Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
33/20.0T8FNC-F.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA RESENDE
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
INCONSTITUCIONALIDADE
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
IDENTIDADE DE FACTOS
DIREITO AO RECURSO
Data do Acordão: 06/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :
I- A arguição da inconstitucionalidade, sendo legítima, está subordinada às regras gerais decorrentes da lei 28/82, de 15.11, não fundamenta, maxime autonomamente, a admissibilidade de um recurso de revista, no caso de inverificados os pressupostos exigíveis de admissibilidade.
II- A Jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça são consensuais no sentido que o legislador tem um amplo poder de conformação na concreta modelação processual, competindo ao julgador, assim, aferir dos pressupostos de admissibilidade do recurso.
Decisão Texto Integral:

Revista n.º  33/20.0T8FNC-F.L1.S1.

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - RELATÓRIO     
1. AA foi declarado insolvente na sequência do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.06.2020,  por sentença de 4.1.2021, prosseguindo os autos para liquidação dos bens integrantes da massa insolvente, conforme deliberação da assembleia de credores de 24.02.2021.
2. Em 11.05.2021, o Insolvente veio reclamar da colocação à venda em leilão eletrónico do prédio urbano por parte da Administradora da Insolvência (AI) pelo valor mínimo de 386.347,55€ (valor base de 454.526,53€), porquanto constituindo o dito imóvel 95% da massa insolvente, a respetiva venda deveria ter sido aprovada e consentida pela assembleia de credores e demais credores hipotecários, até por ter sido avaliado em valores de 900.700,00€ e 820.352,94€.
3. Determinada a suspensão da venda, em 27.05.2021, veio a ser proferido despacho de 17.10.2021, que tendo em conta a informação que a AI tinha inserido o imóvel na plataforma de E-leilões com o valor base de 860.000,00€ estava prejudicado o requerimento de 17.06.2021 do Insolvente para o mesmo e todos os credores se pronunciarem sobre o valor base e a modalidade de venda do imóvel.
4. Por requerimento de 22.12.2021, por ter tido conhecimento que o proponente para a compra do imóvel não depositara a caução devida, apesar de instado para tando, o Insolvente veio requerer que não fosse aceite a segunda melhor proposta, devido ao seu valor substancialmente inferior ao valor mínimo da venda do imóvel (445.000,00€), sendo ordenada a liquidação da responsabilidade do primeiro proponente, arrestando-se e executando-se os bens suficientes para cobrir o valor inicialmente indicado, ou caso se frustrassem tais diligências, colocado o imóvel novamente à venda pelo valor base de 860.000,00€.

Ordenada a notificação da AI para se pronunciar, veio a mesma reportar, em 13.01.2022, que dera conhecimento da informação prestada pelo 2.º proponente ao Insolvente, credores com garantia real e demais credores, para se pronunciarem sobre a aceitação da proposta no valor e 445.000,00€, advertindo que o silêncio seria entendido como aceitação sem reserva, tendo apenas um credor com garantia real informado que nada tinha a opor e os demais credores aceitado tacitamente.
5. Foi proferido o despacho de 20.01.2022, no qual se consignou:

Por requerimento datado de 22 de Dezembro de 2021, veio o insolvente requerer que (i) seja rejeitada a proposta de aquisição apresentada pela sociedade S... UNIPESSOAL, LDA., tendo em conta o seu reduzido valor, substancialmente inferior ao valor mínimo de venda do imóvel; (ii) que seja ordenada a liquidação da responsabilidade do proponente BB, arrestando-se os bens suficientes do proponente para garantir o valor da proposta, acrescido de custas e despesas, e avançando-se simultaneamente com a competente execução contra o mesmo para pagamento daquele valor e acréscimos; e (iii), em caso de frustração do referido arresto e execução, que o referido imóvel seja colocado novamente à venda, por leilão eletrónico ou proposta em carta fechada, pelo valor base de 860.000,00€, de forma a possibilitar que potenciais compradores possam apresentar as suas propostas, sem qualquer condicionamento prévio.

Por requerimento datado de 13 de Janeiro de 2022, veio a Sra. Administradora da Insolvência pronunciar-se sobre o requerido.

Cumpre decidir.
Com respeito à administração e liquidação da massa insolvente, e sem prejuízo dos poderes de fiscalização previstos no artigo 58.º do CIRE, o tribunal não tem qualquer poder de decisão ou de intervenção, sendo que estes poderes cabem ao administrador da insolvência.
Assim sendo, a Sra. Administradora da Insolvência, ao optar por aceitar a proposta de valor imediatamente inferior, nos termos do artigo 825.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 17.º, nº 1, do CIRE, após ter ouvido os credores, praticou um ato lícito que não merece censura.”
6. Inconformado veio o Insolvente interpor recurso de apelação, sendo proferido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.11.2022, que julgou improcedente o recurso, confirmando o despacho recorrido.
7. Ainda inconformado veio o Insolvente interpor o presente recurso de revista, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

No entender do Recorrente, o douto Acórdão recorrido é nulo por omitir a sua pronúncia sobre questão que deveria ter conhecido e padece de erro de julgamento uma vez que o seu entendimento está em oposição com outros acórdãos já transitados em julgados, proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Constitucional, no domínio da mesma legislação, que decidiram de forma divergente a mesma questão fundamental de direito, inclusive no sentido da inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Tribunal a quo, uma vez que:

a) o Tribunal a quo não podia ter omitido a sua pronúncia sobre a (in)validade da venda do imóvel, que representa 95% da massa insolvente, tratando-se de um ato de especial relevo, tendo em conta o teor do requerimento que deu origem ao despacho impugnado e o próprio despacho impugnado que refere que a AI ouviu os credores;

b) a AI não podia ter adjudicado a proposta do segundo proponente, abaixo do valor mínimo de venda, sem o consentimento expresso da assembleia de credores (apenas com base num alegado consentimento tácito dos credores), tendo em conta que se trata de um ato de especial relevo;

c) competia ao Tribunal aferir da validade e eficácia do ato praticado pela AI;

d) ficou provado que, no dia 07/05/2021, o insolvente tomou conhecimento da colocação à venda em leilão eletrónico, no âmbito da liquidação da massa insolvente, do referido imóvel, por parte da AI, pelo valor mínimo de €386.347,55, tendo por referência o valor base de € 454.526,53;

e) ficou demonstrado que o insolvente reclamou para o Tribunal, no dia 11/05/2021, com fundamento no facto de a assembleia de credores não ter dado o seu consentimento para a prática de tal ato, que assume especial relevo para a massa insolvente, nem ter havido informação aos credores hipotecários dessa venda;

f) e, ainda, por não aceitar o valor base de venda estabelecido pela AI, por este imóvel ter sido avaliado, em Setembro de 2015, pelo valor de €900.700,00, e, mais tarde, em 2017, pelo credor Banco Comercial Português pelo valor de € 820.352,94;

g) ficou comprovado que, por despacho de 27 de Maio de 2021, o Tribunal decidiu a suspensão da referida venda;

h) se demonstrou que, no dia 06/07/ 2021, o insolvente juntou aos autos uma avaliação atualizada do imóvel, datada de 24/06/2021, que avaliou o imóvel em € 860.000,00;

i) se provou que a AI colocou à venda, em leilão eletrónico, a 01/10/2021, o prédio urbano pelo valor base de € 860.000,00, com um valor mínimo de licitação foi de € 731.000,00;

j) ficou provado que o leilão terminou no dia 03/11/2021, com uma proposta de aquisição no valor de € 731.500,00, apresentada por BB;

