Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
431/23.8T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
SUSPENSÃO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
PRESSUPOSTOS
LIVRANÇA
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
Data do Acordão: 10/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :

É aplicável ao contrato de locação financeira, para além do que se dispõe no art. 104.º do CIRE, o princípio geral (constante do art. 102.º do CIRE) sobre os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso e não o regime específico constante do art. 108.º do CIRE, ou seja, declarada a insolvência, o cumprimento dos contratos de locação financeira em curso fica suspenso.

Decisão Texto Integral:

Processo: 431/23.8T8LSB.L1.S1

6.ª Secção

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. Relatório

NCV – TRANSPORTES, LDA., com sede na Rua ..., AA, divorciado, residente na R. ..., BB, divorciada, residente na Rua ..., CC, divorciado, residente na Rua ..., DD, casada, com residência na Rua ..., e EE, solteira, maior, com domicílio na Rua ..., intentaram, nos termos dos artigos 362º e ss. do C.P.C., PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM, contra, SCALABIS-STC, S.A., com sede na Avª ..., pedindo,

“que seja ordenado à requerida que não proceda ao preenchimento de livranças subscritas pela 1ª requerente e avalizadas pelos restantes requerentes que estejam na sua posse em virtude de créditos de contratos de locação financeira mobiliária celebrados entre a 1ª requerente e a «B......... . ......... - Instituição Financeira de Crédito, S.A.»;

que seja ordenado que as referidas livranças não sejam entregues a terceiros ou caso estejam preenchidas não sejam postas em circulação nomeadamente através de endosso;

e, ainda, que seja ordenado à Requerida que se abstenha de executar judicialmente as referidas livranças.

Mais requereram a inversão do contencioso.”

Alegaram, para tal, que a 1ª requerente outorgou em 18 de Julho de 2005 com B......... . ........., Instituição Financeira de Crédito, S.A., dois contratos de locação financeira imobiliária, um com o número .....13, tendo por objeto uma escavadora de marca Daewoo, modelo S225 LC V, no valor de € 100.000,00, e outro com o número .....12, tendo por objeto um semi reboque ARB SPM com a matrícula .....91, no valor de € 40.000,00; tendo ficado acordado que a 1ª requerente pagaria o preço da aquisição dos bens e respetivos juros em 16 rendas trimestrais, constantes e antecipadas, durante o prazo do contrato, sendo que, para garantia do pagamento das prestações contratadas, a 1ª requerente subscreveu e entregou à locadora uma livrança a favor desta, com montante e data de pagamento em branco, que foi avalizada pelo 2º, 3º, 4º, 5º e 6º ora requerentes.

Sucede que, em 15/03/2007, foi declarada a insolvência da 1º requerente (tendo a partir de tal data ficado impossibilitada de proceder ao pagamento das prestações dos contratos de leasing), após o que, em tal processo de insolvência, os seus credores foram notificados para reclamarem créditos, a B......... foi indicada para a Comissão de credores da 1ª requerente e, antes da apresentação do Relatório pelo AI, existiram conversações entre este e os credores, tendo havido consenso sobre os contratos de leasing terminarem a sua vigência com a entrega dos bens às locadoras (ficando o AI de apresentar uma proposta de rescisão dos leasings na Assembleia de credores, segundo a qual a B......... aceitava receber os bens e não reclamar qualquer crédito ou direito proveniente dos contratos).

Assim, em 28/05/2008, na Assembleia de Credores da 1ª Requerente, todos os credores presentes votaram favoravelmente, incluindo a locadora «B......... . ........., S.A», a proposta do AI de rescindir os contratos de leasing, tendo o AI, em cumprimento de tal deliberação, colocado os bens locados à disposição das locadoras (não tendo a B......... procedido à sua remoção do local onde estes se encontravam: o estaleiro da 1ª requerente).

Entretanto, em 21.03.2016, a 1ª requerente recebeu uma carta do Novo Banco a comunicar que o contrato de locação financeira mobiliária que tinha por objeto o semi-reboque ARB foi resolvido com fundamento em falta de cumprimento no pagamento de prestações; e, em 19.12.2022, a 1.ª requerente recebeu uma carta da «Scalabis STC, S.A.», na qual se referia que a «L. ............ ........ .., SARL» lhe havia cedido os créditos decorrentes dos contratos de locação financeira referidos e informando-a de que, em 31 de Dezembro de 2022, caso não existisse pagamento, iria preencher as livranças, subscritas pela 1ª requerente e avalizadas pelos restantes requerentes, que tinha em seu poder, pelo valor global de € 59.475,85, sendo o capital de € 36.575,12.

Ora, segundo os requerentes, a 1ª requerente nada deve à requerida já que os contratos de locação financeira celebrados em 2005 com a B......... foram rescindidos em 2008, no âmbito de processo de insolvência, e deles não resultou qualquer crédito para a locadora em virtude da entrega a esta dos bens locados; ademais, ainda segundo os requerentes, a obrigação causal que o preenchimento das livranças na posse da requerida visa garantir encontra-se prescrita (o crédito prescreveu no prazo de cinco anos, já decorridos, por não ter existido qualquer facto interruptivo).

Concluem invocando que o preenchimento da livrança lhes causará um grande dano, designadamente e no que à 1ª requerente diz respeito, provocará a destruição do bom nome e do crédito, razões que são extensíveis aos avalistas das livranças, que são comerciantes, gerentes de sociedades e pessoas com grande atividade económica.

Foi, sem sucesso, requerida a dispensa de citação prévia, tendo sido ordenada a citação.

A requerida apresentou oposição, alegando, em síntese, que no processo de insolvência da 1ª Requerente, não obstante os credores terem votado favoravelmente a rescisão dos contratos de locação financeira, isso não veio a acontecer, sendo certo que, nos contratos dos autos, ficou estipulada a possibilidade de aquisição dos bens pelo locatário pelo valor residual, pelo que o regime legal aplicável é o disposto no artigo 108º do C.I.R.E. (e não o artigo 102º, invocado pelos Requerentes), sempre sendo devidas as rendas vencidas desde que a denúncia do contrato produziu efeitos até ao término do mesmo.

Mais dizem que, tendo a insolvência sido levantada em 2009, por efeito da procedência de embargos à insolvência, a sociedade 1ª Requerente continuou a laborar até hoje e permaneceram em dívida as rendas vencidas e não pagas até à denúncia dos contratos, correspondentes ao período que decorreu entre Abril de 2007 e Maio de 2008.

E, quanto à prescrição, dizem que os requerentes foram, em tempo, devidamente interpelados para pagamento; e que, encontrando-se os contratos já resolvidos por incumprimento, é aplicável o prazo ordinário de 20 anos.

Concluindo pela total improcedência da providência.

Foi produzida a prova requerida, tendo sido proferida decisão a “(…) julgar a presente providência cautelar totalmente improcedente, absolvendo a Requerida dos pedidos formulados.”

