Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3011/23.4YRLSB-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DETENÇÃO
MEDIDAS DE COAÇÃO
PRESSUPOSTOS
HOMICÍDIO
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. A decisão que mantenha a detenção ou a substitua por medida de coacção em processo de MDE é recorrível directamente para o Supremo Tribunal de Justiça.

II. O MDE é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro, tendo em vista precisamente a detenção para posterior entrega por outro Estado membro, de uma pessoa procurada, entre o mais, para efeitos de procedimento criminal.

III. As exigências quanto aos requisitos da manutenção da detenção efectuada em cumprimento de um MDE são menores que as presentes para a aplicação e manutenção da prisão preventiva, sendo aquelas de ponderar em face das circunstâncias em que o referido MDE foi emitido.

Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


I. 1. AA, cidadão brasileiro melhor identificado nos autos, no âmbito do Proc. 3011/23.4YRLSB (MDE), a correr termos no Tribunal da Relação de Lisboa, veio interpor recurso da decisão que julgou válida e manteve a detenção a que foi sujeito no cumprimento de mandado de detenção europeu emitido pelo Estado belga, alegando o seguinte:

«1. O extraditando é réu primário, de bons antecedentes, nunca respondeu sequer uma investigação policial em nenhum país do mundo.

2. O extraditando possui residência fixa em Lisboa (ao contrário do que alegado pelo Eminente Desembargador em primeiro interrogatório para fundamentar a prisão/detenção de AA, que data máxima vénia e smj . não se atentou a isto), no endereço Rua ...., ..., bem como possui trabalho fixo em Lisboa na área de construção civil, conforme se comprova na Declaração em anexo (doc. 01 - declaração de residência e trabalho fixo; doc. 02 - autenticação da declaração objeto do doc. 01), firmada pelo seu "patrão", o cidadão de nacionalidade portuguesa BB, cujo inclusive cedeu sua residência para o extraditando morar, o que demonstra ter o extraditando personalidade calma e tranquila.

3. Exmo.(a) Desembargador(a), inexiste no caso perigo de fuga, bem como inexiste periculum libertatis, e não deve ser aplicada a prisão ao extraditando pelo perigo abstrato do crime objeto do mandado de detenção europeu, já que plenamente aplicável medida de cocção diversa da prisão no caso em concreto, para o extraditando responder o processo de extradição até o transito do MDE em julgado em liberdade.

4. O extraditando é presumido inocente até sentença condenatória transitada em julgado, o que não é o caso, já que responde uma investigação embrionária na Bélgica com mandado de detenção europeu emitido em seu desfavor, cujo tem interesse em comprovar que não é autor de nenhum crime (conforme já consta no próprio MDE como sendo o autor da facada supostamente o Sr. CC, cujo supostamente sacou a faca e desferiu o golpe mortal), e manifesta nesse ato interesse e se compromete na busca da verdade real dos fatos, já que nunca praticou nenhum crime em solo belga, nem em nenhum outro país da Europa (e nem mesmo no seu país de origem, o Brasil), sendo que desconhecia qualquer mandado de detenção europeu ou até mesmo qualquer investigação em seu desfavor.

5. No âmbito da aplicação do Mandado de Detenção Europeu, consta expressamente em seu texto, artigo 2, n. 2, "o" da Lei 65/2003, que o MDE, lida com a extradição de suposto crime por homicídio voluntário, sendo assim, necessário existir o dolo (vontade livre e consciente de executar o crime), neste caso em concreto o ora extraditando AA, não deteve dolo (sequer participou da situação criminosa, conforme uma hora assim consta no MDE), pois em nenhum momento pretendia agredir ou agrediu fisicamente alguém, e nem sequer auxiliou para tanto. Tiramos a conclusão que, portanto, em respeito ao princípio penal material da culpabilidade, não havendo dolo ou culpa, este não pode ser responsabilizado penalmente por tal facto, e portanto, não pode ser mantido preso em virtude de um MDE contraditório, que prejudica a ampla defesa, contraditório e o devido processo legal. O sistema é acusatório e não inquisitório.

