídicas pretensamente violadas, desta forma delimitando objetivamente o recurso para o tribunal de revista – circunstância suscetível de fundamentar a prolação de um convite ao aperfeiçoamento, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º do CPC, dirigido ao suprimento deste ónus de alegação.

Por outro lado, também se constata que as conclusões consubstanciam mera reprodução (transcrição ipsis verbis) do texto correspondente ao corpo das alegações de recurso.

Quanto a este último caso – e ao contrário da posição defendida pela recorrida –, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, acolhendo uma perspetiva menos formalista e teleologicamente orientada para o aproveitamento dos atos, tem sustentado não se tratar de uma situação equiparável à ausência de alegações, fundamentadora da rejeição imediata do recurso, ao abrigo do disposto no artigo 641.º, n.º 2, al. b), do CPC. Ao invés, perspetivando as conclusões reprodutoras do teor da motivação de recurso como complexas ou prolixas, advoga tal jurisprudência a prolação de um convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 639.º, n.º 3, do CPC (cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 30-04-2019 (Proc. n.º 28/14.3TBETZ.E1.S1, não publicado na “dgsi, de 02-05-2019 (Proc. n.º 7907/16.1T8VNG.P1.S1), de 04-06-2019 (Proc. n.º 38/15.3T8FTR-A.E1.S1, não publicado na “dgsi.”), de 24-09-2020 (Proc. n.º 4899/16.0T8PRT.P1.S1), de 16-12-2020 (Proc. n.º 2817/18.0T8PNF.P1.S1), e de 18-02-2021(Processo n.º 18625/18.6T8PRT.P1.S1).

Ante o exposto, seríamos levados a considerar que as duas situações identificadas justificariam a prolação de um despacho de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º do CPC.

9. Todavia, no caso, considerando a natureza circunscrita do tema em discussão, a não elevada extensão das conclusões, bem como o facto de, pela leitura das contra-alegações apresentadas, ser de entender que o exercício do contraditório pela recorrida não resultou prejudicado pelo incumprimento dos descritos ónus processuais por banda da recorrente, entende-se que os valores da justiça, da celeridade e da eficácia deverão prevalecer sobre exigências de natureza formal - sendo, ao abrigo do dever de gestão processual (artigo 6.º, n.º 1, do CPC), de dispensar a prolação de tal convite e avançar, numa ótica de agilização processual, para o conhecimento do mérito do recurso.

10. Como realça Abrantes Geraldes (in Recursos em Processo Civil, ob. cit., p. 187:

“A prolação do despacho de aperfeiçoamento fica dependente do juízo que for feito acerca da maior ou menor gravidade das irregularidades ou incorreções, em conjugação com a efetiva necessidade de uma nova peça processual que respeite os requisitos legais. Para isso pode ser conveniente tomar em consideração os efeitos que a intervenção do juiz e as subsequentes intervenções das partes determinem na celeridade. Parece adequado ainda que o juiz atente na reação do recorrido manifestada nas contra-alegações, de forma a ponderar se alguma irregularidade verificada perturbou o exercício do contraditório, designadamente quando se esteja perante conclusões obscuras.”

11. Assim sendo, não se procede ao convite ao aperfeiçoamento e passa-se ao conhecimento do mérito do recurso.

II – Ofensa ao caso julgado

12. Encontrando-se o objeto do recurso delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida e pelas conclusões das alegações de recurso, cumprirá examinar a seguinte questão: saber se o acórdão recorrido, ao afastar a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, determinando o prosseguimento dos autos, ofendeu o caso julgado inerente ao acórdão proferido no âmbito do processo de inventário, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 21-01-2021, que anulou a sentença homologatória da partilha de 18-03-2019 e o respetivo mapa de partilha que a antecede.

