Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
697/20.5T8PTM.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
PEÃO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
ATROPELAMENTO
CULPA EXCLUSIVA
CULPA GRAVE
CULPA DO LESADO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - A concorrência de culpas num acidente de viação, nos termos do art. 570º do CCivil, pressupõe a prova de factos dos quais resulte que ambos, condutor e vítima, contribuíram para a eclosão do acidente;

II - Não se verifica a situação de concorrência de culpas, devendo ser imputado exclusivamente à vitima o acidente que consistiu no atropelamento daquela, que transitava à noite, alcoolizado, pela faixa de rodagem, por um veículo que circulava sem qualquer violação das regras estradais;

III – Admitindo-se a concorrência da culpa do lesado com o risco próprio do veículo (art. 503º, nº1 do CC), provada a culpa grave da vítima e que o acidente foi-lhe exclusivamente imputável, fica afastada responsabilidade pelo risco.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, residente na Rua da ..., ..., ..., propôs contra FIDELIDADE - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede em Largo do Calhariz, 30, Lisboa, acção declarativa peticionando a condenação da Ré a indemnizá-lo pelos danos patrimoniais sofridos, não patrimoniais e danos futuros, num total de €144.660,47 (a título de danos patrimoniais, diretamente suportados, a quantia de €34.660,47 e a título de danos não patrimoniais, a quantia de €110.000), acrescida de juros de mora contados à taxa legal sobre as quantias peticionadas desde a citação e até integral pagamento, à exceção dos contados sobre os danos não patrimoniais, os quais serão devidos desde a data da condenação.

Alegou, em resumo, que no dia ... de abril de 2017, pelas 22hl3, seguia a pé pelo passeio na Rua D. .... ..., no sentido P.... - Praia da ..., acompanhado com diversos amigos, e foi embatido com violência pela lateral direita do veículo automóvel Mercedes Benz C200, com a matrícula ..-FA-.., conduzido por BB, seguro na seguradora R., o que lhe provocou danos cuja indemnização reclama.

O Instituto da Segurança Social, IP - Centro Distrital de Faro apresentou-se a requerer o reembolso do subsídio de doença que concedeu provisoriamente ao Autor no montante de 1.425,54 euros, em consequência do sinistro ocorrido em ... de abril de 2017.

A Ré contestou, pugnando pela improcedência da ação, já que o acidente foi imputável em exclusivo ao Autor, que seguia na faixa de rodagem, animado pela influência do álcool, tendo-se desequilibrado e invadido ainda mais a faixa de rodagem por onde circulava o veículo seguro no preciso momento em que passava no local.

Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, tendo considerado que para o acidente contribuíram o Autor e o condutor do veículo, nas proporções de 30% e 70%, respectivamente, em face do que condenou a Ré a pagar ao Autor:

- 70% da indemnização devida ao Autor pelos danos patrimoniais - relativos a despesas suportadas, roupa e perda de remuneração -, num total de 14.217,42 euros (catorze mil duzentos e dezassete euros e quarenta e dois cêntimos), acrescido de juros a contar da data da citação até integral e efetivo pagamento;

- 70% da indemnização devida ao Autor pelos danos patrimoniais (biológico e futuros), num total de 63.000 euros (sessenta e três mil euros), acrescido de juros a contar do trânsito em julgado da sentença e até integral e efetivo pagamento;

- 70% da indemnização devida ao Autor pelos danos não patrimoniais, num total de 14.000 euros (catorze mil euros), acrescido de juros a contar do trânsito em julgado da sentença e até integral e efetivo pagamento;

- 70% dos danos futuros que eventualmente venham a surgir como consequência do acidente, até ser retirado todo o material metálico de consolidação que o Autor tem.

- 70% do pedido deduzido pelo Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Faro, pelo subsídio de doença que concedeu provisoriamente ao Autor no montante de 997,88 euros.

Inconformada, a Ré apelou visando a revogação da sentença e a sua absolvição do pedido, por o seu segurado nenhuma culpa ter tido no acidente, que ocorreu por culpa exclusiva do Autor.

Por acórdão da Relação de Évora de 2 de Março de 2023 foi a apelação julgada procedente, revogada a sentença e a Ré absolvida do pedido.

É a vez do Autor interpor recurso de revista pugnando pela revogação do acórdão recorrido para ficar a subsistir a sentença da 1ª instância, concluindo como segue a sua alegação:


A


(…) vem o recorrente apresentar as suas conclusões nas quais, deforma sintética, termina pela indicação dos fundamentos pelos quais pede a anulação do doutamente decidido no acórdão do tribunal da relação de Évora, e o acolhimento do demais que acima pede revogar o douto acórdão da relação de Évora na parte em que decide que “ o condutor que desvia o veiculo quando se apercebe de um peão na faixa de rodagem que, seguindo de costas, quando o veiculo vai a passar se vira para a frente repentinamente desequilibrando-se para o seu lado direito, não resulta o adestrito a indemnizar o lesado pelos danos sofridos com o embate, viola os artºs 24 nº 1 do código da estrada, 99 nº2 al.b) e e).