6. Ora, é de suma importância salientar que, conforme o artigo 11 da Lei do MDE supracitada, "d" traz a recusa da extradição em caso de pena irreversível, com bem sabemos, diferentemente do Estado de Portugal, a Bélgica possui penas para o crime de homicídio que podem chegar 30 anos ou mais, e inclusive prisão perpétua, que esta sendo tão irreversível quanto a morte, trazendo também uma afronta a execução penal em sua fundação, que tem como objetivo principal a retirada do individuo da sociedade com fins de ressocializá-lo posteriormente. Assim, deve ser o mesmo entendimento para manter AA solto enquanto aguarda o transito em julgado do processo de MDE em tramite perante a Justiça Portuguesa.

7. Exmo. (s) Juízes Conselheiros, o extraditando hoje se for de fato entregue para as autoridades Belgas, e transferido a um sistema prisional naquele país, corre risco de vida, conforme se comprova em anexo (doc. 04) junto com a autenticação do documento (doc. 05(, onde indivíduos de etnia marroquina têm postado na rede social que estão organizando um ataque contra o extraditando Brasileiro (inclusive postando a foto do seu rosto), em vingança ao marroquino que foi esfaqueado (sendo certo que não foi o ora extraditando autor de qualquer delito, embora os marroquinos lhe ameaçam de morte e não querem saber quem é o autor da facada ou não, basta simplesmente um brasileiro para ser crucificado).

8. Não se pode olvidar que consta gravíssima contradição no mandado de detenção europeu, pois em uma parte consta expressamente que o Sr. CC teria sacado a faca do seu próprio corpo e desferido o golpe que culminou na morte do marroquino, entretanto, em outra parte no mesmo MDE consta que AA quem teria passado a faca, o que compromete a paridade de armas e a dignidade da justiça, que cerceia a defesa de AA e lhe coloca em prisão em processo de extradição de forma ilegal e abusiva, que lhe causa evidente constrangimento ilegal. É cediço que não se discute mérito dos fatos no processo de extradição, porém o que referido compromete a essência do mandado de detenção europeu e prejudica em efeito cascata o processo de extradição em epígrafe, em face exclusivamente de AA e sua conduta individualizada.

9. E isso demonstra ser a prisão de AA ilegal, já que motivada por facto pelo qual a lei não permite, nos termos do n. 2, do Artigo 222, do CPP.

10. Importante frisar, outrossim, a necessidade de aplicação do Artigo 18, n. 2, da Lei de Cooperação Jurídica Internacional, tendo em vista caso deferido o pedido, resultará em consequências graves para o extraditando, em virtude da sua idade (de possuir apenas 21 anos de idade e diante da pena elevada ser afastado o princípio da ressocialização do preso), seu estado mental (já que afastada a ressocialização do preso e a pena de prisão perpétua ou muito maior em anos para o mesmo crime de acordo com a legislação portuguesa) e sobretudo o risco de vida, conforme comprovado documentalmente já que sofre ameaças de morte somente pelo fato de ser brasileiro.

11. Exmos. Juízes Conselheiros, no caso não estão preenchidos os requisitos para a detenção provisória do extraditando conforme a legislação portuguesa. Estão preenchidos todos os requisitos para a aplicação de medida de coação menos gravosa, não pode ser aplicada a detenção somente pelo perigo abstrato do crime. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 38, n. 6, ou seja, na pendencia do processo e até o transito em julgado da decisão final é aplicável medidas de cocção não detentivas, ainda mais levando em consideração a contradição expressa e formal no MDE que compromete a essência do direito penal, e deve se sobrepor aos efeitos de detenção objeto do MDE emitido pela Bélgica.

12. É cediço que o MDE detém por si só indícios de crime sendo isso suficiente para a Justiça, entretanto, a contradição formal e expressa no MDE, referida acima, prejudica o "fumus comissi deliti", o que vai contra inclusive uma convicção de um homem médio e do poder judiciário.

13. Vale ressaltar, que não existe perigo de fuga, uma vez que se AA quisesse fugir, teria ido ao Brasil sua pátria que não lhe extradita/entregue a outro país, e sim veio a Portugal recomeçar pois estava sendo vítima de ameaças de morte por um crime que não cometeu, país humanista muito próximo ao Brasil.

14. Diga-se e repita-se, AA é primário, de bons antecedentes, um jovem de 21 anos, inocente, que estava no local errado e na hora errada.