k) ficou demonstrado que, findo o leilão, o proponente BB foi notificado, pelo menos duas vezes, pela AI para proceder ao depósito do valor da caução, não tendo o mesmo, até hoje, respondido ou prestado qualquer informação aos autos, nem depositado qualquer valor na conta da massa insolvente;

l) a AI veio comunicar em 17/12/2021 que, consequentemente, contactou o segundo melhor proponente no referido leilão, a sociedade S... Unipessoal, e que esta manteve a intenção de adquirir o imóvel, aumentando a proposta de aquisição de € 434.300,00 para € 445.000,00;

m) se provou que, na mesma data, a AI deu conhecimento da informação prestada pelo segundo melhor proponente no leilão online, S... Unipessoal, ao insolvente, aos credores com garantia real (Banco Comercial Português, S.A. e Caixa Geral de Depósitos, S.A.) e aos demais credores (E..., S.A. e Ministério Público);

n) se comprovou que a AI enviou um email aos credores a dar conhecimento de que iria aceitar a proposta no valor de € 445.000,00, concedendo-lhes prazo para se pronunciarem sobre essa aceitação, advertindo que o silêncio seria entendido como aceitação;

o) ficou provado que apenas o credor garantido Banco Comercial Português, S.A. respondeu, informando que nada tinha a opor à proposta apresentada;

p) ficou comprovado que nenhum outro credor respondeu à AI, tendo a mesma presumido a sua aceitação tácita;

q) ficou demonstrado que, em 22/12/2021, o insolvente apresentou requerimento ao Tribunal, no qual referiu expressamente que a proposta apresentada de € 731.500,00 obedeceu aos tramites legais, foi superior ao valor mínimo de venda do leilão, não podia ser desperdiçada, sob pena de prejuízo para os credores, tendo em conta que a segunda melhor proposta existente era de apenas € 445.000,00, cerca de metade do valor de avaliação do imóvel colocado à venda (€ 860.000,00), e foi manifestamente dissuasora da apresentação de qualquer outra proposta de valor inferior até à data de encerramento do leilão;

r) bem como ainda informou o Tribunal ter sido contactado, nas vésperas do encerramento do leilão, por um investidor no sentido de apresentar uma proposta de compra para o imóvel no valor de € 700.000,00, que, contudo, desistiu de a apresentar assim que soube que já havia sido apresentada uma proposta no valor de € 731.500,00;

s) se demonstrou que, nesse requerimento, o insolvente referiu expressamente que a venda do imóvel constituía um ato de especial relevo da massa insolvente e que era do interesse de todos os credores, que o imóvel fosse alienado pelo máximo valor possível;

t) se provou que o Insolvente requereu ao Tribunal que fosse rejeitada a proposta de aquisição apresentada pela sociedade S... Unipessoal, Ld.ª, face ao seu reduzido valor; que fosse ordenada a liquidação da responsabilidade do proponente BB; e, em caso de frustração, que o imóvel fosse colocado novamente à venda, por leilão eletrónico ou proposta em carta fechada, tendo em conta o valor base de € 860.000,00, de forma a possibilitar que potenciais compradores pudessem apresentar as suas propostas, sem qualquer condicionamento prévio;

u) mais se demonstrou que, por requerimento de 13/01/2022, a AI informou o Tribunal que ouviu os credores e que a segunda proposta da sociedade S... Unipessoal, Lda. foi aceite pelos credores (o que viria a demonstrar-se não corresponder à verdade);

v) se comprovou que a AI iludiu o Tribunal de 1.ª instância ao referir que a segunda proposta tinha sido aceite pelos credores, quando na realidade apenas um dos credores, o Banco Comercial Português afirmou não se opor à aceitação dessa proposta;

w) ficou provado que, por despacho de 20/01/2022, o Tribunal indeferiu o requerido pelo insolvente, alegando não ter qualquer poder de decisão ou de intervenção quanto à administração e liquidação da massa insolvente e que a AI praticou um ato lícito ao optar pela aceitação da proposta de valor inferior, após ter ouvido os credores;

x) o ato de alienação de bem imóvel integrante da massa insolvente de pessoa singular, cujo valor representa mais de 95% dessa massa, constitui ato de especial relevo, nos termos do art.161.º do CIRE, dependendo a sua prática pelo AI do consentimento da comissão de credores ou, se esta não existir (como acontece no caso sub judice), da assembleia de credores;

y) a decisão do artigo 825.º n.º 1 do CPC não corresponde ao exercício de um mero poder discricionário por parte do AI – os poderes que a lei confere ao AI, em particular na fase da liquidação da massa insolvente, são poderes funcionais, vinculados e orientados para a maximização do valor da massa insolvente, com o fim último da maior satisfação possível dos credores da insolvência e da preservação da situação patrimonial do devedor;

z) a decisão da AI de determinar que a venda fica sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior, quando este valor corresponde a cerca de metade do valor da proposta do proponente preferente, bem como do valor base de licitação do bem e do seu valor de mercado, constitui pela repercussão que tem na massa insolvente, ato de especial relevo – carecendo, assim, também do consentimento da assembleia de credores;

aa) a falta de consentimento da assembleia de credores não pode ser suprida, em qualquer caso, por uma consulta individual realizada, por email, pela AI aos credores da insolvência fora do âmbito de uma assembleia, com a advertência de que o seu silêncio é, decorrido determinado prazo, tomado como concordância com a prática do ato de especial relevo de que se trate;

bb) para além de ter violado o dever de obter o consentimento da assembleia de credores para a sua prática, com este ato de especial relevo a AI assumiu, para a massa insolvente, uma obrigação que excede manifestamente a da contraparte: à obrigação de transmissão da propriedade do bem imóvel corresponde, para o terceiro adquirente, uma obrigação de pagamento de um preço muito inferior ao valor do mesmo, pois correspondente a pouco mais de metade desse valor;

cc) nos termos do artigo 58.º do CIRE, "o administrador da insolvência exerce a sua atividade sob a fiscalização do juiz", bem como pela comissão de credores ou assembleia de credores, especialmente quando se trate de atos de especial relevo para a massa insolvente, nos termos conjugados do disposto nos artigos 55.º, 68.º e 161.º do CIRE;

dd) no exercício das suas funções de fiscalização, o Tribunal tinha a obrigação de fiscalizar os atos praticados pela AI e de anular quaisquer atos violadores da lei e praticados contra os interesses dos credores, sob pena de subversão dos princípios que norteiam o processo de insolvência;

ee) cumpria ao Tribunal a quo conhecer da validade da adjudicação da proposta do segundo proponente, por se tratar de questão de conhecimento oficioso;

ff) o Tribunal de 1.ª instância já havia reconhecido e se pronunciado anteriormente no processo, sobre a violação por parte da AI do regime previsto no artigo 161.º do CIRE quando suspendeu inicialmente a venda do imóvel sub judice;

gg) o ato praticado pela AI, nos termos do disposto no artigo 163.º do CIRE, está privado de eficácia;

hh) sendo esta uma ineficácia absoluta, o juiz do processo podia e devia, consideradas as suas funções de fiscalização da atividade do administrador da insolvência, conhecer dessa questão ex officio;

ii) constituindo dever do AI maximizar o valor de venda dos bens da massa insolvente na liquidação e estando em causa a insolvência de pessoa singular, em que a satisfação dos seus credores é diretamente condicionada pelo resultado da liquidação e o valor dos créditos remanescentes (sobretudo à Fazenda Pública e Segurança Social, que subsistem independentemente da exoneração do passivo restante ser ou não decretada, no termos do artigo 245.º n.º 2 do CIRE) continuará a onerar este devedor, a interpretação do artigo 163.º do CIRE não pode fazer-se exclusivamente à luz do primado do princípio da celeridade processual;

