Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8782/19.0T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
HERDEIRO
HERANÇA INDIVISA
CESSÃO
QUINHÃO HEREDITÁRIO
FALECIMENTO DE PARTE
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
DECISÃO-SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DIREITO DE DEFESA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Apenso:
Data do Acordão: 11/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A DA RÉ; CONCEDIDA A REVISTA DOS AUTORES
Sumário :
I – Os herdeiros de um co-herdeiro falecido antes da partilha da primeira herança também gozam do direito de preferência na cessão de quinhão hereditário dessa 1.ª herança.

II - O exercício do direito ao contraditório em processo civil, diferentemente do que ocorre em sede de procedimento administrativo não exige que seja enviado ao interessado um projecto de decisão que, posteriormente depois de rebatidos os argumentos da defesa possa ser convertido em decisão definitiva bastando a concreta referência à sua possível condenação como litigante de má fé porque tal lhe permite exercer o seu direito de defesa.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

A. recurso de revista dos autores

AA, BB, e CC apresentaram recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que consideram enfermar de erro de direito tendo, para o efeito, apresentado alegações que terminam com as seguintes conclusões:

I – Da Nulidade do Acórdão

A - Por omissão de pronúncia

1. O Tribunal a quo apreciou a questão de litigância de má-fé por parte dos 1º, 2º e 3º Réus.

2. O Tribunal a quo considerou reprovável o comportamento processual deste Réus, tanto em Primeira Instância, como na Segunda Instância.

3. Contudo, olvidou-se de pronunciar-se e decidir sobre o pedido de indemnização formulados pelos Autores num valor nunca inferior a 10.000,00€, com vista ao reembolso parcial das despesas tidas, incluindo honorários de advogados.

4. Os AA pediram tal condenação em sede de Réplica, em tempo e lugar oportuno.

5. Certamente, por equívoco, o Tribunal a quo não se apercebeu de tal pedido formulado; não se pronunciando e decidindo, assim, sobre tal pedido.

6. Verifica-se haver uma omissão de pronúncia do Tribunal de Relação quanto a este pedido de indemnização peticionado pelos Autores; omissão essa que conduz à nulidade do Acórdão; nulidade essa que aqui se invoca para os devidos efeitos legais, conforme art. 615º, nº 1, al. d), do CPC.

B - Por excesso de pronúncia

7. O Tribunal a quo apreciou uma questão que não foi suscitada pelo Tribunal de Primeira Instância, não foi suscitada pelos Réus, tão pouco foi suscitada em sede de alegações de recurso apresentadas pelos Réus.

8. O Tribunal a quo ao pronunciar-se sobre a questão da qualidade ou não de herdeiros dos Autores AA e BB, por via de representação ou não, levantou uma questão não suscitada pelas partes e não objeto de recurso.

9. Nos presentes autos, encontram-se, ora na qualidade de Autores, ora na qualidade de Réus, todos os herdeiros, sucessores dos inventariados.

10. Por confissão dos Réus, foi aceite e reconhecido por todos os herdeiros das referidas heranças e Ré VJET que o AA, a BB e a DD estão em representação do pai EE nas heranças abertas por óbito da Exma. Sra. D. FF e do GG.

11. Perante tal confissão, não poderia, agora, o Tribunal da Relação colocar e decidir tal questão de qualidade de herdeiros dos Autores AA e BB, por via de representação do pai.

12. Verifica-se que o Tribunal a quo conheceu de questão que não poderia tomar conhecimento.

13. Verifica-se haver um excesso de pronúncia do Tribunal de Relação.

14. Tal excesso de pronúncia conduz à nulidade do Acórdão; nulidade essa que aqui se invoca para os devidos efeitos legais, conforme art. 615º n 1 al d) do CPC

II – Do Reconhecimento do direito de ação de direito de preferência dos Autores AA e BB

15. O Tribunal de Primeira Instância reconheceu integralmente o direito dos Autores, incluindo os Autores AA e BB, no exercício de direito de preferência sobre os quinhões cedidos objetos da presente demanda.

Acontece que,

16. O Acórdão do Tribunal da Relação do ..., objeto do presente recurso, revogou em parte tal decisão no que concerne ao exercício de direito de preferência do AA e BB, não reconhecendo o direito por eles exercido.

17. Só que, ao decidir desta forma, o Tribunal a quo não fez o correto enquadramento jurídico, decidindo, erroneamente, de direito.

18. Num processo de inventário, quem sucede ao inventariado são herdeiros ou legatários.

19. No caso dos autos, os Autores AA e BB não são legatários; pelo que, são, na verdade, herdeiros.

20. E, são herdeiros, independentemente, da forma como foram chamados à sucessão.

21. Tendo a qualidade herdeiros, os Autores AA e BB podem exercer o direito de preferência sobre os quinhões vendidos a terceiros estranho a herança.

De referir ainda que,

22. É consabido que o objetivo de tal direito de preferência fundamenta-se no propósito de evitar a dispersão dos bens que constituam a herança e de impedir que o património hereditário vá para outras pessoas que não os próprios herdeiros.

23. Tal propósito e direito é, de resto, um princípio fundamental do nosso ordenamento jurídico.

24. Tal propósito e direito têm razões ou condicionalismos de ordem cultural, social e política lhe foram assegurando uma vida longa nas legislações de inspiração romanista, e entre as quais se encontra a nossa.

25. E, quem pode exercer tal direito são os herdeiros e não herança indivisa.

26. Ou seja, tal direito pode ser exercido individualmente pelos Autores AA e BB ou em conjunto, não podendo é ser exercido pela herança indivisa do pai deles.

27. E, foi isso que foi feito nos presentes autos.

Sem prescindir,

28. Ao não ser assim entendido, seria negar um direito e uma possibilidade destes herdeiros, netos do inventariado, a hipótese de conservar o património na família, o que contraria a essência e o espírito vertido no art. 2130º do CC.

29. Pelo que, a haver dúvidas, deverá ser feito uma interpretação extensiva do referido normativo por forma a ser respeito a vontade do legislador.

30. Interpretação extensiva já feita pelo STJ em questão semelhante quando reconhece o direito dos co-herdeiros em exercer o direito de preferência da meação do cônjuge sobrevivo.

31. Neste caso concreto, a meação do cônjuge não é património da herança; contudo, no Espírito de conservar o património na família, é reconhecido aos herdeiros direito de preferência desta meação própria do cônjuge sobrevivo quando a mesma é vendida à estranho.

32. Ou seja, e por outras palavras, o direito de preferência dos co-herdeiros estende-se, também, à alienação que o cônjuge sobrevivo faça (a estranhos) do seu direito à meação.

33. Ora, de tudo o que ficou exposto, resulta claro que o Acórdão de fls. apreciou mal esta questão de direito que se lhe deparou.

34. O Tribunal a quo violou os ditames da lei insertos 615º n1al d) do CPC, não se pronunciando sobre um pedido formulando pelos Autores e pronunciando em excesso; o que conduz a nulidade do Acórdão.

35. O Tribunal a quo violou os ditames da lei insertos nos arts. 2130º, 1409º, 2030º, 2039º, 2042º e 9º todos do CC.

36. Da leitura e interpretação conjunta destes normativos, resulta clara que podem os Autores AA e BB, netos da inventariada FF, exercer tal direito de preferência na venda de quinhão dos tios (1º e 2º RR) a terceiro estranho à herança (3º R); e, ao exercer tal direito, fazem-no para conservar o património na família, evitando a entrada de estranho como Ré VJET.

