Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2879/18.0T8PTM.E1.S2
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
PODERES DA RELAÇÃO
ERRO DE DIREITO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
DOCUMENTO AUTÊNTICO
VIOLAÇÃO DE LEI
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. O Supremo Tribunal de Justiça tem perfilhado o entendimento de que somente deixa de atuar a dupla conforme a verificação de uma situação, conquanto o acórdão da Relação, conclua pela confirmação da decisão da 1ª Instância, em que o âmago fundamental do respetivo enquadramento jurídico seja diverso daqueloutro assumido e plasmado pela 1ª Instância, quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a decisão proferida na sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada.

II. Não obstante a dupla conforme existente entre decisões, essa mesma conformidade deixa de operar se a parte pretender reagir contra o não uso, ou o uso deficiente dos poderes da Relação sobre a matéria de facto, quando se invoca um erro de direito.

III. A decisão de facto é da competência das Instâncias, conquanto não seja uma regra absoluta, o Supremo Tribunal de Justiça não pode, nem deve, interferir na decisão de facto, somente importando a respetiva intervenção, quando haja erro de direito, isto é, quando o aresto recorrido afronte disposição expressa de lei, nomeadamente, quanto às regras que fixam a força de determinado meio de prova, desconsiderando, por exemplo, a força probatória plena de documento autêntico.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

I. Pilard Holdings Limited instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra o Estado Português, aqui representado pelo Ministério Público, pedindo que: (i) Declare revogado o estatuto de dominialidade até aqui aplicável à faixa de terreno de margem das águas do mar que integra o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 4395 e inscrito na matriz predial sob os n.ºs 5986 e 5987, da freguesia da ...; (ii) Reconheça e declare, com efeito constitutivo, a propriedade privada da Autora sobre a faixa de domínio público a que presuntivamente, pertencia a referida parcela.

II. O Digno Agente do Ministério Público, em representação do Estado Português, contestou, impugnando a factualidade alegada, alegando que o prédio se encontra parcialmente inserido na margem das águas do mar, em domínio público marítimo e que a prova relevante terá de abranger toda a área do prédio que se insira na área do leito ou margem das águas do mar, não se tendo comprovado documentalmente a posse privada da margem. Concluiu no sentido de a ação vir a ser julgada improcedente.

III. Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e em consequência absolveu o Estado Português do pedido.

IV. Inconformada com a sentença, apelou a Autora/Pilard Holdings, tendo apresentado as respetivas alegações e conclusões do recurso.

5. O Tribunal a quo conheceu do interposto recurso, proferindo acórdão em cujo dispositivo foi enunciado: “Pelo exposto acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em rejeitar o recurso interposto.”

6. A Autora/Pilard Holdings Limited insurgiu-se contra a predita decisão, interpondo revista.

7. Este Tribunal ad quem conheceu da revista, proferindo acórdão, em cujo dispositivo consignou: “Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar procedente a revista interposta, e, consequentemente:

a) Determinar a reapreciação da matéria de facto rejeitada, concretamente, a decisão de facto atinente ao item 6. dos factos provados, pelos mesmos juízes que elaboraram o acórdão recorrido, se for possível;

b) Determinar que a Relação verifique se o resultado dessa reapreciação implica a alteração dos outros pontos do acórdão, procedendo às alterações que entender.

c) Custas a cargo da parte vencida, a final.”

8. Remetidos os autos à Relação foi proferido novo acórdão que reapreciou a matéria de facto, entretanto rejeitada, concretamente a decisão de facto atinente ao item 6 dos factos provados, decidindo em face desta reapreciação, concluindo no respetivo dispositivo: “Pelo exposto acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida.”

9. Novamente inconformada, a Autora/Pilard Holdings interpôs revista, tendo apresentado as respetivas alegações, e apresentado as seguintes conclusões:

“A. O presente recurso é interposto do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância que conheceu do mérito da causa, com fundamento, primeiro em erro de determinação da norma aplicável (artigo 674.º, n.º 1, a) do CPC) e, segundo, na violação da força probatória plena de documento autêntico atribuída pelo artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil (artigo 674.º, n.º 3 in fine do CPC).

B. Em relação ao primeiro fundamento, o acórdão recorrido incorreu em manifesto erro de direito na determinação da norma aplicável, aplicando ao caso em apreço a norma do artigo 15.º, n.º 2 da Lei 54/2005, de 15 de novembro, que exigia que a prova produzida quanto à propriedade privada do imóvel recuasse até à data de 31.12.1864, a qual não fora invocada na sentença recorrida, nem no recurso que a impugnou e que nada tem a ver com a discussão em causa nos autos.

C. Ao invés de ter aplicado a norma constante do artigo 15.º, n.º 4 da Lei 54/2005, em que se fundamentara a ação, que foi aplicada pela sentença de 1.ª instância e em que se baseara também o recurso para a Relação, que exigia que prova recuasse apenas até 1.12.1892.

D. Esta diferença essencial entre a fundamentação jurídica da sentença de 1.ª instância e do acórdão da Relação traduz-se num impacto decisivo na procedência da ação, já que a prova produzida pela Autora recua até 26.7.1887, o que permite que o pedido formulado ao abrigo do n.º 4 do artigo 15.º possa proceder, o mesmo não sucedendo já com um hipotético pedido formulado ao abrigo do n.º 2 da mesma norma (que, de resto, nunca foi deduzido).

E. Essa diferença essencial de fundamentação jurídica determina a não verificação da dupla conforme e, consequentemente, a admissibilidade do presente recurso, nos termos do artigo 671.º, n.º 3 do CPC.

F. Aplicando-se a norma do artigo 15.º, n.º 4 da Lei 54/2005, que exige que a prova recue apenas até 1.12.1892, a ação deve ser julgada procedente face à prova produzida nos autos, que demonstra que o imóvel em causa estava em propriedade privada pelo menos até recua antes de 26.7.1887.

G. O segundo fundamento do presente recurso assenta na violação da força probatória plena de documento autêntico atribuída pelo artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil, concretamente na desconsideração do parecer da Comissão de Delimitação do Domínio Público Marítimo n.º 4013, de 20 de julho de 1971, na parte em que concluiu que estes terrenos já se encontravam em propriedade particular em 1887 (artigo 674.º, n.º 3 in fine do CPC).

H. O referido Parecer da CPDM configura documento autêntico, por ter sido exarado por órgão da Administração Pública no exercício das suas competências legais que lhe eram conferidas pelo Decreto-Lei n.º 49978, de 25 de junho de 1969, não consubstanciando, na parte relevante, “juízos pessoais” ou sequer conclusões jurídicas dos seus autores, mas antes a constatação de factos que, por via documental, foram trazidos ao conhecimento da dita Comissão referentes à propriedade privada do prédio em data anterior a 26.7.1887, e que por esta foram atestados, preenchendo assim a previsão da parte final do n.º 1 do artigo 371.º do Código Civil, subsumindo-se no conceito de “factos que neles [documentos] são atestados com base nas perceções da entidade documentadora”.