B


decidindo-se também que no caso concreto resulta demostrada a culpa do condutor do veículo a titulo de negligência, porquanto se considerar que o mesmo condutor não adopta todas as precauções que lhe eram exigíveis ao ver um peão na via com um copo na mão, sendo-lhe imposto que buzina-se (sic) para que o peão fosse para o passeio ou então imobilizar o veiculo ao aproximar-se do peão aguardando que o mesmo se deslocasse para o passeio. violou-se também no acórdão em revista o princípio da reconstituição natural previsto no artº 562 do cc. igualmente se considera como incorretamente aplicado o disposto no artº 563 quanto à teoria da causalidade adequada.

- a revogação do douto acórdão da relação de Évora e ,

- a condenação da r. fidelidade a pagar ao a. 70% da indemnização devida pelos danos patrimoniais relativos a despesas suportadas com roupa e perda deremuneraçãonum total de 14.217,42€ acrescidos de juros a contar da data de citação até integral e efectivo pagamento;

- a condenação da r. fidelidade a pagar 70% da indemnização devida ao a. pelos danos patrimoniais (biológico e futuros) num total de 63.000,00€ acrescidos de juros a contar do trâbsito em julgado da decisão final e até integral e efectivo pagamento;

- a condenar a r. fidelidade a pagar 70% da indemnização devida ao a. pelos danos não patrimoniais num total de 14.000,00€ a contar do transito em julgado da decisão final e até integral pagamento;

- a condenar a r. fidelidade a pagar 70% dos danos futuros que eventualmente venham a surgir como consequência direta do acidente;

- a condenar a r. fidelidade e o a. nas custas na proporção do decaimento;

- a condenar a r. fidelidade no pagamento de 70% do pedido deduzido pelo instituto da segurança social, ip.- centro distrital de faro pelo subsidio de doença que concedeu provisoriamente ao autor no montante de 997,88€.


C


Entende o recorrente que foram violadas:

As normas previstas nos artºs 24 nº 1 do ce., artº 99 nº 2 alinea a), b) e c) do c.e., artº 562 do cc e 566 ainda do mesmo código.


D


Daqui resulta ser possível emitir um juízo de censura relativamente ao condutor uma vez que este não agiu com a diligência devida, sendo-lhe exigível a adoção de conduta diferente face às circunstâncias, nomeadamente a imobilização do veículo, que deveria ter imobilizado no espaço livre à sua frente.

Só por isso se dirá que conduzia com velocidade excessiva.

Fez o douto acórdão uma interpretação e aplicação indevidas do artº 24 nº1 do c.e. uma vez que nas circunstâncias dadas por provadas impunha-se ao condutor do veículo uma redobrada atenção quanto à imobilização do veículo, como vimos decorre de uma aplicação incorreta no artº 505 nº1 do CPC.

Contra alegou a Recorrida, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. O douto Acórdão recorrido analisou devidamente a matéria de facto assente quanto à dinâmica do acidente e de tal matéria resulta inequivocamente que a conduta do condutor do veículo não se reveste de qualquer ilicitude ou culpa.

2. Da matéria de facto assente resulta também, inequivocamente, que o acidente resultou exclusivamente do comportamento do Autor que não observou os deveres de cuidado que a sua qualidade de peão lhe impunha.

3. O douto Acórdão recorrido aplicou devidamente o direito pertinente à matéria de facto assente quanto à dinâmica do acidente.

4. O douto Acórdão recorrido não enferma de qualquer erro ou vício que mereça reparo.

5. Improcedem todas as conclusões (duas?) apresentadas pelo recorrente.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


///


Fundamentação de facto.

A decisão recorrida assentou no seguinte acervo factual:

1. No dia ... de abril de 2017, o Autor AA, seguia na faixa de rodagem (via), junto ao passeio, na Rua D. ..., no sentido P.... - Praia da ..., junto ao edifício "Museu de P...".

2. O Autor estava acompanhado com diversos amigos e seguia do lado esquerdo da faixa de rodagem, no sentido contrário ao dos veículos que seguem da Praia da ... para P....

3. Pelas 22hl3, o peão e Autor foi embatido pela lateral direita do veículo automóvel de marca e modelo Mercedes Benz C200, com a matrícula ..-FA-.., conduzido por BB, residente em Quinta de ..., ..., ....

4. O acidente ocorreu numa via reta, com boa visibilidade e presença de sinalização vertical de aproximação de lombas, que existem, elevadas, no local, o que obriga os condutores a uma maior atenção na condução e até redução de velocidade.