Nestes termos, Requer-se a Vossas Excelências se dignem:

1 - Julgar nula a sentença proferida pelo Tribunal a quo ao abrigo do disposto no art. 615.º n.º 1 al. d) do CPC por omissão e excesso de pronúncia;

E, caso assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se equaciona,

2 - Julgar procedente o presente recurso, substituindo a decisão proferida pelo Tribunal a quo por outra que reconheça o efetivo direito de preferência aos Autores AA e BB na cessão dos seguintes quinhões hereditários:

- Quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da sua avó FF, cedido pelo 1º Réu à 3ª Ré, pelo preço de 62.500,00€, por escritura pública no dia 28 de Novembro de 2018, no Cartório Notarial da Dra. HH, sito na ...;

- Quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da sua avó FF, cedido pela 2ª Ré à 3ª Ré, pelo preço de 62.500,00€, por escritura pública no dia 28 de Novembro de 2018, no Cartório Notarial da Dra. HH, sito na ...,

– Condenando os Réus a isso ver ser decretado;

- Condenando a 3ª Ré a ver-se substituída pelos 2ºe 3º Autores nas versadas cessões de quinhões hereditários, devendo ser adjudicados, atribuídos e reconhecidos o direito de propriedade a favor dos 2º e 3ª Autores sobre os respetivos quinhões hereditários, nos termos supra exercidos, com as suas legais consequências.

A ré VJET - Invest, S.A., apresentou contra-alegações ao recurso de revista apresentado pelos autores que encerram com as seguintes conclusões:

1. Deve ser declarado procedente o incidente de valor e atribuído ao recurso o valor de € 125.000,00.

2. Não existe qualquer omissão de pronúncia, já que o pedido de indemnização formulado pelos Autores/Recorrentes, referente a alegada má-fé da Recorrida, não foi declarado procedente em 1.ª Instância e os Autores não arguiram a nulidade nem recorreram de tal decisão;

3. E tampouco requereram a condenação da Recorrida como litigante de má-fé, na sequência do recurso que esta ofereceu para o Tribunal da Relação.

4. E o Tribunal da Relação condenou a Recorrida como litigante de má-fé na sequência de tal recurso, e não pelo alegado na 1.ª Instância.

5. Por conseguinte, não pode aproveitar aos Recorrentes o pedido de condenação como litigante de má fé da Ré/Recorrida por eles formulado em 1.ª instância, pois que a condenação em que a Ré/Recorrida veio a incorrer ocorreu a título oficioso e apenas em 2.ª instância.

6. Verifica-se a autoridade de caso julgado em relação ao pedido que os Recorrentes formularam de condenação da Ré/Recorrida como litigante de má-fé, não podendo os Recorrentes aproveitar a condenação oficiosa que o venerando Tribunal da Relação decidiu promover, em relação ao articulado de recurso, para repristinar ou fazer retroagir o seu pedido a tal condenação.

7. Mas se não se verificar a autoridade de caso julgado, pelo menos em relação a tal pedido que os Recorrentes formularam existe o trânsito em julgado desse segmento decisório.

Sem prescindir,

8. Tampouco se verifica qualquer excesso de pronuncia, quando o Tribunal da Relação decide de direito pela ausência de verificação da qualidade de herdeiros nos Recorrentes.

9. Perante uma questão de conhecimento oficioso, o tribunal terá de a conhecer mesmo que ela não tenha sido abordada na decisão recorrida (certo é que se o não foi, devia ter sido, a menos que se trate de questão superveniente) nem tenha sido alegada na impugnação.

10. A falta de verificação da qualidade de herdeiro e, por isso, da legitimidade dos Recorrentes para o exercício do direito que se arrogam, enquadra-se em tais questões do conhecimento oficioso.

Sem prescindir,

11. Os Recorrentes pretendem que lhes deve ser reconhecido o direito, por alegadamente a Recorrida ter confessado o que eles alegaram.

12. Tal afirmação é falsa, pois que a Recorrida aceitou a relação familiar das partes, mas desde o início impugnou que a herdeira DD pudesse figurar na ação como Ré, já que mantinha, ou poderia manter, um interesse paralelo ao dos Autores.

13. De resto, nunca compreendeu a Ré/Recorrida que a ação e o correspondente pedido tivessem sido formulados contra aquela herdeira, pois que nenhum pedido podia ser dirigido, ou foi dirigido, contra a mesma.

14. E o acórdão da Relação do Porto veio conceder razão, ainda que com diversos fundamentos jurídicos, à Ré/Recorrida.

15. Antes da partilha existe apenas comunhão, pois a herança indivisa constitui uma universalidade de direito, com conteúdo próprio, sendo os herdeiros apenas titulares de um direito indivisível, enquanto não se fizer a partilha.

16. E, por tal motivo, não são titulares do direito de preferência.

17. Não existe, por isso, qualquer violação do direito na decisão recorrida.


***

B - recurso de revista da ré – VJET - Invest, Empreendimentos Imobiliários, S.A.

Vjet – Invest, Empreendimentos Imobiliários, S.A., apresentou recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que a condenou como litigante de má-fé tendo, para o efeito, apresentado alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1. A condenação da Ré como litigante de má-fé em 2.ª Instância ocorre com fundamentos confusos e inexistentes e que estava vedado ao Tribunal de recurso conhecer.

2. O Acórdão recorrido violou o disposto ao artigo 615.°, n.°l, alínea d), por remissão do artigo 666.°, ambos do C.P.C.

3. O Acórdão recorrido violou ainda, na sua interpretação e aplicação, o disposto ao artigo 609.°, n.°l do C.P.C., excedendo os limites da condenação ao seu alcance.

4. O Tribunal de l.ª Instância, ao qual havia sido submetida a questão da eventual condenação da Ré como litigante de má-fé, com fundamento em atuação substantiva relacionada com a dedução de oposição infundada, assim não a julgou.

5. Tendo tal questão sido definitivamente julgada na l.ª Instância, e não tendo sido objeto de recurso por banda da contraparte, estava vedado à 2.ª Instância "ressuscitar" tal questão. E muito menos interpretá-la como se de uma "reincidência" se tratasse.

6. Acresce que a Ré foi notificada para se pronunciar sobre a questão de uma eventual litigância de má-fé no recurso, mas tal não configura o cumprimento do contraditório, já que tendo a questão sido suscitada pela primeira vez na referida instância, após uma decisão que não havia conhecido de tal má-fé, havia necessidade de ter sido esclarecido à Ré qual a pretensão subjacente, e em que assentava, para que ela pudesse ter oferecido defesa conveniente.

7. Estava a Ré longe de imaginar que os Venerandos Desembargadores iriam - sem que tal tivesse sido colocado à sua apreciação - contornar o segmento decisório que não condenou a Ré em 1.ª Instância, e cominar-lhe tal sanção criminal em 2.ª Instância, desrespeitando tal princípio do contraditório ou acusação.

8. A Ré foi condenada por uma atuação, depois de ter sido absolvida por essa mesma atuação, o que se traduz na violação da garantia do processo equitativo e conduz à inexistência jurídica do Acórdão recorrido, nessa parte da condenação da Ré como litigante de má-fé, tendo-se verificado a violação do disposto ao artigo 20.º, n.º4 da CRP..