I. Do Parecer da CDPM resulta, pois, que, pelo menos, desde 26 de julho de 1887, cerca de cinco anos antes da data-limite de 1 de dezembro de 1892 prevista no artigo 15.º, n.º 4 da Lei 54/2005, que o imóvel em causa era objeto de propriedade ou posse privadas, facto que conta dos autos, que foi alegado no recurso para o Tribunal da Relação de Évora e provado por documento autêntico que este, pura e simplesmente, ignorou.

J. Violando, assim, a força probatória plena do referido Parecer, em ofensa do artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil, o que se subsume na previsão constante do artigo 674.º, n.º 3 in fine do Código de Processo Civil

K. Assim sendo, deve ser corrigida a matéria de facto ao abrigo do artigo 682.º, n.º 2 do CPC, considerando-se provado que, pelo menos, desde 26 de julho de 1887, cerca de cinco anos antes da data limite de 1 de dezembro de 1892, se o imóvel em causa era objeto de propriedade ou posse privadas, conforme resulta da pág. 2, n.º 5 do Parecer da Comissão do Domínio Público Marítimo junto como Doc. 7 com a p.i.

L. Julgando-se o presente recurso procedente e, em consequência, a ação provada por procedente.

M. Ou, assim não se entendendo, ser ordenada a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Évora, para que amplie a matéria de facto de modo a poder aplicar-se a norma do artigo 15.º, n.º 4 da Lei 54/2005, de 15 de novembro, nos termos do artigo 682.º, n.º 3 do CPC, passando a incluir um novo tema de prova com o seguinte teor:

“Saber se, pelo menos, desde 26 de julho de 1887, cerca de cinco anos antes da data-limite de 1 de dezembro de 1892, se o imóvel em causa era objeto de propriedade ou posse privadas, conforme resulta da pág. 2, n.º 5 do Parecer da Comissão do Domínio Público Marítimo junto como Doc. 7 com a p.i.”

TERMOS EM QUE

Deve o presente recurso ser:

I. Julgado procedente, por provado, determinando a extinção do regime da dominialidade e o reconhecimento da propriedade privada da Recorrente sobre o prédio em causa nos autos, nos termos do artigo 15.º, n.º 4 da Lei 54/2005, de 15.11; ou, assim não se entendendo,

II. Determinar-se a baixa dos autos à Relação para ampliação da matéria de facto, de modo a incluir um tema de prova com o teor referido na Conclusão M”

10. Foram apresentadas contra-alegações, tendo o Estado Português, representado pelo Digno Agente do Ministério Público, sustentado a inadmissibilidade da revista, e, em todo o caso, pugnado pela manutenção do acórdão recorrido, aduzindo as seguintes conclusões:

Introdução. A decisão recorrida e os fundamentos do recurso.

1.ª- A coberto da alegada violação das leis substantivas, na modalidade de erro na determinação da norma aplicável (artigo 674.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil) e com base na violação da força probatória plena de documento autêntico atribuída pelo artigo 371.º do Código de Processo Civil (artigo 674.º, n.º 3, in fine, do Código de Processo Civil), a recorrente procura “abrir” novamente as portas do Supremo Tribunal de Justiça para que seja sindicado o teor do douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora que, no âmbito do presente processo e em cumprimento do determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça, julgou improcedente o recurso de apelação, analisando a prova que se impunha analisar e respondendo às duas questões que se impunha responder:

- 1.ª Questão - Saber se deve ser considerado provado que o prédio 4395 se encontrava em propriedade privada em 1887.

- 2.ª Questão - Saber se a A afastou a presunção de dominialidade prevista no art.° 15.º, n.º 2 da Lei n.º 54/05, de 15.11.

2.ª- O douto acórdão recorrido analisou na 1.ª questão a causa de pedir assente no artigo 15.º, n.º 4, da Lei n.º 54/2005, de 15-11, reapreciou a matéria de facto que o Supremo Tribunal de Justiça impôs que reanalisasse, concretamente a atinente ao item 6 dos factos provados; reapreciou o Parecer do CDPM de 20 de Julho de 1971, junto aos autos, e concluiu que “Porém, não é verdade que o aludido Parecer conclua que este terreno já se encontrava em propriedade particular em 1892.”.

3.ª- Pelo que é manifestamente inexato sustentar, como faz a recorrente, que o Tribunal da Relação de Évora tivesse ignorado, desconsiderado ou desautorizado o parecer em causa, já que, tendo-o analisado, considerado e valorado, concluiu que, qualquer que fosse a força probatória que o recorrente lhe atribuísse, o mesmo não prova o “facto” que ele queria ver provado.

4.ª- Além disso, o facto probando que o recorrente reclama por ver provado, i.e., que “«o prédio n.º 4395 já se encontrava em propriedade privada antes de 1 de dezembro de 1892, como exigido pelo n.º 4 do artigo 15.º da Lei 54/2005» nem sequer é facto, mas antes uma valoração jurídica e, para mais, é o objeto principal, senão o único, da disputa entre as partes; pelo que, além de não ter suporte probatório relevante, nunca poderia ser utilizado na enunciação dos factos, pois contém a solução jurídica da causa, e sempre se teria que considerar como não escrito.

DO OBJETO DO RECURSO E DA SUA MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA E INADMISSIBILIDADE.

Da efetiva (não aparente) verificação da dupla conforme (671.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).

5.ª- Não há como não concluir que a decisão sob recurso significa uma dupla conformidade decisória entre a decisão do Tribunal da Relação de Évora e a decisão de 1.ª instância sobre a essencialidade da questão controvertida, ou seja, que o prédio do A não se encontrava em propriedade privada antes de 1-12-1892, como é exigido pelo n.º 4, do artigo 15.º, da Lei 54/2005.

6.ª- Apesar do esforço do recorrente em ignorar essa evidência, a matéria de facto considerada provada em 1.ª instância foi mantida nos seus precisos termos, depois de escrutinada na sequência do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça e, nos seus precisos termos, foi mantida a decisão de direito, pois a decisão recorrida ditou: “Pelo exposto acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida.”.

Porém,

7.ª- Para fugir a esse impedimento, o recorrente invoca violação do direito probatório material, especificamente violação da força probatória plena de documento autêntico atribuída pelo artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil (artigo 674.º, n.º 3 in fine do CPC), que só ele reconhece ao Parecer da Comissão de Delimitação do Domínio Público Marítimo n.º 4013, de 20 de julho de 1971, na parte em que, segundo o A, aí se concluiu que estes terrenos já se encontravam em propriedade particular em 1887.

DO OBJETO DO RECURSO E DA SUA MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA E INADMISSIBILIDADE.

Da inexistente violação do direito probatório material e da força probatória plena atribuída pelo recorrente ao parecer da Comissão de Delimitação do Domínio Público Marítimo.

8.ª- Nos termos do artigo 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal só pode intervir quando tenha sido dado como provado determinado facto sem que tenha sido produzido o meio de prova de que determinada disposição legal faz depender a sua existência, quando tenha sido dado como provado determinado facto por ter sido atribuído a determinado meio de prova uma força probatória que a lei não lhe reconhece ou quando tenha sido dado como não provado determinado facto por não ter sido atribuído a determinado meio de prova a força probatória que a lei lhe confere.