jj) o critério para a qualificação de um ato como de especial relevo consiste em atender “aos riscos envolvidos e às suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo, às perspetivas de satisfação dos credores da insolvência e à suscetibilidade de recuperação da empresa”;

kk) são atos de especial relevo aqueles que tenham um impacto significativo na massa insolvente;

ll)“as normas remissivas utilizam quase sempre a expressão: ‘com as necessárias adaptações’, ou ‘com as adaptações devidas’”, porque “os casos regulados pelas normas chamadas não são casos iguais, mas casos análogos”;

mm) é a esta luz que deve ser lida a expressão “em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código”, contida na norma remissiva do artigo 17.º do CIRE: a remissão operada para os preceitos do CPC exige a adaptação das normas chamadas a casos “que não são iguais, mas casos análogos”, pelo que não podem por ela ser postos em causa os valores que o processo de insolvência prossegue;

nn) a aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 825.º do CPC à liquidação em processo de insolvência reclama esta ponderação;

oo) a opção por uma solução que não seja a mais apta a esta tutela constitui violação, por parte do AI, dos seus deveres, com a consequência de poder levar à sua destituição e responsabilização pelos prejuízos causados;

pp) a decisão a tomar em reação à falta de depósito por parte do proponente cuja proposta foi aceite constituía também, ato de especial relevo, carecendo, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 161.º do CIRE, da autorização da assembleia de credores;

qq) terá sempre “especial relevo quer um ato relativamente ao qual se preencham os índices do n.º 2, quer um ato que se apresente como análogo àqueles que estão enunciados no n.º 3”;

rr) a decisão da AI, a tomar nos termos do artigo 825.º, n.º 1, do CPC, é também um ato de especial relevo que está, por isso, sujeito ao regime legalmente estabelecido para estes atos;

ss) a AI só poderia optar pela aceitação da proposta do segundo melhor proponente com o consentimento da assembleia de credores;

tt) se provou que a AI não obteve este consentimento, nem foi convocada assembleia de credores para a sua prestação;

uu) a consulta escrita realizada pela AI, aos credores, por email, fora do âmbito de uma assembleia de credores, e sem quaisquer garantias de integridade, autenticidade, validade e receção, jamais poderia suprir a falta do legalmente exigido consentimento da assembleia de credores;

vv) o legislador não veio exigir que o consentimento fosse prestado pelos credores, nem por credores titulares de uma determinada percentagem dos créditos, ou sequer por deliberação de credores;

ww) veio determinar apenas que o consentimento fosse prestado por deliberação tomada em assembleia de credores;

xx) jamais poderia ser admitido como consentimento de uma assembleia de credores, uma presumível aceitação tácita, requerida por email a cada um dos credores individualmente;

yy) a assembleia de credores é convocada pelo juiz e por ele presidida e nela podem participar todos os credores, nos termos do artigo 72.º do CIRE, bem como, o administrador da insolvência e o devedor;

zz) numa assembleia de credores estão verificadas duas circunstâncias que não se verificam numa deliberação tomada fora do seu âmbito ou numa consulta escrita: estando ou podendo estar simultaneamente presentes todos os interessados, os assuntos da ordem de trabalhos são passíveis de discussão com a sua intervenção, o que se repercute no exercício do direito de voto, eventualmente condicionando o seu sentido; e o juiz exerce a sua função de controlo da legalidade relativamente ao funcionamento da assembleia e às deliberações, oficiosamente ou em função de reclamação dos legitimados, nos termos do disposto no artigo 78.º do CIRE;

aaa) o resultado a que se chegaria numa assembleia, em termos de preenchimento do quorum deliberativo, não seria necessariamente idêntico àquele a que se chegou com uma consulta escrita, efetuada por email, sem garantias de integridade, autenticidade, validade e receção do mesmo –para mais, quando o silêncio foi tomado como voto favorável à proposta;

bbb) em assembleia geral, o sentido de voto pode sempre ser condicionado pelo resultado das intervenções dos presentes e da discussão que possa existir, bem como da informação que acaba por ser solicitada ao AI;

ccc) no voto solicitado fora de uma assembleia existe sempre um maior risco de desinformação (ou desvalor da informação que tem) e de inércia, sobretudo quando essa consulta ou solicitação é realizada através de um mero email;

ddd) numa assembleia de credores teria garantidamente existido a oportunidade de o juiz exercer a sua função de fiscalização e controlo da legalidade, também considerando os aspetos resultantes da discussão das matérias em causa e da análise da informação relevante, o que não se verificou aqui no seu âmbito, mas apenas fora dele;

eee) está em causa a alienação de um prédio urbano na qual a massa insolvente fica onerada com a obrigação de transmissão da propriedade sobre esse bem e a contraparte fica obrigada a entregar à massa insolvente cerca de metade do valor de mercado do mesmo – e até do valor mínimo de licitação na venda por leilão eletrónico;

fff) a obrigação assumida pela AI – transmissão da propriedade do imóvel da massa insolvente – excede manifestamente a obrigação assumida pela contraparte – pagamento de um preço significativamente inferior ao valor desse imóvel;

ggg) não pode colher o entendimento de que a violação do disposto no artigo 161.º do CIRE (por ter o ato de especial relevo sido praticado pelo AI sem o necessário consentimento da assembleia de credores, acompanhada do facto de o AI assumir para a massa insolvente, com esse ato, obrigações que excedem manifestamente as da contraparte), tem como única consequência a possibilidade de o devedor prejudicado recorrer a ação autónoma com o fim de responsabilizar o administrador da insolvência pelos danos causados e/ou de requerer a declaração de ineficácia do ato;

hhh) estão, no caso concreto, preenchidos os pressupostos para a aplicação da estatuição do artigo 163.º do CIRE: fica prejudicada a eficácia do ato;

iii) analisadas as causas da ineficácia estabelecida no artigo 163.º do CIRE, embora aparentemente esteja em causa a tutela de um círculo restrito e identificado de sujeitos (devedor e credores da insolvência), a verdade é que ela apenas opera quando, além do AI ter violado o dever legal de obter a autorização da assembleia de credores, as obrigações assumidas por ele “excedam manifestamente as assumidas pela contraparte”, como é o caso;

jjj) ficou demonstrado que existe não apenas um fim de proteção das partes diretamente lesadas com o ato, mas também a prossecução de interesses de ordem pública: estando o AI munido do poder funcional de administrar e dispor do património de outrem, em ordem à maximização ou, pelo menos, à conservação do seu valor, deverá qualquer interessado poder pôr em causa a sua eficácia, mas também o próprio juiz do processo conhecer dela ex officio, quando aquele atue de modo a pôr em causa os fins a que as suas funções estão ordenadas com benefício desproporcionado e injustificado de terceiro – que, portanto, não carece de proteção jurídica;

kkk) os poderes do AI, nomeadamente na liquidação da massa insolvente, são verdadeiros poderes funcionais, pois visam a satisfação de “interesses que não são próprios”;

lll) mesmo quando a lei parece conferir ao AI uma aparente discricionariedade na tomada de decisões, ela pode ser, apenas aparente, pois a sua atuação é normalmente vinculada, imperativamente orientada para a prossecução dos deveres que lhe são impostos e dos fins que deve prosseguir: ele está obrigado, na escolha, a optar pela solução que se evidenciar mais favorável e proveitosa para a satisfação dos credores e, por conseguinte, menos prejudicial à situação patrimonial do devedor;