Sem prescindir,

9. Existe caso julgado parcial do segmento decisório que não condenou a Ré como litigante de má-fé pela sua atuação substantiva e processual em 1.ª Instância.

10. Se a Ré já tinha sido absolvida, ou pelo menos não tinha sido condenada, com fundamento nos factos e argumentação que ofereceu na sua defesa em Primeira Instância, não podia em Segunda Instância ser alterada tal decisão, já transitada, e condenar-se a mesma com o fundamento que estava a repetir tal defesa; defesa essa que não lhe havia gerado qualquer condenação ou cominação em 1.ª Instância.

11. Quando assim não se entenda, sempre deverá julgar-se prejudicado o direito de a 2.ª Instância alterar a decisão da 1.ª instância, relativamente a factualidade e atuação que não tinha sido censurada naquela 1.ª instância e que não tinha sido colocada à reapreciação da 2.ª Instância.

12. Estes mesmos factos, essa mesma putativa intenção e motivação, que não foram suficientes ou adequados a alcançar a condenação da Ré como litigante de má-fé na primeira instância, conduziram a que os Venerandos Desembargadores a condenassem em Segunda Instância.

13. A sanção aplicada pela 2.ª Instância à Ré pretende condená-la por uma atuação substantiva que em 1.ª Instância foi julgada definitivamente como inexistente.

14. Foram assim violadas as seguintes normas jurídicas: Artigo 542.º do C.P.C.

Artigo 615.º, n.º1, do C.P.C., por e remissão do artigo 666.º do C.P.C. Artigo 609.º do C.P.C. Artigo 3.º, n.º3 do C.P.C. Artigo 20.º, n.º4 da C.R.P.

TERMOS EM QUE, e nos melhores de Direito, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, na procedência do recurso, deve o douto Acórdão recorrido ser revogado, na parte em que condenou a Ré como litigante de má-fé.

Os autores não apresentaram contra-alegações.


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I.2 – Questões prévias

1.2.1 - Admissibilidade do recurso

O recurso de revista é admissível ao abrigo do disposto no art.º 671.º, do Código de Processo Civil quanto ao recurso interposto pelos autores e ao abrigo do disposto no art.º 542.º, n.º 3, também do Código de Processo Civil quanto ao recurso interposto pela ré.


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1.2.2 – Valor do recurso de revista

Nos termos do disposto no art.º 12, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, nos recursos, o valor é o da sucumbência quando esta for determinável, devendo o recorrente indicar o respectivo valor no requerimento de interposição do recurso.

A ré recorrente indicou, nas suas alegações, como valor do recurso: € 2.550,00 (Dois mil, quinhentos e cinquenta euros).

Nas contra-alegações a mesma ré indicou que “apesar de os autores atribuírem ao recurso o valor da acção este impende sobre a parte da sentença que absolveu a Recorrida do pedido formulado pelos aqui Recorrentes, que ascende a metade do valor total da ação, ou seja, que ascende a € 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros), já que na outra metade a Autora CC obteve procedência de causa.

Por conseguinte, ao recurso deve ser atribuído o valor de € 125.000,00 e não o valor de € 250.000,00.”

No despacho saneador, proferido em 15 de Junho de 2021 decidiu-se que:

Fixo à presente acção o valor de [250 000,00 + 300 000,00 =] € 550 000,00 - artigos 297º, 299º, 301º e 306º, todos do Código de Processo Civil.“

O primeiro valor 250 000,00€ correspondia ao valor indicado pelos AA, e o valor de 300 000,00€ ao valor indicado para a reconvenção.

O pedido reconvencional foi julgado improcedente, não sendo objecto de revista.

A sucumbência, no que ao direito de preferência diz respeito corresponde a 125 000,00€ - cessão de dois quinhão hereditários da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da sua avó FF, pelo preço unitário de 62.500,00€ - por o Tribunal da Relação ter julgado o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revogado a sentença recorrida na parte em que reconheceu e condenou nos efeitos do direito de preferência dos autores AA e BB na cessão dos quinhões na herança aberta por óbito da avó FF, absolvendo os réus do pedido nesta parte.

Tendo sido confirmada a sentença, no mais, isso significa que se mantém reconhecido e operante o direito de preferência da 1ª Autora CC na cessão dos seguintes quinhões hereditários:

- Quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu avô GG, cedido pelo 1º Réu, II, à 3ª Ré, Vjet – Invest – Empreendimentos Imobiliários, S. A., pelo preço de Euros 62.500,00, por escritura pública no dia 28 de Novembro de 2018, no Cartório Notarial da Dra. HH, sito na ...;

- Quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu avô GG, cedido pela 2ª Ré, JJ, à 3ª Ré, Vjet – Invest – Empreendimentos Imobiliários, S. A, pelo preço de Euros 62.500,00, por escritura pública no dia 28 de Novembro de 2018, no Cartório Notarial da Dra. HH, sito na ....

Quanto ao recurso apresentado pela ré que tem por objecto a sua condenação como litigante de má fé, como o valor da unidade de conta processual, prevista no n.º 2 do artigo 5.º do Regulamento das Custas Processuais, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, para o ano de 2023 corresponde a 102,00€ e a multa aplicada são 25 UC’s. {25 UC’s X 102,00€ = 2 550,00€}, tal corresponde ao valor de 2 550,00€.

Pelo exposto fixa-se o valor do recurso de revista apresentado pelos autores em 125 000,00€ e o valor do recurso de revista apresentado pela ré em 2 550,00€.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1. Nulidade por omissão de pronúncia

2. Nulidade por excesso de pronúncia.

3. Direito de preferência dos autores.

4. Condenação da ré como litigante de má-fé


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I.4 - Os factos

O acórdão recorrido considerou relevantes para a decisão do recurso os seguintes factos:

1. No dia ... de Janeiro de 2005 faleceu FF, casada com GG, sob o regime de comunhão geral de bens, em primeiras e únicas núpcias de ambos, com última residência na ....

2. No dia ... de Agosto de 2016 faleceu GG, no estado de viúvo de FF, com última residência na Rua ..., ....

3. Do matrimónio de ambos resultou três filhos, a saber: II, aqui 1º réu; JJ, aqui 2º ré; EE.

4. A falecida FF não deixou testamento ou qualquer disposição de última vontade,

5. Tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus filhos II, JJ, EE e seu marido GG.

6. O falecido GG deixou testamento, lavrado no Cartório Notarial do Dr. KK, sito no ..., no dia ... de Abril de 2011, nos termos do qual institui herdeira da quota disponível da sua herança, a sua neta, CC, aqui 1ª autora,

7. Tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus filhos II, JJ, EE e a sua neta CC, tudo conforme certidão de habilitação de herdeiros e certidão de testamento juntos cfr. doc. 1 e 2.

8. No dia ... de Setembro de 2018, faleceu EE, no estado de divorciado, com última residência na Rua Padre ..., ....

9. Do matrimónio tido, resultaram três filhos, a saber: EE, aqui 2º autor; BB, aqui 3ª autora; DD, aqui 4ª ré.

10. O falecido EE não deixou testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus filhos EE, BB, DD, conforme certidão de habilitação de herdeiros junta sob doc. 3.