9.ª- Sustenta o recorrente que “o referido Parecer da CPDM configura documento autêntico, por ter sido exarado por órgão da Administração Pública no exercício das suas competências legais que lhe eram conferidas pelo Decreto-Lei n.º 49978, de 25 de junho de 1969, não consubstanciando, na parte relevante, “juízos pessoais” ou sequer conclusões jurídicas dos seus autores, mas antes a constatação de factos que, por via documental, foram trazidos ao conhecimento da dita Comissão referentes à propriedade privada do prédio em data anterior a 26.7.1887, e que por esta foram atestados, preenchendo assim a previsão da parte final do n.º 1 do artigo 371.º do Código Civil, subsumindo-se no conceito de “factos que neles [documentos] são atestados com base nas perceções da entidade documentadora”.

10.ª- Porém, nada disso está em causa na decisão recorrida e o recurso erra evidentemente o alvo e é completamente falho de razão.

11.ª- Em primeiro lugar, assim é, pois como claramente demonstrou a decisão recorrida, o Parecer em questão não diz aquilo que o A nele vê ou quer ver.

12.ª- Em segundo lugar, porque o dito Parecer não tem a força probatória de documento autêntico que o A lhe atribui, pois, esse Parecer seria quanto muito prova documentada e nunca prova documental (uma e outra irrelevante para o objeto da prova na ação, como as duas instâncias demonstraram).

Vejamos em que termos:

13.ª- Nesse parecer ficam expressas as dúvidas da CDPM sobre a posse privada do prédio, que passa esse trabalho de prova de documentos para a Comissão de Delimitação a constituir, assim como a efetivação da delimitação.

14.ª- O Parecer em questão, quando muito, contêm uma opinião, conclusão ou parecer técnico que a CDM emitiu no processo n.º 4013, de 20 de julho de 1971, relativo ao prédio 3271, mas não concluiu que o terreno correspondente estivesse na posse de particulares desde data anterior a (1864, 1868 ou1887) 1892.

Quanto ao respetivo valor probatório:

15.ª- Tanto o processo, como o parecer onde foi produzido, não têm qualquer valor probatório extraprocessual, pela seguinte ordem de razões:

a. Esse meio de prova, que o recorrente considera prova documental e documento autêntico, não foi produzida perante quem, na presente ação, tem a posição de demandado ou réu (o Ministério Público agindo em nome próprio), pelo que o Ministério Público, ora recorrido, não teve a faculdade de participar na constituição dessa alegada prova que o A quer ver valorada (e que o foi, ainda que não nos seus termos) na decisão sob recurso, nem consta que nesse processo de DPM tivesse intervindo em qualquer qualidade processual.

b. Razão pela qual se tem que concluir que não foi observada a necessária audiência contraditória da parte contra a qual esse processo e parecer foi aqui apresentado, sendo que neles nem sequer a A teve intervenção, muito menos a teve o Ministério Público, não havendo, pois, identidade de sujeitos com a presente ação.

c. Não houve, assim, contraditório que garantisse que pudesse haver aproveitamento processual da alegada prova constituenda.

d. Qualquer admissão de um contraditório diferido não colhe fundamento no artigo 421.º do Código de Processo Civil para dar por adquirida a prova desse processo e parecer da CDPM como prova documental, sobre a qual não houve sequer qualquer controlo judicial.

e. Nunca poderiam as conclusões a que chegou a CDPM nesse processo (mesmo na interpretação do A) ser tida como prova documental, mas única e exclusivamente como prova documentada ou materializada em documento escrito, mas que, não tendo sido objeto de audiência contraditória perante quem figura nesta ação como parte (o Ministério Público, agindo em nome próprio), não passa pelo crivo dos requisitos exigidos pelo artigo 421.º do Código de Processo Civil.

f. Como refere Maria José Capelo, que aqui se segue de perto, “o artigo 421.º pressupõe a transferência de prova entre processos, preservando tanto a sua natureza originária como o valor probatório (mas não o resultado), sendo requisito essencial que o meio de prova seja invocado perante sujeito a quem foi permitido exercer o contraditório na produção da prova” 2.

g. O registo escrito das diligências e conclusões da CDPM naquele processo não constitui prova documental porque não representa o facto constituendo e a ser reconstruído na presente ação, qual seja, o de que o prédio da A era propriedade privada antes de (1864, 1887 ou 1868) 1892.

h. É apenas e só um registo escrito de diligências, análise, valoração técnica da CDPM que comprova as conclusões a que chegou naquele processo.

i. É prova com a forma de documento escrito, mas não é prova documental.

j. Desse processo não resulta que, quem neles opinou, tenha prestado qualquer juramento, que as suas conclusões tenham sido submetidas a esclarecimentos ou ao princípio do contraditório a que acima se aludiu, pelo que não são, e nunca serão, resultados que representem diligências com carácter ou intencionalidade probatória.

k. As diligências e a alegada prova disponibilizada nesse processo DPM não podem ser feitas valer pelo A e muito menos o podiam ser pelo tribunal, pelo que não poderiam nunca ser transmutadas em prova documental exigida pelo artigo 15.º, n.º 2 ou n.º 4, da Lei n.º 54/2005.

l. De tudo resulta que a alegada prova documental atribuída pelo A ao Parecer da CDPM não é mais do que prova pessoal, não podendo ser transfigurada em prova documental extraprocessualmente válida.

m. Tal alegada prova documental resultante do Parecer da CDPM não encontra qualquer apoio no regime jurídico–processual que está previsto no artigo 421.º do Código de Processo Civil.

n. Portanto, não tem a eficácia probatória que o A lhe atribui e muito menos a que é exigida pela Lei n.º 54/2005.

o. Só poderia, eventualmente, ser valorada como princípio de prova, o qual não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer prova constituenda de que o prédio da A já era propriedade privada antes de 1892.

p. E, como princípio de prova, o Tribunal da Relação de Évora considerou que dela não resultava qualquer indício que servisse à causa de pedir e aos factos probando.

16.ª- Portanto, não foi violada a força probatória plena do referido Parecer da CDPM, em ofensa do artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil, porque não o poderia nunca ter sido, pois o dito parecer não tem nem a relevância, nem a tipicidade probatória invocada pelo A.

17.ª- Em conformidade com este juízo decidiu recentemente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-2-2023, no processo n.º 457/18.3T8ABF.E1.S1.

Da inadmissibilidade do recurso por efetiva verificação da dupla conforme.

18.ª- Aqui chegados, voltamos ao ponto de que partimos, ou seja, o de que o recurso é inadmissível.

19.ª- Não está, nem pode estar em causa a violação do direito probatório material, e o erro de julgamento imputado pela apelante ao douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, ainda que objetiva e patentemente não exista, não pode ser, evidentemente, objeto de recurso de revista.

20.ª- Redunda tudo isto na constatação de que existe uma “dupla conforme” que impede, por decorrência, a recorribilidade da decisão sindicada pelo recurso.

