Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃOJSTJ000 | ||
Relator: | RICARDO COSTA | ||
Descritores: | DUPLA CONFORME FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE REAPRECIAÇÃO DA PROVA PODERES DA RELAÇÃO MATÉRIA DE FACTO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PROVA VINCULADA VIOLAÇÃO DE LEI DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA | ||
Apenso: | | ||
Data do Acordão: | 11/02/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA (COMÉRCIO) | ||
Decisão: | NÃO CONHECIMENTO PARCIAL DO OBJECTO DA REVISTA E NEGADA A REVISTA. | ||
Sumário : | I- O art. 671º, 3, do CPC, determina a existência de “dupla conformidade decisória” entre a Relação e a 1.ª instância como obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal ou regra junto do STJ, em relação aos segmentos decisórios e seus fundamentos com eficácia jurídica autónoma (objecto de impugnação) nos quais se verifica identidade de julgados, sem fundamentação essencialmente diferente e sem voto de vencido, ou, para além disso, em que a decisão recorrida, no ou nos segmentos decisórios recorridos (mesmo que sem confirmação integral no dispositivo) e seus fundamentos atendíveis, se revela mais favorável, qualitativa ou quantitativamente, à parte recorrente (mesmo que só com procedência parcial do recurso), sem voto de vencido. II- A “dupla conforme” não se descaracteriza quando a argumentação do segundo grau de jurisdição não é integralmente coincidente com a fundamentação do primeiro grau num dos fundamentos autónomos da pretensão judicial desde que isso não implique um desvio no caminho interpretativo-aplicativo da sentença recorrida. Quando assim é, com adição ou esclarecimento ou assunção, mesmo que em sentido distinto, de argumentos em segunda instância, não existe diversidade essencial da fundamentação que obste à aplicação do art. 671º, 3, do CPC, uma vez que ambas as decisões judiciais convergiram inteiramente no aspecto absolutamente fundamental e decisivo na aplicação de um mesmo regime jurídico (no caso, a resolução condicional em benefício da massa insolvente do art. 120º do CIRE no que toca ao pressuposto da má fé do terceiro). III- O não conhecimento parcial do objecto do recurso por aplicação do art. 671º, 3, do CPC não obsta a conhecer do recurso na parcela de impugnação em que, ainda que de forma genérica, o recorrente almeja discutir e sindicar o uso do art. 662º, 1, do CPC em face da reapreciação da matéria de facto tal como solicitada na apelação, uma vez que tal sindicação afasta o efeito impeditivo da “dupla conformidade”, por ser imputável a uma decisão tomada em primeira linha pela Relação na prolação do acórdão recorrido. IV- A 2.ª instância assume-se como um verdadeiro e próprio segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto, com autonomia volitiva e decisória nessa sede, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostraram acessíveis com observância do princípio do dispositivo. V- Fundando-se o recurso de revista na averiguação das regras inerentes ao exercício dos poderes-deveres funcionais previstos no art. 662º, 1 e 2, do CPC quanto à reapreciação pela Relação da matéria de facto, sindicável nos termos do art. 674º, 1, b), do CPC, pode ser controlada a aplicação da lei adjectiva pela Relação em qualquer das dimensões relativas à decisão da matéria de facto provada e não provada – não uso ou uso deficiente ou patológico dos poderes-deveres em segundo grau, controlando o respectivo modo de exercício em face do enquadramento e limites da lei para esse exercício –, que, no essencial e no que respeita ao n.º 1 do art. 662º, resultam da remissão do art. 663º, 2, para o art. 607º, 4 e 5, do CPC (o n.º 2 já é reforço dos poderes em segundo grau), com a restrição constante do art. 662º, 4, do CPC («Das decisões da Relação previstas no n.os 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.»). VI- Sempre que essa reapreciação é feita e se move no domínio da livre apreciação da prova, sem se vislumbrar que se tenha desrespeitado a força plena de qualquer meio de prova, imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório, e cumprindo o dever de fundamentação especificada e motivação crítica que os n.os 4 e 5 do art. 607º do CPC e os princípios reitores do art. 662º, 1, do CPC impõem, essa actuação é insindicável em sede de revista, nos termos conjugados dos arts. 662º, 4, e 674º, 3, 1.ª parte, do CPC. | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3992/19.2T8OAZ-G.P2.S1 Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, ... Secção Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I) RELATÓRIO 1. «Banco Comercial Português, S. A. – Sociedade Aberta» intentou contra «Massa Insolvente da «J. C. Correia & Rebelo, Lda.» acção declarativa comum de impugnação de resolução de negócio em benefício da massa insolvente, por apenso ao processo de insolvência nº 3992/19.2T8OAZ (em que foi declarada judicialmente a insolvência da referida sociedade por quotas por sentença proferida em 23/1/2018, transitada em julgado), pedindo que: “(I) Seja declarada nula a resolução em benefício da massa insolvente do contrato de compra e venda celebrado, a 13 de Junho de 2019, entre o “BCP” e a sociedade insolvente; (II) Na hipótese de ser julgado improcedente o pedido formulado sob o n.º I, seja declarada a caducidade ou prescrição do eventual direito de resolução em benefício da massa insolvente, pelo decurso do prazo previsto no art. 123.º n.º 1 do CIRE; (III) Na hipótese de serem julgados improcedentes os pedidos formulados sob os n.os I e II, seja declarado que não se verificam os pressupostos de resolução em benefício da massa insolvente e, consequentemente, seja declarada a validade e plena eficácia perante a Ré Massa Insolvente do contrato de compra e venda celebrado, a 13 de Junho de 2019, entre o autor “BCP” e a sociedade insolvente; (IV) Seja declarado que o autor “BCP” é o legítimo possuidor e proprietário do prédio urbano correspondente a armazém destinado a atividade industrial, (…); (V) Seja condenada a Ré Massa Insolvente a entregar ao Autor “BCP” o imóvel referido no número anterior, livre de quaisquer ónus e encargos”. Subsidiariamente, na hipótese de não serem julgados procedentes os pedidos anteriores, pediu e requereu: “(VI) Ao abrigo dos arts. 51.º n.º 1, als. c) e d), e 126.º n.º 5 do CIRE, seja declarada a existência de um crédito do Autor sobre a Ré Massa Insolvente no valor global de € 508.876,61 (…), sujeito ao regime das dívidas da massa insolvente; (VII) Seja condenada a Ré Massa Insolvente a pagar ao Autor a quantia global de € 508.876,61 (…), antes de proceder ao pagamento dos créditos da insolvência (art. 172º n.º 1 do CIRE)”. 2. A Ré «Massa Insolvente» apresentou Contestação, concluindo pela improcedência da acção, sendo confirmada a declaração de resolução e a restituição do imóvel à massa insolvente e reconhecida a má fé do credor «BCP» e como tal serem graduados os seus créditos em conformidade e considerados como dívida da insolvente. A Autora «BCP» apresentou articulado de Resposta. 3. Foi proferido despacho saneador (23/10/2021), em que se fixou o valor da causa em € 500.000 e se declararam improcedentes as excepções de nulidade da declaração resolutiva e de caducidade do direito de resolução (este despacho foi objecto de recurso de apelação e prolação de acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, transitado em julgado). 4. Realizada a audiência final de discussão e julgamento, o Juiz ... do Juízo de Comércio de ... proferiu sentença (29/12/2022), na qual se decidiu que “se declara procedente a presente acção por ser válido o “Contrato de Compra e Venda” celebrado entre a insolvente e o Banco Comercial Português, S.A. e, consequentemente, o subsequente “Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º .......92” celebrado entre este último e a sociedade “T..... .........., Lda.", contratos que tinham como objeto o prédio urbano correspondente a armazém destinado a atividade industrial, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., sob o nº 1056 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 2270.º”. 5. Inconformada, a Ré «Massa Insolvente» interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que conduziu a ser proferido acórdão (16/5/2023), no qual se rejeitou integralmente a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto (factos provados 15., 32., 34., 38. e 39. como não provados, alteração dos factos provados 4. e 21., aditamento de factos) e foi julgada improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida no que respeita à “verificação dos pressupostos da resolução em benefício da massa insolvente”. 