11. Sucedendo, desse modo, o EE, a BB e a DD em representação do pai EE nas heranças abertas por óbito da FF e do GG.

12. As heranças abertas por óbito da FF e do GG encontram-se por partilhar e, assim, indivisas.

13. A herança dos falecidos é composta pelos seguintes imóveis:

a) urbano inscrito na matriz sob o artigo 5951 da freguesia de ..., ..., concelho de ...;

b) rústico inscrito na matriz sob o artigo 108 da freguesia de ..., concelho de ...;

c) quotas sociais na sociedade R..., Lda.., pessoa colectiva n.º ... ... .20, da qual faz parte o urbano inscrito na matriz sob o artigo 3051 da freguesia de ..., ..., ..., ..., ..., concelho do ....

14. Por escritura pública, celebrada no dia 28 de Novembro de 2018, no Cartório Notarial da Dra. HH, sito na ..., o 1º réu II e a 2ª ré JJ venderam à 3ª ré VJET quatro quinhões hereditários das heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de FF e de GG, de que eram titulares.

15. Mais concretamente, o 1º réu vendeu à 3ª ré o quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da sua mãe FF.

16. O 1º réu vendeu à 3ª ré o quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu pai GG.

17. A 2ª ré vendeu à 3ª ré o quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da sua mãe FF.

18. A 2ª ré vendeu à 3ª ré o quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu pai GG.

19. A venda de cada quinhão foi pelo preço de Euros 62.500,00, que foram pagos pela 3º ré aos 1º e 2ª réus, por transferência bancária no dia da celebração da escritura pública, tudo conforme escritura pública de cessão de quinhões hereditários junta como doc 4.

20. Os 1º, 2º e 3º réus não deram conhecimento aos restantes herdeiros, aqui autores, dessa intenção e visada cessão, designadamente do preço de venda, da identificação do adquirente, das condições de venda, da data prevista para escritura, por forma a que os co-herdeiros, entre eles a 1ª e o 2º e 3º autores, pudessem, oportunamente, exercer o seu direito de preferência.

21. Somente, no dia 11 de Dezembro de 2018, após a recepção de carta remetida pela 3ª ré ao 2º autor, este tomou conhecimento das referidas cessões de quinhões hereditários, à qual foi anexa a escritura pública, cfr. doc. 5.

22. E, posteriormente, deu conhecimento às suas irmãs e à 1ª autora, co-herdeiras dessas heranças abertas.

23. O autor AA, em 20 de Fevereiro de 2019, prometeu ceder o seu quinhão hereditário à empresa “P..., Unipessoal, Lda”, com o número de pessoa colectiva nº .......28, com sede na ..., sendo gerente da referida empresa LL, residente na Rua das ..., ....

24. Tendo estabelecido que o preço de compra e venda a pagar pela promitente compradora seria de €70.000,00, sendo pago na data do contrato, a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de €10.000,00 e a parte remanescente de €60.000,00 será paga no acto da escritura pública de compra e venda, vide contrato promessa junto aos autos a fls. 418.

25. Em 7 de Dezembro 2020 as aludidas partes declararam revogar o aludido contrato promessa, vide Revogação de Contrato Promessa de Compra e Venda de Quinhão Hereditário de fls. 427.

25-A Após isso, em 29 de Janeiro de 2021, os autores AA e CC outorgaram escritura pública intitulada «cessão de quinhão hereditário» na qual aquele declarou vender e esta declarou comprar os quinhões hereditários de que aquele era titular nas heranças abertas por óbito dos avós, pelo preço de €70.000.

26. Os réus procederam à rectificação do preço, através de escritura pública de 5 de Junho de 2019, e ao pagamento dos competentes impostos devidos ao Estado pela transmissão pelo correspondente preço de €550.000,00, conforme doc. 1 e 2 da contestação.

27. Consta do doc. 3 da contestação que:

No dia 28 de Novembro de 2018 o 1º réu, por si e em representação da 2.ª ré, celebram um acordo com a 3.ª ré, denominado “contrato sob condição”, subordinado às seguintes cláusulas:

«Contrato sob condição

Outorgantes:

Primeiro: II, divorciado, natural da freguesia de ..., concelho do ..., com residência habitual na Rua ..., nº 144, R/C, na ..., contribuinte n.º .......10, CC n.º ......55 0ZY0 válido até 16/06/2021;

Intervém por si e na qualidade de procurador de: JJ, divorciada, natural da freguesia de ..., concelho do ..., com residência habitual na Rua Padre ..., nº ..., ..., contribuinte nº .......08, no uso de poderes conferidos por procuração que é anexa a este contrato

Segunda: VJET- INVEST- Empreendimentos Imobiliários, SA, pessoa colectiva nº .......70, com sede na Rua ..., sala 2, ..., aqui representada por MM, solteiro, maior, natural da freguesia de ..., concelho de ..., residente no lugar de ..., em ..., concelho de ..., portador do CC n.º ......74 3ZY8, válido até 24/10/2027, e com poderes para o acto;

Primeira

O primeiro outorgante, e a sua representada, são donos dos quinhões hereditários que compõem as heranças ilíquidas e indivisas aberta por óbito de seus pais, FF, que também usava FF e FF, e marido GG, que eram residentes na Rua ..., habitação 03, na cidade do ...; faleceram, respectivamente, em ... de Janeiro de dois mil e cinco e em ... de Agosto de dois mil e dezasseis; foram casados um com o outro em únicas núpcias e no regime de comunhão geral de bens.

O autor da herança, GG, deixou testamento público, outorgado em quatro de Abril de dois mil e onze, exarado a folhas cento e sete, do livro quatro-T, do notário NN, com cartório na cidade do ..., no qual institui herdeira da quota disponível da sua herança a sua neta, CC, que também usa CC.

Segunda

As heranças, com os números de identificação fiscal 745.377.262 e 743.547.373, são compostas actualmente pelos seguintes imóveis: a) Prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 5951, da freguesia de ..., concelho de ...; b) Prédio Rústico inscrito na matriz sob o artigo 108 da freguesia de ..., concelho de ...; c) Quotas sociais na sociedade R..., Lda., pessoa colectiva nº 503.607.720, já dissolvida, mas ainda não liquidada, da qual faz parte o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 3051, da freguesia ... Nicolau e Vitória, concelho do ...;

Terceira

Nesta data, de vinte e oito de Novembro de dois mil e dezoito, o primeiro outorgante irá celebrar com a segunda outorgante escritura de cessão dos referidos quinhões hereditários, atribuindo a cada um de tais quinhões o preço de sessenta e dois mil e quinhentos euros.

Quarta

1.- Os outorgantes acordam que é condição essencial do preço atribuído à cessão de quinhões, que nesta data irão celebrar, a condicionante construtiva imposta pela Câmara Municipal ..., desde Julho de dois mil e dezoito, para o prédio que compõe as quotas da sociedade dissolvida, mas ainda não liquidada, da herança, inscrito na matriz sob o artigo 3051, da freguesia de ... Nicolau e Vitória, do concelho do ..., sito à ..., que determina que fracções com área inferior a cinquenta e dois metros quadrados apenas sejam autorizadas e licenciadas na construção, desde que sejam criados e associados às mesmas lugares de estacionamento.

2.- Em virtude de tal condicionante camarária, e porque a mesma restringe a capacidade construtiva do dito edifício, não podem ser projectadas e/ou desenvolvidas mais do que uma fracção de tipologia T-2 ou T-1+1, em cada piso, e com a necessidade de remodelar completamente o edifício, relocalizando e reestruturando a caixa de escadas e criando uma caixa de elevadores.