21.ª- Não existe voto de vencido na decisão recorrida. Há conformidade decisória ou dispositiva irrestrita por haver duas apreciações plenamente sintonizadas da mesma questão de direito. E há conformidade ou identidade essencial da fundamentação em relação à decisão da 1.ª instância, quer quanto à fundamentação de Direito, quer quanto à fundamentação de facto, na medida e só na medida em que não ofende uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova e, portanto, por não haver vício que caiba no âmbito dos artigos 674.º, n. 3, segunda parte, e 682.º n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil.

22.ª- Em suma, está impedido o conhecimento do objeto do recurso, pelo que o recurso de revista não pode ser admitido, sendo indeferido pelo juiz a quo - cf. artigo 641.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil, ou pelo relator - cf. Artigo 652.º, n.º 1, al. h), ex vi artigo 679.º, do Código de Processo Civil).

É o que deve, em última instância, ser decidido pelo venerando tribunal ad quem. Contudo, a superior apreciação de V. Exas. fará a devida JUSTIÇA!”

11. Foram dispensados os vistos.

12. Cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. As questões a resolver, recortadas das conclusões apresentadas pela Recorrente/Autora/Pilard Holdings Limited, consistem em saber se:

I. O Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, concretamente, errou na determinação da norma aplicável?

II. O Tribunal recorrido fez errónea interpretação e aplicação do direito ao conhecer da impugnação da decisão de facto, tendo desconsiderado e violado as regras de direito probatório material?

II. 2. Da Matéria de Facto

Factos provados:

“1. Por ter adquirido a AA e BB, por compra de 1973, a autora figura no registo como titular do direito de propriedade sobre o prédio denominado “Parque ...”, sito em ..., descrito sob o n.º 4395, freguesia ..., concelho de ..., da Conservatória do Registo Predial de .... Segundo a descrição, o prédio tem 9 623,15 m2 e é composto de dois edifícios, um de um piso, com vários compartimentos – área coberta: 632,60 m2, logradouro 8600 m2 – artigo 5986 e outro destinado a 3 garagens – área coberta: 79,90 m2, logradouro: 310,65 m2 – artigo 5987 – norte, CC e DD – sul, praia e EE – Nascente, Serro de ... – poente, caminho público e caminho de EE. Anexados os n.ºs 3271, fls. 49, livro B9 e 13 342, fls. 88 v., livro B 35 – fls. 25

2. O prédio está em parte representado nas fotografias e plantas de fls. 213 e ss. e confronta a sul com a Praia da ..., em ....

3. De harmonia com a caderneta predial urbana, o prédio inscrito sob o art. 5986.º teve origem no prédio urbano sob o art. 864.º e está descrito como um prédio sem andares, com 10 divisões e área de implantação e área bruta de construção de 632,60 m2 – fls. 27.

4. De harmonia com a caderneta predial urbana, o prédio inscrito sob o art. 5987.º teve origem no prédio urbano sob o art. 1121.º e está descrito como um prédio sem andares, com 1 divisão (3 garagens e logradouro) e área de implantação e área bruta de construção de 79,700 m2 – fls. 29.

5. No dia 15 de julho de 1961, FF vendeu a AA, casado com BB, o prédio composto de terra de semear e casas de habitação no sítio de ... ou ..., freguesia da ..., concelho de ..., que confronta: do norte e poente com segundo outorgante AA, do sul com domínio público marítimo e o Cerro e do nascente com o Cerro e o segundo outorgante AA, descrito na Conservatória do Registo Predial desta Comarca sob o n.º 3271, fls. 49, do livro B 9 e nela já registado a favor do primeiro outorgante, vendedor, e na matriz predial respetiva está inscrito sob os artigos n.º 1930, rústico, e 580, urbano (…) vende o prédio sem delimitação de área, a qual será a que definitivamente vier a ser fixada pelo Domínio Público Marítimo – fls. 231. Tal aquisição foi inscrita no registo – fls. 233 (248 v.)

6. O prédio descrito sob o n.º 3271 esteve assim descrito, constando as seguintes inscrições: prédio urbano no sítio de ..., freguesia de .... É foreiro em 50 reais, a GG e mulher. Consta de casas térreas com seis compartimentos e logradouros e confronta do norte com o Directo Senhorio, do sul com Praia da ... e terreno do Estado, e nascente com o prédio de que se acabou de descrever (…) poente com HH (…) o documento de onde extractei esta descrição foi apresentada sob o n.º 1 de 16 de fevereiro de 1895 (…) 1960 (…) está inscrito na matriz predial urbana sob o art. 580, estando omisso na matriz a parte rústica (…) 1895 (…) II e (…) JJ (…) apresentaram (…) um traslado de escritura pública de compra outorgada (…) por estes documentos registo definitivamente a favor dos apresentantes a transmissão dos prédios n.º 3273 e 3271 (…) o segundo prédio comprado (…) ao referido KK e mulher LL– fls. 236 v. e ss

7. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 3271 (posteriormente anexado ao n.º 4395) estava descrito nos procedimento administrativo n.º 2146/60 como “ prédio urbano no sítio de ..., freguesia da ..., concelho de ..., composto de casas térreas com área coberta de 135 m2, dois logradouros, tendo um a área de 315 m2 e o outro de 850 m2, a confrontar: do norte e poente com AA, do sul com a praia e Cerro, e do nascente com o Cerro e AA. Inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1930.º e na matriz predial urbana n.º 580” –fls. 197.

8. Em julho de 1987, foi atestado que se encontrava em curso na Direção Geral da Marinha processo de delimitação relativamente ao prédio descrito sob o n.º 3271, inicialmente requerido por FF, em 12 de julho de 1960, passando a decorrer o processo em nome de AA, por alegadamente ter adquirido o prédio em 15 de julho de 1961 - fls. 39. No dia 20 de julho de 1987 foi proferido o parecer intercalar de fls. 40. De facto, o processo 17251/05G, hoje junto da APA, foi iniciado por MM, tendo seguimento por AA e por último, por Pilard Holding Limited, sobre o procedimento de delimitação do DPM, com vista ao licenciamento de ocupação em domínio público marítimo do prédio registado com o nº 3271, parcela anexa ao prédio objeto da ação. O procedimento de delimitação do Domínio Público Marítimo com o prédio nº 3271, fls. 49 livro B9, ainda não está concluído, com Comissão de Delimitação nomeada por Diário do Governo nº 296 II série, de 21/12/61 e sequente alteração em Diário de Governo nº 55, II Série de 5/3/1964, após parecer da Comissão de Domínio Público Marítimo nº 4013 de 20 de julho de 1974, homologado pelo Ministro. Neste parecer ficam expressas as dúvidas da CDPM sobre a posse privada do prédio: se o prédio teve descrição anterior a 1864, tendo em conta a destruição dos documentos da Conservatória de ..., se a venda do prédio efetuada em 1895 já tinha por base documentos que comprovassem a posse privada o prédio. A CDPM passa este trabalho de prova de documentos para a Comissão de Delimitação assim como a efetivação da delimitação.

9. Desse processo constam as licenças provisórias de ocupação do Domínio Público Marítimo até 1987, constando que da emissão da licença não resulta o reconhecimento da legitimidade da posse privada dos terrenos em que se implanta a construção, a qual se situa na faixa do domínio público marítimo– fls. 224/226v./287/293 ss.