15. Existe ainda os "periculum libertatis", previstos no art. 204º CPP, que não estão preenchidos no caso em epígrafe: fuga ou perigo de fuga (inexiste pois se assim fosse teria ido ao Brasil, pátria que não o extraditaria, o que pode ser evitado por vigilância eletrónica e comparecimento mensal na PSP) ; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova (inexiste em solo português, já que o processo tramita na Bélgica); ou perigo em razão da natureza e circunstâncias do crime (a gravidade abstrata do crime não pode ser utilizada como único requisito pois desproporcional) ou da personalidade do Extraditando (a personalidade do extraditando é positiva e não pode somente como 1 requisito ser utilizado a gravidade em abstrato do crime para afastar a aplicação de medidas de coacção menos gravosas que a prisão); de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade pública (inexiste com a aplicação de todas as medidas cautelares diversas da prisão, que for entendível como aplicadas in casu) .

16. A prisão é a mais grave das medidas de coacção e só pode ser aplicada se todas as outras forem inadequadas ou insuficientes (e neste caso, ocorre totalmente ao contrário, são adequadas e aplicáveis outras medidas de cocção menos gravosas).

17. O Princípio da necessidade; o Princípio da adequação; o Princípio da proporcionalidade, e o Princípio da precariedade (artigo 215 e 218 do CPP), bem como o Artigo 32, n. 2, da CRP, estão preenchidos in casu e apontam para a necessidade de revogação da prisão, e aplicação de todas as medidas de coacção menos gravosas que a prisão, aplicáveis ao caso em concreto, já que não preenchidos os requisitos da manutenção da prisão, totalmente prejudicada por todo o exposto e comprovado no presente petitum.

18. Plenamente cabível in casu a aplicação das medidas de coacção menos gravosas, a saber:

• Termo de identidade e Residência - art. 196º CPP (que já foi realizado no dia da prisão do extraditando)

• Obrigação de apresentação periódica - art. 198º CPP

• Suspensão de direitos - art. 199º CPP

• Proibição e imposição de condutas - art. 200º CPP

• Obrigação de permanência na habitação - art. 201º CPP

19. Conclui-se pois, e deve ser assim analisada a matéria invocada no Recurso em epígrafe, que se fosse expedido um mandado de prisão pela justiça portuguesa, se por analogia o mesmo crime tivesse sido cometido em Portugal, as mesmas partes e os mesmos fatos descritos no MDE fossem os mesmos fatos em Portugal, a Justiça portuguesa teria que aplicar medidas de coacção menos gravosas que a prisão, em atendimento á Legislação Portuguesa, conforme amplamente demonstrado e comprovado acima, sob pena de ser a prisão ilegal e abusiva. 0 MDE está baseado somente no "disse que me disse", e não apresenta nenhuma prova ou indício forte da prática do crime por parte do extraditando Igor, muito pelo contrário, apresenta contradição e não pode uma pessoa ser mantida presa neste cenário.

20. Isto tudo posto, uma vez inclusive já prestado TIR, e todo o exposto e comprovado acima, não estando preenchido nenhum dos requisitos para se manter o extraditando preso até o julgamento final do MDE, é a presente para requerer digne-se Vossa Excelência de determinar o seguinte:

a) A aplicação de todas as medidas de cocção menos gravosa que a prisão (proibição de deixar o território nacional português, permanência em habitação, vigilância eletrónica, comparecimento semanal na PSP mais próxima da residencia e outras aplicáveis ao caso em concreto) que garantem a fuga do extraditando de forma incontestável, e outras que Vossas Excelências entenderem cabíveis ao caso em concreto, até o transito em julgado do processo do Mandado de Detenção Europeu em epígrafe no STJ, sob pena de constrangimento ilegal e prisão ilegal e abusiva».

2. A Exmª Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Lisboa apresentou a sua resposta, pugnando pelo não provimento do recurso e desta forma concluindo:

«1. AA foi interposto recurso do despacho proferido a 13 de outubro de 2023, restrito ao segmento da manutenção da sua detenção.

Questão prévia

2. A motivação de recurso apresentada carece de conclusões.

3. O presente recurso foi admitido sem que tenha sido feito o convite ao recorrente para formular as respetivas conclusões, nos termos do art. 414º, nº 2, do C.P.P. .