Quinta

Os outorgantes aceitam, e acordam reciprocamente entre si, que caso venha a ser alterada esta condicionante construtiva, ou confirmado que a mesma não é imposta pela Câmara Municipal ...; ou ainda, caso a segunda outorgante venha a obter o licenciamento e autorização de construção de mais do que uma fracção por piso, e com as dimensões mínimas necessárias, de forma a não ser obrigatória a criação de aparcamentos, o preço de cada quinhão hereditário será alterado de sessenta e dois mil e quinhentos euros para cento e trinta e sete mil e quinhentos euros, cuja diferença, no montante de setenta e cinco mil euros por cada quinhão, a segunda outorgante se obriga a pagar ao primeiro outorgante.

Sexta

1.- No caso de se verificar a condição prevista na cláusula anterior, o primeiro outorgante poderá exigir da segunda outorgante o pagamento do remanescente do preço.

2.- Caso não acordem na forma e prazo de pagamento do referido remanescente do preço, assiste o direito à segunda outorgante de proceder ao seu pagamento ao primeiro outorgante no prazo máximo de dois anos a contar da data em que vier a confirmar-se que não existe a condicionante construtiva camarária que à presente data consideram verificar- se, ou a partir da data em que vier a ser licenciado ou autorizado um qualquer instrumento administrativo camarário para realização de obras no referido prédio que consagre tais alterações construtivas, de criação de mais do que uma fracção em cada piso, ou a inexistência de imposição camarária de criação de lugares de estacionamento para fracções com menos de cinquenta e dois metros quadrados.

3.- Caso por qualquer motivo a segunda outorgante não vier a proceder a tal pagamento ao primeiro outorgante, ou não alcançarem acordo sobre a forma e modo do mesmo, assiste ao primeiro outorgante o direito a resolver o contrato de cessão de quinhões hereditários que nesta data irá celebrar, reavendo o primeiro outorgante para si os quinhões cedidos, contra a devolução, à segunda outorgante, do preço de sessenta e dois mil e quinhentos euros que ele irá receber por cada um deles.

Sétima

Este contrato, assim como a escritura de cessão de quinhões hereditários, que hoje será celebrada, é feito por preço global, sendo que em caso de anulação ou resolução da venda de um dos quinhões, todos os demais serão anulados e/ou resolvidos.

Por corresponder à sua vontade, assim o declararam.

Feito na P.... .. ......, ao 28 de Novembro de 2018.

Os primeiros outorgantes:

A 3.ª ré, conforme acima declarado, comprometeu-se a pagar aos 1.º e 2.º réus o remanescente do preço, no montante de €75.000,00 (…) para cada quinhão, e por forma a perfazer o total de €550.000,00 (…), caso viesse a confirmar a capacidade construtiva do prédio que compõe as quotas da sociedade dissolvida, mas ainda não liquidada, da herança, inscrito na matriz sob o artigo 3051, da freguesia de ..., ..., ..., ..., ..., do concelho do ..., sito à Praça ... ....»

28. Entretanto, a 3ª ré ajustou com os 1.º e 2.º réus que tal remanescente de preço, corrigido em relação ao preço originário, seria pago da seguinte forma:

- €85.000,00 (…) através da assunção da dívida que o primeiro outorgante, II contraiu perante OO e mulher PP, garantida por hipoteca celebrada no cartório notarial da Dra. HH em 18 de Dezembro de 2018, divida essa assumida em 9 de Abril de 2019;

- €215.000,00 (…) através da entrega de 10 cheques, com os seguintes montantes e datas de pagamento:

- €25.000,00 (…) cheque nº ........34 com data de vencimento o dia 05/06/2019

- €25.000,00 (…) cheque nº ........31 com data de vencimento o dia 05/07/2019

- €25.000,00 (…) cheque nº ........28 com data de vencimento o dia 05/08/2019

- €25.000,00 (…) cheque nº ........25 com data de vencimento o dia 05/09/2019

- €25.000,00 (…) cheque n.º ........22 com data de vencimento o dia 05/10/2019

- €30.000,00 (…) cheque n.º ........19 com data de vencimento o dia 05/11/2019

- €30.000,00 (…) cheque n.º ........16 com data de vencimento o dia 05/12/2019

- €30.000,00 (…) cheque n.º ........13 com data de vencimento o dia 05/01/2020.

29. Tendo a 3ª ré iniciado o seu pagamento, através de prestações mensais de €15.000,00 cada, que realizou em 30 de Abril de 2019, 29 de Maio de 2019 e 01 de Julho de 2019, e entregou aos 1.º e 2.º réus os cheques, de que já foi liquidado o primeiro, com o nº ........34, em 05 de Junho de 2019, debitado em 14 de Junho de 2019, conforme DOC.4, 5, 6, 7 e 8 da contestação.

30. O réu II comunicou ao Município ... se pretendia exercer o direito de preferência na aquisição do imóvel sita na Praça ..., no ..., em virtude de este imóvel se situar em local classificado como de “Interesse Público”,

31. Tendo esta entidade por carta datada do dia 23/10/2018 referido que não estava interessada na aquisição do imóvel, conforme carta junto sob doc. 2 da contestação.

32. Em 12/11/2018, através de carta, o réu II, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de FF de GG, notificou a autora- CC, para enviar cópia do contrato de arrendamento que havia celebrado com a empresa “R..., Lda.”, a fim de verificar a legitimidade daquela ocupar a fracção, conforme doc. 3.

33. A autora CC não enviou o contrato solicitado.

34. Os autores só tomaram conhecimento dos “acordos” com a notificação das contestações, nos presentes autos.

35. Quando os autores tomaram conhecimento da escritura pública de compra e venda do dia 28 de Novembro de 2018, em nenhum momento foi comunicado pelos réus II, JJ e Vjet a existência da agora “condição”, comunicando somente a concretização da compra e venda dos quinhões pelo valor global de Euros 250.000,00 e qual tal valor já tinha sido pago.

36. A primeira comunicação foi feita pelo réu II aos AA, verbalmente, nos dias seguintes à realização da escritura pública de compra e venda dos quinhões, em que comunicou a venda pelo preço global de Euros 250.000,00, nada falando sobre o “contrato sob condição”, tão pouco sobre a possibilidade do preço da venda acrescer mais do dobro.

37. Só mais tarde, com o recebimento da carta com data de 10 de Dezembro de 2018, enviada pela ré Vjet, é que os autores tomaram conhecimento efectivo de todas as condições do negócio.

38. E nessa comunicação, agora escrita, nada foi falado sobre o alegado “contrato sob condição”, sobre a possibilidade de o preço da venda acrescer mais do dobro, tão pouco, foi junto o tal “contrato sob condição” à referida carta, em que tinha sido junto a escritura pública de compra e venda do dia 28 de Novembro de 2018.

39. Do texto desta carta lê-se o seguinte: “Vimos, por este meio informar que, no passado dia 28/11/2018 adquirimos o quinhão hereditário que o II e JJ detinham na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de FF e de GG, falecidos em .../01/2005 e .../08/2016, respectivamente, conforme cópia da escritura que anexamos.”

40. Em 03 de Fevereiro de 2019, a autora CC cruzou-se, no prédio sito na Praça ..., pela primeira vez, com pessoas que se apresentaram como representantes da Vjet.