mmm)na restrição que o artigo 163.º do CIRE opera no direito do devedor insolvente a um processo equitativo (constitucionalmente protegido pelo artigo 20.º, n.º 4, da CRP), negando-se o poder e o dever de o juiz do processo de insolvência conhecer da ineficácia ou nulidade de um ato de especial relevo praticado pelo AI com preterição das formalidades exigidas no artigo 161.º do mesmo código e em prejuízo da massa insolvente, em prol da celeridade processual (o artigo 20.º, n.º 5, da CRP visa assegurar aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade), não pode considerar-se       satisfeito  o critério  da proporcionalidade em sentido estrito – na verdade, não corresponde a esse sacrifício um benefício para o processo de insolvência, nem tampouco para os interesses que o processo de insolvência visa servir, uma vez que nem se assegura a melhor satisfação dos credores nem a melhor proteção da situação patrimonial do devedor;

nnn) a interpretação do disposto no artigo 163.º do CIRE, com o sentido de que o juiz não pode e não deve conhecer da ineficácia ou nulidade de um ato de alienação de bem da massa insolvente praticado pelo administrador da insolvência com preterição das formalidades exigidas no artigo 161.º do mesmo código, resultando esse ato em claro prejuízo dos credores e do devedor insolvente, constitui uma restrição excessiva do direito do devedor insolvente a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), restrição essa que viola o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), devendo a norma ser considerada inconstitucional nessa interpretação, como se defendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Abril de 2017 (Fonseca Ramos), no Proc. 1182/14.0T2AVR-H.P1;

ooo) o entendimento adotado pelo Acórdão recorrido diverge do entendimento perfilhado pelo Acórdão do STJ, de 04/04/ 2017 (Fonseca Ramos), no Proc. 1182/14.0T2AVR-H.P1, por sua vez corroborado pelo Acórdão do STJ, de 15/02/ 2018 (Henrique Araújo), no Proc. 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1, e pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 616/2018, de 21 de Novembro;

ppp) entender que não cabe na competência jurisdicional apreciar a regularidade dos atos praticados pelo AI, bem como que não cabe ao juiz do processo de insolvência declarar a invalidade de um ato (de especial relevo) de liquidação da massa insolvente promovido pelo AI em violação das normas que lhe impõem a adoção das formalidades previstas nos art. 161º e 162º do CIRE, é admitir a violação do direito fundamental dos prejudicados, de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, previsto no art. 20º, n.ºs 1 e 5, da CRP;

qqq) para que a tutela através dos tribunais seja, como deve ser, efetiva, exige-se “uma compreensão unitária da relação entre direitos materiais e direitos processuais, entre direitos fundamentais e organização e processo de proteção e garantia”;

rrr) um entendimento diverso relega o juiz do processo para um papel secundário, de mero controlo limitado, que nem lhe permite apreciar as irregularidades que afetem os atos praticados pelo administrador da insolvência, em prejuízo do devedor insolvente e dos credores;

sss) a pretensão legislativa de celeridade e desjudicialização do processo de insolvência não pode prevalecer quando ela repugna os fundamentais valores de justiça e segurança;

ttt) o direito de ação que a lei assegura aos lesados em casos como o sub judice, obrigando-os a recorrer a ação autónoma de responsabilização do AI e/ou de privação de eficácia de um ato, sempre que no processo pendente a parte que se considera prejudicada argui perante o juiz do processo a existência de vícios processuais que contendem com o seu direito, não lhes assegura tutela jurisdicional efetiva;

uuu) a interpretação da norma expressa no artigo 163.º do CIRE com o sentido de que a parte lesada não pode arguir, perante o juiz do processo, vícios procedimentais por ato ou omissão do AI no incidente de liquidação priva quem for lesado no processo dessa tutela jurisdicional, em termos imediatos e de proporcionalidade – exprime indefesa e é inconstitucional;

vvv) segundo o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 616/2018, de 21 de Novembro, é “inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma contida nos artigos 163.ºe 164.º, n.ºs 2 e 3, do CIRE, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada”;

www) as razões e argumentos que levaram à declaração de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 163.º do CIRE pelo Tribunal Constitucional, no referido Acórdão, aplicam-se ao caso concreto, não obstante estar em causa a violação das formalidades estabelecidas no artigo 161.º e o dever que impende sobre o AI de praticar os atos de liquidação em ordem à máxima satisfação dos credores e à salvaguarda da situação patrimonial do devedor insolvente;

xxx) o douto Acórdão errou no seu julgamento ao ter adotado um entendimento que está em oposição com outros acórdãos já transitados em julgados, proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Constitucional, no domínio da mesma legislação, que decidiram de forma divergente a mesma questão fundamental de direito, inclusivamente no sentido da inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Tribunal a quo.
8. Cumprido o disposto no art.º 655, n.º1, do CPC, foi proferida Decisão Sumária que afastando o conhecimento do objeto do recurso, o julgou findo.
9. O Recorrente vem deduzir reclamação para a Conferência, formulando na mesma as seguintes conclusões: (transcritas)

A presente reclamação é deduzida contra a douta Decisão Singular proferida pela Exma. Sra. Juíza Conselheira Relatora que decidiu não conhecer do objeto do recurso.

No entender da Recorrente, a Decisão Singular incorre em erro de julgamento, razão pela qual se reclama para a conferência, uma vez que:

a) o Recorrente ficou fortemente prejudicado por esta Decisão Singular, face à matéria em questão no recurso e à sua fundamentação;

b) ao contrário do que é alegado na Decisão Singular, no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa e posteriormente para o Supremo Tribunal de Justiça, foram expressamente invocadas as seguintes questões: a questão da venda dos bens de especial relevo; a questão da falta de audição e consentimento dos credores na venda de um bem de especial relevo ao abrigo dos artigos 161.º e seguintes do CIRE; a questão dos poderes do AI na liquidação de bens; a questão dos poderes de fiscalização do juiz em sede de liquidação de bens; a questão da prática por parte do AI de um ato extremamente lesivo para a massa insolvente; a violação por parte do Tribunal, ao não anular fiscalizar e anular a venda efetuada pelo AI, da lei e dos princípios que norteiam a insolvência, designadamente os constitucionais;

c) no Acórdão Recorrido, o Tribunal da Relação apreciou e pronunciou-se sobre as seguintes questões: a questão dos poderes do AI na liquidação de bens; a questão dos poderes de fiscalização do juiz em sede de liquidação de bens; a questão da venda dos bens de especial relevo; a questão da audição e consentimento dos credores na venda de um bem de especial relevo ao abrigo dos artigos 161.º e seguintes do CIRE;

d) ficou provado que, através da reclamação de 22/12/2021, o Insolvente expressamente referiu ao Tribunal de 1.ª Instância que estávamos perante um ato de especial revelo e que era necessário ouvir os credores, perante o não depósito do preço por parte do 1.º proponente na compra do imóvel;

e) não obstante essa questão ter sido suscitada, no despacho recorrido, o Tribunal apenas limitou-se a referir que a AI ouviu os credores;

f) no Acórdão fundamento do STJ de 04/04/2017, no Processo n.º 1182/14.0T2AVR-H.P1, foram apreciadas as seguintes questões: a questão da falta de audição e/ou consentimento na venda de bens de especial relevo, nos termos dos artigos 161.º e seguintes do CIRE; a questão dos poderes do AI na liquidação de bens; a questão dos poderes de fiscalização do juiz em sede de liquidação de bens; a compatibilidade do artigo 163.º do CIRE com o princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da CRP, pelo facto das obrigações assumidas pelo AI terem excedido manifestamente as da contraparte;

g) no Acórdão fundamento discute-se a questão de saber se o disposto no art.º 163.º do CIRE, por infração ao art. 161.º, violando materialmente a CRP, deve ou não conduzir à interpretação que lhe atribua o sentido de considerar ferido de nulidade o ato, de forma a assegurar a tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido;