13. Vejamos.

Nos presentes autos, o pedido subsidiário deduzido pela autora – que remanesce para apreciação, após a absolvição da instância da ré quanto aos demais pedidos, decretada por despacho datado de 21-01-2021 já transitado em julgado – reconduz-se a uma pretensão de emenda da partilha nos seguintes moldes: eliminação da verba 1 (direito de crédito da cabeça-de-casal sobre a herança no montante de €693,98); eliminação da verba 2 (direito de crédito da cabeça-de-casal sobre a herança no montante de €55,83); correção da descrição da verba n.º 4 (prédio urbano afeto à habitação, com o valor patrimonial tributário de €45.450,00) para prédio urbano, afeto a habitação, composto de 2 pisos, R/C e 1º andar, e sótão, com uma área total de cerca de 180 m2, sendo o 1º andar composto por três quartos, uma sala e o sótão e o R/C composto por um quarto, uma casa de banho, uma dispensa e uma cozinha, de valor não inferior a €85.000,00; correção da descrição da verba n.º 5 (prédio urbano afeto à habitação composto por casa abarracada com valor patrimonial tributário de €25.210,00) para prédio urbano composto por casa de habitação, com um piso e terraço, com três quartos, duas salas, uma cozinha, uma casa de banho, uma garagem e um logradouro, com cerca de 710 m2, com árvores de fruto e área de cultivo, de valor não inferior a € 435.000,00; correção do valor atribuído ao prédio rústico descrito na verba n.º 6 (de €57,89) para um montante não inferior a € 104.400,00; correção do valor atribuído ao prédio rústico descrito na verba n.º 7 (de €37,99) para um montante não inferior a € 104.400,00; correção do valor atribuído ao prédio rústico descrito na verba n.º 8 (de €3,19) para um montante não inferior a €4.640,00; correção do valor atribuído ao prédio rústico descrito na verba n.º 9 (de €0,46€) para um montante não inferior a €3.480,00; inclusão dos seguintes direitos de crédito sobre a herança a favor da autora: IMI’s dos imóveis propriedade dos inventariados, em 01.04.2014, no valor de € 235,13; despesas com o funeral da inventariada no valor de € 1.445,00; despesas de farmácia e do lar da inventariada, após o seu óbito, no valor de € 716,58; pagamento do IUC e do processo de contraordenação pelo não pagamento atempado do IUC do veículo automóvel com a matrícula XD-..-.., tudo no valor de € 30,33; inclusão na relação de bens dos seguintes bens móveis: mobílias de salas, mobílias de quartos, diversos objetos de decoração, diversos; frigorífico, máquina de lavar roupa, forno, micro-ondas, fogão, máquina de lavar loiça, televisão LCD; alianças de casamento, anéis, pulseiras e fios (que a ré terá em sua posse e lhe foram entregues pela tia materna de ambas CC, após o óbito da sua mãe); eliminação dos bens referidos na verba 10 (duas pulseiras, um fio e dois anéis) por não fazerem parte do acervo hereditário e, subsidariamente, alteração do seu valor de €2.5000,00 para €500,00.

14. Os presentes autos correm por apenso ao processo de inventário, instaurado no cartório notarial, ao abrigo do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI), aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de março, aberto por óbito de DD e de EE e na qual intervieram, na qualidade de herdeiras, AA e BB, filhas daqueles e partes no presente processo.

15. A autora (recorrida) visa colocar em crise a partilha realizada naquele inventário, tendo por referência o mapa de partilha datado de 20-10-2018 (que, por sua vez, teve como subjacente a relação de bens apresentada pela cabeça-de-casal a 20-09-2018, através do requerimento com a referência n.º ...85) inerente à sentença homologatória datada de 18-03-2019.

Ora, em tal inventário, AA interpôs recurso da sentença homologatória da partilha, datada de 18-03-2019, a que já se fez referência.

Nessa sequência, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra a 12-10-2021, que, julgando parcialmente procedente o recurso, entre o mais, decidiu anular o mapa da partilha, bem como a subsequente sentença homologatória da mesma, determinando que tivesse lugar o mapa informativo a que se refere o artigo 60.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário (doravante, RJPI), aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de março, e que fosse notificada a interessada AA para exercer as faculdades do artigo 61º desse diploma legal.