10. Relativamente ao prédio da ação de reconhecimento, em análise, não foi identificada a existência de qualquer Auto de Delimitação publicado.

11. O prédio da ação confronta a nascente com um prédio que possui um auto de delimitação do DPM, sem reivindicação de posse de margem, publicado em Diário da República nº 35, III série, em 11/2/1992 – fls. 66.

12. Na noite de 2 para 3 de outubro de 1884 ocorreu um incêndio na Conservatória do Registo Predial de ... o qual destruiu todos os livros e papeis – fls. 38. Por isso não foi possível à Conservatória certificar se o prédio descrito sob o n.º 3271 teve descrição anterior – fls. 234 v. (251 v.)”

II. 3. Do Direito

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da Recorrente/Autora/Pilard Holdings Limited, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjetivo civil, artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código Processo Civil.

II. 3.1. O Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, concretamente, errou na determinação da norma aplicável?

O thema decidendum do recurso, conforme já adiantamos, é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não sendo permitido ao Tribunal de recurso conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, exceto se as mesmas forem de conhecimento oficioso.

Antes mesmo de conhecer deste segmento recursivo, impõe-se a apreciação da questão preliminar consubstanciada na (in)admissibilidade da revista.

A este propósito há que convocar as regras recursivas adjetivas civis, concretamente o art.º 671º n.º 3 do Código de Processo Civil, atinente à irrecorribilidade das decisões do Tribunal da Relação em consequência da dupla conforme, nos precisos termos aí concretizados (…não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância …).

Do art.º 671º n.º 3 do Código do Processo Civil condizente ao n.º 3 do art.º 721º do anterior Código do Processo Civil, com a redação do DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, decorre, importar, agora, que a decisão da segunda instância não tenha uma fundamentação essencialmente diferente da decisão de primeira instância para que produza a dupla conforme, ao contrário do que acontecia com a alteração adjetiva civil, imposta pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, em que se abstraía da fundamentação do acórdão da segunda instância para que se verificasse a dupla conforme.

Levado a cabo a exegese do consignado normativo adjetivo civil o Supremo Tribunal de Justiça tem perfilhado o entendimento de que somente deixa de atuar a dupla conforme a verificação de uma situação, conquanto o acórdão da Relação, conclua pela confirmação da decisão da 1ª Instância, em que o âmago fundamental do respetivo enquadramento jurídico seja diverso daqueloutro assumido e plasmado pela 1ª Instância, quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a decisão proferida na sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada.

Torna-se necessário, pois, para que a dupla conforme deixe de atuar, a aquiescência, pela Relação do enquadramento jurídico sufragado em 1ª Instância, suportada numa solução jurídica inovatória, que aporte interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros enunciados no aresto apelado.

A este propósito, sustenta António Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, página 349, “que com o CPC de 2013 foi introduzida uma nuance: deixa de existir dupla conforme, seguindo a revista as regras gerais, quando a Relação, para a confirmação da decisão da 1ª instância, empregue “fundamentação essencialmente diversa”.

A admissibilidade do recurso de revista, no caso do acórdão da Relação ter confirmado, por unanimidade, a decisão da 1ª instância, está, assim, dependente do facto de ser empregue “fundamentação substancialmente diferente”.

Aclarando o sentido e alcance da expressão “fundamentação essencialmente diferente”, elucida Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, página 352, que “a aferição de tal requisito delimitador da conformidade das decisões deve focar-se no eixo da fundamentação jurídica que, em concreto, se revelou crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das instâncias, verificando se existe ou não uma real diversidade nos aspectos essenciais”.

No caso sub iudice, confrontadas as decisões proferidas, em 1.ª e 2.ª Instâncias, divisamos, com clareza, para além de o acórdão da Relação ter confirmado, sem voto de vencido, a decisão da 1ª Instância, uma identidade dos respetivos enquadramentos jurídicos.

Na verdade, respigamos, com utilidade, do enquadramento jurídico vertido na sentença proferida: “A questão principal a decidir é a de saber se existe fundamento para reconhecer parte do prédio pertença da autora como propriedade privada não obstante estar situada em área de domínio público.

(…)

Como refere a autora na sua petição inicial, esta ação tem por objeto o reconhecimento da propriedade privada sobre duas parcelas de terreno sitas em área de domínio público marítimo, junto à Praia da ... freguesia da Luz, concelho de ... que correspondem ao prédio hoje descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 4395.

(…)

De harmonia com o art. 15.º: (…) 2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868. 3 - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa. 4 - Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos, por incêndio ou facto de efeito equivalente ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de dezembro de 1892, eram objeto de propriedade ou posse privadas. Nos termos do art. 3.º da Lei em referência, o domínio público marítimo compreende: a) As águas costeiras e territoriais; (…) e) As margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés.

(…)

Tal como defendido pelo réu, as provas documentais de posse privada exigidas ao abrigo do nº 4 do art. 15.º da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro, terão de abranger toda a área do prédio que se insira na área do leito ou margem das águas do mar.

Ora, a prova documental apresentada pela autora refere-se ao prédio descrito sob o n.º 4395 e aí não vai além do que 1973.

(…)

Por outro lado, não foram delimitadas cada uma das partes do prédio, o atual 4395 e aquelas que o integraram já depois de ter sido descrito pela primeira vez.

E cabia ao autor, interessado na procedência da ação, provar todos os requisitos de que dependia a procedência da ação.

Assim, a ação improcederá.”

De igual modo, no acórdão recorrido, o Tribunal a quo, na esteira do entendimento vertido na sentença proferida em 1ª Instância, enunciou, neste particular: “(…) as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, pelo que as questões a decidir são as seguintes:

1.ª Questão - Saber se deve ser considerado provado que o prédio 4395 se encontrava em propriedade privada em 1887. (retificado)

2.ª Questão - Saber se a A afastou a presunção de dominialidade prevista no art.° 15.º, n.º 2 da Lei n.º 54/05, de 15.11.

3 - Análise do recurso.

1.ª Questão – Saber se deve ser considerado provado que o prédio 4395 se encontrava em propriedade privada em 1887. (retificado)

A recorrente defende que, ao contrário do entendimento da sentença (de que “a prova documental apresentada pela autora não vai além do que 1973”) fez prova da propriedade privada retrocedendo até 1887 (anterior, portanto, a 01.12.1892, a data relevante in casu) e pede a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando-se provado que: «o prédio n.º 4395 já se encontrava em propriedade privada antes de 1 de dezembro de 1892, como exigido pelo n.º 4 do artigo 15.º da Lei 54/2005”.

Alega, para o efeito, que a sentença ignorou o Parecer da CPDM em que se referia expressamente que o prédio em causa se encontrava em propriedade privada, pelo menos desde 26.07.1887 e que por ter sido emitido no exercício das competências legais de um órgão da Administração Pública, assume a qualificação de documento autêntico (cfr. artigo 369.º, n.º 1 do Código Civil), fazendo prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora”. (cfr. artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil)

Porém, não é verdade que o aludido Parecer conclua que este terreno já se encontrava em propriedade particular em 1892.