h) o Acórdão recorrido refere que, mesmo que a prática de atos de especial relevo da competência do administrador da insolvência, na fase de liquidação da massa insolvente, evidencie a violação dos arts. 161º e 162º do CIRE pelo administrador da insolvência, o art. 163º do CIRE estatui que tal violação “não prejudica a eficácia dos atos do administrador da insolvência, exceto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”;

i) na interpretação do Acórdão recorrido, este normativo não contempla o direito da parte lesada, no incidente de liquidação, por ato ou omissão do AI, poder arguir, perante o Juiz  de quem no processo for lesado, por atuação ilegal daquele órgão, é nenhum em termos imediatos e de proporcionalidade, exprimindo indefesa;

j) aceitar a interpretação do Acórdão recorrido será conferir ao lesado apenas como que uma possibilidade de atuação sancionatória de um órgão da insolvência, mas permanece eficaz o ato praticado que não será sindicável no processo;

k) este entendimento é incongruente e não assegura o princípio da tutela jurisdicional efetiva, violando o art. 20.º n.ºs 1 e 5 da CRP, como refere o Acórdão fundamento, cujo princípio norteia todo o processo de insolvência;

l) o lesado quererá, sobretudo, ver declarada a ineficácia de um ato praticado pelo AI que patrimonialmente é danoso e prejudica muito os credores, que assim poderão não ver os seus créditos totalmente satisfeitos;

m) o que está em causa e foi decidido no Acórdão fundamento é que, ao contrário do que resulta da letra do artigo 163.º do CIRE, podem e devem ser exercidos os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo relativamente aos atos praticados pelo administrador da insolvência na liquidação do ativo em violação do disposto nos artigos 161.º e 162.º;

n) tratando-se de nulidade do ato, poderia e deveria o Acórdão recorrido ter conhecido do vício e da consequente invalidade do ato do administrador da insolvência, independentemente da sua alegação;

o) o Tribunal a quo não podia ter omitido a sua pronúncia sobre a (in)validade da venda do imóvel, que representa 95% da massa insolvente, tratando-se de um ato de especial relevo, nos termos do art. 161.º do CIRE, tendo em conta o teor do requerimento que deu origem ao despacho impugnado e o próprio despacho impugnado que refere, erroneamente, que a AI ouviu os credores;

p) a AI não podia ter adjudicado a proposta do 2.º proponente, abaixo do valor mínimo de venda, sem o consentimento expresso da assembleia de credores (apenas com base num alegado consentimento tácito dos credores), tendo em conta que se trata de um ato de especial relevo, nos termos do art. 161º do CIRE;

q) ficou demonstrado que, por requerimento de 13/01/2022, a AI mentiu ao Tribunal ao referir que ouviu os credores e que a 2.ª proposta da sociedade S... Unipessoal, Lda. foi aceite pelos credores, quando na realidade apenas um dos credores, o BCP afirmou não se opor à aceitação dessa proposta;

r) apenas com base na alegação feita pelo AI (de já ter ouvido os credores, ainda que sem qualquer comprovação) e sem ter sindicado a legalidade do ato em questão, o Tribunal de 1.ª instância, por despacho de 20/01/2022, errou ao indeferir o requerido pelo insolvente (anulação do ato de venda ao 2.º proponente), alegando não ter poder de decisão ou de intervenção quanto à administração e liquidação da massa insolvente e que a AI praticou um ato lícito ao optar pela aceitação da proposta de valor inferior, após ter ouvido os credores;

s) a decisão do artigo 825.º n.º 1 do CPC não corresponde ao exercício de um mero poder discricionário por parte do AI – os poderes que a lei confere ao AI, em particular na fase da liquidação da massa insolvente, são poderes funcionais, vinculados e orientados para a maximização do valor da massa insolvente, com o fim último da maior satisfação possível dos credores da insolvência e da preservação da situação patrimonial do devedor, sobretudo porque estamos a falar de bens de especial relevo;

t) a própria decisão da AI de determinar que a venda fica sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior, quando este valor corresponde a cerca de metade do valor da proposta do proponente preferente, bem como do valor base de licitação do bem e do seu valor de mercado, constitui um ato de especial relevo, carecendo, também, do consentimento da assembleia de credores;

u) a falta de consentimento da assembleia de credores não pode ser suprida por uma consulta individual realizada, por email, pela AI aos credores da insolvência fora do âmbito de uma assembleia, com a advertência de que o seu silêncio é, decorrido determinado prazo, tomado como concordância com a prática do ato de especial relevo de que se trate;

v) a AI assumiu, para a massa insolvente, uma obrigação que excede manifestamente a da contraparte: à obrigação de transmissão da propriedade do bem imóvel corresponde, para o terceiro adquirente, uma obrigação de pagamento de um preço muito inferior ao valor do mesmo, pois correspondente a pouco mais de metade desse valor;

w) nos termos do artigo 58.º do CIRE, "o administrador da insolvência exerce a sua atividade sob a fiscalização do juiz", bem como pela comissão de credores ou assembleia de credores, especialmente quando se trate de atos de especial relevo para a massa insolvente, nos termos conjugados do disposto nos artigos 55.º, 68.º e 161.º do CIRE;

x) no exercício das suas funções de fiscalização, o Tribunal tinha a obrigação de fiscalizar os atos praticados pela AI e de anular quaisquer atos violadores da lei e praticados contra os interesses dos credores, sob pena de subversão dos princípios que norteiam o processo de insolvência, nomeadamente os constitucionais, e, em particular, o princípio da tutela jurisdicional efetiva;

y) cumpria ao Tribunal de 1.ª instância conhecer da validade da adjudicação da proposta do segundo proponente efetuada pelo AI, por se tratar de questão de conhecimento oficioso;

z) o ato praticado pela AI, nos termos do disposto no artigo 163.º do CIRE, está privado de eficácia, e sendo esta uma ineficácia absoluta, o juiz do processo podia e devia, consideradas as suas funções de fiscalização da atividade do administrador da insolvência, conhecer dessa questão ex officio;

aa) constituindo dever do AI maximizar o valor de venda dos bens da massa insolvente na liquidação e estando em causa a insolvência de pessoa singular, em que a satisfação dos seus credores é diretamente condicionada pelo resultado da liquidação e o valor dos créditos remanescentes (sobretudo à Fazenda Pública e Segurança Social, que subsistem independentemente da exoneração do passivo restante ser ou não decretada, no termos do art. 245.º n.º 2 do CIRE) continuará a onerar este devedor, a interpretação do art. 163.º do CIRE não pode fazer-se exclusivamente à luz do primado do princípio da celeridade processual;

bb) a remissão operada pelo artigo 17.º do CIRE para os preceitos do CPC exige a adaptação das normas chamadas a casos “que não são iguais, mas casos análogos”, pelo que não podem por ela ser postos em causa os valores que o processo de insolvência prossegue;

cc)  a aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 825.º do CPC à liquidação em processo de insolvência reclamava essa ponderação;

dd) a decisão a tomar em reação à falta de depósito por parte do proponente cuja proposta foi aceite constituía também, ato de especial relevo, carecendo, nos termos do art. 161.º do CIRE, da autorização da assembleia de credores;

ee) de acordo com o Acórdão fundamento, não pode colher o entendimento de que a violação do disposto no artigo 161.º do CIRE (por ter o ato de especial relevo sido praticado pelo AI sem o necessário consentimento da assembleia de credores, acompanhada do facto de o AI assumir para a massa insolvente, com esse ato, obrigações que excedem manifestamente as da contraparte), tem como única consequência a possibilidade do devedor prejudicado recorrer a ação autónoma com o fim de responsabilizar o AI pelos danos causados e/ou de requerer a declaração de ineficácia do ato;