Tal acórdão considerou que à autora, aí apelante, na sequência do requerimento apresentado pelo seu patrono a reclamar o pagamento de tornas por depósito do qual não constava o seu IBAN, deveria ser concedida a possibilidade de exercer as opções alternativas que resultam do disposto no artigo 61º do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de março, para o qual deveria ser notificada. Neste conspecto, o acórdão em análise afirmou o seguinte: “A possibilidade que se entrevê, torna prematura a organização do mapa de partilha definitivo, devendo ter lugar o mapa informativo a que se refere o art 60º do RJPI, que, aliás, perante as tornas devidas, deveria, de todo o modo, ter tido lugar nos autos. O que significa que foi prematura também a prolação da sentença homologatória do mapa de partilha, que, por isso, se anula, bem como, antecedentemente, o mapa de fls 209.”

Após várias vicissitudes processuais, descritas com pormenor na sentença, foi elaborado um derradeiro mapa da partilha datado de 02.03.2022, relativamente ao qual a cabeça-de-casal e a interessada vieram reclamar o pagamento das tornas que lhe eram devidas.

Não tendo sido deduzida pelas partes qualquer reclamação contra tal mapa, foi proferida, em 26.04.2022, sentença homologatória de partilha, que transitou em julgado em 01.06.2022.

16. Neste conspecto, a sentença considerou que, perante a anulação pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra da sentença homologatória do mapa de partilha originário, datado de 20-10-2018, a presente ação deixou de ter objeto, uma vez que, através da mesma, se visa a emenda de tal partilha.

Diverso entendimento adotou o acórdão o acórdão recorrido, que observou “Ora, o acórdão proferido e invocado não decidiu sobre o excesso ou falta de relacionamento de bens que compõem o acervo hereditário, nem sobre a deficiente avaliação dos bens. Acresce ainda que as demais questões suscitadas no recurso não foram apreciadas, por terem sido consideradas prejudicadas pela decisão proferida sobre as nulidades. Quando a acção deu entrada em juízo, o único mapa de partilha existente correspondia ao elaborado em 20.10.2018; após o acórdão, verificamos que os bens constantes do novo mapa de partilha, de 02.03.2022, são os mesmos que constam do mapa original. O que está em causa é uma emenda, tendo na base a relação de bens pretensamente viciada; se esta se mantém e o acórdão não decidiu sobre o erro na descrição, a utilidade da ação mantém-se. Apesar da anulação do mapa referida pelo Tribunal recorrido, o que está subjacente a ele é o conjunto dos bens que não foi anulado ou emendado.”

Concluiu o tribunal “a quo” que se mantém, assim, “a necessidade de julgar a alegada incorreta descrição dos bens, incluindo o seu valor, que terá conduzido ao erro. Não obstante o decidido no acórdão de 12.10.2021, mantém-se a dúvida sobre a incorreta descrição e avaliação dos bens que terá viciado a vontade das partes. Não se verifica, pois, a inutilidade superveniente da lide.”

17. Com efeito, o referencial de uma emenda à partilha deverá ser a própria sentença homologatória da partilha, uma decisão à qual está inerente um verdadeiro julgamento, não obstante o juiz se limitar “(…) a fazer um controlo de legalidade, a verificar se o mapa da partilha aparenta conformidade com a lei (capacidade e legitimidade das partes, respeito pela forma à partilha e operações subsequentes e respeito pelas normas legais imperativas), de uma forma perfunctória e sem necessidade de uma exaustiva indagação” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-11-2021, Processo n.º 26583/15.2T8LSB.L1.S1).

Efetivamente, ainda que o papel do juiz na prolação da decisão homologatória da partilha, prevista no artigo 66.º do RJPI, se reconduza a um controlo meramente formal da legalidade dos atos praticados no processo – e não a um controlo real e efetivo da atividade do notário ao longo do processo – em tal ato é proferida uma decisão (artigo 152.º, n.º 1, do CPC) a respeito do modo de proceder à partilha dos bens. Tal sentença, que apresenta uma natureza “meramente certificativa”, absorve o conteúdo do mapa da partilha que, por sua vez, deverá ser organizado de acordo com o despacho do notário determinativo do modo como deve ser organizada a partilha (cfr. 57.º, n.º 2 e 59.º, n.º1, do RJPI). De resto, é em homenagem ao princípio da verdade material que o legislador, em processo de inventário, “chega ao extremo de conduzir à possibilidade de emenda ou de anulação da partilha mesmo depois do trânsito em julgado da respetiva sentença homologatória” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24-09-2020, Processo n.º 3860/10.3TJCBR-B.C1.S1).