Inconformados, interpuseram os requerentes recurso de apelação, o qual, por Acórdão da Relação de Lisboa de 06/07/2023, foi julgado totalmente improcedente.

Ainda irresignados, interpõem os requerentes o presente recurso de revista – a que se aplica o regime especial do art.º 370.º/2 do CPC, tendo a revista sido admitida por se verificar a situação prevista no art. 629.º/2/d) do CPC (por a contradição jurisprudencial ter sido devidamente invocada pelos recorrentes, indicando o fundamento específico de recorribilidade e juntando-se certidão, com nota de trânsito, do “Acórdão Fundamento”, mais exatamente, certidão de dois Acórdãos Fundamento – de Ac. da Relação do Porto de 15/06/2015 e do Ac. da Relação de Lisboa de 26/04/2022 – por serem duas as questões/contradições invocadas) – visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que julgue procedente a providencia cautelar intentada.

Terminaram os requerentes a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

1. O douto acórdão recorrido é passível de recurso de revista, nos termos do artigo 629º, nº2, al. d), porque está em contradição com outros dos Tribunais da Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, dele não cabe recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal e não foi proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

2. O douto acórdão recorrido está em contradição com outros dos Tribunais da Relação quanto a duas questões fundamentais de direito:

A) Qual o regime aplicável a contratos de locação financeira em que o locatário seja declarado insolvente e em que o administrador da insolvência declara o não cumprimento pela massa. É de aplicar o artigo 108º do CIRE, como o fez a douta sentença recorrida , ou o artigo 104º e 102º do CIRE, como o fizeram os acórdãos fundamento?

B) Qual o prazo de prescrição das rendas devidas pelo locatário num contrato de locação financeira ? o prazo ordinário de vinte anos, como o acórdão recorrido declara, ou o prazo de cinco anos por aplicação analógica do disposto no artigo 310º do Código Civil, como o acórdão fundamento defende?

3. Quanto à primeira questão está em contradição, nomeadamente, com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.06.2015, proferido no processo nº 1393/12.2TBFLG-A.P1, em que foi relator o Exmo. Sr. Dr. Juiz Desembargador José Eusébio Almeida, cuja cópia se junta e que se encontra publicado em www.dgsi.pt;, no qual se decidiu que: 1 – O regime insolvencial do contrato de locação financeira é o previsto nos artigos 102 e 104 do CIRE e não no artigo 108 deste mesmo diploma. 2 – Sendo o insolvente o locatário, e encontrando-se ele na posse da coisa locada, aquele regime resulta da conjugação do disposto nos artigos 102 e 104, n.º 3 do CIRE.

4. Subsidiariamente, para o caso de se entender que não existe contradição com o acórdão anteriormente referido, está em contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.09.2021, proferido no processo nº 4278/15.7T8CBR-F.1.C2, em que foi relatora a Exma. Sra. Dra. Juíza Desembargadora Maria João Areias que se encontra publicado em www.dgsi.pt;, no qual se decidiu que, embora o contrato em questão nos autos não fosse um tipico contrato de locação financeira mas sim um contrato de locação de equipamentos que não concedia a faculdade de aquisição do bem pelo locatário no termo do contrato, não fica sujeito ao regime especial previsto no artigo 108.º do CIRE para o contrato de locação, ficando, antes, sujeito ao regime geral do artigo 102º do CIRE – suspensão automática do contrato e qualificação dos créditos do locador como créditos sobre a insolvência.

5. E está em contradição, o que subsidiariamente se invoca, com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.09.2017, no processo nº 326/12.0TBLSA-B.C1, em que foi relator o Exmo. Sr. Dr. Juiz Desembargador Arlindo Oliveira que se encontra publicado em www.dgsi.pt; em que foi decidido: 1. As normas que fixam as compensações a que têm direito os credores de insolventes em caso de resolução de contratos são imperativas. 2. Assim, independentemente, de existir no contrato cláusula que a fixe de modo diverso, só se podem ter em conta as compensações previstas nos artigos 102.º e seg.s do CIRE, em caso de resolução de contratos celebrados com a insolvente.3. Sendo a insolvente a locatária, o direito da credora reclamante com base no contrato de locação financeira que celebrou com a insolvente, corresponde à diferença, se positiva, entre o valor das prestações ou rendas e o valor da coisa, na data da recusa.

6. Subsidiariamente, está, ainda, em contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.10.2008, no processo nº 1759/08-1, em que foi relatora a Exma. Sra. Dra. Juíza Desembargadora Conceição Bucho que se encontra publicado em www.dgsi.pt; no qual se decidiu: I - Em matéria de efeitos da insolvência sobre os negócios em curso, o princípio geral é o de que o cumprimento fica suspenso até que o Administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento – artigo 104º, n.º 2 do CIRE.II - Nos contratos de locação financeira preexistentes e em que o insolvente é o locatário e está na posse da coisa, o efeito de recusa do administrador da insolvência, não afecta os direitos reais de credores ou terceiros – n.º 3 do artigo 102º do mesmo diploma.III - Nesse caso, os efeitos dessa recusa são os previstos na alínea c) do n.º 3 artigo 102, ex vi do disposto no n.º 4 do artigo 104º, com a ressalva contida no corpo do n.º 3 , relativa à eventual separação.

7. Quanto à questão do prazo de prescrição do direito às rendas por parte do locador num contrato de locação financeira, está em contradição com o acórdão da Relação de Lisboa de 26.04.2022 em que foi Relator o Exmo. Juiz Desembargador Edgar Taborda Lopes, publicado em www.dgsi.pt no qual foi decidido: É de aplicar analogicamente o prazo prescricional de cinco anos às rendas do contrato de locação financeira, considerando os interesses em jogo, o facto de se tratar socialmente de um contrato de financiamento (que o aproxima do mútuo) e as circunstâncias de a prestação da empresa locadora ter um carácter continuado (integrando-se num negócio considerado globalmente de natureza duradoura) e de se fazerem sentir exactamente as mesmas necessidades de evitar insolvências de devedores (não deixando que se acumulem as dívidas, de forma incontrolada e excessiva).

8. A subsunção jurídica feita em qualquer das decisões operou sobre o mesmo núcleo factual, sem se atribuir relevo a elementos de natureza acessória: contratos de locação financeira em que o locatário é insolvente e consequente determinação das normas que consignem os direitos do locador e prazo de prescrição desse tipo contratual. Verifica-se em relação a cada um dos acórdãos fundamento o requisito da “identidade da questão juridica” com o acórdão aqui recorrido.

9. Existe efectiva contradição entre os acórdão fundamento e o acórdão recorrido quanto ao regime insolvencial a aplicar aos contratos de locação financeira quando o insolvente seja o locatário e o administrador decide não cumprir, enquanto o acórdão recorrido optou pela aplicação do artigo 108º os acórdãos fundamento optaram pelo artigo 104º e 102º e esta opção, foi o determinante da solução dada a cada um dos pleitos. A decisão em cada um dos acórdãos seria a oposta caso a opção fosse pela sujeição ou não sujeição ao que determina o artigo 108º do CIRE.