5. A velocidade no local é de 50 Km/h.

6. Após o embate o Autor foi projetado para o chão.

7. O veículo automóvel imobilizou-se a uma distância de pelos menos 21,5 metros do embate.

8. O condutor do veículo automóvel circulava no sentido sul-norte, dirigindo-se para P... vindo da Praia da ....

9. Tinha um largo espaço visível à sua frente e uma via de largura de 6,30metros.

10. Seguia a velocidade não concretamente apurada, de cerca de 40km/h.

11. Na via onde ocorreu o acidente foram construídas duas lombas redutoras de velocidade antes das passadeiras de peões naquele local existentes.

12. O Autor no momento do acidente apresentava uma taxa de álcool no seu sangue de 2,20 G/L.

13. O Autor havia estado com o seu grupo de colegas de trabalho numa festa de aniversário, na qual ingeriu diversas bebidas alcoólicas, desde o início da tarde até perto da hora do acidente.

14. O Autor invadiu a faixa de rodagem onde seguia o FA.

15. Em ambos os lados da via de trânsito onde ocorreu o acidente existem passeios destinados à circulação de peões.

16. Imediatamente antes do embate o Autor encontrava-se dentro da faixa de rodagem, de costas para o FA e virado para o grupo que seguia mais atrás de si em direção à Praia da ....

17. O FA desviou-se do Autor mas quando ia a passar pelo mesmo o Autor virou-se para a frente repentinamente e desequilibrou-se para o seu lado direito, invadindo ainda mais a faixa de rodagem.

18. O embate deu-se completamente dentro da faixa de rodagem destinada à circulação do FA.

19. O embate deu-se no espelho retrovisor direito do FA num primeiro momento, tendo ato continuo o peão embatido também ao longo de todo o lado direito do FA.

20. O embate deu-se a uns 3 metros após a passadeira e o Autor não pretendia, nem estava a atravessar a estrada, antes circulava na mesma em grande animação com os seus colegas, sendo certo que estes seguiam pelo passeio.

21. Dada a imprevisibilidade e repentismo do comportamento do Peão, o condutor do FA não teve tempo de evitar o embate, ficando impedido de desviar mais o veículo atendendo que circulavam outros veículos em sentido contrário.

22. O Autor, no momento do acidente, encontrava-se ainda com um copo na mão.

23. O Autor apresentou queixa crime contra o condutor do FA, sob o NUIPC 948/17.3..., o qual foi integrado no processo n.° 778/17.2... que correu termos no DlAP - Ia Secção de ..., tendo sido o mesmo arquivado.

24. Em virtude do acidente acima descrito, o Autor foi evacuado de ambulância o Serviço de Urgência do Centro Hospitalar da Universidade ..., unidade de ..., diretamente para a Sala de reanimação.

25. O Autor apresentava deformidade rotacional do 1/3 distrai da perna direita com fratura exposta da tíbia grau II e do perónio, lesão de desluvamento retrocalcâneana à direita e ferida articular do joelho esquerdo com exposição do aparelho extensor e fratura cominutiva impactada do côndilo femural interno.

26. O Autor necessitou de intubação endotraqueal e ventilação e de intervenção cirúrgica com redução da fratura e osteotaxia tibiotibial com fixador AO (2 pinos proximais+2 distais); lavagem abundante, desinfeção e encerramento de desluvamento do retropé; lavagem abundante a baixa pressão e reparação da asa interna da rótula esquerda.

27. Após, o Autor foi transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos de ... para vigilância.

28. O Autor regressou à unidade de ... no dia ... de abril , onde ficou internado na U... durante três dias para manutenção da vigilância até à sua transferência no dia ... de abril para a unidade de Ortopedia.

29. O Autor ficou internado naquela unidade do hospital durante 64 dias, até nova intervenção cirúrgica, no Bloco Operatório, para desbridamento excisional da úlcera resultante da lesão de desluvamento retro-calcâneana à direita.

30. O Autor teve alta no dia ... de junho de 2017, com posterior seguimento com o médico Ortopedista.

31. No dia ... de julho o Autor foi sujeito a novo internamento na unidade de Ortopedia e a nova intervenção cirúrgica para remoção do fixador externo, até à alta médica no dia ... de julho, sempre com seguimento do médico Ortopedista.

32. No dia ... .11.2017 o Autor foi novamente internado no serviço de Ortopedia, em virtude de pseuclo-artrose infetada da tíbia direita, tendo sido novamente sujeito a intervenção cirúrgica, com abordagem do foco de pseudartrose, osteotomia do calo ósseo hipertrófico e colocação de cavilha revestida por antibiótico 315/9 mm após rimagem do canal medular, e teve alta no dia ... de dezembro.