Nesta base, a sentença homologatória, uma vez transitada em julgado, tem importantes reflexos ao nível da estabilização da partilha, sendo o mapa da partilha, associado à respetiva sentença, que servirá de título para efeito de registo de transmissão de bens e de título executivo (art. 703.º, n.º 1, al. a), do CPC) para instruir eventual ação executiva destinada à sua entrega (cfr. Miguel Teixeira de Sousa/Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Coimbra, Almedina, 2020, pp. 132-133)

18. Se assim é, não poderemos, em tese, afastar a possibilidade de a anulação de uma primitiva sentença homologatória da partilha, prolatada por referência a um determinado mapa, impactar o objeto de uma posterior ação declarativa – como a presente – em que se peticiona a emenda dessa mesma partilha.

Com efeito, entre os objetos das duas causas não se poderá deixar de divisar uma relação de prejudicialidade que deverá ser juridicamente enquadrada, não na inutilidade superveniente da lide por impossibilidade de atingir o resultado visado, como entendeu o tribunal de 1.ª instância, mas sob a ótica da autoridade do caso julgado.

De facto, embora a impossibilidade da lide se dê quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se possa manter em virtude do desaparecimento do objeto do processo, não se deve confundir, como advertem José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (in Código Processo Civil Anotado, volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, p. 546) tal causa de extinção da instância, sem apreciação do mérito, com a decisão de uma questão prejudicial, que tem reflexos no mérito do pleito.

Aprofundemos a análise.

Da leitura conjugada dos artigos 580.º, n.º1, 581.º e 619.º, n.º 1 e 621.º, n.º 1, do CPC alcança-se que existe caso julgado quando há repetição de uma causa depois de a primeira ter sido já decidida por decisão que já não admite recurso ordinário. Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa (in Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, pp. 567, 569, 570), “o caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso hierárquico.” Quanto ao âmbito da sua eficácia, o caso julgado material apresenta uma eficácia simultaneamente intra e extraprocessual, incidindo, em regra, sobre questões de mérito.

É reiteradamente afirmado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal (vide os Acórdãos do STJ, de 05-12-2017, proc. n.º 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1 , de 11-07-2019, proc. n.º 13111/17.4T8LSB.L1.S1, de 30-06-2020, proc. n.º 638/15.1T8STC.E1.S1 , de 25-03-2021, proc. n.º 17335/18.9T8PRT.P1.S1, de 24-05-2022, proc. n.º 882/12.3TBSJM.P3.S1, de 02-06-2023, proc. n.º 2381/19.3T8CBR.C1.S1) que o caso julgado poderá ser perspetivado segundo uma ótica disjuntiva que se encontra ligada ao cumprimento de duas funções: i) uma função negativa, operada através da exceção (dilatória) do caso julgado, que pressupõe a verificação cumulativa da tríplice identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir, nos termos do artigo 581.º do CPC ; e (ii) uma função positiva, que radica na figura da autoridade do caso julgado e que pressupõe que a decisão de determinada questão – proferida em ação anterior e que se inscreve, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda – não possa voltar a ser discutida.

É a vertente positiva da eficácia do caso julgado (autoridade do caso julgado) a que deverá ser convocada na análise que se empreende.

Nas palavras de Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (in Código Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pp. 598-599), o efeito positivo do caso julgado conferido pela figura da autoridade “assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (…).”.

Como explica Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, ob. cit., p. 575), “a relação de prejudicialidade entre objetos processuais verifica-se quando a apreciação de um objeto (que é o prejudicial) constitui um pressuposto ou condição do julgamento de um outro objeto que é o dependente.”