10.Quanto ao prazo de prescrição das obrigações do locatário em contrato de locação financeira parece evidente a efectiva contradição entre os acórdãos. Um prazo de vinte anos ou um prazo de cinco anos.

11.Em relação ao requisito da identidade do quadro normativo, ou seja que todos os acórdãos tenham sido proferidos no dominio da mesma legislação, basta referir que a disciplina juridica decorrente da insolvência do locatário num contrato de locação financeira, prevista no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março, nomeadamente nas disposições dos artigos 102º, 104º e 108º não sofre alterações desde a data de entrada em vigor do DL n.º 200/2004, de 18 deAgosto.

12. Por outro lado, também a previsão legal dos prazos de prescrição das obrigações, contida no Código Civil, no que contende com o presente caso se manteve inalterada no período de tempo em que os acórdãos foram prolatados.

13.Por fim, sobre as questões jurídicas apreciadas nos acórdãos, quer nos acórdãos fundamento quer no acórdão recorrido, não recaiu nenhum acórdão uniformizador de jurisprudência.

14.Verificam-se, assim, todos os requisitos previstos no artigo 629º, nº 2, al. d) para que o presente recurso possa ser admitido e apreciado, sendo certo que a dupla conformidade de decisões não é obstáculo à admissão.

15.Os contratos cujo incumprimento daria causa ao preenchimento das livranças subscritas pela Requerente sociedade e avalizadas pelos demais Requerentes singulares eram contratos típicos de Locação financeira.

16.Em caso de insolvência do locatário os contratos de locação financeira ficam suspensos até que o Administrador da insolvência opte pelo seu não cumprimento, nos termos do disposto no artigo 102º, nº 1 do CIRE.

17.Nos termos do artigo 104º, nº 5 do CIRE, aplicável aos contratos de locação financeira, os efeitos da declaração de não cumprimento que o Administrador da Insolvência da Requerente sociedade emitiu e enviou à Locadora são os previstos no n.º 3 do artigo 102.º, entendendo-se que o direito consignado na respectiva alínea c) tem por objecto o pagamento, como crédito sobre a insolvência, da diferença, se positiva, entre o montante das prestações ou rendas previstas até final do contrato, actualizadas para a data da declaração de insolvência por aplicação do estabelecido no n.º 2 do artigo 91.º, e o valor da coisa na data da recusa, se a outra parte for o vendedor ou locador, ou da diferença, se positiva, entre este último valor e aquele montante, caso ela seja o comprador ou o locatário.

18.Esta norma que fixa as compensações a que têm direito os credores da insolvente, como é caso da locadora, em caso de resolução de contratos são imperativas.

19.Sendo a insolvente a ora Recorrente sociedade a locatária, o direito da Recorrida com base nos contratos de locação financeira que a sua antecessora celebrou com a insolvente, corresponde à diferença, se positiva, entre o valor das prestações ou rendas e o valor da coisa, na data da recusa.

20.Tendo os bens locados sido colocados à disposição da Locadora esta deles não tomou posse porque não quis e não os vendeu também porque não quis.

21.Enquanto não for determinado o valor dos bens locados que foram colocados à disposição do locadora não pode esta exigir da locatária insolvente ou dos avalistas o pagamento de qualquer importância.

22.É de aplicar analogicamente o prazo prescricional de cinco anos às rendas do contrato de locação financeira, considerando os interesses em jogo, o facto de se tratar socialmente de um contrato de financiamento (que o aproxima do mútuo) e as circunstâncias de a prestação da empresa locadora ter um carácter continuado (integrando-se num negócio considerado globalmente de natureza duradoura) e de se fazerem sentir exactamente as mesmas necessidades de evitar insolvências de devedores (não deixando que se acumulem as dívidas, de forma incontrolada e excessiva).

23.As obrigações que a Recorrente pretende fazer valer através do preenchimento das livranças subscritas e avalizadas pelo ora Recorrentes encontram-se, assim, prescritas e não são exigíveis.

24.Verificam-se, no caso presente todos os requisitos legais para que seja decretada a providência cautelar solicitada.

25. O douto acórdão recorrido violou o que se encontra disposto no artigo 102º e 104º do CIRE, ao decidir não fazer a sua aplicação ao caso concreto. (…)”

Contra alegou a requerida, visando a manutenção do Acórdão da Relação.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“ (…)

i. As presentes contra-alegações têm por objeto o Recurso de Revista do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, 8ª Secção, que decidiu concluir pela total improcedência do recurso interposto à sentença da primeira instância, confirmando-a.

ii. O Acórdão em crise, entendeu – ebem– não existir contradição entre os fundamentos e a decisão do tribunal a quo, porquanto decidiu “Pelo exposto, acordam, os Juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente mantém a decisão proferida em 1ª instância.”

iii.Dispõe o n. º3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil que se verifica dupla conforme sempre que o acórdão da Relação “confirme, sem votos de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância.

iv.A primeira exceção à dupla conforme é a revista extraordinária, cfr. consta aliás da primeira parte do n.º 3 do art.º 671, relativo à regra da dupla conforme. Nos termos deste n.º 3, “Sem prejuízo dos casos em que a revista é sempre admissível, não é admitido recurso de revista de acórdão da Relação que confirme (…) a decisão proferida na 1ª instância.”

v.A revista excecional, conforme previsto na alínea c) do n.º 1 do art. 672.º do CPC, é admissível quando o acórdão proferido pela Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

vi. Verifica-se, portanto, a necessidade de verificação de uma contradição objetiva entre o acórdão recorrido e o “acórdão-fundamento”, do Supremo Tribunal de Justiça ou de qualquer Tribunal da Relação, desde que transitado em julgado.

vii. Desde logo se verifica, quanto ao requisito de trânsito em julgado, que o acórdão fundamento junto pelos Recorrentes, base nuclear da admissibilidade do recurso excecional de revista, se trata de um print de uma base de dados, logo, não sendo apto para demonstrar o trânsito em julgado da decisão que se pretende fazer valer.

viii. Teria sempre, para ser admitida a revista com base na alínea c) do n.º 1, do art 672.º CPC, de ser junta certidão judicial, atestando o trânsito em julgado da decisão.

ix.Na verdade, desconhece-se em absoluto se o acórdão-fundamento sofreu qualquer alteração, o que deveria ter sido salvaguardado pelos Recorrentes.

x.Não tendo os Recorrentes promovido pela junção do único documento exigível, certificativo do trânsito em julgado, não poderá ser admitida a revista.