4. Tal convite ao recorrente para apresentar as conclusões poderá ainda ser efetuado pelo Exmº Sr. Conselheiro relator do STJ, sob pena de rejeição do recurso - art. 417º, nº 3, in fine, do C.P.P. ex. vi. art. 34º, da Lei nº 65/2003.

5. Do texto da motivação infere-se que o objeto do recurso versa sobre a manutenção da detenção, que reputa de ilegal e abusiva e a sua substituição por outra medida de coação.

6. O mandado de detenção europeu em questão foi emitido para procedimento criminal, pelos factos ilícitos aí descritos e crime no mesmo indicado, concretamente o crime de homicídio voluntário, que consta no elenco previsto no nº 2, do art. 2º, sob a al. o), da Lei 65/2003.

7. Está previsto e punido nos arts. 292º e 293º, do C. Penal Belga, com uma pena de 20 a 30 anos, e não com a pena de 30 ou mais anos e até prisão perpétua, como estranhamente afirma o recorrente.

8. O processo do mandado de detenção europeu é um processo simplificado, que é executado com base nos princípios do reconhecimento e confiança mútua, conforme Decisão-Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de junho e art. 1º, nº 2, da Lei 65/2003.

9. O implica que a autoridade de execução não possa conhecer de mérito, não se envolva na avaliação da substância dos factos indiciados ou dos constantes da condenação, mas sim nos aspetos relativos à validade do MDE e que possam integrar um motivo de recusa de execução, obrigatória ou facultativa.

10. Contrariamente ao pretendido pelo recorrente, está vedado ao tribunal português, no Estado de execução, a sindicância judicial sobre os factos investigados e imputados ao recorrente, a existência de indícios, a prova aí recolhida, a verificação de qualquer contradição fáctica entre si, bem como existência ou não de dolo ou culpa; estas matérias são da competência exclusiva do tribunal de emissão.

11. A detenção e sua manutenção efetuada no âmbito do MDE é uma medida autónoma, não totalmente coincidente com a prisão preventiva e com pressupostos de aplicação também não totalmente coincidentes - art. 18º, nº 2, da Lei 65/2003.

12. A regra é a sua manutenção, só devendo ser substituída por outra medida de coação prevista no C.P.P. quando a detenção se revelar desnecessária e seja suficiente para garantir a entrega.

13. In caso é manifesto que o recorrente fugiu para Portugal após a prática dos factos para se eximir da responsabilidade penal, aqui mora desde novembro de 2022, não tendo apresentado o título de residência CPLP temporário ou permanente, que permita concluir que tem residência no nosso país; nem apresentou prova de que se possa concluir que tem aqui trabalho fixo.

14. É manifesto que no caso do recorrente não se mostra suficiente para a concretização da entrega a aplicação de outra ou outras medidas de coação pelo mesmo pugnadas, atento o próprio MDE, "enquanto instrumento legal reconhecido pelo Estado Português" a gravidade dos factos descritos no MDE e crime imputado, a circunstância de não ter nacionalidade portuguesa, ter fugido da Bélgica para o nosso país após a prática dos factos e não lhe ser conhecida autorização de residência CPLP, em Portugal.

15. É manifesto que a detenção do recorrente e a sua manutenção têm respaldo legal, não sendo ilegal, nem abusiva, antes se revela necessária e adequada aos objetivos do MDE, que são a detenção e a entrega do recorrente ao Estado de emissão.

16. Por todo o exposto, nenhuma censura merece o despacho recorrido quando decidiu que o recorrente se mantinha em detenção e nesta situação aguardava os ulteriores termos do processo».

II. No exame preliminar, considerou-se que “face ao conteúdo da motivação do recurso (que se desenvolve em apenas 20 artigos), sendo certo que da mesma é manifestamente possível determinar a pretensão do recorrente e as questões a decidir, posto que estamos perante um processo de natureza urgente e que já foi proferida decisão final no processo, a fim de evitar o arrastamento dos autos, não será efectuada a notificação reclamada pelo MºPº, prosseguindo os autos para conferência”.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir:

E a única questão a decidir, neste recurso, consiste em saber se deve ser revogado o despacho proferido pelo Exmº Juiz Desembargador titular dos autos, no sentido de manter a detenção efectuada, substituindo-o por outra medida de coação.