O parecer de 20 de Julho de 1971, junto aos autos, refere o seguinte (transcrição): «não será de excluir a hipótese de o terreno em causa estar na posse legitima de particulares desde data anterior a 1864. Por comprovar esta hipótese será suficiente provar que KK e mulher LL vendedores do terreno em 1895 a II e JJ como se refere em 4.a) já estariam na posse deste terreno, por si ou pelos seus antecessores em 1864 ou em data anterior.

Para estudar a situação jurídica do terreno em causa e propor a sua delimitação na confrontação com o domínio Público Marítimo convém nomear uma Comissão de delimitação com a composição regulamentar.

Assim a Comissão de domínio público Marítimo emite o parecer de que deve ser nomeada uma Comissão de Delimitação nos termos e com o encargo acima referido, devendo o processo voltar oportunamente a esta Comissão de domínio público Marítimo para apreciação e parecer final.»

Como consta da matéria provada em 8 e 9:

“8. (…) Neste parecer ficam expressas as dúvidas da CDP sobre a posse privada do prédio: se o prédio teve descrição anterior a 1864, tendo em conta a destruição dos documentos da Conservatória de ..., se a venda do prédio efetuada em 1895 já tinha por base documentos que comprovassem a posse privada o prédio.

A CDPM passa este trabalho de prova de documentos para a Comissão de Delimitação assim como a efetivação da delimitação.

9. Desse processo constam as licenças provisórias de ocupação do Domínio Público Marítimo até 1987, constando que da emissão da presente licença não resulta o reconhecimento da legitimidade da posse privada dos terrenos em que se implanta a construção, a qual se situa na faixa do domínio público marítimo - fls. 224/226 v./287/293 e ss.” (sublinhado nosso)

Por outro lado, também não é sequer alegada factualidade que permitisse considerar verificada a situação possessória em referência.

Com efeito, o que se pretende consignar como provado corresponde a matéria conclusiva (saber se o prédio n.º 4395 já se encontrava em propriedade privada antes de 1 de dezembro de 1892 é uma conclusão jurídica que deve ser suportada por factos).

Note-se que o reconhecimento, efectuado pela sentença recorrida, da falta de demonstração da natureza privada, (na data exigida pela lei), não é um juízo factual, mas jurídico.

A consagração da matéria em causa traduziria uma técnica jurídica incorrecta, não devendo a mesma constar do elenco factual, pois, desde logo, corresponderia ao próprio resultado da acção (dizer que “o prédio n.º 4395 já se encontrava em propriedade privada antes de 1 de dezembro de 1892, como exigido pelo n.º 4 do artigo 15.º da Lei 54/2005” é a conclusão defendida na acção.

Cremos, aliás, que a recorrente confunde o próprio meio de prova - o Parecer da CPDM - com o facto em si (embora também do meio de prova não resulte a conclusão que defende).

(…)

Ora, a matéria em causa deve ser perspectivada como matéria integrada no thema decidendum do presente pleito, pois está ali contida a resposta à solução plausível de direito e por isso, sendo conclusiva não deve constar da matéria provada, improcedendo assim a impugnação da matéria de facto.

2.ª Questão - Saber se a A afastou a presunção de dominialidade prevista no art.° 15.º, n.º 2 da Lei n.º 54/05, de 15.11.

O regime de prova da propriedade privada de parcelas sitas em domínio público hídrico estão previstos no artigo 15.º da Lei 54/2005, de 15 de novembro, que veio delimitar os recursos hídricos que integram o domínio público e aqueles que, ao invés, pertencem a particulares.

O litígio tem o seu âmbito da previsão em artigos da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei 34/2014, de 19 de junho, e pela Lei 31/2016, de 23 de agosto (…).

Assim, para que o Tribunal reconheça a propriedade privada da A sobre a parcela em causa, é necessário que esta demonstre nos autos que a mesma se encontrava em propriedade privada “antes de 31 de dezembro de 1864” ou, tratando-se de arribas alcantiladas, “antes de 22 de março de 1868”.

(…) mesmo para aqueles que entendem que não é exigível a demonstração da cadeia de transmissões sucessivas da propriedade que intermediaram entre a data inicial (anterior a 22.03.1868) e a atual, sempre seria necessário a prova (cujo ónus está a cargo da A) duma outra realidade histórica factual que demonstre que tal imóvel era objeto de propriedade privada ou comum antes de 22 de Março de 1868, para afastar a presunção de dominialidade existente a favor do Estado, nos termos do art.º 15.°, n.º 2 supra referido.

Na falta desta prova, aplica-se a presunção de dominialidade sem onerar o Estado com qualquer encargo probatório, tendo o legislador entendido que esta solução protege o interesse público, e assim também o entendeu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 326/2015.

Tanto basta para se concluir pela improcedência do recurso, atendendo ao facto da A não ter feito prova de que o imóvel era objeto de propriedade privada ou comum antes de 22 de Março de 1868 (para então afastar a presunção de dominialidade existente a favor do Estado).”

Daqui decorre, que o Tribunal a quo reconhece, à semelhança do entendimento perfilhado em 1ª Instância, que o prédio da Autora não se encontrava em propriedade privada antes de 1 de dezembro de 1892, como é exigido pelo n.º 4, do art.º 15º da Lei 54/2005 de 15 de novembro, julgando improcedente a impugnação da decisão de facto para concluir que a decisão proferida em 1ª Instância deve ser mantida nos seus precisos termos.

Tudo visto, concluímos que a decisão proferida na Relação não tem uma fundamentação essencialmente diferente da decisão de primeira instância.

O acórdão recorrido, não só conclui pela confirmação da decisão da 1ª Instância, mas também o cerne do respetivo enquadramento jurídico identifica-se com aqueloutro assumido e plasmado pela 1ª Instância, não encerrando, de todo, um qualquer enquadramento jurídico alternativo, distinguindo, aliás, um reforço argumentativo para sustentar a solução alcançada.

O enquadramento jurídico sufragado em 1ª Instância, tem a aquiescência da Relação, aportando esta as mesmas interpretações normativas e institutos jurídicos.

O regime de reconhecimento da propriedade privada sobre prédios pertencentes ao domínio hídrico do Estado encontra-se consagrado no art.º 15º da mencionada Lei n.º 54/2005, de 15-11, justificando-se os marcos temporais ali mencionados pela circunstância de ter sido em 31 de dezembro de 1864 que que os leitos e margens se tornaram públicos e de ter sido com a entrada em vigor do nosso Código Civil que as arribas alcantiladas passaram a integrar o domínio público hídrico.

Existindo direitos de propriedade de particulares já constituídos sobre esses terrenos em data anterior a 31 de dezembro de 1864, os mesmos não se extinguiram com o ingresso das praias na categoria dos bens do domínio público, tendo-se mantido a sua titularidade privada, independentemente da possibilidade de ficarem sujeitos a restrições e servidões administrativas, visando a proteção de interesses públicos, daí que a Lei n.º 54/2005 de 15 de novembro (artigos 12.º a) e 15.º), não tenha deixado de prever a possibilidade desses proprietários obterem o reconhecimento dos seus direitos sobre esses terrenos, ilidindo, assim, a presunção de que integram o domínio.