6. Sem se resignar, a Ré «Massa Insolvente» interpôs recurso de revista para o STJ, tendo por base o art. 671º, 1, do CPC, finalizando com Conclusões que, após reflectirem e sustentarem a inexistência de “dupla conformidade” decisória impeditiva da revista, incidem, igualmente e “ab initio”, sobre a sindicação do art. 662º, 1, do CPC na decisão sobre a reapreciação da matéria de facto. A finalizar, apresentou as seguintes Conclusões: 1. Não pode a MI conformar-se com a decisão proferida pelo douto acórdão da Relação, porquanto: i) Ofende os limites da livre apreciação da prova, atendendo que não faz qualquer análise crítica e objetiva dos factos apurados não extraindo dos mesmos as presunções que resultam da lei e das regras da experiência, da lógica e da razão. (ii) Desrespeita o disposto no artigo 662º do CPC, na medida em que pela prova documental e testemunhal (reproduzida pelas transcrições com a indicação concreta das passagens da gravação e integradas nas questões/factos concretos, que provam os pressupostos da resolução) lhe era devido um concreto e objetivo reexame e análise crítica da mesma e o seu enquadramento nos pressupostos da resolução incondicional e condicional dos negócios, prevista nos artigos 120º e 121º do CIRE. (iii) Ofende o princípio de igualdade na apreciação das provas e como tal a igualdade constitucionalmente garantida a um processo justo e equitativo e decide sobre questões sem qualquer prova ou que a prova existente e as presunções legais levaria a conclusão contrária (designadamente na questão da gratuitidade da cedência do imóvel à Insolvente pela sociedade T..... .........., Lda. e da possibilidade de recompra e à questão da avaliação de mercado do imóvel, quer a que consta no imóvel, quer à data dos negócios resolvidos). (iv) Além das regras da experiência comum e das circunstâncias sub judice a Apelação viola o disposto no artigo 240º, 393º, nº 3 e 394º, nº 2, do Código Civil ao considerar como provada a validade/eficácia das declarações presentes no “contrato” outorgado entre a devedora e a gerente da T..... .........., Lda., sociedade especialmente relacionada porque este contrato “que até foi junto pela MI, não tendo sido arguida a falsidade das assinaturas nele apostas, resultam como inequívocos os factos provados sob 38 e 39.” Repare-se que este “contrato” resolvido e junto pela MI como prova da má-fé dos intervenientes é usado pelos impugnantes da resolução em benefício da MI como contraprova da não verificação dos pressupostos da resolução e decidido pela Apelação como prova da ilição da presunção da má fé desta sociedade especialmente relacionada com a devedora e inclusivamente como prova da inexistência dos pressupostos da resolução incondicional pela Apelação. (v) Ofende o princípio do ónus da prova, nos termos do disposto no artigo 342º, nº 2, 344º, 346º e concretamente quanto à presunção de verdade das declarações do Plano de Insolvência, homologado por Sentença Judicial (Junto pelo A. – Doc. , designadamente, quanto questão do valor de mercado do imóvel declarado no mesmo – 700.000,00€ – ofende o disposto no artigo 347º, 371º e 394º, nº 1, todos do Código Civil. (vi) Faz errada interpretação da lei e do enquadramento jurídico dos factos. 2. Decidiu o Tribunal da 1ª instância, confirmada pela Apelação, que a resolução em benefício da MI não poderá produzir os efeitos legais pretendidos, desde logo, porque não se provou que os mesmos fossem prejudiciais para a MI, pois resultou provado que: (i) Deu liquidez à devedora (facto provado em 32); (ii) Que o BCP nunca teve o intuito de prejudicar qualquer credor da sociedade J. C. Correia (facto provado em 33) e que o imóvel continuou a ser usado a título gratuito pela devedora (facto provado 34 e 38); (iii) Ficou acordado nesse “contrato” que a devedora poderá recomprar até 2021 e passaria a pagar uma renda de 1.500,00 com início em 01/07/2021. 3. De modo evidente, se verifica erro manifesto por ausência de prova ao considerar que este negócio atribuiu liquidez à Insolvente e teve como propósito a solvabilidade da empresa. 4. Desde logo, porque se assim não fosse, não teria a Insolvente – que em 2016 se havia proposto a um PER e em 2018 a um Plano de Insolvência (vide Doc. 4 da Contestação) – se apresentado a escassos 5 meses dos negócios resolvidos a novo pedido de Insolvência, declarando a sua incapacidade de recuperação e de pagamento aos seus credores. 5. Perante este historial - conhecido pelo BCP- estranho seria não ter dificuldades de liquidez, contudo, esta dificuldade não terá impedido a Insolvente de cumprir com o pagamento das prestações ao BCP, durante o período da execução do Plano até à celebração dos negócios resolvidos. 6. Conforme resulta do teor do email do contabilista da devedora ao Sr. Administrador da Insolvência – Doc. 1 da contestação – relativamente à venda do imóvel ao BCP para dar de locação financeira à T..... .......... e ao contrário de que era declarado meses antes no Plano “Desta operação resultou uma menos valia para a empresa de cerca de 150.000€”. 7. Significa, portanto, que a venda do imóvel pelo preço de €500.000,00 – armazém industrial e edifício operacional da devedora - não supriu os custos efetivos da sua construção incluindo os custos com o financiamento da sua construção e (decorrente do contrato de locação financeira imobiliária nº .......06 e aditamentos cancelado, dias antes da apresentação da devedora à primeira insolvência por força do Acordo de Rescisão para regularização da dívida – cfr. factos alegados em 6 a 9, na carta e Doc. 11 e 12 da contestação). 8. Por outro lado, o valor de €192.048,42 efetivamente depositado pelo BCP – após a compensação do valor em dívida a este credor, que constitui prova para o Tribunal fundamentar a sua decisão da inexistência dos pressupostos da resolução ao atribuir a liquidez e possibilidade de “solvabilidade” da devedora, além de ter sido usado ainda para pagamento do valor da prestação ao BCP do Leasing serviu, fundamentalmente, para financiar a sociedade C.... . ........, Lda. – sócia da T..... .........., Lda. para onde lhe foram transferidos o valor total de 102 897,17€. 9. Forçoso é concluir que a factualidade dos autos demonstra precisamente o contrário, ou seja, que não só nada contribuiu para a sua solvabilidade – ao contrário do previsto no Plano com a cedência- como não lhe conferiu qualquer liquidez. 10. A apelação confirma, sem qualquer exame ou análise criítica do teor “contrato” celebrado entre a devedora e a gerente T..... .......... e recusa apreciar a impugnação aos factos provados 38 e 39, incompreensivelmente porque não foi arguida a falsidade das assinaturas. 11. Não tinha a MI que invocar a falsidade das assinaturas para alegar a simulação, até porque claramente as assinaturas não são falsas, como as declarações deste “contrato” – outorgadas pela devedora e T..... . ........., Lda. – demonstram inequivocamente o alegado na carta resolutiva. 12. De facto, não é objetivamente razoável ou lógico aceitar que uma sociedade que tem como escopo o lucro, ceda gratuitamente o gozo de um imóvel se efetivamente tivesse de suportar o valor da prestação à locadora (77.000,00€ como primeira prestação paga na data do contrato de locação financeira e 3.000,00€ nos meses seguintes). 13. Esta premissa imposta pelas regras da experiência comum, prova, desde logo, a divergência entre a declaração negocial e a vontade real dos declarantes. 14. De qualquer modo, resulta, como transcreveu a Apelante, do próprio depoimento da Dra. AA, funcionária do A., quando confrontada com o email a si dirigido pela devedora e não acreditando na gratuitidade declarada no acordo (Doc. 6 da PI) afirma categoricamente que o gerente da devedora lhe tinha dito que as rendas estavam pagas. 15. Ao contrário da possibilidade veiculada pela Dra. AA – para justificar o injustificável deste Acordo/Contrato – de poder ter sido acordado o redimensionamento do espaço e divisão do imóvel pela J.C. Correia, esclarece a testemunha BB (JC – anterior gerente da devedora) que, este armazém dadas as suas dimensões, permitia-lhe colocar todas as máquinas em linha, foi por isso, que pediu o financiamento para a sua construção ao BCP. 16. Quanto à questão da recompra do imóvel, bastaria o Tribunal cingir-se ao Regime Jurídico do Contrato da Locação Financeira (DL n.º 149/95, de 24 de Junho) para constatar dessa impossibilidade legal do Sr. Administrador da insolvência fazer cumprir o aludido contrato. 