xi.A este propósito, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/2014, no processo n.º 194/13.5TBMTR-A.C1.S1, onde se pode ler, no sumário, “I - À semelhança do art. 721.º-A, n.º 2, al. c), do CPC, também o art. 672.º, n.º 2, al. c), do NCPC (2013), impõe ao recorrente de revista excepcional o ónus de juntar cópia certificada do acórdão-fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição sob pena de rejeição, o que se explica pelo facto de a al. c) do n.º 1 daquele artigo exigir que aquele esteja transitado em julgado.(…) II - Uma impressão de um acórdão extraída a partir de uma base de dados não garante a verificação do trânsito em julgado nem sequer a sua genuinidade.”

xii. Também sobre o mesmo tema encontramos, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 5449/12.4TBVFR-D.P1.S1 : “Um documento extraído de sítio informático não garante a coincidência entre o original e o respectivo teor e não assegura a certificação do trânsito em julgado do acórdão-fundamento, pelo que se deve considerar que, nessas situações, o recorrente de revista excepcional não cumpriu o ónus da prova (…)”.

xiii. Acontece que este – trânsito em julgado – não é o único requisito de que a lei faz depende a admissibilidade da revista excepcional com base na alínea c), n.º 1 do art. 672.º do CPC, também o são a “(… )oposição frontal quanto às questões apreciadas e não meramente implícitas ou pressupostas; haver identidade, em ambos os casos, do núcleo central da situação de facto e de normas jurídicas interpretandas ou aplicandas; a sua essencialidade para determinar o concreto resultado da decisão num e noutro dos acórdãos, isto é, para condicionar em termos decisivos a solução da questão; e, assentarem as concretas decisões em confronto em idêntico quadro normativo (…). – António A. M. Alves Velho in “Sobre a revista excepcional. Aspectos práticos”.

xiv. Os Recorrentes apresentam vários acórdãos fundamento e a verdade é que os casos em análise são distintos.

xv. A diferença basilar entre o acórdão recorrido e os acórdãos fundamento apresentados assenta no facto de existir uma cláusulano contrato de locação financeira que permite ao locatário, no termo do mesmo, adquirir o bem locado.

xvi. Repare-se, a decisão do acórdão recorrido, que ditou a aplicabilidade do Art. 108.º do CIRE, assenta na factualidade exposta nos autos.

xvii. Nomeadamente, no facto do processo de insolvência da Recorrente ter terminado, visto que não ficou provada a sua situação de insolvência.

xviii. Não esquecendo que, a Recorrente permanece na posse dos bens locados, continuando a laborar desde então.

xix. Repare-se, a decisão do acórdão recorrido que confirma a decisão do tribunal à quo, dita a aplicabilidade do Art. 108.º do CIRE, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto.

xx. Relativamente à prescrição, não apresentam os Recorrentes acórdão fundamento, alegam apenas que se deveria aplicar analogicamente o prazo de prescrição e cinco anos, consagrado no disposto no Art. 310.º, alíneas c) e e) do Código Civil.

xxi. Desta feita , não deverá o presente recurso excepcional de revista ser admitido.

xxii. Primeiramente cumpre aqui referir que os aqui Requerentes celebraram com o B......... . ......... Instituição Financeira de Crédito, S.A. um contrato de locação financeira mobiliária, pelo preço de 100.000,00€, no âmbito do qual foi locado o seguinte bem: Escavadora, de marca DAEWOO e modelo S225 LC-V – Contrato nº .....13 (com o ID Externo ...........36).

xxiii. Tendo sido subscrita uma Livrança em branco pela aqui NCV – Transportes, Lda. e avalizada pelos aqui Requerentes CC, DD, EE e FF e GG, para garantia e segurança do bom e pontual cumprimento das obrigações decorrente do mesmo.

xxiv. Na mesma data, foi também celebrado entre as mesmas partes, um contrato de locação financeira mobiliária pelo preço de 40.000,00 €, no âmbito do qual foi locado o seguinte bem: Semi-Reboque, de marca ARB e modelo SPM 3D/8.95 ES Reboque, com a matrícula ......91 – Contrato nº ......2 (com o ID Externo ...........35).

xxv. No âmbito do referido contrato, foi subscrita uma Livrança em branco pela aqui NCV – Transportes, Lda. e avalizada pelos aqui Requerentes CC, DD, EE e FF e GG, para garantia e segurança do bom e pontual cumprimento das obrigações decorrente do mesmo.

XXVi. Emambos os casos, ao B......... era reservado o direito depreencher as respetivas Livranças entregues em branco, podendo fixar o montante e data de vencimento em momento que considerasse oportuno.

XXViii. Acontece que em 15/03/2007, foi decretada a insolvência da primeira Requerente. Tendo sido realizada a Assembleia de Credores no dia 28-05-2008, resultando da ata da mesma o seguinte “pelos credores presentes/representados foi deliberado por unanimidade que o Sr. Administrador de Insolvência procederá, no prazo de uma semana à rescisão de todos os contratos de leasing (mobiliários e imobiliários) com o BPN Crédito, Besleasing e BCP Leasing”.

XXiX. Da leitura da ata, verifica-se que nada é dito quanto à denúncia dos contratos com a aqui requerida, muito menos quanto ao alegado entendimento de que o B......... se consideraria totalmente ressarcido quanto aos créditos em questão contra a entrega dos bens locados, nada mais lhe sendo, por isso, devido.- Tal não consta da referida ata, porque não aconteceu!

XXX. Ademais, se efetivamente tivesse existido qualquer tipo de acordo entre o B......... e o Administrador de Insolvência, em que o primeiro se consideraria totalmente ressarcido contra a entrega dos bens locados, não faria sentido sequer o credor fazer representar-se na Assembleia nem sequer permanecer como credor nos autos e votar inclusivamente propostas apresentadas.

XXXi. No mais, o certo é que - pelo que é conhecimento da Requerida - os bens locados não foram entregues pelos Requerentes, tendo o Novo Banco vindo a encetar as diligências necessárias para entrega dos mesmos.

XXXii. Estabelece o artigo 102.º do CIRE o princípio geral da suspensão do cumprimento quanto aos negócios ainda não cumpridos até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento dos mesmos.

XXXiii. Repare-se que o referido preceito legal apenas se aplica nos casos em que não seja previsto um normativo especial, conforme se retira da letra da lei: “sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes (…)” – Artigo 102.º, nº 1 do CIRE.

XXXiV. No caso em apreço, a lei prevê uma solução específica. Ora vejamos,

XXXV No âmbito do contrato em apreço, ficou estipulado entre as partes a possibilidade (sublinhado nosso) de aquisição dos bens pelo locatário, no termo do contrato ou até antes do mesmo.

XXXVi. Consta da Cláusula Décima, número 1, alínea c) sob a epígrafe TERMO DO CONTRATO: “1. O Locatário poderá, no termo do CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA, optar por: c) adquirir o BEM LOCADO pelo seu valor residual, tal como fixado nas cláusulas particulares, acrescido do imposto que for devido.”