III. O despacho recorrido tem o seguinte teor:

«A inserção no Sistema de Informação Schengen e o Mandado de Detenção Europeu emanam da autoridade judiciária competente, contêm as informações legalmente exigidas, este é o Tribunal competente para executar o mandado e o crime em causa enquadra-se no disposto no artigo 2.°, n.° 2, alínea o) da Lei n.° 65/2003.

Tendo em vista o não consentimento do detido à sua entrega e já tendo o mesmo feito o uso do artigo 21.°, n.° 1 da Lei n.° 65/2003, e concedida a palavra ao Ministério Público nos termos do n.° 3 do mesmo artigo, não tendo sido requerida qualquer produção de prova, cumpre tão só fixar medida de coacção e oportunamente que os autos serem conclusos para os efeitos do artigo 22.°.

Quanto à manutenção da detenção:

A detenção e entrega são os únicos objectivos do mandado de detenção europeu, visando a primeira a efectivação da segunda. Por isso, em princípio, a detenção efectuada no âmbito do mandado de detenção europeu - medida autónoma, não totalmente coincidente com as de coacção, designadamente com a prisão preventiva, quando validada pelo tribunal, deve ser mantida até à entrega, sem embargo de poder (e dever) ser substituída por medida de coacção, como estabelece o n.° 3 do artigo 18° da Lei n.° 65/2003, designadamente quando a detenção se mostre desnecessária à obtenção do desiderato do mandado, ou seja, à efectivação da entrega (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/11/2012, processo n.° 211/12.6YRCBR, www.dgsi.pt).

Fazendo apelo ao próprio mandado e à gravidade dos factos delituosos que determinaram a sua emissão - 1 crime de assassinato/ferimento corporal grave - a circunstância de o requerido não ter nacionalidade portuguesa, estando em Portugal já desde Novembro de 2022, segundo afirma e só com a dificuldade de se lembrar onde reside, entendemos que a manutenção da detenção se mostra a medida adequada, necessária e proporcional para a satisfação das finalidades inerentes ao mandado de detenção europeu, de modo a evitar o risco de o detido se eximir ao pedido de entrega.

Assim, para além de se validar a detenção efectuada decide-se que o requerido aguarde os ulteriores termos do processo nessa situação.

Passe mandados de condução ao Estabelecimento Prisional de ...».

IV. Decidindo:

Uma primeira palavra, apenas para justificar a admissibilidade do recurso da decisão proferida pelo Exmº Juiz Desembargador titular dos autos, que validou e manteve a detenção do ora recorrente.

Como é sabido, este Supremo Tribunal de Justiça já defendeu que:

«I – Só admitem recurso para o STJ as decisões constantes de acórdãos proferidos pelas Relações, em cada secção, pelos respectivos juiz relator e seus adjuntos, funcionando como tribunal colectivo, regra esta aplicável tanto em processo civil, como em processo penal (art. 432.º, al. a), do CPP).

II – Assim, é inadmissível o recurso directo para o STJ do despacho do relator da Relação que manteve a detenção do recorrente na sequência de mandado de detenção europeu, não sendo aplicável nesse caso o disposto na al. a) do n.º 1 do art. 24.º da Lei 65/2003, de 23-08» - Ac. STJ de 15/2/2006, Proc. 06P561, relator Pires Salpico 1.

Não é esse, porém o entendimento mais recente deste Tribunal, ao qual aderimos, sem reservas.

Com efeito, como bem se refere no Ac. STJ de 12/7/2007, Proc. 07P2712, rel. Simas Santos, “o n.º 1, al. a) do art. 24.º 2 elenca, entre as decisões susceptíveis de recurso, a decisão que mantiver a detenção ou a substituir por medida de coacção, ao lado da decisão final sobre a execução do mandado de detenção europeu [al. b)]. (…)