17. Obviamente, nunca seria aceite pelo locador a alegada e declarada no contrato possibilidade de “recompra”, pelo valor de 500.000,00 nem haveria forma legal de o obrigar. 18. Percebe-se, pois, que esse “contrato” é mais um ato/estratégia enganosa com a finalidade de retirar da esfera jurídica da insolvente o imóvel e mantê-lo na esfera jurídica do sócio gerente (filho do Sr. BB). 19. Resulta inequívoco que a Apelação assenta a sua motivação/fundamentação em factos inexistentes e legalmente impossíveis – a questão da “recompra” e não provados, fazendo-o sem qualquer reapreciação ou análise crítica. 20. Quanto aos pressupostos da resolução incondicional, no termos do artigo 121, alínea g) e h) a Apelação faz errado enquadramento dos factos e interpretação dos pressupostos previstos nestes normativos. 21. De facto, e relativamente à alínea g) é irrelevante se foi a devedora que sugeriu o negócio, o BCP não exigiu nada à devedora porque efetivamente o não poderia fazer, pois as prestações a que a devedora estava obrigada estavam ser cumpridas. 22. Se assim não fosse falhava o pressuposto de “que o credor não pudesse exigir”. 23. Pretendendo a devedora, de facto, a mera cedência de posição contratual à T..... .........., Lda. – com o intuito de o retirar da esfera jurídica da insolvente – foi o BCP que exigiu à devedora e em seu próprio e evidente benefício, a celebração destes negócios (vide em particular ao artigo 44 da PI). 24. E de modo evidente não o fez nos termos usuais no comércio jurídico da extinção das obrigações, pois foi na compra antecipada do imóvel pela insolvente que o BCP compensou o seu crédito – cfr. movimento bancário do extrato junto como Doc. 8 da contestação, para a insolvente voltar a vender para locação financeira à T..... ........... 25. Além disso, não foi a devedora que propôs a compra, porque efetivamente ainda não tinha decorrido o prazo acordado e porque decorre do teor do email junto na PI (doc. 6), mas o BCP que exigiu a compra antecipada por parte da devedora para se beneficiar da situação. 26. De igual modo, na compra e venda para destinar a locação financeira à T..... .........., Lda., não fora esta sociedade – especialmente relacionada com a devedora - que propôs/indicou a compra e venda do imóvel para o destinar a locação financeira, como prevê o artigo nº 1 do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, mas a própria insolvente com o único propósito de retirar o imóvel da esfera jurídica da Massa Insolvente. 27. Este normativo pretende a proteção dos credores da massa insolvente, a fim de evitar favorecimentos injustificados, com a violação do princípio da igualdade, presumindo a lei (presunção juris e jure) que a atuação atípica, não usual do devedor insolvente implica danos para os credores, o que efetivamente se verifica no presente caso. 28. Relativamente à alínea h) a Apelação viola o ónus da prova, pois presume verdadeiro que o valor do imóvel declarado no Plano de Insolvência, homologado por Sentença Judicial, era de 700.000,00, considerar o contrário é assumir – sem prova – que a devedora prestou falsas declarações. 29. Sendo certo que o BCP na qualidade de credor privilegiado na venda deste imóvel votou favoravelmente o Plano, sem qualquer reclamação, vir alegar que esse não era o valor do mesmo é abuso do direito na efetivamente esse não fosse o valor do imóvel não se entende como poderia o BCP na modalidade de venire contra factum proprium. 30. O mesmo se aplica ao sócio gerente da insolvente, seja ele o suposto executor do Plano – CC – ou os anteriores sócios-gerentes e seus pais e bem assim, a sociedade T..... .........., Lda., sociedade, como amplamente demonstrado pela Apelante e considerada procedente pelo douto Acórdão recorrido, especialmente relacionada com a devedora. 31. De qualquer modo, quer pela avaliação do imóvel junto aos autos, quer do depoimento objetivo e profissional do Avaliador resulta de facto provado que o valor do imóvel declarado no Plano de 700.000,00 está correto e que como é dito pelo avaliador que fez efetivamente esse estudo o valor em 2019 era de 736.000,00€. 32. Com efeito, considerando que antes dos negócios resolvidos, celebrados 5 meses antes da presente declaração de insolvência, a insolvente tinha uma dívida ao BCP no valor €305.152,56, aceitou vender o imóvel ao BCP – sede operacional da empresa – pelo valor de €500.000,00, quando o imóvel tinha, como era do conhecimento deste, o valor de mercado superior a 700.000,00, para o destinar a locação financeira à sociedade T..... .........., Lda., sociedade especialmente relacionada com a insolvente, tendo esta, logo após o negócio, transferido para esta sociedade e sua sócia a empresa C.... . ........ o valor total de 102 897,17€, e pago ainda o valor da prestação ao BCP e tendo este recebido de imediato e como primeira prestação o valor €77.000,00, forçoso é concluir que encontram verificados os pressupostos da resolução incondicional, nos termos do artigo 121, alínea h). 33. De qualquer modo e subsidiariamente, as provas quer documentais quer testemunhais provam inequivocamente os pressupostos da resolução condicional, não só pela evidente prejudicialidade dos negócios, mas também pela evidente má-fé dos intervenientes no mesmo, incluindo necessariamente o BCP, que não gozando da presunção da má-fé, prevista no nº 4, não pode ser considerado, pelas suas responsabilidades contratuais e conhecimento da situação da insolvente “terceiro” de boa fé.” O Autor apresentou contra-alegações, invocando desde logo a inadmissibilidade da revista por aplicação do regime do impedimento da “dupla conformidade” decisória prevista no art. 671º, 3, do CPC, e da impossibilidade, à luz da não alegação do art. 674º, 3, do CPC, de ser impugnada a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto, sustentando, quanto ao mais, a bondade do decidido na subsunção dos factos ao direito aplicável. 7. Subidos os autos ao STJ, foi proferido despacho no âmbito de aplicação do art. 655º, 1, do CPC, tendo em conta ser de ponderar o não conhecimento parcial do objecto do recurso. Responderam a Ré «Massa Insolvente», pugnando uma vez mais pela inexistência de uma situação de “dupla conforme” e pela violação do art. 662º, 1, do CPC, assim como a Autora, reiterando a inadmissibilidade da revista. ∗ Colhidos os vistos em cumprimento do art. 657º, 2, do CPC, cumpre apreciar e decidir, desde logo sobre a questão prévia da admissibilidade da revista. II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS 1. Questão prévia da admissibilidade da revista 1.1. A acção é tramitada por apenso aos autos principais de insolvência da sociedade «J. C. Correia & Rebelo, Lda.» (art. 125º do CIRE, in fine). Deste modo, o seu regime recursivo junto do STJ não segue o regime da revista, atípico e restritivo, contemplado pelo art. 14º, 1, do CIRE; antes segue o regime geral da revista enquanto espécie. Neste regime, inclui-se o impedimento que constitui irrecorribilidade para o STJ constituído pela “dupla conformidade”, tal como previsto no art. 671º, 3, do CPC. 1.2. O art. 671º, 3, do CPC, determina a existência de “dupla conformidade decisória” entre a Relação e a 1.ª instância como obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal ou regra junto do STJ, em relação aos segmentos decisórios e seus fundamentos com eficácia jurídica autónoma (objecto de impugnação) nos quais se verifica identidade de julgados, sem fundamentação essencialmente diferente e sem voto de vencido, ou, para além disso, em que a decisão recorrida, no ou nos segmentos decisórios recorridos (mesmo que sem confirmação integral no dispositivo) e seus fundamentos atendíveis, se revela mais favorável, qualitativa ou quantitativamente, à parte recorrente (mesmo que só com procedência parcial do recurso), sem voto de vencido. 1.3. Verifica-se que a fundamentação das instâncias no que toca à questão de direito dos fundamentos da resolução incondicional em benefício da massa insolvente do negócio impugnado – als. g) e h) do art. 121º do CIRE – são coincidentes (v., em confronto, as págs. 23-24 da sentença de 1.ª instância vs. as págs. 40-41 do acórdão da Relação). 1.4. Verifica-se que a fundamentação da 2.ª instância no que toca à questão de direito dos fundamentos da resolução condicional em benefício da massa insolvente do negócio impugnado – art. 120º do CIRE – é essencialmente coincidente, sem prejuízo de a 2.ª instância ter considerado que haveria a intervenção de “pessoa especialmente relacionada” com a insolvente no negócio celebrado entre a Autora e a sociedade “T..... ..........”, mas chegando ao mesmo resultado decisório no âmbito do mesmo enquadramento e instituto-regime jurídicos, fundamentando e concluindo, tal como se fez em 1.