41. Surpreendida com essa presença, uma vez que, inicialmente, não sabia de quem se tratava, foi lhe comunicado os termos do negócio realizado com os réus II e JJ – pagamento dos quinhões pelo preço global de Euros 250.000,00, sem qualquer menção do alegado “contrato sob condição” e possibilidade do preço subir.

42. E nos contactos que a ré Vjet teve com o autor AA, no sentido de lhe comprar o seu quinhão, não mencionou nada sobre o alegado “contrato sob condição”.

43. Só com a entrada da presente acção, em 12 de Abril de 2019, após a Vjet ter sido citada, é que os réus II, JJ e Vjet engendraram esse plano, fabricando o documento, apondo-lhe um conteúdo e uma data falsa.

44. O documento denominado “contrato sob condição” e a escritura pública de rectificação não correspondem à vontade dos declarantes, foi celebrado com o intuito de enganar os autores.

45. Com data de 20 de Fevereiro de 2019 a autora BB e a P..., Unipessoal, Lda outorgaram documento particular intitulado «contrato-promessa de compra e venda de quinhão hereditário» no qual aquela declarou vender e esta declarou comprar os quinhões hereditários de que aquela era titular nas heranças abertas por óbito dos avós, pelo preço de €65.000, do qual seria pago de imediato a quantia de €10.000 a título de sinal e o remanescente aquando da outorga da escritura de compra e venda.

46. Com data de 19 de Fevereiro de 2021 a P..., Unipessoal, Lda e as autoras CC e BB e outorgaram documento particular intitulado «contrato de cedência da posição contratual de promessa de compra e venda de quinhão hereditário» no qual a primeira declarou ceder à segunda a posição contratual assumida pela terceira no documento referido no ponto anterior, sendo o preço da cedência de €10.000, que seria pago de imediato por transferência bancária.


***

II – Fundamentação

A. Recurso de revista apresentado pelos autores

1. Nulidade por omissão de pronúncia

Os recorrentes consideram que o acórdão recorrido enferma de nulidade por omissão de pronúncia por não ter decidido o pedido que os autores formularam, na réplica, de condenação da ré como litigante de má-fé em multa e indemnização.

Sobre esta nulidade pronunciou-se o acórdão recorrido nos seguintes termos:

“(…) Cumpre decidir:

O artigo 666.º do Código de Processo Civil dispõe sobre os vícios e reforma do acórdão, estabelecendo que é aplicável à decisão da 2.ª instância sobre o recurso o que se acha disposto nos artigos 613.º a 617.º do mesmo diploma, sendo que a rectificação ou reforma do acórdão, bem como a arguição de nulidade, são decididas em conferência.

O artigo 615.º do Código de Processo Civil fixa as causas de nulidade da sentença, prescrevendo o seguinte: «1 - É nula a sentença quando: (…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; (…)».

Pergunta: os autores pediram a condenação da ré como litigante de má fé, designadamente no pagamento de uma indemnização a seu favor?

A resposta exige que se tenham em atenção os pormenores do caso.

Consta do Acórdão: «As partes acusaram-se mutuamente de litigância de má-fé. Na sentença recorrida apenas se conheceu da litigância de má-fé dos autores; não se conheceu da mesma questão quanto aos réus, apesar de suscitada pelos autores. Essa deficiência, que consubstancia uma nulidade por omissão de pronúncia, não foi acusada no recurso ou na resposta ao mesmo. Esta circunstância não impede, todavia, esta Relação de se pronunciar sobre a litigância de má-fé da recorrente com fundamento em que a mesma se estende ou se manifesta também ou apenas neste recurso.»

O que está qui afirmado é o que resulta da acção.

É certo que nos articulados da acção os autores sustentaram que os réus litigavam de má fé e pediram a sua condenação no pagamento de multa a favor do Estado e indemnização a seu favor.

Todavia, certamente por lapso, o tribunal de 1.ª instância não apreciou essa questão, tendo-se limitado a apreciar somente a questão similar, mas distinta, da litigância de má-fé dos próprios autores também arguida pelos réus.

Essa falha determinava a nulidade da sentença por omissão de pronúncia. Sucede que os autores não arguiram autonomamente a nulidade da decisão da 1.ª instância com tal fundamento, e na resposta às alegações de recurso também não usaram da faculdade prevista no artigo 636.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Em resultado disso, a Relação ficou impedida de conhecer da litigância de má fé da ré no decurso da tramitação da acção em 1.ª instância, até à prolação da sentença. À Relação só estava consentido pronunciar-se como a litigância de má fé no recurso, ou seja, por referência aos actos praticados após o esgotamento do poder jurisdicional do juiz de 1.ª instância, nas alegações de recurso e actos subsequentes. Foi sobre isso que a Relação se pronunciou e proferiu decisão, não sobre a litigância de má fé na tramitação em 1.ª instância.

Como se tratava de uma questão diferente e atinente apenas à tramitação nessa fase, naturalmente que ela tinha de ser suscitada nas alegações de recurso e/ou na resposta às alegações de recurso.

Os autores em momento algum da sua resposta às alegações de recurso defendem que as alegações de recurso da ré constituem forma de litigância de má fé e/ou pedem a sua condenação a esse título, designadamente em indemnização à parte contrária.

Logo, é correcta a firmação do Acórdão de que «não se fixa indemnização a favor da autora porque esta, em devido tempo e no lugar oportuno, não a pediu».

Pode perguntar-se se podia aproveitar-se o pedido formulado na réplica, considerando-o extensivo a toda e qualquer fase do processo. Cremos que a resposta deve ser negativa.

Em primeiro lugar, porque como já se assinalou os autores se conformaram com a não condenação da ré a esse título em 1.ª instância, razão pela qual seria contraditório considerar o pedido implicitamente estendido a uma fase posterior quando o comportamento dos autores é de aceitação da não procedência do mesmo na fase em que foi expressamente deduzido.

Em segundo lugar, porque isso constituiria uma violação do caso julgado formado pela decisão de 1.ª instância na parte em que não condena a ré como litigante de má fé na fase processual sob a sua jurisdição, na medida em que a consolidação jurídica desse segmento da decisão preclude a possibilidade de os fundamentos da acção ou da defesa poderem mais tarde ser reapreciados.

Finalmente, porque a parte pode litigar de má fé na tramitação em 1.ª instância e não litigar de má fé na tramitação do recurso, ou vice-versa, ou em ambos os casos, pelo que só após a dedução das alegações de recurso ou a resposta às mesmas uma das partes pode concluir e defender que a outra litiga de má fé.

Não há, pois, cremos, omissão de pronúncia.”

Tal como foi esclarecido no acórdão proferido em conferência na 2.ª instância, o tribunal de recurso apenas pode pronunciar-se sobre as questões que, não sendo de conhecimento oficioso, lhe sejam colocadas pelas partes interessadas, ao abrigo do disposto no art.º 635.º do Código de Processo Civil.

Apesar de os AA terem requerido na réplica a condenação dos três primeiros réus como litigantes de má fé em multa e indemnização a pagar aos AA nunca inferior a 10 000,00€, a sentença de 1.ª instância não se pronunciou sobre esse pedido. Todavia, os autores não arguiram a nulidade da sentença com fundamento na omissão de pronúncia, nem sobre a referida questão apresentaram recurso de apelação tendo que se considerar, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 632.º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Civil, que aceitaram tacitamente a não condenação das rés como litigantes de má-fé.