XXXvii. E quando assim é, entende igualmente a nossa jurisprudência, que o regime a aplicar é o regime especial previsto no artigo 108.º do CIRE e não o geral previsto no art. 102.º do CIRE do mesmo código.

XXXViii Neste sentido o Ac. do TR Coimbra de 07/09/2021, Processo nº 4278/15.7T8CBR-F.1.C2, disponível em http://www.dgsi.pt/: “Um contrato de locação de equipamentos que não concede a faculdade de aquisição do bem pelo locatário no termo do contrato, não fica sujeito ao regime especial previsto no artigo 108.º do CIRE para o contrato de locação, ficando, antes, sujeito ao regime geral do artigo 102º do CIRE – suspensão automática do contrato e qualificação dos créditos do locador como créditos sobre a insolvência.”

xxxix. Ora, o contrato em apreço previa a possibilidade ao locatário de adquirir o bem locado.

xl. Nestes termos, determina o n. º1 do artigo 108.º do CIRE que a “A declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador por sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior.”

xli. É por isto que a sentença do tribunal a quo, estabelece “(…) para os contratos de locação, a lei da insolvência prevê uma solução específica, que é consequência, eminentemente, do facto de os bens em causa nesse contrato serem propriedade da locadora e não da massa. De facto, dispõe o artigo 108º do C.I.R.E., para os casos de locação em que o locatário é o insolvente: «1 - A declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias (…). 3 - A denúncia do contrato pelo administrador da insolvência facultada pelo n.º 1 obriga ao pagamento, como crédito sobre a insolvência, das retribuições correspondentes ao período intercedente entre a data de produção dos seus efeitos e a do fim do prazo contratual estipulado, ou a data para a qual de outro modo teria sido possível a denúncia pelo insolvente (…). 5 – Não tendo a coisa locada sido ainda entregue ao locatário à data da declaração de insolvência deste, tanto o administrador da insolvência como o locador podem resolver o contrato, sendo lícito a qualquer deles fixar ao outro um prazo razoável para o efeito, findo o qual cessa o direito de resolução.»”

xlii. Neste sentido, é salientado no Acórdão da Relação de Coimbra 07.09.2021 (www.dgsi.pt), citado pela Requerida, ao explicitar o âmbito de aplicação do artigo 108º do C.I.R.E.: «A declaração de insolvência não afecta, em si mesmo, o contrato de locação em que o insolvente é arrendatário, conferindo, tão só, ao administrador de insolvência a possibilidade de lhe por termo mediante denúncia. (…) A razão de ser para tal regime [é que] uma vez que o locatário continua a usufruir do gozo do bem, deverá continuar a pagar a respectiva renda ou aluguer, como crédito sobre a massa (art. 51º, n.º 1, e) e f)). Quanto ao locador, o n.º 4 limita a faculdade de resolução do contrato que lhe caberia, não permitindo a resolução com fundamento na falta de pagamento de rendas ou alugueres relativos ao período anterior a essa declaração ou na deterioração da situação financeira do locatário. (…) E é também na atribuição da faculdade ao Administrador de Insolvência, não de execução ou incumprimento (como no artigo 102º), mas de denúncia do contrato, figura privativa dos contratos duradouros, que se renovam por vontade (real ou presumida) das partes ou por determinação da lei ou que foram celebrados por tempo indefinido, que encontraremos o seu campo de aplicação».

xliii. Resulta do supracitado que seriam sempre devidas as rendas vencidas desde que a denúncia dos contratos em apreço produziu efeitos até ao término acordado do mesmo.

xliv. Acontece que, conforme se retira da letra da lei “A declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário” - nº 1 do Artigo 108.º do CIRE.”

xlv. E, no mais, o processo de insolvência em apreço terminou em 2009, não tendo sido provado que a sociedade NCV – Transportes, Lda. se encontrava em situação de insolvência, por não se entender que a mesma estava impossibilitada de cumprir com a generalidade das suas obrigações, decidiu-se não declarar a insolvência da sociedade em apreço.

xlvi. Sendo certo que a referida sociedade continua na posse dos bens, a laborar e a prestar contas até os dias de hoje, ou seja, volvidos 14 anos.

XlVii Motivo pelo qual, o Acórdão recorrido decidiu “In casu, a obrigação da 1ª requerente, é fraccionada quanto ao seu cumprimento, mas unitária em si mesma já que cada uma das prestações a cujo pagamento se obrigou reconduz-se a uma fracção do montante global, previamente definido, a reembolsar ao locador. Satisfeitas as prestações e pago o valor residual, o locatário adquire a propriedade do bem. Assim e levando em conta tais características, teremos de concluir pela aplicabilidade ao caso do art.108º do CIRE e não o art.102º como defende a requerente.”

XLviii. Vêm ainda os recorrentes alegar que a obrigação se encontra prescrita, porquanto se aplica analogicamente o prazo prescricional de cinco anos às rendas do contrato de locação financeira.

XLiX. sentença proferida no tribunal a quo diz-nos que “o crédito que a Requerida eventualmente pretenderá fazer valer através do preenchimento das livranças não está prescrito: não só porque as rendas devidas no âmbito do contrato de locação financeira, designadamente após a resolução do contrato operada pela locadora (cf. ponto 10. dos factos indiciariamente provados) estão sujeitas ao prazo de prescrição ordinária, mas também na medida em que, nos termos do artigo 91º, n.º 1 do C.I.R.E., a declaração de insolvência implica o vencimento de todas as obrigações, incluindo as que se vencem periodicamente ou as de cobrança fraccionada.”

L Tendo sido esse o entendimento perfilhado no Acórdão recorrido “De facto, as rendas da locação financeira não se enquadram na previsão da alínea b) do artigo 310.º, porque são diferentes das da locação e também não cabem na alínea e), porque são diferentes das do contrato de mútuo com juros. Daqui se há-de retirar que o prazo prescricional a aplicar é aquele previsto no art.309ºdo CCivil, ou seja, o prazo de vinte anos.”

li.A locação financeira “é o contrato pelo qual é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”, cfr. artigo 1º do DL 149/95, de 24/06.

lii.Como se verifica, o contrato de locação financeira não é uma compra e venda porque a propriedade se não transfere por mero efeito do contrato, mas também não é uma locação típica, pois o locatário tem o direito de acabar por adquirir o respetivo bem.

liii. Desta feita, a renda a cujo pagamento o locatário fica vinculado não corresponde ao valor locativo do bem, que não é a contrapartida da sua utilização, pois deve permitir, dentro do período da vigência, a amortização do bem locado e cobrir os encargos e a margem de lucro do locador por forma a facultar ao locatário, findo o prazo do contrato, a aquisição do bem pelo seu valor residual

liv. Ou seja, o locador e o locatário ajustam uma retribuição fixa como contrapartida da cedência do uso da coisa objeto da locação.