ª instância, que a má fé do terceiro contratante não existe no caso concreto como requisito de actuação dessa resolução condicional, seja por não provada nos termos do art. 120º, 5, do CIRE (fundamento seguido na 1.ª instância), seja por se considerar afastada a presunção do art. 120º, 4, do mesmo CIRE (v., em confronto, as págs. 21-23 e 24 da sentença de 1.ª instância vs. as págs. 41-47do acórdão da Relação1). Ora, a jurisprudência do STJ tem entendido com inegável consenso que a “dupla conforme” não se descaracteriza quando a argumentação do segundo grau de jurisdição não é integralmente coincidente com a fundamentação do primeiro grau desde que isso não implique um desvio no caminho interpretativo-aplicativo da sentença recorrida. Quando assim é, com adição ou esclarecimento ou assunção, mesmo que em sentido distinto, de argumentos em segunda instância, não existe diversidade essencial da fundamentação que obste à aplicação do art. 671º, 3, do CPC. Por outras palavras, para se implicar a intervenção do STJ “[é] necessário, para o efeito, uma modificação qualificada, essencial, da fundamentação jurídica que aos olhos das partes exiba a ideia de que as águas em que cada instância navegou são tão diferentes, que só mesmo as decisões são coincidentes”2. Isso significa que o obstáculo recursório da “dupla conforme” não se preenche com “qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica assumida pela Relação para manter a decisão já tomada em 1ª instância”; “[é] necessário, na verdade, que estejamos confrontados com uma modificação qualificada ou essencial da fundamentação jurídica em que assenta, afinal, a manutenção do estrito segmento decisório – só aquela se revelando idónea e adequada para tornar admissível a revista normal”, só se podendo considerar existente essa fundamentação essencialmente diferente se “a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância”3. Em suma, para se activar o recurso de revista é imperativo que a essencialidade da diferença do fundamento que confirma a decisão determine uma sucumbência qualitativa da parte prejudicada4, não relevando “uma diferente forma de apreciar um mesmo ponto relativo a um mesmo instituto”5-6. Pois bem. É inequívoco que ambas as decisões judiciais convergiram inteiramente no aspecto absolutamente fundamental: a consideração de inexistência de má fé do terceiro aqui Autor7, não podendo deixar, por isso mesmo, de ser atendida a pretensão que formulou nestes autos. O que só pode ter um reflexo nesta sede: ambas as instâncias basearam os seus veredictos na mesma fundamentação essencial e decisiva na aplicação de um mesmo regime do CIRE, sendo esta a razão central para que a acção proceda no pedido assente na resolução condicional do art. 120º do CIRE. 1.5. Acresce, por fim, que, para acautelar o efeito impeditivo da “dupla conforme” no segmento decisório coincidente nos julgados das instâncias no que concerne à matéria de direito, a Recorrente não interpôs, subsidiariamente, revista a título excepcional, nomeadamente tendo por base qualquer oposição jurisprudencial, que, a ser admitida (desde logo por não ser rejeitada de acordo com o art. 672º, 2, do CPC e remetida para apreciação da Formação Especial do STJ a que alude o art. 672º, 3, do CPC), neutralizaria o efeito que o art. 671º, 3, produz em sede de recorribilidade; nem, por outro lado, invocou qualquer fundamento de revista extraordinária (art. 629º, 2, do CPC). De tal modo que não resta senão concluir que o objecto do recurso interposto pela Recorrente não pode ser parcialmente admitido, no que respeita à reapreciação dos fundamentos da resolução do negócio em benefício da massa insolvente – Conclusões 1., (vi), 2. a 33. 2. Porém, identifica-se que, nas als. (i) a (v) da Conclusão 1., a Recorrente almeja discutir e sindicar o uso do art. 662º, 1, do CPC em face da reapreciação da matéria de facto tal como solicitada na apelação. Ora, tal sindicação descaracteriza o efeito impeditivo da “dupla conformidade”, por ser, simpliciter, imputável a uma decisão tomada em primeira linha pela Relação na prolação do acórdão recorrido. Razão pela qual, nesta parte e só nesta, admite-se e conhecer-se-á do recurso. 3. Factualidade 3.1. As instâncias consideraram como provados os seguintes factos: 1 – A 28 de dezembro de 2017, o BCP celebrou com a sociedade “J.C. Correia & Rebelo, Lda.” um contrato de locação financeira que tinha como objeto o prédio urbano correspondente a armazém destinado a atividade industrial, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., sob o nº 1056 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 2270.º. 2 – Ao abrigo deste contrato, o BCP cedeu o gozo do referido imóvel à sociedade insolvente pelo período de 10 (dez) anos e, em contrapartida, tinha direito a receber desta uma renda mensal de aproximadamente € 3.003,66 (três mil e três euros e sessenta e seis cêntimos), sendo que a primeira renda se vencia a 25 de janeiro de 2018 e as restantes no dia 25 de cada mês. 3 – Desde que pagasse todas as 120 (cento e vinte) rendas mensais na respetiva data de vencimento, a sociedade “J.C. Correia & Rebelo” tinha o direito de adquirir o imóvel locado, devendo, para este efeito, pagar ainda a quantia de € 33.132,68 (trinta e três mil, cento e trinta e dois euros e sessenta e oito cêntimos), acrescida de IVA à taxa legal em vigor. 4 – A celebração do contrato de locação financeira importava a concessão de um financiamento global de € 331.326,77 (trezentos e trinta e um mil, trezentos e vinte e seis euros e setenta e sete cêntimos). 5 – O BCP acordou com a sociedade “J.C. Correia & Rebelo” a concessão do direito de adquirir o imóvel ainda antes de findar o período contratual de 10 (dez) anos, desde que se encontrassem pagas todas as rendas vencidas e desde que a devedora manifestasse a sua intenção com 90 (noventa) dias de antecedência face ao momento da aquisição. 6 – Neste caso, o preço de transmissão do imóvel, por parte do BCP a favor da “J.C. Correia & Rebelo”, seria determinado em função do capital em dívida à data da transmissão (soma das rendas eventualmente vencidas e vincendas com o valor residual), acrescido de uma comissão de reembolso antecipado, correspondente a 5% desse valor, bem como de uma comissão de processamento da operação. 7 – O direito de propriedade do BCP encontrava-se registado sob a Ap. 23 de 2006/06/01 e o contrato de locação financeira foi registado sob a Ap. 2188 de 2018/01/02. 8 – A 23 de janeiro de 2018, a J.C. Correia & Rebelo, Lda., foi declarada insolvente no processo n.º 194/18.9..., que correu termos neste J.. 9 – No âmbito desse processo de insolvência, foi apresentado plano de insolvência, que foi aprovado e homologado por sentença transitada em julgado a 20 de julho de 2018. 10 – No que respeita aos contratos de locação financeira e leasing, o plano de insolvência salvaguardou a possibilidade de transmissão ou cedência da posição contratual, se tal se revelasse vantajoso para a execução do plano de solvabilidade da empresa, sendo sempre, no entanto, negociado caso a caso com a instituição financeira e leasing. 11 – A 21 de fevereiro de 2019, a “J.C. Correia & Rebelo” enviou ao BPC uma comunicação pela qual manifestou a sua intenção de comprar, antecipadamente, o imóvel locado, porque tinha um interessado na sua aquisição, mais propriamente a “T..... .........., Lda.”, a A. no apenso I. 12 – Tal comunicação tem o seguinte teor: Ex.ma Drª AA J.C. Correia e Rebelo, Lda., contribuinte n.º ... ... .77, vem para os devidos efeitos informar conforme o previsto no plano de Insolvência devidamente aprovado, homologado e transitado em julgado, que vai proceder à venda do pavilhão que tem um contrato de Leasing com o Banco BCP, S.A.. Assim, declara que está a negociar a cedência do pavilhão com a empresa T..... .........., Lda., contribuinte n.º ... ... .01, com sede em .... Mais informa que a referida venda de Leasing se engloba numa estratégia de capitalização da empresa, nomeadamente de tesouraria, e de possibilidade de recompra, bem como de uma utilização do espaço a título gratuito num prazo de 36 meses. Gostaríamos de saber à data de 8 de Março de 2019 o valor que deverá ser liquidado ao BCP, S.A. 13 – A 25 de fevereiro de 2019, o BCP informou a “J.C. Correia & Rebelo” que o valor global a liquidar para que pudesse exercer o direito de adquirir antecipadamente o imóvel ascendia a € 393.852,27 (trezentos e noventa e três mil, oitocentos e cinquenta e dois euros e vinte e sete cêntimos). 