33. Não obstante o tempo decorrido, o Autor manteve ferimentos que careceram de atenção, designadamente pseudoartrose da tíbia direita, com infeção ainda em estudo, estando a ser seguido no CHU...-P... e no Hospital Privado ..., por médico ortopedista especialista em infeções osteoarticulares e que obrigou a nova intervenção cirúrgica neste hospital (no dia .../10/2018).

34. O Autor manteve consultas médicas com médico ortopedista, especialista em patologia do joelho, em ..., com indicação de intervenção cirúrgica ao joelho para reconstrução do côndilo femoral interno do joelho esquerdo, dados os sinais de osteonecrose que apresentava.

35. O Autor foi obrigado a diversas sessões de fisioterapia, desde o primeiro internamento na Ortopedia até junho de 2018, com prescrição por tempo indeterminado de programa de reabilitação motora após as intervenções cirúrgicas e até à sua funcionalidade.

36. O Autor foi sujeito a diversos exames para diagnóstico e avaliação da evolução das intervenções, mormente Raio-X, TAC, RJV1N, Cintigrafia óssea, Biópsia Óssea, Ecografia, Eco-Dopples e análises de sangue, de follow-up e intervenção atempada de intercorrências verificadas.

37. O Autor ainda manteve tratamentos médicos no ..., seguido pelo especialista Dr. CC, por recomendação da comunidade médica do CHU... dadas as várias intervenções cirúrgicas a que foi submetido sem que se verificasse resolução e porquanto não existe na região do ... ortopedista com diferenciação na área específica de infeções e outras complicações associadas a próteses e outros implantes ortopédicos.

38. Continua o Autor a ser seguido no Hospital Privado ..., sem periodicidade certa, em função das necessidades, o qual foi aconselhado por parte da equipa de Ortopedia do Centro Hospitalar da Universidade ..., unidade de P..., pois o Prof. Dr. CC, é um ortopedista que exerce a sua prática na parte norte do país, com área de interesse específica em infeções e outras complicações associadas a próteses e outros implantes ortopédicos, com diversos prémios e distinções científicas,

39. O veículo automóvel que embateu no Autor encontrava-se seguro na FIDELIDADE - Companhia de Seguros, S.A., mediante acordo denominado "contrato de seguro de responsabilidade civil" titulado pela apólice n.° .......80, em vigor à data do sinistro.

40. O Autor desde o dia ... de abril de 2017, já foi sujeito a, pelo menos, cinco intervenções cirúrgicas, havendo ainda necessidade de fazer pelo menos mais uma cirurgia para retirar uma cavilha.

41. O Autor esteve internado no hospital mais de cem dias.

41. O Autor sofreu grandes dores em todos os membros inferiores, bem como na região abdominal com limitação de movimento, que ainda hoje persiste.

42. Até à data a Ré não suportou quaisquer tratamentos que o Autor necessitou e ainda necessita para a sua recuperação.

43. Com o tratamento das lesões sofridas despendeu o Autor em medicamentos, a quantia de 298,29 euros (duzentos e noventa e oito euros, e vinte e nove cêntimos).

44. Em taxas moderadoras e despesas hospitalares pagas ao Centro Hospitalar .. em ..., Hospital de ..., Hospital de V..., Hospital da ..., Hospital Privado ... despendeu o Autor o valor global de 4.761,83 euros (quatro mil setecentos e sessenta e um euros e oitenta e três cêntimos).

45. Em despesas associadas e diretamente ligadas com deslocações ao hospital para as intervenções cirúrgicas e tratamentos, incluindo passagens aéreas, o Autor despendeu o valor de 1.403,22 euros (mil, quatrocentos e três euros e vinte e dois cêntimos).

46. O Autor desenvolvia à data do acidente a sua atividade profissional na área da saúde como Médico.

47. De maio de 2017 até outubro de 2017 previa fazer urgências no Centro Hospitalar Universitário ... uma vez por semana, num período de 12 horas cada turno, à razão de 225 euros líquidos por dia de urgência.

48. Devido ao acidente de viação, ficou o Autor impedido de prestar o seu serviço no Centro Hospitalar da Universidade ..., durante seis meses, perdendo a totalidade do montante de 5.400 euros (225x4 semanas=900x6 meses).

49. Do acidente resultou a destruição dos seguintes objetos: Camisa Massimo Dutti no valor de 30 euros; calções da marca Springfield no valor de 30 euros; um par de óculos Ray Ban no valor de 100 euros, tendo ficado a roupa e óculos (lentes) inutilizados.

50. No âmbito da sua atividade profissional, o Autor estava a frequentar o ano zero, que ocorre antes do efetivo exame médico de escolha para a especialidade.