lv. Assim sendo, na locação financeira acaba por existir uma obrigação única dodevedor, correspondente ao custo do bem, encargos e margem de lucro, com prestações fracionadas no tempo.

lvi. Veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05-06-2003, Processo nº 4372/2003-6, disponível em http://www.dgsi.pt/: “3. Além disso, na locação as rendas são prestações periódicas correspondentes a períodos sucessivos, dependentes da duração do contrato, em termos de desaparecido o bem, desaparecer a obrigação; pelo contrário, na locação financeira há (economicamente) uma obrigação única do devedor, correspondente ao custo do bem, encargos e margem de lucro, com prestações fraccionadas no tempo. 4. Logo as rendas de locação financeira não têm, portanto, a natureza das rendas locatícias, razão por que o prazo quinquenal da prescrição estabelecido no artigo 310º, n.º 1, al. b) do CC não é aplicável às rendas emergentes do contrato de locação financeira, às quais se aplica antes o prazo ordinário da prescrição (20 anos) estabelecido no artigo 309º do mesmo Código”

lvii. Neste seguimento, veja-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-03-2005, Processo 05B378, disponível em http://www.dgsi.pt/: “1. O contrato de locação definido pelo artigo 1.022º do Código Civil e o contrato de locação financeira definido pelo artigo 1º Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, não têm natureza jurídica idêntica. 2. As "rendas" relativas ao contrato de locação financeira são todos os encargos - custos, juros, riscos do crédito, margem de lucro do locador e outras despesas - que representam uma obrigação única, embora possa ser paga por forma repartida por tempo certo. 3. Logo, à obrigação de as pagar, não se aplica o regime de prescrição quinquenal previsto pelo artigo 310º, alíneas b) e d), do Código Civil, mas o regime do prazo geral de prescrição, na falta de lei especial que disponha de forma diferente.”

lviii. Desta feita, não se entende o alegado pelos Recorrentes quando dizem “É de aplicar analogicamente o prazo prescricional de cinco anos às rendas do contrato de locação financeira, considerando os interesses em jogo, o facto de se tratar socialmente de um contrato de financiamento (que o aproxima do mútuo) e as circunstâncias da empresa locadora ter um carácter continuado (integrando-se num negócio considerado globalmente de natureza duradoura) (…)”

lix. Porquanto é inequívoca a orientação do Supremo Tribunal de Justiça!

lx.Veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-01-2010, Processo nº 2843/06.2TVLSB.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/: “I - É aplicável à prescrição das rendas do contrato de locação financeira ou leasing o prazo geral de 20 anos (art. 309.º do CC) e não o prazo especial e próprio do contrato de locação de 5 anos (art. 310.º, al. b), do CC). II - As rendas no contrato comercial de locação financeira não representam, apenas, a contrapartida da utilização de um bem locado, antes relevam, na sua composição, o valor decorrente da amortização do capital investido, isto é, o custo do bem, a gestão e os riscos próprios e inerentes da dita operação financeira. III - No contrato de locação civil (art. 1022.º do CC), as rendas constituem obrigações periódicas, reiteradas ou com trato sucessivo. IV - Na locação financeira, ao invés, as rendas reconduzem-se a uma única prestação, pois que o seu objecto se encontra pré-fixado e apenas é fraccionado quanto ao seu cumprimento. V - Face a essa diferente natureza, em que o factor tempo não é relevante, como justificação do prazo curto de 5 anos, por ele apenas se relacionar com o modo da sua execução e dele não depender para a fixação do seu objecto, não se justificaria, pois, aplicação às rendas da regra de prescrição definida no art. 310.º, al. b), do CC.”

lxi. Veja-se que o Acórdão recorrido acompanha o alegado pela aqui requerida “Assim, e seguindo a orientação jurisprudencial do nosso Supremo Tribunal, também se entende conforme se escreve no Ac.STJ de 13.10.2022 «O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado constantemente que deve distinguir-se entre os alugueres ou rendas devidos por causa de um contrato de locação e as rendas devidas por causa de um contrato de locação financeira: I. — Os alugueres ou rendas devidos pelo locatário por causa de um contrato de locação representam simplesmente a contrapartida da utilização de um bem; correspondem a prestações periódicas ou reiteradas II. — As rendas devidas pelo locatário por causa de um contrato de locação financeira não representam simplesmente a contrapartida da utilização de um bem (da utilização do bem locado), “relevando […] na sua composição, o valor correspondente à amortização do capital investido, isto é, [o] custo do bem, os custos de gestão e os riscos próprios da locação financeira”; correspondem a uma prestação única, “embora possa ser paga por forma repartida por tempo certo». (…)”

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto

Nas Instâncias, foi considerada indiciariamente demonstrada a seguinte matéria de facto:

1. A 1ª Requerente outorgou em 18 de Julho de 2005 com a «B......... . .......... ..... ....», dois contratos de locação financeira mobiliária, um com o n.º ....13 tendo por objeto uma escavadora de marca Daewoo, modelo S225 LC V, no valor de € 100.000,00; e outro com o número ......2 que tinha por objeto um semi-reboque ARB SPM com a matrícula .....91, no valor de € 40.000,00.

2. Nos termos de tais contratos, ficou acordado que a 1ª requerente pagaria o preço da aquisição dos bens e respetivos juros em 16 rendas trimestrais, constantes e antecipadas, durante o prazo do contrato.

3. Para garantia do pagamento das prestações contratadas a 1ª requerente subscreveu e entregou à locadora uma livrança a favor desta, com montante e data de pagamento em branco, que foi avalizada pelo 2º, 3º, 4º, 5º e 6º ora requerentes.

4. Em 15.03.2007 pelo então 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Cartaxo, foi declarada a insolvência da 1ª requerente – cf. doc. 3 junto com o requerimento inicial.

5. No âmbito dessa insolvência, os credores da 1ª requerente foram notificados, nos termos da lei, para reclamarem créditos e a B......... foi indicada para a Comissão de credores da 1ª requerente, tendo aceitado o cargo.

6. Em 28.05.2008, no Tribunal Judicial do Cartaxo, realizou-se a Assembleia de Credores da 1ª Requerente onde esteve presente a B......... . ........., S.A., representada pelo Sr. HH, que apresentou credencial.

7. Nesta Assembleia, todos os credores presentes votaram favoravelmente, incluindo a locadora «B......... . ........., S.A», a proposta do Sr. Administrador de rescindir os contratos de leasing – cf. doc. 4 junto com o requerimento inicial.

8. Em cumprimento da decisão tomada pelos credores de rescindir os contratos de locação financeira imobiliária o Sr. Administrador de insolvência colocou os bens locados à disposição das locadoras.