14 – A “J.C. Correia & Rebelo” informou o “BCP” que não tinha capacidade para liquidar este valor e, assim, adquirir antecipadamente o imóvel e, por essa razão, indicou a “T..... ..........” como sociedade interessada em liquidar este valor e em adquirir o direito de propriedade sobre o imóvel. 15 – A T..... .........., por sua vez, solicitou ao "BCP" a concessão de um financiamento, na forma de locação financeira, para a aquisição do referido imóvel. 16 – A 20 de março de 2019, o “BCP” apresentou à T..... .......... as condições em que estaria disponível para financiar a aquisição do imóvel, condições que foram por esta aceites. 17 – A “T..... ..........” e a devedora negociaram o valor pelo qual seria realizada a transmissão do imóvel e acordaram que o valor mais adequado ascendia a € 500.000,00 (quinhentos mil euros). 18 – O BCP condicionou o financiamento à T..... .......... à verificação de diversos atos prévios já que a devedora teria de adquirir, antecipadamente, a propriedade do imóvel locado, o BCP teria de adquirir à “J.C. Correia & Rebelo” o mesmo imóvel, para o poder ceder, ao abrigo de um contrato de locação financeira, à “T..... ..........”. 19 – A 13 de junho de 2019, a J. C. Correia comprou o referido imóvel por € 305.152,56 (trezentos e cinco mil, cento e cinquenta e dois euros e cinquenta e seis cêntimos), ao seu proprietário BCP. 20 – O “BCP” declarou ter recebido o preço, através de transferência bancária por débito na conta da “J.C. Correia & Rebelo” com o n.º .......55, domiciliada no BCP, para a conta n.º .....22 do BCP. 21 – O BCP financiou o preço pago pela "J.C. Correia & Rebelo" no valor global de € 307.973,91 (trezentos e sete mil, novecentos e setenta e três euros e noventa e um cêntimos), quantia que, a 13 de junho de 2019, foi debitada na conta da sociedade “J.C. Correia & Rebelo” com o n.º .......55. 22 – Na mesma data (13 de junho de 2019), o BCP comprou o mesmo imóvel à “J.C. Correia & Rebelo” por € 500.000,00 (quinhentos mil euros), dizendo que pagava o preço mediante transferência bancária por débito na conta n.º .....51 domiciliada no BCP para a conta n.º .......55 da vendedora junto do Banco. 23 – A quantia de € 500.000,00 foi, então, creditada na conta n.º .......55 da “J.C. Correia & Rebelo”. 24 – Contudo, como o “BCP” tinha um crédito de € 307.973,91 (trezentos e sete mil, novecentos e setenta e três euros e noventa e um cêntimos) sobre a sociedade “J.C. Correia & Rebelo”, o preço de € 500.000,00 (quinhentos mil euros) foi pago da seguinte forma: a) € 307.973,91 foram pagos com o crédito, no mesmo montante, que o autor “BCP” tinha sobre a sociedade “J.C. Correia & Rebelo”, conforme acordo prévio à aquisição, por parte desta sociedade, do imóvel (com esta compensação, a conta bancária com o n.º .......55 passou a ter saldo positivo); b) € 192.026,09 foram transferidos para a conta bancária n.º .......55 da “J.C. Correia e Rebelo” junto do “BCP”. 25 – Ainda no dia 13 de junho de 2019, foi celebrado com a T..... .......... um contrato de locação financeira relativo ao mesmo prédio, sendo definido como valor total do financiamento € 500.000,00 (quinhentos mil euros). 26 – O "BCP", enquanto proprietário do imóvel, cedeu o gozo do mesmo à T..... .......... pelo período de 15 (quinze) anos, sendo que, em contrapartida, esta tem de pagar rendas mensais. 27 – No dia 13/11/2019 a devedora apresentou-se à insolvência (nestes autos), a qual foi declarada por sentença proferida no dia 21/11/2019. Os autos prosseguiram para liquidação. 28 – Por carta registada datada de 2/07/2020 e dirigida ao BCP, o AI nomeado nestes autos declarou resolver em benefício da MI os negócios que descreveu. 29 – A carta de resolução tem o seguinte teor: 1 – No dia 13 de Junho de 2019, a insolvente outorgou um contrato de compra e venda do imóvel onde funcionava a sede da sociedade, sito em ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 1056, da freguesia de ..., inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 2270, da União das freguesias de ... e .... 2 – No âmbito do referido contrato de compra e venda a insolvente vendeu ao Banco Comercial Português S.A e este adquiriu o imóvel alegadamente pelo valor de 500.000,00€. 3 – Este negócio foi celebrado com o propósito de destinar o imóvel a locação financeira a T..... .........., Lda., NIPC .......01, sociedade em que o sócio gerente da insolvente tem também participação societária. 4 – Em conformidade, foi celebrado entre o BCP, S.A. e a T..... .........., Lda. o contrato de locação financeira nº .......92. 5 – Sucede que a alienação do referido imóvel para garantir o financiamento desta sociedade mais não foi do que o corolário de sucessivos atos concertados para retirar da esfera jurídica da insolvente o imóvel, com o propósito deliberado de prejudicar a massa insolvente e violar o princípio de igualdade dos credores. Senão vejamos: 6 – Em 8 de Setembro de 2006 foi celebrado entre a insolvente e o BCP, SA o contrato de Locação Financeira Imobiliária nº .......06, pelo prazo de 15 anos. 7 – Pela Ap. 2187 de 02 de Janeiro de 2018 foi cancelada o registo do predito contrato, na sequência da celebração de um “Acordo de Rescisão para Regularização de Dívida”; 8 – Simultaneamente a este Acordo foi registado um novo Contrato de Locação Financeira nº ........05, celebrado pelo prazo de 10 anos, com início a 28/12/2017. 9 – Em 15 de Janeiro de 2018 a devedora apresenta-se à insolvência, declarada no dia 24 do mesmo mês, no âmbito do processo nº 194/18.9..., com encerramento a 19.12.2018 na sequência da homologação do Plano de Insolvência apresentado pela insolvente. 10 – Cinco meses anteriores à data da declaração da presente insolvência e aquando da celebração do contrato de compra e venda e do subsequente contrato de locação financeira com a sociedade “T..... .........., Lda., supra referidos nos pontos 3 e 5, a insolvente celebrou com a mesma instituição financeira um contrato intitulado “Compra e venda por opção de compra antecipada ao abrigo do contrato de locação financeira imobiliária nº .......05”. 11 – A referida aquisição do imóvel por parte da insolvente seguida da alienação ao BCP, S.A. resultaram, antes de mais, na extinção da totalidade da dívida da insolvente ao credor BCP, S.A. 12 – Acresce que, com o aludido contrato de locação Financeira à T..... .........., Lda. pretendeu a insolvente salvaguardar o gozo do imóvel aos seu sócio-gerente e possibilidade da sua restituição. 13 – Assim e pelo exposto, porque prejudiciais à massa insolvente, de má-fé e violadores do princípio da igualdade dos credores, considera-se RESOLVIDO “Contrato de Compra e Venda” celebrado entre a insolvente e o Banco Comercial Português S.A. e, consequentemente, o subsequente “Contrato de Locação Financeira Imobiliária nº .......92” celebrado entre este último e a sociedade “T..... .........., Lda.”. 30 – O BCP só aceitou o exercício antecipado da opção de compra por parte da sociedade “J.C. Correia & Rebelo” porque já havia acordado que esta iria, de seguida, vender o mesmo imóvel ao “BCP”, para que fosse concedido um financiamento, em forma de locação financeira, à sociedade “T..... ..........”. 31 – À data em que celebrou este negócio jurídico, o "BCP" não conhecia qualquer facto que indiciasse que a sociedade "J.C. Correia & Rebelo" já se encontrava em situação de insolvência. 32 – A “J.C. Correia & Rebelo” não tinha capacidade financeira para adquirir antecipadamente o imóvel ao “BCP”, pelo que, com esta série de negócios, foi possível extinguir a sua dívida perante o Banco, bem como obter o montante de € 192.026,09 (cento e noventa e dois mil, vinte e seis euros e nove cêntimos) com o qual a devedora cumpriu encargos. 33 – O BCP nunca teve o intuito de prejudicar qualquer credor da sociedade “J.C. Correia” e nunca favoreceu a “T..... ..........”. 34 – O imóvel continuou a ser utilizado pela insolvente, mesmo após ter sido vendido pelo "BCP" à sociedade "T..... ..........", mas, a partir dessa data, a título gratuito. 35 – CC, casado com DD, foi nomeado gerente da devedora no dia 01/07/2019. 36 – Até essa data, os gerentes da devedora foram EE e FF, os quais assinaram, em nome da devedora e em sua representação, o contrato de compra antecipada do imóvel e o contrato de compra e venda do mesmo imóvel ao BCP, no dia 13/06/2019. 37 – Já o contrato de locação financeira celebrado entre o BCP e a “T..... ..........” foi assinado, em representação desta última, por GG e DD, a primeira na qualidade de gerente da “T..... .......... Lda.” e ambas na qualidade de gerentes da “C.... . ........” (sócia da primeira). 