ff) analisadas as causas da ineficácia estabelecida no artigo 163.º do CIRE, a verdade é que ela apenas opera quando, além do AI ter violado o dever legal de obter a autorização da assembleia de credores, as obrigações assumidas por ele “excedam manifestamente as assumidas pela contraparte”, como é o caso;

hh) não existe apenas um fim de proteção das partes diretamente lesadas com o ato, mas também a prossecução de interesses de ordem pública: estando o AI munido do poder funcional de administrar e dispor do património de outrem, em ordem à maximização do seu valor, deverá qualquer interessado poder pôr em causa a sua eficácia, mas também o próprio juiz do processo conhecer dela ex officio, quando aquele atue de modo a pôr em causa os fins a que as suas funções estão ordenadas com benefício desproporcionado e injustificado de terceiro – que, portanto, não carece de proteção jurídica;

ii) na restrição que o art. 163.º do CIRE opera no direito do devedor insolvente a um processo equitativo (constitucionalmente protegido pelo art. 20.º n.º 4 da CRP), negando-se o poder e o dever de o juiz do processo de insolvência conhecer da ineficácia ou nulidade de um ato de especial relevo praticado pelo AI com preterição das formalidades exigidas no art. 161.º do mesmo código e em prejuízo da massa insolvente, em prol da celeridade processual (o art. 20.º n.º 5 da CRP visa assegurar aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade), não pode considerar-se satisfeito o critério da proporcionalidade em sentido estrito – na verdade, não corresponde a esse sacrifício um benefício para o processo de insolvência, nem tampouco para os interesses que o processo de insolvência visa servir, uma vez que nem se assegura a melhor satisfação dos credores nem a melhor proteção da situação patrimonial do devedor;

 jj) a interpretação do disposto no artigo 163.º do CIRE, que é feita pelo Acórdão recorrido, com o sentido de que o juiz não pode e não deve conhecer da ineficácia ou nulidade de um ato de alienação de bem da massa insolvente praticado pelo administrador da insolvência com preterição das formalidades exigidas no artigo 161.º do mesmo código, resultando esse ato em claro prejuízo dos credores e do devedor insolvente, constitui uma restrição excessiva do direito do devedor insolvente a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), restrição essa que viola o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), devendo a norma ser considerada inconstitucional nessa interpretação, como se defendeu no Acórdão fundamento;

kk) entender que não cabe na competência jurisdicional apreciar a regularidade dos atos praticados pelo AI, bem como que não cabe ao juiz do processo de insolvência declarar a invalidade de um ato (de especial relevo) de liquidação da massa insolvente promovido pelo AI em violação das normas que lhe impõem a adoção das formalidades previstas nos art. 161º e 162º do CIRE, é admitir a violação do direito fundamental dos prejudicados, de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, previsto no art. 20º, n.ºs 1 e 5, da CRP, como se refere no Acórdão fundamento;

ll) um entendimento diverso relega o juiz do processo para um papel secundário, de mero controlo limitado, que nem lhe permite apreciar as irregularidades que afetem os atos praticados pelo administrador da insolvência, em prejuízo do devedor insolvente e dos credores;

mm) o direito de ação que a lei assegura aos lesados em casos como o sub judice, obrigando-os a recorrer a ação autónoma de responsabilização do AI e/ou de privação de eficácia de um ato, sempre que no processo pendente a parte que se considera prejudicada argui perante o juiz do processo a existência de vícios processuais que contendem com o seu direito, não lhes assegura tutela jurisdicional efetiva;

nn) a interpretação de que a norma expressa no artigo 163.º do CIRE com o sentido de que a parte lesada não pode arguir, perante o juiz do processo, vícios procedimentais por ato ou omissão do AI no incidente de liquidação priva quem for lesado no processo dessa tutela jurisdicional, em termos imediatos e de proporcionalidade – exprime indefesa e é inconstitucional;

oo) as razões e argumentos que levaram à declaração de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 163.º do CIRE pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão fundamento, aplicam-se ao caso concreto, não obstante estar em causa a violação das formalidades estabelecidas no artigo 161.º e o dever que impende sobre o AI de praticar os atos de liquidação em ordem à máxima satisfação dos credores e à salvaguarda da situação patrimonial do devedor insolvente;

pp) a questão de fundo é a mesma do acórdão fundamento: a interpretação do disposto no artigo 163.º e o âmbito dos poderes jurisdicionais do juiz relativamente a atos nulos praticados por administrador da insolvência no âmbito da liquidação.

qq) a Decisão Singular proferida, de que ora se reclama, é errada e injusta, razão pela qual deve ser proferido Acórdão sobre a matéria vertida no recurso apresentado, nos termos e com os fundamentos atrás invocados.

IIADMISSIBILIDADE DO RECURSO
1. Na Decisão singular que entendeu não conhecer do objeto do recurso, consignou-se:
“(…) 1. Importando desde logo aferir da admissibilidade do recurso, neste âmbito, o Insolvente, ora recorrente, invocou genericamente, o disposto nos artigos 629, 631, 637, 638, n.º1, 639 e 671, n.º 1 do CPC e art.º 14 do CIRE.       

Enquanto os requisitos gerais de admissibilidade previstos no n.º 1, do art.º 629, do CPC, valor da ação e sucumbência, não estão em causa, já no que concerne às decisões que comportam revista, não é o caso dos autos à luz do n.º1 do art.º 671, também do CPC, porquanto a decisão recorrida não conhece do mérito da causa ou põe termo ao processo.

Desse modo importa ater-nos ao disposto no n.º 2, do aludido art.º 671, na indicação dos casos em que o recurso é sempre admissível, alínea a) e  art.º 629, n.º 2, e quando exista contradição de julgados, alínea b).

É à luz da existência deste último caso, oposição de julgados, que a admissibilidade do recurso deve ser apreciada, tendo em conta o mencionado n.º2, do art.º 671, nomeadamente por apresentado um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça como acórdão fundamento, num possível reporte também ao disposto no art.º 629, n.º 2, d),  ainda do CPC, bem como a situação atendível, trilhando o caminho do art.º 14, n.º1, do CIRE, aplicável aos autos.
2. A oposição de acórdãos pressupõe que o acórdão recorrido esteja em contradição com algum acórdão anteriormente proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça  o denominado acórdão fundamento, tendo ambos os acórdãos sido proferidos no domínio da mesma legislação, e sobre a mesma questão fundamental de direito, no sentido de neste último caso, se revelar essencial para a resolução do litígio em ambos os processos, e assim a contradição deve ser frontal, resultando expressamente e não de forma implícita, sem ser atribuída relevância a elementos de natureza acessória, não bastando que se tenha abordado o mesmo instituto.

Haverá assim oposição/contradição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito quando o núcleo da situação de facto, à luz da norma é idêntico, havendo conflito jurisprudencial se os mesmos preceitos são interpretados e aplicados a enquadramentos factuais idênticos, pressupondo que a subsunção jurídica realizada em quaisquer das decisões tenha operado sobre o mesmo núcleo factual, pelo que tendo o recurso sido admitido com o único fundamento de contradição jurisprudencial, e desse modo como objetivo reapreciar o acórdão recorrido a partir da resposta que seja dada à apontada questão essencial de direito, não podem ser abordadas outras questões[1], quer as marginais quer as se reportem a argumentos sem valor determinante para a decisão emitida[2].