9. O AI da 1ª Requerente enviou à B......... uma carta, datada de 04.06.2008, com o seguinte conteúdo, além do mais que ora se dá por reproduzido:

«Assunto:

Insolvência de NCV (…) Conforme é do conhecimento de V.Exa., no dia 28 do passado mês de Maio, realizou-se a Assembleia de Credores de Apreciação do Relatório a que alude o artigo 155º do C.I.R.E.. Na mesma (…) foi deliberado (…) pela não execução dos contratos de locação financeira mobiliária n.ºs 2015712 e 201713, celebrados entre a ora insolvente e essa instituição. (…) venho, nos termos do art. 102º do C.I.R.E., comunicar a V.Exa. que a massa não vai cumprir os referidos contratos. Posto isto, desde me disponibilizo para (…) proceder a entrega das máquinas/equipamentos objecto dos contratos em causa (…).»

10. Em 21.03.2016, a 1ª requerente recebeu uma carta do Novo Banco, S.A. a comunicar que o contrato de locação financeira mobiliária que tinha por objecto o semi-reboque ARB foi resolvido com fundamento em falta de cumprimento no pagamento de prestações (doc. 5).

11. Depois de vários contactos telefónicos que foram inconclusivos a 1ª requerente respondeu por escrito informando que deveria haver um lapso por parte do Banco tendo em conta a situação de insolvência na data de vencimento das prestações ditas incumpridas e a deliberação da Assembleia de credores em extinguir os contratos (doc. 6).

12. Em 28.02.2019, a 1ª requerente recebeu de uma sociedade com a firma «A...... ......., Lda.» uma carta registada com aviso de recepção na qual era informada que o «Novo Banco» e «Banco Best» haviam cedido a «L. ........... ........ .., SARL» todos os «créditos e direitos, títulos e juros, bem como todas as importâncias a liquidar» emergentes dos contratos AA .........35 e AA .........36 (doc. 7).

13. Apesar de não ser possível fazer a correspondência entre os créditos ditos cedidos e os contratos de locação financeira celebrados em 2005 com a B........., a requerente enviou uma carta à «A...... .......», em 20.03.2019, na qual, prevenindo a hipótese de os créditos cedidos serem coincidentes informava que não era devedora de qualquer importância dado o facto de os contratos terem sido extinguidos no âmbito do processo de insolvência (doc. 8).

14. Em 19.12.2022, a requerente recebeu uma carta enviada pela Dra. II, na qualidade de mandatária de «Scalabis STC, S.A.», na qual se referia que a L. ........... ........ .., SARL havia cedido o crédito à mandante. Mais informava que, em 31.12.2022, a Scalabis iria preencher as livranças, subscritas pela 1ª requerente e avalizadas pelos restantes requerentes, que tinha em seu poder pelo valor global de € 59.475,85, sendo o capital de € 36.575,12, caso entretanto não existisse pagamento (doc. 9).

15. O processo de insolvência da 1ª Requerente terminou em 2009, após terem sido julgados procedentes os embargos deduzidos por diversos credores da sociedade, continuando a mesma a laborar e a prestar contas até à atualidade.

16. A declaração de insolvência causou à Requerente prejuízo reputacional e ainda hoje luta para conseguir ultrapassar todas as vicissitudes que a mesma lhe causou, reconstruindo o seu bom nome e crédito no giro comercial.

17. Os demais Requerentes, avalistas das livranças, são tidos no meio empresarial em que se movimentam como pessoas sérias, honradas e de boas contas.

18. O preenchimento das livranças e sua consequente execução é suscetível de lesar o bom nome dos Requerentes e causar-lhes sentimentos de angústia, incerteza e vergonha.

19. Os Requerentes foram interpelados, mais do que uma vez, para pagamento das rendas vencidas e não pagas referentes ao período entre a declaração de insolvência e a denúncia dos respetivos contratos, decidida na Assembleia de Credores, a saber, entre 20.04.2007 e 20.04.2008 (contrato n.º .....12) e entre 20.05.2007 e 20.05.2008 (contrato n.º .....13), através de missivas escritas que foram pelos mesmos recebidas.

20. Os bens objeto dos contratos de locação financeira só vieram a ser removidos das instalações da Requerente por efeito da ordem de apreensão emitida por decisão judicial de 29.09.2022 no âmbito da providência cautelar proposta no Tribunal Judicial de Santarém – Juízo Central Cível de Santarém, no âmbito da qual a ora Requerente foi citada em 13.04.2023 – cf. certidão de 20.04.2023 (ref. 35742485).

*

III – Fundamentação de Direito

Estamos num procedimento cautelar comum – providência segundo a qual (nos termos do art. 362.º/1 do CPC) “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado” – o que significa que o seu requerente, nos termos de tal preceito e do art. 365.º/1 do CPC, deve oferece prova sumária do direito ameaçado e justificar o receio da lesão (para além da providência requerida dever ser adequada para evitar a lesão; de não ser o prejuízo resultante da concessão da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar; e de não existir uma providência específica que acautele o direito ameaçado).

Tendo isto presente, as Instâncias começaram pela apreciação do primeiro pressuposto referido e, considerando que os requerentes não fizeram prova sumária do direito ameaçado, não avançaram, naturalmente, na apreciação dos restantes pressupostos, logo julgando improcedente a presente providência cautelar.

O que significa, circunscrevendo a presente revista, duas coisas:

- que apenas aqui está em causa o primeiro pressuposto, ou seja, saber se os requerentes fizeram (ou não) prova sumária do direito ameaçado; e

- que, caso não acompanhemos a referida posição das Instâncias, o desfecho da revista não será a procedência da providência cautelar, uma vez que é vedado ao Supremo, nos termos do art. 679.º do CPC (que ressalva a aplicação ao recurso de revista do disposto no art. 665.º do CPC), substituir-se ao Tribunal da Relação (e conhecer dos pressupostos não apreciados nas Instâncias por a sua apreciação ter ficado prejudicada, nas Instâncias, pela solução dada à apreciação dada ao 1.º pressuposto).

E começamos por fazer tal observação por, antecipando o desfecho da presente revista, ser exatamente este o caso, isto é, não acompanhamos a referida posição das Instâncias: os requerentes, a nosso ver, fizeram prova do direito ameaçado.

Vejamos (debruçando-nos então sobre o primeiro pressuposto da providência cautelar comum intentada):

Alegam os requerentes que nada devem à requerida e que esta, tendo na sua posse livranças por eles assinadas (subscritas pela 1.ª requerente e avalizadas pelas restantes requerentes) em branco, as pretende preencher e acionar contra os requerentes.

E para justificar que nada devem à requerida, alegam os requerentes – que não contestam haver-se obrigado cambiariamente, ao assinar as livranças – que a relação subjacente/causal às livranças está extinta, não sendo fonte de qualquer obrigação a que eles se encontrem adstritos.