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem admitindo, em linha com a doutrina tradicional (Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, 1968, pp. 38 e ss., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, pp. 304 e ss., Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, ob. cit., pp. 572 e ss.), que a figura da autoridade do caso julgado apenas prescinde da identidade objetiva (identidade atinente aos pedidos e causas de pedir entre as duas causas), não abdicando, todavia, para fazer operar o seu efeito de vinculação do tribunal posterior à decisão proferida pelo tribunal anterior, da identidade subjetiva entre as duas causas (cfr., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de justiça, de 06-11-2018, Processo n.º 1/16.7T8ESP.P1.S1 , de 26 02-2019, proc. n.º 4043/10.8TBVLG.P1.S1 , de 30-06-2020, proc. n.º 638/15.1T8STC.E1.S1 , de 11-11-2020, proc. n.º 214/17.4T8MNC.G1.S1, de 22-06-2021, proc. n.º 1600/17.5T8PTM.E1.S1, de 21-06-2022, proc. n.º 43/21.0YHLSB.L1-A.S1 , de 29-09-2022, proc. n.º 5138/05.5YXLSB-F.L1.S1, de 25-03-2021, proc. n.º 12191/18.0T8LSB.L1.S1 e de 02-03-2023, proc. n.º 6055/18.4T8ALM.L1.S1).

Podemos, pois, enunciar, como princípio geral, que a verificação da figura da autoridade do caso julgado pressupõe, para além do trânsito em julgado da decisão anterior e da existência de uma relação de prejudicialidade entre as duas causas, a identidade subjetiva entre as mesmas, exigindo que as partes do processo, em que foi proferida a decisão a impor, sejam as mesmas do processo em que se pretende que seja imposta aquela decisão.

19. No caso, não obstante serem distintos os pedidos e causas de pedir entre a presente ação e o processo inventário, verifica-se uma identidade entre as partes nesta sede e as partes que figuram como interessadas naquele processo. Por outro lado, o inventário ao qual correm por apenso os presentes autos tem por objeto uma pluralidade de heranças cujo acervo se encontra descrito no mapa da partilha que veio a ser homologado por sentença. Desta forma, a apreciação do seu objeto, que culmina na operação de partilha, afigura-se como pressuposto necessário do julgamento do mérito da presente causa, em que se discute a emenda dessa mesma partilha.

Verifica-se, pois, uma relação de prejudicialidade entre os dois objetos que determina que o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no âmbito do inventário, já transitado em julgado, se imponha, por efeito da autoridade do caso julgado, na presente causa, vinculando o tribunal nesta ação de cariz dependente.

Numa outra formulação: a decisão que anulou a sentença que homologou a partilha cuja correção é peticionada nos presentes autos, e o respetivo mapa, não pode deixar de ser acatada nesta sede, por forma a que essa anulação não seja contrariada por uma decisão a proferir nestes autos que, eventualmente, venha a determinar a emenda de uma partilha desprovida de efeitos jurídicos.

Em abstrato – recuperando o raciocínio acima iniciado -, parece-nos, assim, inarredável a conclusão de que a decisão de anulação da partilha determinada no âmbito do processo de inventário se impõe, por via do efeito positivo do caso julgado, no processo em que se visa a emenda daquela mesma partilha. E, neste conspecto, a consideração de tal autoridade do caso julgado implicaria o conhecimento do mérito da causa, devendo conduzir a uma decisão de absolvição da ré do pedido por inexistência do objeto cuja emenda se almejava - o que, em tese, não impediria a autora de intentar nova ação de emenda da partilha por referência à nova sentença homologatória proferida.

20. No entanto, esta solução seria demasiado gravosa para a autora e fere o princípio da economia processual, pelo que, há que atender aos fundamentos do acórdão cuja autoridade de caso julgado se invoca.