51. No âmbito da sua atividade profissional, o Autor estava a frequentar o ano zero, que ocorre antes do efetivo exame médico de escolha para a especialidade.

52. Em virtude do acidente, viu-se o Autor impossibilitado de estudar e, consequentemente, realizar o exame Harrison, que dita a ordem pela qual os médicos escolhem a especialidade, com toda a frustração que isso trouxe.

53. Este exame seria realizado em novembro de 2017 e para ele se vinha preparando, como qualquer médico, para atingir a entrada na especialidade pretendida, e seguir a carreira da sua vida.

54. Por força do acidente de viação ficou privado da sua remuneração mensal ilíquida de 1.566,42 euros (mil quinhentos e sessenta e seis euros e quarenta e dois cêntimos), entre maio de 2017 e novembro de 2017, no valor médio mensal de 1.216,60 euros.

55. As lesões causadas ao Autor pelo atropelamento, para além das dores em todo o corpo, causaram a diminuição da sua força e movimentos, ficando diminuída a sua capacidade de pegar em objetos pesados.

56. Durante mais de um ano o Autor sofreu constantes pesadelos e perturbações do sono, sempre num estado de ansiedade diretamente provocado pelas imagens que reteve do acidente de viação em que se viu envolvido.

57. O Autor nasceu em ... .07.1987, tendo à data dos factos descritos 30 anos de idade.

58. Antes do acidente, o Autor era uma pessoa saudável, sem quaisquer perturbações ou limitações físicas, desenvolvendo uma profissão bem remunerada e com perspetivas de progresso rápido bem como participando em várias atividades desportivas, no que se viu coartado pelo que aconteceu.

59. O Autor está impedido de jogar futebol, praticar surf e participar em qualquer atividade desportiva.

60. O Autor sente-se frustrado, triste, desanimado, porquanto, tanto a nível pessoal como profissional, as sequelas irão refletir-se de forma constante.

61. Também a sua vida profissional ficou adiada pelo menos um ano.

62. Para consolidação das fraturas quer no membro inferior direito quer no membro inferior esquerdo, foi colocado fixador AO (2 pinos proximais, mais dois distais).

63. Estes fixadores de consolidação são por definição provisórias, o que implica igualmente a sua retirada passado o período fixado medicamente.

64. O Autor é beneficiário do Centro Distrital de ... com o n.° .........13.

65. Em consequência do sinistro ocorrido em ... de abril de 2017, tendo o Autor ficado temporariamente incapacitado para o exercício da sua atividade profissional, o Centro Distrital de ..., concedeu provisoriamente subsídio de doença ao Autor no montante de 1.425,54 euros (Mil, quatrocentos e vinte e cinco euros e cinquenta e quatro cêntimos) respeitante ao período compreendido entre 26.09.2018 e 12.11.2018.

66. No Relatório da perícia médico-legal de avaliação do dano corporal realizado a 15.01.2021, conclui-se "(•••) A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 25/03/2019. Período de Défice Funcional Temporário Total sendo assim fixável num período de 325 dias. Período de Défice Funcional Temporário Parcial sendo assim fixável num período 389 dias. Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total sendo assim fixável num período de 325 dias. Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial sendo assim fixável num período de 389 dias. Quantum Doloris fixável no grau 5/7. Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 15 pontos, sendo de admitir a existência de Dano Futuro. As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares. Dano Estético Permanente fixável no grau 4/7. Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 4/7. Ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos.”

Fundamentação de direito.

A questão decidenda traduzir-se-á em saber se deve ter-se por verificada a responsabilidade do condutor do veículo automóvel em concorrência com a culpa da vítima, ou se, pelo contrário, deverá considerar-se que a vítima (aqui Autor e Recorrente) foi o único responsável pela eclosão do acidente, inexistindo assim qualquer obrigação de indemnizar a cargo da seguradora do veículo.

Questão que dividiu as instâncias, com a sentença a considerar que ambos, vítima e condutor, tiveram culpa no acidente, nas proporções, respectivamente de 30% e 70%, entendimento que foi afastado pela Relação que considerou o Autor único culpado no acidente.

Dissentindo do assim decidido, o Autor sustenta a culpa do condutor do veículo, que agiu de forma negligente, pois não tomou todas as precauções que lhe eram exigíveis ao deparar-se com o peão na via.

Recordemos como a questão foi apreciada nas instâncias.

A sentença:

“…no caso concreto resulta demonstrada a culpa do condutor do veículo, a título de negligência, porquanto se considera que o mesmo não adotou todas as precauções que lhe eram exigíveis, ao ver um peão na via, com um copo na mão, nomeadamente buzinar para que o peão fosse para o passeio ou imobilizar o veículo ao aproximar-se do peão aguardando que o mesmo se deslocasse para o passeio.