Prescreve igualmente que o julgamento desses recursos é da competência das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça (n.º 5), Tribunal para onde é remetido o processo imediatamente após a junção da resposta ou findo o prazo para a sua apresentação (n.º 6). (…) Temos, assim, que o recurso ao direito subsidiário, o Código de Processo Penal, só há-de ter lugar quando as disposições da Lei n.º 65/2003 não prevejam a situação. Ora, das disposições transcritas resulta que só são recorríveis a decisão que mantiver a detenção ou a substituir por medida de coacção e a decisão final sobre a execução. E esta indicação clara pretende distinguir a decisão sobre a detenção, quando não é tomada na decisão final, quando a antecede, designadamente no momento de audição pelo Relator. Tanto que se esclarece quais os prazos de interposição de recurso quando se trata de decisão oral reproduzida em acta, como normalmente ocorre exactamente com o despacho do Relator. E não distingue, depois, na restante regulamentação do recurso, essa decisão da decisão final, atribuindo competência para conhecer das duas decisões recorríveis à Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça. Temos, pois, por recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça a decisão do Relator que, na Relação, na sequência da audição do requerido, mantém a detenção, como é o caso” 3.

Aqui chegados:

a) Na sequência de Mandado de Detenção Europeu, emitido em 11/10/2023, pelo Juiz de Instrução do Tribunal francófono de 1ª instância de Bruxelas, para efeitos de procedimento criminal por suspeita da prática de um crime de assassinato, ferimento corporal grave, previsto nos artºs 392º e 393º do Código Penal Belga e aí punível com prisão de 20 a 30 anos, por factos ocorridos em 28/11/2022, o ora recorrente foi detido pela Polícia Judiciária em 11/10/2023.

b) O recorrente é alvo de procedimento criminal pela alegada prática dos seguintes factos, conforme descrição no ponto 044 do Formulário A:

- É fortemente suspeito pela morte de DD;

- A .../11/2022, pelas 18h24m, a polícia foi informada da morte, por esfaqueamento, na Praça ..., em ...;

- Os factos ocorreram às 18h15;

- A vítima foi identificada como DD, nascida a .../.../2002, e que tinha chegado à Bélgica há alguns anos como menor não acompanhada;

- Uma testemunha declarou ter visto DD a falar com um grupo de 4-5 pessoas, aparentemente a pedir-lhes para não lançarem fogo de artifício, pois iria afectar pessoas que por ali passavam;

- Seguiu-se uma discussão;

- A testemunha disse ter visto o “brasileiro” a sacar uma faca de talhante, espetando-a directamente no peito de DD;

- A morte deste foi declarada no local;

- Pelas 22h35, várias pessoas aperceberam-se da presença de uma pessoa próxima do perímetro de segurança, que explicou tratar-se de um amigo próximo do suspeito, que identificou como Igor, de nacionalidade brasileira;

- As investigações levaram à identificação do suspeito como CC;

- A investigação revelou também que o ora recorrente foi quem forneceu a faca a CC.

Posto isto:

Decorre do artº 1º da Lei 65/2003 que o MDE é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro, tendo em vista precisamente a detenção para posterior entrega por outro Estado membro, de uma pessoa procurada, entre o mais, para efeitos de procedimento criminal, sendo certo que o mandado é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo.

Como bem se refere no Ac. deste STJ de 21/11/2012, Proc. 211/12.6YRCBR, rel. Oliveira Mendes, “Detenção e entrega são assim os únicos objectivos do mandado de detenção europeu, visando a primeira a efectivação da segunda. Isto é, a detenção no âmbito do mandado de detenção europeu tem por finalidade a entrega de pessoa procurada ao Estado emissor, entrega que, obviamente, só tem lugar após a tomada de decisão sobre a validade da detenção e sobre a verificação dos requisitos legais de que depende a execução do mandado (detenção constitucionalmente prevista conforme preceito da alínea c) do n.º 3 do artigo 27º da Constituição Política). Por isso, em princípio, a detenção efectuada no âmbito do mandado de detenção europeu, quando validada pelo tribunal, deve ser mantida até à entrega, sem embargo de poder (e dever) ser substituída por medida de coacção, como estabelece o n.º 3 do artigo 18º da Lei n.º 65/03, designadamente quando a detenção se mostre desnecessária à obtenção do desiderato do mandado, ou seja, à efectivação da entrega. (…) Atentas as específicas finalidades que o mandado de detenção europeu visa prosseguir, detenção e entrega de pessoa procurada, temos pois por certo que a detenção efectuada no âmbito do mesmo e a sua manutenção não se encontram submetidas, em pleno, ao regime jurídico-processual da prisão preventiva, sendo menores as exigências quanto aos requisitos da detenção/prisão e sua manutenção. A manutenção da detenção, suposta a sua validação, como já se deixou consignado, é de aferir nas circunstâncias objectivas em que o mandado foi emitido, sendo que à emissão deste subjaz um único desiderato, qual seja a entrega da pessoa procurada, razão pela qual, como também já deixámos dito, em princípio, a detenção deve ser mantida até à entrega, a menos que se mostre desnecessária”.