Na situação em apreço, como notou o tribunal recorrido, os bens constantes do novo mapa de partilha de 02-03-2022 são os mesmos que constam do mapa datado de 20-10-2018, subjacente à primeira sentença homologatória, que veio a ser anulada. Por outro lado, o tribunal recorrido não conheceu da questão da avaliação dos bens, que considerou prejudicada, afirmando o seguinte: «Com o que resultam prejudicadas as questões a conhecer no recurso interposto pela apelante da sentença homologatória da partilha que se não reconduzam às acima decididas no âmbito do recurso interposto da decisão proferida relativamente ao requerimento de 25/3/2019».

Sem embargo das sucessivas alterações que foram sendo feitas à relação de bens pela aí cabeça-de-casal, ora ré, o acervo a partilhar que esteve na base da prolação das duas sentenças homologatórias permaneceu substancialmente análogo.

Se assim é, apesar de, formalmente e no plano da operatividade jurídica, a sentença homologatória, que incorporou o mapa da partilha cuja correção se pretende através do presente pleito, já não existir, do ponto de vista material, a nova sentença homologatória veio a absorver um mapa de partilha substancialmente igual àquele.

21. Daí que, a nosso ver, não se divise qualquer interesse fundado – seja do ponto de vista do princípio do contraditório, seja sob o prisma do princípio do dispositivo – que obste à apreciação da pretensão de emenda à partilha, deduzida pela autora, no presente pleito. Ao invés, o princípio da economia de processual – na vertente da economia de processos, segundo o qual cada processo deve resolver o maior número possível de litígios (cfr. José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 3.ª edição, Coimbra Editora, p. 2013, pp. 203-204) – interpretado de acordo com uma perspetiva substancialista funcionalmente orientada para a prevalência do fundo sobre a forma, aconselha a que a pretendida emenda da partilha seja apreciada no presente processo e não num eventual e futuro processo em que se discuta a correção dos elementos constantes de um mapa de partilha materialmente igual ao que esteve na génese da apresentação da presente ação declarativa.

22. Cumpre, por outro lado, salientar que, cotejado o pedido formulado nos presentes autos – que supra se detalhou –, constatamos que as emendas pretendidas pela autora na presente ação não foram acolhidas (pelo menos na sua integralidade) no mapa da partilha, datado de 02.03.2022, inerente à segunda sentença homologatória. Apenas nesse cenário se justificaria decretar a extinção da instância, não por impossibilidade superveniente da lide, mas por inutilidade superveniente da mesma, já que a pretensão da autora teria encontrado satisfação fora do esquema da providência requerida. Como tal não sucedeu, a presente lide mantém préstimo, não se justificando decretar a sua extinção.

23. O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12-10-2021, proferido no processo de inventário ao qual estes autos correm por apenso, que decidiu a anulação da partilha, não tem a virtualidade de esvaziar o objeto dos presentes autos, em que se pede a emenda da partilha. Assim, o pedido de emenda da partilha, para discutir o valor dos bens e a incorreta descrição dos imóveis, pode ser conhecido na presente ação declarativa. Obrigar a autora a intentar novo processo, que incidiria sobre a correção dos elementos constantes de um mapa de partilha materialmente igual ao que está na génese da apresentação da presente demanda, fere o princípio da economia processual.

Concluímos, pois, à luz dos argumentos expostos, pela manutenção do acórdão recorrido.

24. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I – O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12-10-2021, proferido no processo de inventário ao qual estes autos correm por apenso, que decidiu a anulação da partilha, ficando prejudicadas as restantes questões, não tem a virtualidade de esvaziar o objeto da presente ação declarativa, em que se pede a emenda da partilha.

II - Apesar de, formalmente e no plano da operatividade jurídica, a sentença homologatória, que incorporou o mapa da partilha cuja correção se pretende através do presente pleito, já não existir, do ponto de vista material, a nova sentença homologatória veio a absorver um mapa de partilha substancialmente igual àquele.

III – Esta é a solução que decorre do princípio da economia de processual, na vertente da economia de processos, segundo o qual cada processo deve resolver o maior número possível de litígios.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 16 de novembro de 2023

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

António Magalhães (1.º Adjunto)

Jorge Leal (2.º Adjunto)