Isto porque, em face da factualidade provada, considera-se que o condutor poderia evitar o acidente, pois ao abrandar na passadeira (lomba), viu o Autor na estrada junto ao passeio e desviou-se, não tendo conseguido evitar o embate porque o Autor se desequilibrou repentinamente invadindo ainda mais a faixa de rodagem, sendo que em face das regras da experiência comum, o condutor podia prever que o peão fizesse algum movimento e invadisse ainda mais a via destinada aos veículos, porquanto segundo declarou se recorda bem do copo que o Autor trazia na mão, sendo transparente e estava meio, pelo que devia ter previsto a possibilidade do peão se encontrar sob a influência do álcool.

Assim, é possível emitir um juízo de censura relativamente ao condutor uma vez que este não agiu com a diligência devida, sendo-lhe exigível a adoção de conduta diferente face às circunstâncias, nomeadamente a imobilização do veículo.

Por sua vez, o peão circulava na via destinada aos veículos em vez de circular no passeio, tendo este contribuído para o seu atropelamento.”

Com base neste entendimento, considerou ambos culpados pelo acidente, nas proporções de 30% para o Autor e 70% para o condutor do veículo.

Já a Relação ponderou:

(…)

Não se acompanham os argumentos esgrimidos na decisão recorrida no sentido de que o condutor do veículo devia tê-lo imobilizado antes de se aproximar do peão e devia ter buzinado, alertando o peão para a sua presença esperando, então, que o peão retomasse o passeio. É que:

o condutor desviou-se do peão para a direita;

quando ia a passar pelo mesmo, o Autor virou-se para a frente repentinamente, desequilibrou-se para o seu lado direito, invadindo ainda mais a faixa de rodagem;

o condutor do FA não teve tempo de evitar o embate, dada a imprevisibilidade e repentismo do comportamento do peão;

não pôde desviar mais o veículo para a direita atendendo que circulavam outros veículos em sentido contrário;

inexiste o dever de buzinar.

O condutor atuou com a prudência devida, não lhe sendo exigível que imobilizasse o veículo, pois não é previsível que o peão, perante a aproximação de veículo, invada ainda mais a faixa de rodagem. Está provado que a conduta do peão foi imprevisível e repentina, e que essa conduta repentina é que foi causal do embate. Embate que o condutor não pôde evitar.

Por outro lado, o art. 22.° do CE, referindo-se aos sinais sonoros, estabelece os casos em que é permitida a respetiva utilização. Não é imposto, por nenhuma norma que regula a circulação estradai, o dever de buzinar. Donde, a não utilização de sinal sonoro não pode consubstanciar conduta ilícita e culposa. Além de que está por demonstrar que o acionamento da buzina do veículo desencadeasse conduta diversa no peão, naquele concreto enquadramento.

Nestes termos, a conduta desenvolvida pelo condutor do veículo automóvel não se mostra revestida de ilicitude e culpa.

O mesmo não se diga da conduta desenvolvida pelo A.

Nos termos do disposto no art. 99.° n.° 1 do CE, os peões devem transitar pelos passeios (...) ou, na sua falta, pelas bermas. Segue o n.° 2, cujas ais. a) e b) estabelecem que os peões podem transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito c/e veículos, quando efetuem o seu atravessamento ou na falta dos locais referidos no n. ° l ou na impossibilidade de os utilizar.

Ora, o A seguia na faixa de rodagem, de costas para o sentido de circulação automóvel no local, sendo certo que existia ali passeio; de forma imprevisível e repentina, virou-se e desequilibrou-se para o seu lado direito, invadindo ainda mais a faixa de rodagem da faixa de rodagem. Manifestamente, não observou os deveres de cuidado que lhe são impostos na qualidade de peão. O que foi causa direta e exclusiva do embate de que foi vítima.

Excluído está, portanto, o dever de indemnizar a cargo da Recorrente Seguradora - art. 505.°doCC.”

Vejamos.

Na responsabilidade por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar, supõe, designadamente, a imputação do facto ao agente (culpa) e o nexo causal entre o facto e o dano (arts. 483º, 487º, nº2, 562º e 563º, todos do Código Civil (CC).

Para que o facto ilícito seja gerador de responsabilidade, é preciso que o agente tenha actuado com culpa, no sentido de que a sua conduta seja merecedora de reprovação ou censura do direito, o que sucederá quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concertada da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outra maneira.

No âmbito da mera culpa ou negligência, traduzida na diligência exigível ao agente, cabem não só os casos de negligência consciente (que aqui não interessa considerar) como os de negligência inconsciente, aqueles em que o agente, por imprudência, leviandade, descuido, imperícia, inaptidão, desleixo, precipitação ou incúria, não chega sequer a conceber a possibilidade de o facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação se usasse a diligência devida.