Improcede, pois, a revista com este fundamento.

2. Nulidade por excesso de pronúncia

Consideram os autores que a decisão recorrida enferma de nulidade por excesso de pronúncia por se ter pronunciado sobre a questão da qualidade/não qualidade de herdeiros dos Autores AA e BB, por via de representação ou não do pai falecido, dado tratar-se de questão não suscitada pelas partes, e fora do objecto de recurso.

Não há dúvida de que nenhum dos recursos de apelação pretende ver discutida a questão da qualidade ou não de herdeiros dos Autores AA e BB, por via de representação do seu pai falecido.

Todavia, tal como abordada a questão pelo Tribunal Recorrido a verificação da qualidade de herdeiro das heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de FF e GG estava pressuposta para definição do direito dos AA de exercerem o seu direito de preferência relativamente ao contrato de venda do quinhão hereditário que outros herdeiros tinham nessas mesmas heranças a terceiros, não herdeiros.

No recurso de apelação interposto pela sociedade ré, foi pedida a revogação da sentença proferida em 1.ª instância que reconhecera o direito de preferência dos autores e a sua substituição por outra que absolva a ré do pedido ou, em alternativa, que condicione a preferência dos autores ao depósito do preço de € 137.500,00, devido por cada quinhão e, por isso, no valor de mais € 75.000,00 por cada quinhão que lhes venha a ser reconhecido o direito a preferirem, num total de mais € 300.000,00.

Para decidir do pedido principal formulado na apelação importava verificar a qualidade de herdeiros dos A.A. pelo que o seu conhecimento não excede aquilo que o tribunal podia e, devia até conhecer, não se encontrando, nessa medida o acórdão ferido de vício de nulidade por excesso de pronúncia.

3. Direito de preferência dos autores

Cremos que a errada indicação na petição inicial e ao longo de todo o processo, mesmo vertida erradamente na matéria de facto, pese embora seja uma questão de direito de que:

“Sucedendo, desse modo, o EE, a BB e a DD em representação do pai EE nas heranças abertas por óbito da FF e do GG”, acabou por conduzir a um erro de direito.

Os autores AA e BB não têm qualquer intervenção nesta acção na qualidade de representantes do seu pai falecido EE. Intervêm nesta acção na qualidade de herdeiros nas heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de seu pai que integra o quinhão hereditário deste nas heranças abertas e indivisas por morte dos avós dos autores.

Nos termos do disposto no art.º 2039.º e segs do Código Civil o direito de representação verifica-se quando a lei chama os descendentes de um herdeiro ou legatário que não pode ou não quis aceitar a herança, sendo que esses descendentes vão ocupar o lugar deixado vago por esse sucessível.

O art.º 2130 do Código Civil permite que os co-herdeiros possam exercer o seu direito de preferência nos termos que assistem ao comproprietário quando ocorre cessão dos quinhões hereditários a um terceiro, neste caso, na cessão dos quinhões hereditários que o II e JJ detinham na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de FF e de GG.

Quanto aos herdeiros, a matéria de facto permite-nos sintetizar as diversas sucessões e a qualidade dos intervenientes nesta acção segundo o diagrama que se segue:

FF casada com GG

ǁ ǁ

Faleceu em .../01/2005 ǁ

Faleceu em .../08/2016

Sucedem-lhe:

1. Cônjuge GG

2. Filhos: II, (1.º réu)

JJ, (2.ª )

EE

Sucedem-lhe: 1 - Neta: CC, (1.ª autora)

2- Filhos: II, (1.º réu)

JJ, (2.ª ) EE (divorciado)

Faleceu em .../09/2018

Sucedem-lhe:

1 - Filhos: EE, (2.º autor)

BB, (3.ª autora)

DD, (4.ª )

Tendo em conta que em 28 de Novembro de 2018, o 1º réu II e a 2ª ré JJ venderam à 3ª ré VJET quatro quinhões hereditários das heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de FF e de GG, de que eram titulares, nesta data, como analisado pelo tribunal recorrido, já tinha falecido o EE. Assim, os herdeiros que poderiam exercer o direito de preferência aqui em discussão seriam a 1.ª autora e neta dos falecidos, CC e os herdeiros de EE, por serem seus herdeiros e não por intervirem na vocação sucessória em sua representação. Os herdeiros de EE, cuja herança se mantém ilíquida e indivisa são os autores EE, (2.º autor), BB, (3.ª autora) e DD, (4.ª ré) conforme escritura pública de habilitação de herdeiros junta com a petição inicial, não impugnada e levada ao probatório.

Bem certo que quanto ao quinhão hereditário de EE nas heranças ilíquidas e indivisas dos seus pais, mantendo-se igualmente indivisa a herança aberta por seu próprio óbito, só podem ser exercidos certos direitos, como este relativo ao direito de preferência na alienação a terceiros de quinhão hereditário, conjuntamente por todos os herdeiros, nos termos do disposto no art.º 2091.º do Código Civil. Mas isso mesmo se verifica nesta acção, ao contrário do que foi entendido pelo tribunal recorrido. Menos habitual do que é costume, os herdeiros de EE estão dois na parte activa e outro na parte passiva da acção. A 4.ª ré, DD, como se explica na réplica foi chamada à acção por ser herdeira de EE, ter interesse decisivo na acção, mas não ter querido, ou podido demandar os réus, na qualidade de autora. Foi citada, mas não apresentou contestação ou qualquer outro elemento nos autos, ao que conseguimos verificar. Porém a sua presença, mesmo na parte passiva assegura que na acção têm intervenção todos os herdeiros de EE como titulares do direito que os autores pretendem exercer. A circunstância de um herdeiro não querer exercer o direito de preferência não pode impedir que os demais o possam exercer, desde que estejam presentes na acção todos os herdeiros, mesmo que em posições aparentemente divergentes.

Nada obsta, face à matéria provada, ao reconhecimento do direito de preferência dos autores EE, (2.º autor) e BB, (3.ª autora), nos termos do disposto nos artigos 2091.º e 2130.º do Código Civil, impondo-se a revogação do acórdão recorrido e a repristinação da sentença proferida pelo tribunal da 1.ª instância sobre esta questão.

Concede-se, pois, a revista com este fundamento.

B - Recurso de revista apresentado pela ré

Alega a ré que a sua condenação como litigante de má-fé em 2.ª Instância ocorre com fundamentos confusos e inexistentes e excesso de pronúncia, com violação do disposto nos artigos 542.º, 615.°, n.° l, alínea d), 609.°, n.°l, todos do Código de Processo Civil, por exceder os limites da condenação ao seu alcance e o princípio do contraditório e ainda o art.º 20, nº.4 da Constituição da República Portuguesa.

Por último invoca a violação de caso julgado por não ter sido condenada como litigante de má fé e vir invocada uma conduta repetida em ambas as instâncias.

Os autores formularam na réplica o pedido de condenação das 3 primeiras rés como litigantes de má-fé em multa e indemnização quando após a contestação ficaram a saber da celebração de mais um contrato entre estas rés que entenderam ter como único propósito tornar mais difícil o exercício do direito de preferência que pretendiam fazer valer em juízo.

O Tribunal de 1.ª instância não analisou este pedido e não proferiu qualquer decisão fosse a condenar, fosse a absolver as rés de tal pedido de condenação como litigantes de má-fé.