A demonstração da existência desses direitos de propriedade privada em data anterior a 31 de Dezembro de 1864 pode ser efetuada por diferentes modos, os quais se encontram previstos nos n.º 2 a 4 do art.º 15º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.

Assumindo-se que a aferição do requisito delimitador da conformidade das decisões, deve focar-se no eixo da fundamentação jurídica que, em concreto, se revela crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das Instâncias, afirmamos, sem reserva, que quer numa, quer noutra Instâncias, a pretensão reclamada pela Autora/Pilard Holdings Limited, não colheu, por ausência de demostração fáctica, o apoio legal decorrente do art.º 15º da Lei 54/2005 de 15 de novembro que no plano infraconstitucional estabelece a titularidade dos recursos hídricos, definindo quais os recursos hídricos que integram o domínio hídrico do Estado e quais os que integram a propriedade de particulares.

Assim, sublinhamos, do confronto dos enunciados arestos, concluímos, sem qualquer reserva, que o acórdão, objeto do recurso de revista, concluiu sem voto de vencido e aduzindo um enquadramento jurídico sem fundamentação essencialmente diferente, do aresto proferido em 1ª Instância, pelo que, temos de reconhecer a atuação da dupla conforme.

Pelo exposto, verificada a dupla conforme, decorrente da aplicação do artºs. 671º n.º 3 do Código de Processo Civil, impõe-se que este Tribunal ad quem não conheça do enunciado segmento objeto da revista, qual seja, saber se se verifica errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, concretamente, erro na determinação da norma aplicável.

II. 3.2. O Tribunal recorrido fez errónea interpretação e aplicação do direito ao conhecer da impugnação da decisão de facto, tendo desconsiderado e violado as regras de direito probatório material?

A doutrina e jurisprudência, vem, pacificamente, defendendo que não obstante a dupla conformidade existente entre decisões, sem fundamentação inovatória, essa mesma conformidade deixa de operar quando haja erro de direito na aplicação da lei adjetiva civil, nomeadamente, “se a parte pretender reagir contra o não uso ou o uso deficiente dos poderes da Relação sobre a matéria de facto”, quando se invoca um erro de direito, neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in, artigo subordinado à temática da Dupla Conforme e Vícios na Formação do Acórdão da Relação, Instituto Português de Processo Civil, blogippc.blogspot.pt., e Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Fevereiro de 2015 (Processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1), e de 28 de Janeiro de 2016 (Processo n.º 802/13.8TTVNF.P1.G1-A.S1), in, www.dgsi.pt.

Como sustenta, António Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª Edição, páginas 319 e seguintes, “Em tais circunstâncias e noutras similares em que seja apontado à Relação erro de aplicação ou interpretação da lei processual e seja invocado no recurso de revista a violação de normas adjectivas relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, não existe dupla conforme” sendo que divisamos, sem dificuldade a razão pela qual a dupla conforme não pode atuar, na medida em que, pese embora o aresto da Relação seja condizente com a sentença da 1ª Instância, quanto à subsunção jurídica, e mesmo mantendo a decisão de facto, não deixa de ser confrontado com questões de natureza adjetiva com direta influência na apreciação da invocada impugnação da decisão de facto.

Neste sentido, veja-se a comunicação do Juiz Conselheiro Alves Velho, em 6 de julho de 2015, aquando do Colóquio sobre o Novo Código de Processo Civil, cujo texto está publicado em www.stj.pt., reforçado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 2015.

O Supremo Tribunal de Justiça, no que respeita às decisões da Relação sobre a matéria de facto, não pode alterar tais decisões, sendo estas decisões de facto, em regra, irrecorríveis.

A este propósito, estatui o art.º 662º n.º 4 do Código de Processo Civil que “das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” estabelecendo, por seu turno, o art.º 674º n.º 3 do Código de Processo Civil “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”, outrossim, prescreve o art.º 682º n.º 2 do Código de Processo Civil que a “decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674º”, donde se colhe, com clareza, que o Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o modo como a Relação decide sobre a impugnação da decisão de facto, quando ancorada em meios de prova, sujeitos à livre apreciação, acentuando-se, que o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode intervir nos casos em que seja invocada a violação de lei adjetiva ou a ofensa a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova.

A decisão de facto é da competência das instâncias, conquanto não seja uma regra absoluta (tenha-se em atenção a previsão do citado art.º 674º n.º 3 do Código de Processo Civil), pelo que, o Supremo Tribunal de Justiça não pode, nem deve, interferir na decisão de facto, somente importando a respetiva intervenção, quando haja erro de direito, isto é, quando o acórdão recorrido afronte disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, nomeadamente, a prova documental ou por confissão, ou que fixe a força de determinado meio de prova, por exemplo, acordo das partes, documento com força probatória plena, e confissão.

Revertendo ao caso sub iudice, e uma vez cotejadas as conclusões apresentadas pela Recorrente/Autora/Pilard Holdings Limited, distinguimos que esta se insurge contra o acórdão recorrido que apreciou a impugnação da matéria de facto fixada em 1ª Instância, confirmando-a, sustentando a violação da força probatória plena de documento autêntico atribuída pelo art.º 371º n.º 1 do Código Civil.

A Recorrente/Autora/Pilard Holdings Limited assaca ao aresto em escrutínio, em substância e objetivamente, ofensa a disposição expressa de lei que fixa o valor de determinado meio de prova, concretamente o Parecer da Comissão de Delimitação do Domínio Público Marítimo n.º 4013, de 20 de julho de 1971, na parte em que, segundo a Autora, aí se concluiu que os terrenos ajuizados já se encontravam em propriedade particular em 1887, importando, por isso, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na decisão de facto, nos termos já discreteados.

Sustenta a Recorrente/Autora/Pilard Holdings Limited que “o referido Parecer da CPDM configura documento autêntico, por ter sido exarado por órgão da Administração Pública no exercício das suas competências legais que lhe eram conferidas pelo Decreto-Lei n.º 49978, de 25 de junho de 1969, não consubstanciando, na parte relevante, “juízos pessoais” ou sequer conclusões jurídicas dos seus autores, mas antes a constatação de factos que, por via documental, foram trazidos ao conhecimento da dita Comissão referentes à propriedade privada do prédio em data anterior a 26.7.1887, e que por esta foram atestados, preenchendo assim a previsão da parte final do n.º 1 do artigo 371.º do Código Civil, subsumindo-se no conceito de “factos que neles [documentos] são atestados com base nas perceções da entidade documentadora”.

Vejamos.

Nos termos do art.º 362º do Código Civil entende-se por prova documental toda aquela que resulta de documento, e diz-se documento qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto.

No que ao caso dos autos interessa, em razão do documento em questão, conforme prevenido no direito substantivo civil (Código Civil art.º 363º nºs. 1 e 2), os documentos escritos podem ser autênticos ou particulares, sendo que os autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública.