O Código Civil consagra expressamente a tese da culpa em abstracto, ao prescrever no nº2 do art 487º que na falta de outro critério legal, ela é apreciada “pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.”

Tendo presentes estes princípios, vejamos o que se provou quanto à dinâmica do acidente:

- O Autor seguia na faixa de rodagem (via), junto ao passeio, na Rua D. .... Carlos I, no sentido P.... - Praia da ...;

- Estava acompanhado com diversos amigos e seguia do lado esquerdo da faixa de rodagem, no sentido contrário ao dos veículos que seguem da Praia da ... para P...;

- Imediatamente antes do embate o Autor encontrava-se dentro da faixa de rodagem, de costas para o veículo FA e virado para o grupo que seguia mais atrás de si em direção à Praia da ...;

- O FA seguia a cerca de cerca de 40km/h;

- O FA desviou-se do Autor, mas quando ia a passar pelo Autor este virou-se para a frente repentinamente e desequilibrou-se para o seu lado direito, invadindo ainda mais a faixa de rodagem;

- O embate deu-se completamente dentro da faixa de rodagem destinada à circulação do FA;

- O Autor no momento do acidente apresentava uma taxa de álcool no seu sangue de 2,20 G/L.

- Em ambos os lados da via de trânsito onde ocorreu o acidente existem passeios destinados à circulação de peões;

- O embate deu-se a uns 3 metros após a passadeira e o Autor não pretendia, nem estava a atravessar a estrada, antes circulava na mesma em grande animação com os seus colegas, sendo certo que estes seguiam pelo passeio.

- Dada a imprevisibilidade e repentismo do comportamento do Peão, o condutor do FA não teve tempo de evitar o embate, ficando impedido de desviar mais o veículo atendendo que circulavam outros veículos em sentido contrário.

Destes factos parece-nos inquestionável que o condutor nenhuma culpa teve na produção do acidente, o mesmo não se podendo dizer do Autor que transitava pela faixa de rodagem, embora em ambos os lados da via de trânsito existam passeios destinados à circulação de peões, incorrendo assim numa violação grosseira do art. 99º, nº1 do Código da Estrada - “os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou na sua falta, pelas bermas.

A imputação ao acórdão de ter violado as disposições do art. 99º, nº2, alíneas a), b) e c) do Cód. Estrada é manifestamente infundada.

Nas citadas alíneas admite-se, é certo, o trânsito dos peões pela faixa de rodagem, “com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos”, i) quando efectuem o seu atravessamento; ii), na falta dos locais referidos em 1 (passeios, bermas), ou na impossibilidade de os utilizar; iii) quando transportem objectos, que pelas suas dimensões ou natureza, possam constituir perigo para o trânsito dos outros peões, mas nenhuma destas situações se verificava.

A presença do Autor na faixa de rodagem era injustificada e além disso um comportamento imprudente ou inconsiderado, isto é, culposo, e que foi, sem margem para dúvidas, causal do acidente.

Um comportamento irreflectido, perigoso, com grande probabilidade resultante da alta taxa de alcoolemia que apresentava sabido que um dos efeitos do álcool no organismo é justamente a alteração do comportamento, ou a diminuição das capacidades psico-sensoriais, que podem levar a estados de euforia e desinibição.

Incontroversa a culpa do Autor importa verificar se culpa exclusiva ou concorrente com a culpa do condutor do FA.

Defende o Recorrente que o condutor do FA teve também culpa no acidente por circular com excesso de velocidade, “já que não conseguiu imobilizar o veículo sem embater no Autor”.

A respeito da velocidade a que devem circular os veículos estatui o nº1 do art. 24º do Código da Estrada:

O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo, à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.

Acrescenta o art. 25º que, sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade, nomeadamente, “à aproximação de aglomerações de pessoas ou animais” (nº1, alínea f).

Provou-se que o condutor do FA circulava a cerca de 40km/h, abaixo do máximo legal permitido no local, 50k/hora.

Também não circulava a velocidade excessiva, à luz do critério do art. 24º: o condutor do FA ainda se desviou do Autor, mas que o embate foi inevitável quando aquele “repentinamente se virou e se desequilibrou para o seu lado direito, invadindo ainda mais a faixa de rodagem”.

Não se vislumbra o que poderia ter feito o condutor do veículo para evitar embater no Autor.

Afastada a culpa do condutor do veículo, importa ver se há responsabilidade objetiva ou pelo risco do veículo.

A responsabilidade pelo risco, i.e., uma responsabilidade independente de culpa, no campo da circulação automóvel assenta na ideia de que o automóvel, uma massa em movimento que não pode ser detida instantaneamente, acarreta risco acrescido de acidentes de forma que se deve impor o ónus de suportar esse risco àquele que dele tira proveito, numa lógica de ubi commoda, ibi incommoda.