38 – Nesse mesmo dia 13/06/2019 a devedora, representada por EE e HH e a “T..... ..........”, representada por GG outorgaram um acordo que denominaram de “contrato” através do qual a “T..... ..........” permitiu que a devedora utilizasse o imóvel que lhe tinha sido dado em locação financeira, mas onde a devedora laborava, durante dois anos (até Junho de 2021) sem pagar o que quer que fosse. 39 – Mais acordaram que até ao dia 30/06/2021 a devedora podia recomprar o referido imóvel pelo valor pelo qual a “T..... ..........” o havia adquirido e no caso de não usar dessa faculdade passaria a pagar uma renda de 1.500,00€ mensais com início em 01/07/2021. 40 – A sociedade T..... .........., Lda. foi constituída a 10 de julho de 2012 e é sua gerente GG. 41 – As sócias primitivas desta sociedade são GG (quota de € 1.900,00) e II (quota de € 100,00). 42 – A 13 de junho de 2014, II cedeu a participação (€ 100,00) à C.... . ........ – Unipessoal, Lda. 43 – A 19 de junho de 2014, foi aumentado o capital social da “T..... ..........” para € 30.000,00 e as participações passaram a ser de € 28.500,00 de GG e de € 1.500,00 de C.... . ........ – Unipessoal, Lda. 44 – C.... . ........ – Unipessoal, Lda. foi constituída em 25 de janeiro de 2011 com o capital social de € 5.000,00, detido apenas por GG, que era também gerente. 45 – A 20 de dezembro de 2016, GG cedeu uma quota de € 2.500,00 a CC. 46 – CC foi também designado gerente. 47 – A 24 de julho de 2018, CC renunciou ao cargo de gerente e foi designada, em sua substituição, DD (com ele casada). 48 – A 25 de junho de 2018, CC cedeu a sua quota de € 2.500,00 à sua esposa DD. 49 – Após ter ficado com um saldo positivo de 192.048,42€, a conta da devedora foi movimentada nos seguintes termos; • A 17/06/2019 foi efectuada uma transferência a favor da C.... . ........ no valor de 50.000,00€; • A 17/06/2019 (data valor de 27/05) é transferido para o BCP o montante de 3.696,47€; • A 17/06/2019 foi efectuada uma transferência a favor de JJ no valor de 7.380,00€; • A 17/06/2019 foi feito um pagamento de fatura a “A.......” no valor de 1.845,00€; • A 17/06/2019 foi feito um pagamento de fatura a “T..... ........” no valor de 23.985,00€; • Foram debitados 43,68€ (em diversas quantias devidamente discriminadas) relativas a comissão a descoberto, imposto sobre comissões, comissão de transferências, imposto de selo sobre comissões de transferências; • A 18/06/2019 foi efectuada uma transferência a favor da C.... . ........ no valor de 37.397,17€; • A 19/06/2019 foi transferida para a conta da devedora junto da C... a quantia de 2.500,00€; • A 24/06/2019 foi transferido para KK; • A 24/06/2019 foi transferido para LL 3.328,04€; • A 26/06/2019 foi transferido para S..... (Pag. Fatura) 8.500,00€; • A 26/06/2019 foi efectuada uma transferência para estrangeiro no montante de 1.501,04€; • A 01/07/2019 foi efectuada uma transferência para pagamento de empréstimo no montante de 15.500,00€; • A 02/07/2019 foi lançado a crédito um depósito de 3.090,04€; • A 05/07/2019 foram debitados os pagamentos dos vencimentos no montante de 3.191,50€; • A 08/07/2019 há uma transferência a favor da “S.....” no montante de 8.500,00€; • Nessa mesma data nova transferência para estrangeiro no valor de 1.501,04; • A 10/07/2019 pagamento de factura a MM no valor de 2.620,83€; • A 23/07/2019 (data valor de 31/05/2019) um crédito feito pelo BCP no valor de 632,94€. 50 – A 31/07/2019 a conta da devedora junto do BCP apresentava um saldo credor no montante de 28.562,49€. 3.2. Foi ainda considerada não provada a seguinte materialidade: a) Com este negócio não só foi transmitido o gozo do “edifício operacional” a terceiros, como não obteve a devedora qualquer contrapartida com o mesmo. b) O negócio resolvido não tenha sido o pretendido pelas partes, antes o pagamento do crédito do BCP e a transmissão do imóvel a pessoa especialmente relacionada com a devedora. c) O BCP soubesse, à data do negócio, que a devedora estava insolvente e que existia uma especial relação entre a devedora e a “T..... ..........”. d) Essa especial relação exista. e) O imóvel tinha, à data do negócio, o valor de mercado de 770.000,00€. f) A devedora, com o montante obtido com o negócio beneficiou pessoas consigo especialmente relacionadas. 3.3. Por fim, releva, para efeitos processuais, o que foi exposto e descrito supra, no Relatório. 4. Fundamentação de direito no objecto parcialmente admitido 4.1. O art. 662º constitui a norma central de atribuição de autonomia decisória à Relação em sede de reapreciação da matéria de facto, traduzida numa convicção própria de análise dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se encontrem disponíveis no processo. Começa tal atribuição por estar plasmada na prescrição-matriz da competência de reavaliação factual do n.º 1, sem dependência de provocação pelas partes em sede de recurso para esse efeito: «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.» Depois, o n.º 2 do art. 662º, 2, do CPC estabelece verdadeiros poderes-deveres funcionais e qualificados (a lei diz «deve ainda, mesmo que oficiosamente») sempre que, aquando da reapreciação da prova sujeita à livre apreciação, não resulte uma convicção segura e fundamentada sobre os factos, uma vez confrontada com a motivação e a decisão reflectidas na 1.ª instância. Nomeadamente quanto às als. a) e b) (ordenar a renovação de certos meios de prova sempre que haja dúvidas sérias sobre a credibilidade de algum depoimento ou sobre o respectivo sentido; ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em 1.ª instância relativamente a determinado ou determinados factos controvertidos, a produção de novos meios de prova), consagram-se poderes claramente ordenados a possibilitar à Relação a resolução de dúvidas que se afiguram perceptíveis quanto ao apuramento da verdade de certos e determinados factos alegados pelas partes, criando, dessa forma, condições de igualdade com a 1.ª instância na observação directa da fonte de prova ou no acesso a novos meios de prova8 e, assim, fazer verdadeira e autónoma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados e formar a sua própria convicção, em resultado, se for o caso, das provas que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa9. Com isso, evita-se, ademais, que a Relação parta para a construção de presunções judiciais para a dedução desses factos sobre cuja verificação teve dúvidas, sem uma adequada base dedutiva para a elaboração lógica dos factos desconhecidos, quando tem ao seu dispor, antes disso, uma competência probatória idónea a ultrapassar dúvidas relevantes. Em acrescento, vislumbram-se ainda competências habilitadas a, em confronto com a decisão de 1.ª instância, sanar deficiências, obscuridades, contradições e incompletudes, mesmo de fundamentação, nos termos das als. c) e d) do art. 662º, 2. Acrescente-se que as diligências complementares e extraordinárias a fazer pela Relação, tendo como foco nomeadamente as als. a) e b) do art. 662º, 2, devem ser ajuizadas como fundamentais para o apuramento da verdade material condicionante da resolução do mérito do litigio. Para isso, tais poderes-deveres não dependem de iniciativa das partes (nem são direito potestativo que lhes assista)10. São (ou podem-devem ser) exercidos oficiosamente e aspiram à formulação de um resultado judicativo próprio, destinado a “superar dúvidas fundadas sobre o alcance da prova já realizada”11. Estamos verdadeiramente perante deveres processuais de carácter vinculado, impostos para “proceder a um (verdadeiro) novo julgamento da matéria de facto, em ordem à formação da sua própria convicção, designadamente verificando se a convicção expressa pelo tribunal a quo possuía razoáveis tradução e suporte no material fáctico emergente da gravação da prova (em conjugação com os mais elementos probatórios constantes do processo)”12. Logo, é de sustentar que (também) esse poder deve ser exercitado oficiosamente sempre que, objectivamente, as diligências probatórias a fazer têm uma relação instrumental decisiva para a afinação dos factos essenciais alegados como causa de pedir (ou dos factos complementares e/ou concretizadores aludidos no art. 5º, 2, do CPC) e que conferem um possível enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal de 1.