As reproduções fotográficas, e, de um modo geral, quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exatidão - art.º 368º do Código Civil - sendo que o documento só é autêntico quando a autoridade ou oficial público que o exara for competente, em razão da matéria e do lugar, e não estiver legalmente impedido de o lavrar, considerando-se exarado por autoridade ou oficial público competente o documento lavrado por quem exerça publicamente as respetivas funções - art.º 369º do Código Civil - presumindo-se que o documento provém da autoridade ou oficial público a quem é atribuído, quando estiver subscrito pelo autor com assinatura reconhecida por notário ou com o selo do respetivo serviço - art.º 370º do Código Civil - .

Relembramos, a propósito que, atento o disposto no art.º 371º n.º 1 do Código Civil os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que nele são atestados com base na perceção da entidade documentadora.

Na verdade, a entidade documentadora perceciona as declarações que foram proferidas perante si, importando o documento, prova plena dessas mesmas declarações, porém, coisa diferente é o que respeita à exatidão das afirmações, não sendo estas suscetíveis de serem percepcionadas podem ser impugnadas.

Sobre esta concreta questão respigamos, com utilidade, do acórdão recorrido que: “Saber se deve ser considerado provado que o prédio 4395 se encontrava em propriedade privada em 1887. (retificado)

A recorrente defende que, ao contrário do entendimento da sentença (de que “a prova documental apresentada pela autora não vai além do que 1973”) fez prova da propriedade privada retrocedendo até 1887 (anterior, portanto, a 01.12.1892, a data relevante in casu) e pede a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando-se provado que:

“o prédio n.º 4395 já se encontrava em propriedade privada antes de 1 de dezembro de 1892, como exigido pelo n.º 4 do artigo 15.º da Lei 54/2005”.

Alega, para o efeito, que a sentença ignorou o Parecer da CPDM em que se referia expressamente que o prédio em causa se encontrava em propriedade privada, pelo menos desde 26.07.1887 e que por ter sido emitido no exercício das competências legais de um órgão da Administração Pública, assume a qualificação de documento autêntico (cfr. artigo 369.º, n.º 1 do Código Civil), fazendo prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora”. (cfr. artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil)

Porém, não é verdade que o aludido Parecer conclua que este terreno já se encontrava em propriedade particular em 1892. (sublinhado nosso)

O parecer de 20 de Julho de 1971, junto aos autos, refere o seguinte (transcrição): “não será de excluir a hipótese de o terreno em causa estar na posse legitima de particulares desde data anterior a 1864. Por comprovar esta hipótese será suficiente provar que KK e mulher LL vendedores do terreno em 1895 a II e JJ como se refere em 4.a) já estariam na posse deste terreno, por si ou pelos seus antecessores em 1864 ou em data anterior.

Para estudar a situação jurídica do terreno em causa e propor a sua delimitação na confrontação com o domínio Público Marítimo convém nomear uma Comissão de delimitação com a composição regulamentar.

Assim a Comissão de domínio público Marítimo emite o parecer de que deve ser nomeada uma Comissão de Delimitação nos termos e com o encargo acima referido, devendo o processo voltar oportunamente a esta Comissão de domínio público Marítimo para apreciação e parecer final.”

Como consta da matéria provada em 8 e 9:

“8. (…) Neste parecer ficam expressas as dúvidas da CDP sobre a posse privada do prédio: se o prédio teve descrição anterior a 1864, tendo em conta a destruição dos documentos da Conservatória de ..., se a venda do prédio efetuada em 1895 já tinha por base documentos que comprovassem a posse privada o prédio.

A CDPM passa este trabalho de prova de documentos para a Comissão de Delimitação assim como a efetivação da delimitação.

9. Desse processo constam as licenças provisórias de ocupação do Domínio Público Marítimo até 1987, constando que da emissão da presente licença não resulta o reconhecimento da legitimidade da posse privada dos terrenos em que se implanta a construção, a qual se situa na faixa do domínio público marítimo– fls. 224/226 v./287/293 e ss.” (sublinhado nosso)

Por outro lado, também não é sequer alegada factualidade que permitisse considerar verificada a situação possessória em referência.

Com efeito, o que se pretende consignar como provado corresponde a matéria conclusiva (saber se o prédio n.º 4395 já se encontrava em propriedade privada antes de 1 de dezembro de 1892 é uma conclusão jurídica que deve ser suportada por factos).

Note-se que o reconhecimento, efectuado pela sentença recorrida, da falta de demonstração da natureza privada, (na data exigida pela lei), não é um juízo factual, mas jurídico.”

Confrontado o aludido Parecer da CPDM e sem questionar que o mesmo configura documento autêntico que faz prova plena dos factos que nele são atestados com base na perceção da entidade documentadora, temos de acompanhar e sufragar o consignar no acórdão em escrutínio ao admitir que o Parecer da CPDM não reconhece que o terreno ajuizado já se encontrava em propriedade particular em 1892, contrariamente ao reclamado pela Recorrente/Autora/Pilard Holdings (o Parecer da CPDM não consubstancia, na parte relevante, “juízos pessoais” ou sequer conclusões jurídicas dos seus autores, mas antes a constatação de factos que, por via documental, foram trazidos ao conhecimento da dita Comissão referentes à propriedade privada do prédio em data anterior a 26.7.1887, e que por esta foram atestados, preenchendo assim a previsão da parte final do n.º 1 do artigo 371.º do Código Civil, subsumindo-se no conceito de “factos que neles [documentos] são atestados com base nas perceções da entidade documentadora”).

Na verdade, cotejado o Parecer da CPDM divisamos que ficaram expressas as dúvidas da CDPM sobre a posse privada do prédio: se o prédio teve descrição anterior a 1864, tendo em conta a destruição dos documentos da Conservatória de ..., se a venda do prédio efetuada em 1895 já tinha por base documentos que comprovassem a posse privada o prédio, salientando-se que a CDPM em nada se vinculou, concretamente, sobre o termo inicial sobre a posse privada do identificado prédio.

Assim, impõe-se concluir que bem andou o Tribunal a quo a decidir sobre a impugnação da decisão de facto, não se descortinando qualquer violação de regras de direito probatório material, nomeadamente, aqueloutra invocada de que o aresto em escrutínio ofendeu disposição expressa de lei substantiva que fixa o valor de determinado meio de prova, concretamente, que o documento autêntico faz prova plena dos factos que nele são atestados com base na perceção da entidade documentadora.

Em suma, este Tribunal ad quem não tem qualquer elemento idóneo que possa justamente abalar a decisão de facto reapreciada nos termos discreteados pelo Tribunal recorrido, reconhecendo-se que as estatuídas regras de direito probatório, reconhecidas na arquitetura da tramitação recursiva, atinente à impugnação da decisão de facto foram cumpridas, daí que não merce censura o aresto recorrido.

Na improcedência das conclusões retiradas das alegações, trazidas à discussão pelA Recorrente/Autora/Pilard Holdings Limited, não reconhecemos à respetiva argumentação, virtualidade no sentido de alterar o destino traçado no Tribunal recorrido.

III. DECISÃO

Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar improcedente o recurso interposto, e, consequentemente, nega-se a revista.

Custas pela Recorrente/Autora/Pilard Holdings Limited.

Notifique.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 12 de outubro de 2023

Oliveira Abreu (relator)

Nuno Pinto Oliveira

Ferreira Lopes