Em suma, a oposição relevante em termos de admissibilidade de recurso pressupõe que as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, analisadas e confrontadas no plano factual ou material, sejam rigorosamente equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial, que determine a aplicação em cada um do mesmo regime legal, de modo direto conflituantes, com soluções de direito opostas e como tal inconciliáveis, e em conformidade contraditórias.

3. No Acórdão recorrido estava em causa a apreciação do despacho que indeferiu o pedido do Recorrente/insolvente, de ser rejeitada a proposta de aquisição tendo em conta o valor reduzido, inferior ao valor mínimo de venda, bem como a realização de arresto relativamente ao primeiro proponente, não cumpridor, ou nova colocação à venda do bem.

No âmbito da apreciação, no Acórdão recorrido foram tecidas considerações, consignando-se:“(…) Na intensificação da desjudicialização do processo de insolvência, a liquidação é efectuada pelo administrador da insolvência, AI, sob a fiscalização do juiz, cuja atividade é reduzida ao que estritamente releva para o exercício da função jurisdicional, da comissão de credores e da assembleia de credores (…)  Atento o disposto no art. 161º,sob a epígrafe «Necessidade de consentimento» a prática de atos jurídicos, que assumam especial relevo para o processo de insolvência, depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores. Assim, à luz do referido preceito que, apesar de se referir a empresas é aplicável à generalidade das insolvências atenta a sua inserção sistemática (…) Trata-se, pois, de estabelecer os limites da autonomia do administrador de insolvência no que respeita à liquidação, identificando um conjunto de atos cuja prática, no respeito da legalidade, deve ser precedida do consentimento da comissão de credores – quando exista – ou na hipótese contrária, de deliberação favorável da assembleia de credores. Está também em causa o envolvimento e empenho dos credores nos atos mais significativos da liquidação (especial relevo), considerando que destinando-se a liquidação a satisfazer os seus interesses, são os mesmos quem melhor pode avaliar o modo mais apropriado da sua obtenção”.

Entendeu-se que pretendendo o Recorrente/insolvente que a alienação do imóvel do acervo da massa insolvente constituía um ato de especial relevo que carecia sempre de autorização expressa da comissão de credores, ou dele quando a primeira não existia, considerou que a venda do imóvel em causa nos autos, face ao seu valor e representatividade na massa, integrava a previsão do disposto no art.º 161, n.º 3, al. g), do CIRE, e desse modo um ato de especial relevo, consignandoNo despacho impugnado aludiu-se à prévia audição dos credores. Mas apenas um respondeu expressamente sendo que o AI interpretou o silêncio dos demais como consentimento tácito (cfr. art.º 217, do CC). A questão seria de analisar com mais detalhe se, no caso concreto, o recorrente a tivesse colocado à primeira instância. No requerimento que o recorrente endereçou à primeira instância, e que mereceu o despacho impugnado, esta questão não foi colocada à consideração da primeira instância. A questão foi, efetivamente, colocada quanto a uma primeira tentativa de venda que foi suspensa. Mas, repete-se, não foi no requerimento que mereceu o despacho judicial impugnado, sendo assim questão nova de que não cumpre conhecer.(…)”.

Mais se consignouPretende o recorrente que sejam arrestados bens do proponente faltoso para garantir o valor em falta, com a consequente execução. Estipula o art.164º,n.º1,CIRE que o AI procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que seja mais conveniente. Por outro lado, o art.17º do CIRE preconiza a aplicação subsidiária do CPC em tudo que não seja contrário ao primeiro normativo. O regime de venda do leilão eletrónico encontra-se previsto no 838º CPC, e regulado nos art.20º a 26º da Portaria n.º282/13, 29.08 e no Despacho do Ministério da Justiça n.º 12624/15, 09.11. O incumprimento da obrigação de pagamento do preço dá azo à aplicação do regime do art.825ºCPC (cfr.art.20ºPort. n.º282/13,29.08). Nos termos deste último preceito, aplicável ao CIRE com se referiu supra, se o proponente não tiver depositado o preço o agente de execução(AE), ouvidos os interessados na venda, pode: a) Determinar que a venda fique sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior, perdendo o proponente o valor da caução constituída nos termos do n.º 1 do artigo anterior; ou b) Determinar que a venda fique sem efeito e efetuar a venda dos bens através da modalidade mais adequada, não podendo ser admitido o proponente ou preferente remisso a adquirir novamente os mesmos bens e perdendo o valor da caução constituída nos termos do n.º 1 do artigo anterior; ou c) Liquidar a responsabilidade do proponente ou preferente remisso, devendo ser promovido perante o juiz o arresto em bens suficientes para garantir o valor em falta, acrescido das custas e despesas, sem prejuízo de procedimento criminal e sendo aquele, simultaneamente, executado no próprio processo para pagamento daquele valor e acréscimos. A lei é clara o AE pode escolher uma de três opções. A opção não cabe aos credores ou ao devedor, é exclusiva do AE. No CIRE, ocorre o mesmo, atenta a subsidiariedade do CPC prevista no art.17º do primeiro normativo. Assim sendo a opção da AI é lícita, não incumbindo ao Tribunal ordenar-lhe o que quer que seja, sendo certo que é da responsabilidade da mesma qualquer irregularidade que seja suscetível de causar prejuízo à massa e ,consequentemente aos credores(cfr.art.59ºCIRE)(…) No tocante à designação de uma nova venda remete-se para o que se disse (…)”.

Por sua vez no Acórdão fundamento, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.04.2017, processo n.º 1182/14.0T2VR-H.P1, um credor com garantia real sobre duas frações, integrando a massa insolvente, veio requerer ao tribunal que declarasse a nulidade da venda por negociação particular e sem publicidade da mesma, levada a cabo pelo AI, por não ter sido ouvido sobre a modalidade da alienação, nem informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada, nos termos do art.º 164, do CIRE, tendo tal venda sido declarada nula, com fundamento nos art.º 195, n.º1, e 839, n.º1, c), do CPC.

A credora adquirente recorreu para o Tribunal da Relação que julgou o recurso procedente, revogando a decisão que declarara nula a venda.

Interposto recurso pelo credor reclamante, foi entendido no Acórdão fundamento que a possibilidade de reação contra os atos do AI estava dependente da qualificação do ato como de especial relevo para o processo de insolvência, consignando-seA lei insolvencial não contempla a possibilidade de anulação e atos praticados pelo AI, em sede de liquidação da massa insolvente, que enferme de vícios processuais cometidos, por ação ou omissão, na venda por negociação particular por si promovida, que são os invocados pelo recorrente. A alienação, mesmo no caso de venda por negociação particular – a modalidade quiçá menos transparente de venda forçada – mesmo que enferme de vício de tal natureza não prejudica a eficácia dos atos, exceto no caso (aqui nem sequer ventilado) de as obrigações assumidas pelo AI excederem manifestamente as da contraparte – art.º 163, do CIRE”.

QuestionandoRecusando-se ao juiz do processo de insolvência, poder apreciar e anular a venda por negociação particular, promovida pelo AI, em violação das normas que lhe impõem a adoção das formalidades previstas nos art.º 161 e 162 do CIRE, não sairá afetado o direito fundamental dos prejudicados, de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva prevista no art.º 20 da Constituição da Republica”, é dada a resposta (…) a interpretação que no Acórdão Recorrido foi acolhida do art.º 163 do CIRE, sentenciando que adecisão recorrida tem de ser revogada por o decidido (anulação da venda) exceder os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência em relação aos atos publicados na liquidação do ativoé materialmente inconstitucional por violar o art.º 20, n.º1 e 5, da Constituição da República, do ponto em que não garante ao lesado tutela jurisdicional efetiva do seu direito, e, consequentemente revoga o Acórdão recorrido.”, sendo repristinada a decisão que declarou a nulidade da venda.