Os autores não apelaram da sentença, tendo apenas sido interposto recurso de apelação por parte da ré, sem qualquer formulação de pedido recursivo por parte dos autores seja a título principal seja a título subordinado.

O relator no Tribunal da Relação fez notificar as partes do seguinte despacho:

Feita a análise do processo e a audição inicial da prova e apuradas as questões a decidir, antevemos a possibilidade/necessidade de no Acórdão a proferir esta Relação se pronunciar sobre as seguintes questões que não vêm suscitadas/tratadas pelas partes:

- a questão de definir se face ao disposto no artigo 2039.º do Código Civil os autores AA e BB são mesmo, como afirmam, herdeiros dos avós por direito de representação do pai e titulares do direito que querem exercer.

- a questão da litigância de má fé da recorrente no recurso.

Por conseguinte, ao abrigo do princípio do contraditório convido as partes a tomarem posição, querendo, sobre tais questões, no prazo de 10 dias.”.

A recorrente apresentou em resposta um requerimento do seguinte teor:

1.º

Tendo EE falecido em .../09/2018 e, por isso, em data posterior ao óbito dos seus pais, .../01/2005 e .../08/2016, respectivamente, e não se achando demonstrado nos autos a recusa daquele em aceitar a herança, não se verifica o invocado direito de representação alegado pelos Autores.

2.º

A recorrente ofereceu recurso na convicção do exercício de um direito conforme à teleologia subjacente, não violando os deveres de verdade e cooperação.

3.º

De qualquer modo, existindo a intenção da sua condenação nesse sentido, que não é invocado pela Recorrida, sempre deverá a mesma ser notificada sobre a sua concretização, para se defender em conformidade, e não ser objeto de decisão surpresa.”

A recorrente refere que foi objecto de uma decisão surpresa quanto à sua condenação como litigante de má fé em 2.ª instância não só porque ofereceu recurso na convicção do exercício de um direito conforme à teleologia subjacente, não violando os deveres de verdade e cooperação, como por, como refere, haver sido absolvida, ou pelo menos não condenada como litigante de má fé pelo Tribunal de 1.ª instância, pese embora os AA. haverem formulado pedido nesse sentido, sem que estes hajam recorrido dessa decisão omissiva.

A recorrente não foi absolvida do pedido de condenação como litigante de má fé formulado pelos autores. Tal pedido não foi objecto de decisão e, com isso se conformaram os autores na medida em que não alegaram omissão de pronúncia a este propósito, nem, por qualquer outro modo suscitaram junto do tribunal de apelação a condenação das rés como litigantes de má fé.

Pode acontecer que uma parte adopte um comportamento em 1.ª instância que este tribunal não avalie como integrando a litigância de má fé, seja porque o comportamento processual foi exemplar, seja porque por qualquer outra razão o tribunal de 1.ª instância o não haja avaliado como suficiente para integrar o conceito de litigância de má fé, e, a parte adopte um diverso e mais pernicioso comportamento em fase de apelação que possa integrar o conceito de litigante de má fé.

A condenação como litigante de má fé pode ocorrer sem pedido da parte contrária por decorrer também dos poderes oficiosos do tribunal de recurso.

Uma decisão que não é proferida não goza de qualquer força de caso julgado, pela própria natureza das coisas e pelas funções do caso julgado. O que não foi decidido não é susceptível, em caso algum, de colocar o tribunal perante a prolação de decisões contraditórias ou, por qualquer modo, em desrespeito de uma anterior decisão judicial que não foi proferida.

A presente situação não goza pois de força de caso julgado total ou parcial, e nem mesmo fere qualquer legítima expectativa da recorrente, nomeadamente de que por não haver sido condenada em 1.ª instância, não o seria igualmente nas instâncias de recurso.

O exercício do direito ao contraditório em processo civil, diferentemente do que ocorre em sede de procedimento administrativo não exige que seja enviado ao interessado um projecto de decisão que, posteriormente depois de rebatidos os argumentos da defesa possa ser convertido em decisão definitiva. Tratando-se de uma questão bastante concreta – condenação por litigância de má fé – com consequências tão limitadas como a condenação em multa, no uso de poderes oficiosos do tribunal e não já uma indemnização à parte contrária, entende-se que o despacho que acima transcrevemos permite à parte apresentar a defesa adequada à sanção que é passível de ser-lhe aplicada. De resto, a recorrente apresentou a defesa contra essa possível condenação indicando que ofereceu recurso na convicção do exercício de um direito conforme à teleologia subjacente, não violando os deveres de verdade e cooperação, não se vislumbrando como pode o acórdão recorrido ter violado o disposto no art.º 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

A decisão recorrida condenou a recorrente como litigante de má fé estribada:

1. Na motivação da decisão sobre a matéria de facto, na qual se assinala a absoluta inverosimilhança e improbabilidade dos factos alegados;

2. Na inaudita tentativa de convencer o tribunal daquilo que a todos os títulos se mostra falso e inventado com intenção fraudulenta;

3. Na apresentação do recurso da sentença da 1.ª instância, insistindo despudoradamente na demonstração dos factos que bem sabe serem falsos e com intenção de impedir a descoberta da verdade e o exercício de legítimos direitos;

4. Na reincidência na dedução com dolo directo de uma pretensão que sabia não ter fundamento.

Quando o acórdão diz que a recorrente reincidiu na dedução com dolo directo de uma pretensão que sabia não ter fundamento refere-se, como aliás concorda a recorrente, que esta deduziu a defesa na contestação, e repetiu-a na apelação. No recurso de apelação tentou que fosse alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente quanto ao preço pelo qual os réus II e JJ cederam os respectivos quinhões nas heranças abertas por óbito dos pais à ré sociedade recorrente: se o preço foi o de €62.500 por cada quinhão, num total de €250.000, que veio a ser julgada improcedente reafirmando o que já havia sido decidido pelo tribunal de 1.ª instância - 44. O documento denominado “contrato sob condição” e a escritura pública de rectificação não correspondem à vontade dos declarantes, foi celebrado com o intuito de enganar os autores.-.

Reincidiu na conduta, na medida em que a repetiu e tentou convencer o Tribunal de recurso de factos que não eram verdadeiros. Para tal não é necessário que tenha existido uma primeira condenação, basta a repetição da conduta.

Analisadas as questões de ordem formal colocadas pela recorrente a propósito da sua condenação em 2.ª instância como litigante de má fé, manifestamente improcedentes, e não tendo sido apesentada qualquer questão de natureza substantiva que possa conduzir à alteração ou revogação de tal decisão, confirma-se integralmente a decisão condenatória em apreço.


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III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em:

1. Negar a revista apresentada pela ré e confirmar o acórdão recorrido quanto à sua condenação como litigante de má fé;

2. Conceder a revista apresentada pelos autores, revogar parcialmente o acórdão recorrido na parte em que não reconheceu e não condenou nos efeitos do direito de preferência dos autores AA e BB na cessão dos quinhões na herança aberta por óbito da avó FF, repristinando a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância quanto a esta questão constante dos seus pontos b) e c).

Custas do recurso pela recorrente VJET - Invest, S.A., atento o seu decaimento.


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Lisboa, 16 de Novembro de 2023

Ana Paula Lobo (relatora)

Emídio Francisco Santos

Fernando Baptista de Oliveira