ª instância, crucial para a correcta decisão de mérito da causa, desde logo por imposição do art. 411º do CPC, sob pena da sua violação13. Esta é uma intervenção que está de acordo com uma filosofia clara do CPC de 2013, em que, sem abdicar do princípio do dispositivo, “o tribunal também está comprometido com a verdade dos factos e daí que, por força do princípio do inquisitório, alguns desses factos possam vir a ser provados por mor da sua intervenção”, no contexto de um processo “trialógico”, “um processo de partes perante um juiz activo”14. Assim sendo, sublinhe-se, como tem sido sublinhado nesta instância, em particular nesta Secção. 4.2. A norma do art. 662º do CPC, como norma central de atribuição de autonomia decisória à Relação em sede de reapreciação da matéria de facto, começa por ser uma tarefa de reponderação da decisão sobre a decisão proferida sobre a factualidade em face dos factos assentes, da prova já produzida e plasmada nos autos e, bem assim, por documentos supervenientes que imponham ou (extensivamente) sejam susceptíveis (pela sua aptidão probatória) de impor uma decisão diversa da obtida em 1.ª instância – este é o parâmetro de actuação imposto pelo n.º 1 do art. 662º. Essa reponderação, em termos de complementaridade, pode acarretar a convicção da existência de vícios “simples” ou “amplos” (fundamentalmente por omissão e lacuna) na decisão da Relação, que levem à mobilização dos poderes-deveres funcionais do art. 662º, 2, do CPC e suas consequências em ordem à estabilização da matéria de facto15. Ora. O STJ não pode sindicar, em princípio, o uso feito (particularmente de forma activa) das competências probatórias atribuídas pelo art. 662º, 1 e 2, tendo em conta a regra de insindicabilidade do n.º 4 do art. 662º. Porém, esta solução não impede, abrigado no fundamento da revista previsto no art. 674º, 1, b), do CPC, que se verifique se a Relação, ao usar tais poderes, agiu dentro dos limites configurados pela lei para esse exercício e/ou verificar se a Relação omitiu o exercício de tais poderes, que se impunham relativamente a aspectos relevantes para a decisão. Isto é, por um lado, a verificação-censura do mau uso (deficiente ou patológico) desses poderes; por outro lado, a verificação-censura ao não uso dos poderes16 – tudo conjugado como ainda vistos como sindicação de “errores in procedendo”. Serão sempre situações manifestas e objectivas de vício processual; mas são situações que, mesmo que residuais e muito limitadas, atentos os poderes do STJ, não podem ser ignorados, se assim for, na sindicabilidade da revista.17 4.3. Vista a pretensão recursiva, a Recorrente, de uma forma muito sucinta e genérica, censura a falta de mobilização dos ditames do art. 662º, 1, do CPC, por desconsideração da prova produzida para a demonstração de factos ou a extracção de presunções judiciais que permitiriam enquadrar o preenchimento dos arts. 120º e 121º do CIRE, assim como a alegada ofensa de disposições legais em sede probatória. 4.4. Neste âmbito, precisemos que o art. 662º do CPC, consagrando o duplo grau de jurisdição no âmbito da motivação e do julgamento da matéria de facto, estabiliza os poderes da Relação enquanto verdadeiro tribunal de instância, proporcionando a reapreciação do juízo decisório da 1.ª instância para um efectivo e próprio apuramento da verdade material e subsequente decisão de mérito. Por isso a doutrina tem acentuado que, nesse segundo grau de jurisdição, se opera um verdadeiro recurso de reponderação ou de reexame, sempre que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da matéria de facto em causa (em especial os depoimentos gravados), que conduzirá a uma decisão de substituição, uma vez decidido que o novo julgamento feito modifica ou altera ou adita a decisão recorrida.18 Sempre – nunca é demais enfatizar – com a mesma amplitude de poderes de julgamento que se atribui à 1.ª instância (é perfeitamente elucidativa a aludida remissão feita pelo art. 663º, 2, para o art. 607º, que abrange os seus n.os 4 e 5) e, destarte, sem qualquer subalternização – inerente a uma alegada relação hierárquica entre instâncias de supra e infra-ordenação no julgamento – da 2.ª instância ao decidido pela 1.ª instância quanto ao controlo sobre uma decisão relativa ao julgamento de uma determinada matéria de facto, precipitado numa convicção verdadeira e justificada, dialecticamente construída e, acima de tudo, independente da convicção de 1.ª instância19. Pois bem. Após transcrição da fundamentação de facto da 1.ª instância, sufragada pela conformidade com o exigido pelo art. 607º, 4, do CPC, o que se verifica objectivamente, a págs. 30 e ss do acórdão recorrido, é uma análise circunstanciada e detalhada de cada um dos segmentos factuais impugnados pela Recorrente (15., 32., 34., 38. e 39. para não provados; 4. e 21. para alteração; aditamento de factos), por um lado à luz dos ónus de alegação recursiva do art. 640º, 1, a) e b), do CPC – com rejeição, mas sem que este ponto conste do objecto recursivo –, e, por outro lado, à luz dos meios de prova disponíveis nos autos – em especial, depoimentos/declarações de parte, depoimentos de testemunhas e documentos vários (“emails”, cartas, incluindo a de resolução, e contrato celebrado em 13/6/2019, relatório de avaliação imobiliária), com o consequente reflexo no julgamento final: “os factos considerados com provados e não provados na sentença recorrida, face à improcedência da impugnação fáctica da ré/recorrente, manter-se-ão inalterados”. Dessa verificação decorre, em especial, que o acórdão recorrido, sempre que ultrapassado o crivo do art. 640º, 1, procedeu a uma análise do alcance da prova, nomeadamente testemunhal e documental, utilizando um método relacional, dotado de crítica racional nos aspectos tidos como essenciais e alinhando a prova considerada na sua globalidade para retirar conclusões sobre o alcance da impugnação feita sobre a factualidade provada e não provada em 1.ª instância. Não se demitiu nem se refugiou em critérios imprecisos nessa análise; não se espraiou em considerações genéricas sobre princípios de ordem processual; muito menos se escondeu em alusões vagas à tarefa de reapreciação fáctica para chegar às suas conclusões; antes se realiza uma convicção própria, reflectida na forma e nas razões com que se funda de maneira justificada a manutenção da factualidade provada e não provada. Mais. Nessa convicção não se exarou dúvida assente em depoimentos contraditórios, que nos remetesse para alguma das hipóteses do art. 662º, 2, do CPC, nomeadamente quando se confrontou com a prova testemunhal que pudesse contrariar o resultado conferido pela prova documental constante dos autos, transparecendo dela um inequívoco e seguro fio condutor quanto à materialidade posta em causa pelo Recorrente em face da forma como foi tratada e conjugada a prova analisada20. Deu-se cumprimento aos n.os 4 e 5 do art. 607º no seu dever de fundamentação especificada, declarando para todos os factos reapreciados ou solicitados para alteração ou aditamento os motivos da sua decisão, sem que se concluísse dever alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto ou, para isso, tenha ponderado recorrer a presunções judiciais, não se vislumbrando desconformidade com os princípios reitores do art. 662º, 1, do CPC. Em suma. Regendo-se no domínio da livre apreciação da prova e sem se vislumbrar que tenha desrespeitado os limites da força probatória de qualquer meio de prova, muito menos imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório material (no que aqui mais interessa, quanto à força probatória dos depoimentos/declarações de parte, da prova documental e da prova testemunhal: arts. 466º, 2 e 3, do CPC, e 358º, 1 e 4, 361º, 376º e 396º do CCiv), estamos perante actuação processualmente lícita (art. 607º, 4, 5, 1ª parte, 663º, 1 e 2, CPC) e insindicável nos termos dos arts. 662º, 4 («Das decisões da Relação prevista nos n.os 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.»), e 674º, 3, 1.ª parte («O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista…), do CPC. Estando perante uma (re)apreciação legítima e sem desconformidade legal de força probatória e feita em regime de prova livre e “não tarifada”, não há como evitar a aplicação da irrecorribilidade ope legis em revista do acórdão recorrido das decisões em matéria de facto que a Recorrente pretendia ver agora reapreciada, falecendo a pretensão recursiva em 3.º grau. III) DECISÃO Em conformidade, julga-se: i. não tomar conhecimento parcial do objecto da revista no que respeita às Conclusões 1., (vi), e 2. a 33.; ii. julgar improcedente a revista no que respeita às als. (i) a (v) da Conclusão 1. na sindicação da aplicação do art. 662º pelo acórdão recorrido.* Custas da revista pela Recorrente. STJ/Lisboa, 2 de Novembro de 2023 Ricardo Costa (Relator) Graça Amaral Ana Resende SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).