4.  O Recorrente, nas suas alegações, invoca que foi decidida a mesma questão fundamental de direito, inclusive no sentido da inconstitucionalidade da interpretação do Tribunal a quo, porquanto, o ato de alienação de bem imóvel integrante da massa insolvente de pessoa singular, cujo valor representa mais de 95% dessa massa, constitui ato de especial relevo, nos termos do art.º 161.º do CIRE, dependendo a sua prática pelo AI do consentimento da comissão de credores ou, se esta não existir, da assembleia de credores; a decisão do artigo 825.º n.º 1 do CPC não corresponde ao exercício de um mero poder discricionário por parte do AI; a decisão da AI de determinar que a venda fica sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior, quando este valor corresponde a cerca de metade do valor da proposta do proponente preferente, bem como do valor base de licitação do bem e do seu valor de mercado, constitui pela repercussão que tem na massa insolvente, ato de especial relevo – carecendo, assim, também do consentimento da assembleia de credores; a falta de consentimento da assembleia de credores não pode ser suprida, em qualquer caso, por uma consulta individual realizada, por email, pela AI aos credores da insolvência fora do âmbito de uma assembleia, com a advertência de que o seu silêncio é, decorrido determinado prazo, tomado como concordância com a prática do ato de especial relevo de que se trate; a AI assumiu, para a massa insolvente, uma obrigação que excede manifestamente a da contraparte: à obrigação de transmissão da propriedade do bem imóvel corresponde, para o terceiro adquirente, uma obrigação de pagamento de um preço muito inferior ao valor do mesmo, pois correspondente a pouco mais de metade desse valor;  cumpria ao Tribunal a quo conhecer da validade da adjudicação da proposta do segundo proponente, por se tratar de questão de conhecimento oficioso; o ato praticado pela AI, nos termos do disposto no artigo 163.º do CIRE, está privado de eficácia absoluta, o juiz do processo podia e devia, consideradas as suas funções de fiscalização da atividade do administrador da insolvência, conhecer dessa questão ex officio; a restrição que o artigo 163.º do CIRE opera no direito do devedor insolvente a um processo equitativo (constitucionalmente protegido pelo artigo 20.º, n.º 4, da CRP), negando-se o poder e o dever de o juiz do processo de insolvência conhecer da ineficácia ou nulidade de um ato de especial relevo praticado pelo AI com preterição das formalidades exigidas no artigo 161.º do mesmo código e em prejuízo da massa insolvente, em prol da celeridade processual constitui uma restrição excessiva do direito do devedor insolvente a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), restrição essa que viola o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), devendo a norma ser considerada inconstitucional nessa interpretação.

5. Ora na contraposição dos dois Acórdãos, fundamento e recorrido, resultará, desde logo, quanto a este último, que não foi colocada, nem apreciada a questão da constitucionalidade, tal como surgiu delineada no Acórdão fundamento, aliás a arguição da inconstitucionalidade, sendo legítima, está subordinada às regras gerais decorrentes da lei 28/82, de 15.11, não fundamenta, maxime autonomamente, a admissibilidade de um recurso de revista, no caso de inverificados os pressupostos exigíveis de admissibilidade.

Também a tela factual não se mostra idêntica, o que determina, decorrentemente, um enquadramento e apreciação diferenciada, quanto às questões suscitadas e que foram submetidas a conhecimento nos dois Arestos em contraposição.

Com efeito, segundo o Acórdão recorrido, embora não enjeitando que a alienação do bem em causa nos autos constituísse um ato de especial relevo, não tinha sido colocada à 1.ª Instância a questão da prévia audição das partes, obstando ao respetivo conhecimento, e assim prejudicando o que em tal sede poderia relevar em sede do cumprimento do disposto no art.º 161, e efeitos no art.º 163, ambos do CIRE, cujo atendimento não foi assim feito, relevantemente contrariando o acolhido no Acórdão fundamento.

Refira-se que uma eventual omissão de pronúncia no âmbito do Acórdão recorrido sobre uma questão reputada como determinante pelo Recorrente, não pode consubstanciar por natureza, face à falta de apreciação, fundamento para uma contradição com uma pronúncia realizada, em sede do Acórdão que se pretende consubstanciar uma oposição de julgados, sem prejuízo do possível conhecimento no âmbito do regime das nulidades.  

Também não foi contemplada em ambos os acórdãos, a questão das obrigações assumidas pelo AI excederem manifestamente as da contraparte, conforme a parte final do art.º 163, do CIRE, nem os poderes ex officio que impendem sobre o juiz em sede de liquidação, bem como no Acórdão fundamento apreciada a natureza do poder atribuído à AI, nos termos do art.º 825, n.º1, do CPC.

Pode assim concluir-se que, no relevante, para além das considerações a latere e das soluções diversas achadas, não se verifica a exigível contradição de julgados que permita a admissão do recurso para este Tribunal.        

Pelo exposto, não se conhece do objeto do recurso, que assim se considera findo, nos termos do art.º 652, n.º1, b) e h), por força do constante no art.º 679, ambos do CPC.”
2. Não se vislumbram que não sejam de atender as razões vertidas no Despacho impugnado pelo Reclamante, como fundamento da inadmissibilidade do recurso de revista interposto pelo mesmo, desde logo até porque não se evidencia que tenham trazido quaisquer novas razões, no estrito âmbito do conhecimento da reclamação, tendo as invocadas tido a apreciação necessária para a admissibilidade do recurso, no quadro legal enunciado, de oposição de acórdãos, e não a pronúncia sobre as questões suscitadas no recurso de apelação e de revista, e a resposta dada quanto à primeira pelo Tribunal da Relação, que o Reclamante alega, aliás, que não mereceram tratamento no Acórdão recorrido.

Reafirme-se, na contraposição dos Arestos, recorrido e fundamento, são aludidas algumas das questões invocadas pelo Recorrente, sem que contudo tenham merecido o tratamento que permitiria concluir pela existência de julgados contraditórios, nos termos delineados na Decisão singular, merecendo total assentimento.

Por último, e em nota no que concerne a uma referenciada inconstitucionalidade, na violação de princípios constitucionais, caso do direito de acesso aos tribunais, e da proporcionalidade em termos de restrição dos direitos constitucionalmente protegidos, artigos 18.º e 20º, do CRP, a Jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça são consensuais no sentido que o legislador tem um amplo poder de conformação na concreta modelação processual, competindo ao julgador, assim, aferir dos pressupostos de admissibilidade do recurso, com vista ao conhecimento do seu objeto, não se divisando na situação sob análise que se configure um impedimento ilegal ou arbitrário, contrariando o acesso à tutela jurisdicional, bem como o desrespeito  dum duplo grau de recurso, ou seja, um triplo grau de jurisdição, pois e reiterando, o legislador, que, neste âmbito, dispõe de uma ampla margem de liberdade, não ditando que se considerem recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça todas as decisões.

Pelo exposto, indefere-se a Reclamação deduzida.

Custas pelo Reclamante, com três UCs de taxa de Justiça.

                                   

Lisboa,  28 de junho 2023

                                                                                                                

Ana Resende (Relatora)

Maria José Mouro

Graça Amaral
     

Sumário, (art.º 663, n.º 7, do CPC).


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[1] Cf. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, pág. 76/77.
[2] Cf. Ac. do STJ de 14.07.2021, processo n.º 12889/20.9T8PRT-A.P1.S1, referenciando Jurisprudência do STJ nesse sentido, in www.dgsi.pt.