O recorrente alega alguns factos, na sua motivação de recurso, de todo em todo irrelevantes para a presente decisão, como sejam o perigo de vida que correrá se entregue à justiça belga (o que está em causa, no presente recurso, é apenas a necessidade de manutenção da sua detenção, em Portugal), ou os riscos decorrentes para a sua ressocialização da aplicação de uma elevada pena de prisão (essa é, naturalmente, questão a colocar perante a justiça do País emissor do MDE, onde irá ser objecto de procedimento criminal e, eventualmente, de julgamento, em nada relevando no apuramento da necessidade de manutenção da sua detenção, em Portugal).

Como, aliás, parece pensar que os pressupostos da manutenção da detenção solicitada através de um MDE são os mesmos que presidem à aplicação da medida de prisão preventiva, previstos nos artºs 202º e 204º do CPP.

Contudo, como bem se refere no Ac. STJ de 21/11/2012 supra referido, as exigências quanto aos requisitos da manutenção da detenção efectuada em cumprimento de um MDE são bem menores que as presentes para a aplicação e manutenção da prisão preventiva, sendo as mesmas de ponderar em face das circunstâncias em que o referido MDE foi emitido.

No mesmo sentido, assim se decidiu no Ac. STJ de 12/7/2007, supra referido: “Aliás, a detenção, para efeitos de execução de MDE, é menos exigente quanto aos requisitos que a prisão preventiva, até pelos prazos mais curtos previstos no art. 30.º da Lei n.° 65/03 (cfr., neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 228/97 – quanto à detenção para extradição).

A sua aplicação é de aferir nas circunstâncias objectivas em que o mandado foi emitido, o qual pressupõe o perigo de fuga da pessoa visada, desde logo em face da gravidade do crime (tráfico de estupefacientes) e da sua naturalidade e residência”.

Ora, da análise global dos elementos ora referidos resulta claro que com o presente MDE se pretende a detenção do recorrente para efeitos de procedimento criminal, pela prática de um crime de homicídio, previsto e punido pelos artºs 392º e 393º do Código Penal Belga 4, com pena de 20 a 30 anos de prisão, justificando-se a medida de coacção imposta face à gravidade do crime imputado, aliado à circunstância de o recorrente ter vindo da Bélgica para Portugal logo após os factos dos autos, mostrando-se a medida necessária, proporcional à gravidade do crime cuja autoria lhe é imputada e à moldura penal respectiva, afigurando-se-nos adequada às exigências cautelares que o caso requer, de modo a contornar o risco de o recorrente se eximir ao pedido de entrega a que se refere o presente MDE.

Razão pela qual deve ser mantida a decisão recorrida, negando-se provimento ao recurso.

V. Por tudo quanto exposto fica, acordam na 3ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UC’s a taxa de justiça.

Lisboa, 8 de Novembro de 2023 (processado e revisto pelo relator)

Sénio Alves (relator)

Teresa Féria (1ª adjunta)

Teresa de Almeida (2ª adjunta)

______


1. Acessível, como todos os outros, relativamente aos quais não for indicada fonte diversa, em www.dgsi.pt.

2. Da Lei 65/2003, de 23/8.

3. No mesmo sentido, cfr. Ac. STJ de 11/7/2007, Proc. 07P2618, rel. Raul Borges.

4. Nos termos do artº 2º, nº 2, al. o) da Lei 65/2003, de 23/8,

  “Será concedida a entrega da pessoa procurada com base num mandado de detenção europeu, sem controlo da dupla incriminação do facto, sempre que os factos, de acordo com a legislação do Estado membro de emissão, constituam as seguintes infrações, puníveis no Estado membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a três anos:

  (…)

o) Homicídio voluntário e ofensas corporais graves”.