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* Rectificado por acórdão proferido em conferência de 19/12/2023. 1. Neste avulta o seguinte trecho: “o contexto factual que se mostra apurado é de molde a concluir que a atuação do BCP nos negócios em causa nos autos não envolve má-fé, nos termos do art. 120º, nº 5, do CIRE, tal como a presunção de má-fé decorrente do art. 120º, nº 4, em virtude do relacionamento especial entre a insolvente e a “T..... ..........”, também se terá que considerar como afastada”.↩︎ 2. Ac. do STJ de 19/2/2015, processo n.º 1397/10.0TBPVZ.P1.S1, Rel. PIRES DA ROSA, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça – Secções Cíveis, 2015, https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/Civel2015.pdf, pág. 95, sublinhado nosso.↩︎ 3. V. Ac. do STJ (também) de 19/2/2015, processo n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1, Rel. LOPES DO REGO, in www.dgsi.pt.↩︎ 4. Assim: ELIZABETH FERNANDEZ, Um novo Código de Processo Civil? Em busca das diferenças, Vida Económica, Porto, 2014, pág. 190.↩︎ 5. MARIA DOS PRAZERES BELEZA, “Restrições à admissibilidade do recurso de revista e revista excepcional”, A Revista n.º 1, STJ, Lisboa, 2022, pág. 29 (disponível in https://arevista.stj.pt/wp-content/uploads/2022/07/a-REVISTA-N1.pdf).↩︎ 6. Sobre esta interpretação do art. 671º, 3, do CPC, v., mais recentemente, entre muitos outros, os Acs. do STJ de 26/11/2020, processo n.º 4279/17.0T8GMR.G1-A.S1, Rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO, 2/3/2021, processo n.º 1035/10.0TYLSB-B.L1.S1, Rel. RICARDO COSTA, 7/7/2022, processo n.º 2672/12.4TBPDLL1-A.S1, Rel. TIBÉRIO NUNES DA SILVA, 7/9/2022, processo n.º 28602/15.3T8LSB.L2.S1, Rel. RAMALHO PINTO, e de 17/10/2023, processo n.º 2237/18.7T8PNF.P1.S1, Rel. LUÍS ESPÍRITO SANTO, in www.dgsi.pt.↩︎ 7. Quanto a este requisito, o art. 120º permite fazer a distinção entre actos que podem ser resolvidos se o terceiro estiver de má fé presumida (n.º 4) e actos que podem ser resolvidos se o terceiro estiver de má fé provada (n.º 5) – cfr. ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, Um curso de Direito da Insolvência, Volume I, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, pág. 303.↩︎ 8. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 627.º a 877.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, sub art. 662º, págs. 170-171, 174-175.↩︎ 9. V. Ac. do STJ de 7/9/2017, Processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1, Rel. TOMÉ GOMES, in www.dgsi.pt.↩︎ 10. Por todos, v. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 640º, pág. 166, sub art. 662º, págs. 294-295, FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 536-537.↩︎ 11. ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 662º, pág. 298.↩︎ 12. FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II cit., pág. 537, completando: “Foi, assim, arredada a conceção segundo a qual a atividade cognitiva da Relação se deveria confinar, tão-somente, a um mero controlo formal da motivação/fundamentação efetuada em 1ª instância”.↩︎ 13. V. Acs. do STJ de 5/7/2022, processo n.º 400/180.0T8PVZ.P1.S1, com referência aos pontos II. e III do Sumário, e de 15/3/2023, processo n.º 2755/20.7T8FAR.E1.S1, sempre como Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎ 14. URBANO LOPES DIAS, “Limites do poder cognitivo do juiz – nas instâncias e no STJ”, Blog do IPPC, 3/4/2017, https://blogippc.blogspot.com/2017/04/limites-do-poder-cognitivo-do-juiz-nas.html, pág. 5.↩︎ 15. V. o Ac. do STJ de 5/7/2022 cit. (supra, nt. (13)), em referência aos pontos IV. e VI. do Sumário.↩︎ 16. V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.9.2013”, CDP n.º 44, 2013, págs. 33-34, ID., “Dupla conforme e vícios na formação do acórdão da Relação”, de 1/4/2015, in https://blogippc.blogspot.com/2015/04/dupla-conforme-e-vicios-na-formacao-do.html; ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 662º, págs. 312-313, sub art. 682º, págs. 435-436; JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º cit., sub art. 662º, pág. 177, sub art. 674º, pág. 232. Na jurisprudência do STJ, v. Acs. de 11/2/2016, Processo n.º 907/13.5TBPTG.E1.S1, Rel. ABRANTES GERALDES; 26/11/2019, processo n.º 431/14.9TVPRT.P1.S1, Rel. PEDRO LIMA GONÇALVES (“(…) das decisões da Relação incidentes sobre renovação da produção de prova ou sobre a produção de novos meios de prova, bem como dos restantes procedimentos afirmados nas alíneas c) e d) do nº 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil, não cabe recurso para o STJ, ou seja, este recurso está vedado sempre que a Relação na valoração que faça dos meios de prova a cuja reponderação tenha procedido não encontre dúvidas sobre a credibilidade do depoente ou o sentido com que deve valer o conteúdo do respetivo depoimento, nem sobre a prova realizada na 1ª instância. Assim, o recurso poderá ter lugar apenas quando, reconhecida uma situação de dúvida como a prevista nas alíneas a) e b), e com as deficiências constantes das alíneas c) e d), e confrontado, o Tribunal da Relação, em vez de cumprir o dever de a ultrapassar, lançando mão dos meios postos ao seu dispor para perseguir a descoberta da verdade, se remete à passividade, incumprindo a lei processual que lhe cominava esse poder-dever.”: sublinhado nosso); e 6/9/2022, processo n.º 3714/15.7T8LRA.C1.S1, Rel. GRAÇA AMARAL (“(…) estando em causa a apreciação de aditamento de matéria de facto relevante, uma vez que o acórdão recorrido entendeu não ser de conhecer da referida matéria, de acordo com os termos acima concluídos quanto à melhor interpretação do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, há que considerar que o tribunal a quo não logrou utilizar todos poderes que a lei lhe confere para o efeito (nomeadamente o poder/dever previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC). Consequentemente, não pode deixar de se considerar que a decisão de afastar a possibilidade de aditamento da matéria de facto indicada pelo Recorrente reconduz-se na violação do dever de reapreciação da referida matéria.”); sempre in www.dgsi.pt.↩︎ 17. Para tudo, v., ainda mais recentemente, os Acs. do STJ de 15/6/2023, processo n.º 6132/18.1T8ALM.L1.S2, e de 17/10/2023, processo n.º 2154/07.6TBPVZ.P2-B.S1, sempre como Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎ 18. V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A impugnação das decisões judiciais”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 395-396, 399-400, 400, 402-403.↩︎ 19. V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia”, CDP n.º 44, 2013, págs. 33-34, 36; na jurisprudência, v., exemplificativamente, os Acs. do STJ de 10/7/2012, processo n.º 3817/05.6TBGDM-B.P1.S1, Rel. FERNANDES DO VALE, e 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, Rel. AZEVEDO RAMOS, in www.dgsi.pt.↩︎ 20. Sobre o ponto, v. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º cit., sub art. 662º, pág. 170.↩︎ |