Tal responsabilidade está prevista no nº1 do art. 503º do CCivil: “Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que não se encontre em circulação.”

Importa ainda atentar que nos termos do art. 505º, “sem prejuízo do disposto no artigo 570º, a responsabilidade fixada no nº1 do art. 503º, só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte e causa e força maior estranha ao funcionamento do veículo.”

Como é sabido, o entendimento tradicional do art. 505º , na esteira do ensino de Antunes Varela, era da impossibilidade de concurso da responsabilidade do lesado a título de culpa, e do titular da direcção efectiva do veículo, assente no risco. Entre muitos outros, assim decidiram os Acórdãos do STJ de 02.11.2004 (P. 3457/04; Azevedo Ramos), e de 22.06.2006 (P. 1862/06, Salvador da Costa).

Contra esta posição vieram a pronunciar-se alguns autores, como J.C. Brandão Proença, in “A conduta do lesado como pressuposto e critério da imputação do dano extracontratual”, Sinde Monteiro, e Calvão da Silva, RLJ, ano 134º, posição que veio a encontrar acolhimento no Acórdão do STJ de 04.10.2007, P. 07B710, nele se afirmando: “O texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a tese do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”

Esta posição é hoje maioritária no STJ, foi seguida, entre outros, e restringindo-nos aos mais recentes, nos Acórdão de 22.06.2021, P. 2992/18 (Pinto de Almeida) e de 05.05.2022, P. 5080/18.0T8MTS.P1.S1, (CJ/AcSTJ, ano XXX; 2º, pag. 46), que foi relatado pelo Conselheiro Nuno Pinto de Oliveira e subscrito pelo relator do presente, com ampla informação doutrinal e jurisprudencial, em cujo sumário se lê:

O art. 505º CC deve ser objecto de uma interpretação actualista, de modo a admitir-se o concurso de culpa do lesado com o risco do veículo, com o que a exclusão da responsabilidade fixada pelo nº1 do art.503º do mesmo diploma fica restringida aos casos em que haja dolo ou culpa grave do lesado, ou em que o facto por ele praticado deva considerar-se como causa exclusiva do acidente.”

Sinde Monteiro, na RLJ, ano 142, pag. 128/129, dá como exemplo de culpa grave do lesado, “a assunção excessiva de riscos e de exposição deliberada a um risco muito grande.”

Revertendo ao caso dos autos: age com culpa grave o peão que transita a pé, à noite, na via pública, num estado fortemente alcoolizado, e que nessas circunstâncias é embatido por um veículo automóvel que por ali circulava sem qualquer violação das regras estradais.

Nestas circunstâncias, a culpa exclusiva do acidente recai no peão, mostrando-se in casu indiscutivelmente preenchida a previsão constante do art. 505º do CCivil.

Com toda a pertinência escreveu-se no acórdão do STJ de 20.01.2009, CJ/STJ, ano XVII, 1º, p. 62/66, relatado pelo Conselheiro Salazar Casanova:

“Considerar que o risco imanente à circulação rodoviária gera uma culpa mitigada em cada acidente, seja qual for a culpa que efectivamente ocorreu determinativa do processo causal concreto, tal entendimento traduzir-se-ia, a nosso ver, na introdução sub-reptícia de uma presunção juris e de jure de ocorrência de risco, que a lei não consente.

Não se afigura que à luz do nosso direito positivo seja admissível uma interpretação que considere beneficiarem os sinistrados não motorizados de uma presunção juris e de jure de culpa mitigada e que, por tal motivo, deva sempre considerar-se que o acidente não foi unicamente devido à sua actuação culposa, ainda que se prove exactamente o contrário.”

Termos em que improcedem na totalidade as conclusões do recurso.

Sumário (art. 663º, nº7, do CPCivil):

I - A concorrência de culpas num acidente de viação, nos termos do art. 570º do CCivil, pressupõe a prova de factos dos quais resulte que ambos, condutor e vítima, contribuíram para a eclosão do acidente;

II - Não se verifica a situação de concorrência de culpas, devendo ser imputado exclusivamente à vitima o acidente que consistiu no atropelamento daquela, que transitava à noite, alcoolizado, pela faixa de rodagem, por um veículo que circulava sem qualquer violação das regras estradais;

III – Admitindo-se a concorrência da culpa do lesado com o risco próprio do veículo (art. 503º, nº1 do CC), provada a culpa grave da vítima e que o acidente foi-lhe exclusivamente imputável, fica afastada responsabilidade pelo risco.

Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 12.10.2023

Ferreira Lopes (relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira (1º Adjunto)

Maria de Fátima Gomes (2ª Adjunta)