É pois no plano subjacente/causal às livranças, isto é, nas vicissitudes sofridas pelos contratos de locação financeira, que os requerentes “colocam/discutem” a inexistência de qualquer dívida em relação à requerida e – é um aspeto que não está explicitamente abordado/sublinhado nos autos – a requerida aceita que toda a discussão se faça estritamente em tal plano, invocando que o crédito, que diz ter sobre os requerentes, decorre dos contratos de locação financeira e que passou para a sua titularidade por cessão de créditos (tendo-lhe as livranças sido entregues para garantir tal crédito decorrente de tal relação subjacente).

Vem esta observação a propósito do seguinte:

Da mera colocação da assinatura numa letra/livrança decorre, segundo a LU, um significado jurídico-negocial (um efeito de direito) preciso, o qual confere ao portador de tal letra/livrança o exercício do respetivo direito cambiário (o direito de exigir o pagamento de uma quantia em dinheiro com a simples apresentação da letra/livrança), nada mais tendo de alegar ou provar; sendo a partir daqui, desta significativa vantagem (uma vez que há como que uma “inversão do ónus da prova”), que ao devedor cambiário cabe o ónus de alegar e provar aquilo que genericamente se designa como a “falta de causa”.

Efetivamente, quando um litígio envolve letras ou livranças, temos a relação fundamental, o instrumental negócio cambiário e, “no meio”, a “explicar” a função económico-social desempenhada pelo negócio cambiário, a convenção executiva, situando-se a “falta de causa” nas relações obrigacionais extracartulares (plano extracartular) geradas pela convenção executiva e pela relação fundamental (relações obrigacionais estas cuja disciplina não consta da LU); plano extracartular este que, porém, o devedor cambiário só poderá invocar se se encontrar ligado por relações pessoais ao credor cambiário que concretamente o demanda – se estiverem nas relações imediatas, com o sentido de participarem numa mesma convenção executiva – para além da hipótese prevista no art. 17.º da LU (aplicável às livranças, ex vi art. 77.º da LU), segundo o qual as pessoas acionadas em virtude duma livrança podem opor ao portador mediato da mesma (no caso, a requerida) as exceções fundadas sobre as relações pessoais com o tomador da livrança se o portador mediato (no caso, a requerida) ao adquirir a livrança “tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor”.

Sucede – é onde se pretende chegar – que, como já se referiu, a requerida não sustenta/mantém ser credora dos requerentes por se portadora de livranças por eles assinadas (e em razão da “abstração” das obrigações cambiárias assumidas pelos requerentes), mas sim por ser credora dos mesmos no plano da relação fundamental de locação financeira que lhe foi cedida (razão pela qual as livranças continuam a valer como garantia para o pagamento do crédito fundamental), pelo que vale o disposto no art. 585.º do C. Civil – segundo o qual “o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão – e não o que se acabou de referir sobre o modo como as coisas funcionam e se colocam quando alguém assina uma livrança e a mesma está na posse dum portador mediato (como é o caso da requerida), ou seja, não “vale” o disposto no art. 17.º da LU.

Em síntese, a discussão jurídica havida nos autos, apenas no estrito plano da relação fundamental/subjacente (embora com livranças em branco “pelo meio”, na posse dum portador mediato e sem ter sido invocado que este “procedeu conscientemente em detrimento do devedor”), não merece qualquer censura.

Assim colocada a questão – no estrito plano da relação fundamental/subjacente – há que afirmar que, dos factos, emerge que a requerida não tem qualquer crédito sobre os requerentes (ou melhor e mais exatamente, emerge que a requerida não tem um crédito de que se possa dizer que o respetivo pagamento foi garantido pela entrega das livranças em causa).

As livranças, assinadas em branco, não se discute, foram entregues (em 18/07/2005) à tomadora B......... para garantir o pagamento das rendas de dois contratos de locação financeira (em que a 1.ª requerente era locatária e a B......... a locadora).

Entretanto, estando em curso/execução tais dois contratos de locação financeira, sucedeu o seguinte:

A 1.ª requerente foi declarada insolvente em 15.3.2007; e

Com a data de 4.6.2008, o Administrador de Insolvência enviou à B......... uma carta, comunicando que, nos termos do art. 102º do C.I.R.E., a massa não iria cumprir os dois contratos de locação financeira (tendo-se na referida carta disponibilizado para proceder à entrega das máquinas/equipamentos objeto dos dois contratos em causa).

E a questão jurídica que, em 1.º lugar, se coloca – que está abundantemente identificada no Acórdão recorrido e nas alegações de recorrentes e recorrida – tem a ver com a aplicação ou não do art. 102.º do CIRE ao contrato de locação financeira.

A tal propósito, discorre-se no Acórdão recorrido:

“ (…) o artigo 102º do CIRE convocado pelos apelantes, estabelece um regime geral para os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso, relativamente a «qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja total cumprimento, nem pelo insolvente nem pela outra parte».

(…)

Em tal caso, os contratos abrangidos por esta disposição legal, ficam com o seu cumprimento suspenso até que o AI declare que opta pela execução do contrato ou pela recusa do cumprimento, constituindo os créditos do contraente não insolvente meros créditos sobre a insolvência, caso o administrador opte pela recusa do cumprimento (als. c) e d) do nº3). Opera, nesse caso e desde logo uma suspensão dos contratos.

Porém, nem todos os negócios incumpridos estão sujeitos a tal regime já que no CIRE vêm previstos regimes específicos para outras situações e, para o que ao caso sub judice diz respeito, cumpre atentar no preceituado nos artigos 104º a 108º do CIRE.

(…)

Este preceito legal (o 104.º) prevê as situações dos contratos de compra e venda com reserva de propriedade mas, também, a situação dos contratos de locação financeira e de locação com a cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas as rendas acordadas. Já os arts. 108º e 109º prevêem a regulação de situação diversa. Aqui pretende regular-se os efeitos da declaração de insolvência sobre o «contrato de locação», o primeiro no caso de insolvência do locatário e o segundo nos casos em que é insolvente o locador. (…)

Na verdade, a declaração de insolvência não afeta, o contrato de locação, em que o insolvente é locatário apenas conferindo, ao administrador da insolvência a possibilidade de lhe pôr termo mediante denúncia. (…)

O facto de a locação financeira poder ser qualificada como um contrato atípico, tal não significa que o mesmo vá recair, sem mais, no regime «geral» previsto no artigo 102º, como pretendem os apelantes, havendo que aferir, partindo da ponderação de interesses efetuada pelo legislador, de entre o regime previsto no art. 102º, ou o que dos artigos 102º e 104º resulta para o contrato de compra e venda com reserva de propriedade e contratos análogos, ou do regime previsto no artigo 108º para a locação comum, qual o regime que melhor se adaptará ao contrato em apreço, tendo em vista as suas características específicas.

E o artigo 104º do CIRE, estabelece um regime especial fazendo depender expressamente a sua aplicabilidade ao contrato de locação da existência de «cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas pactuadas».

Vejamos, então, se aos contratos de locação financeira aqui em causa tem aplicação o regime «geral» previsto no artigo 102º ou o regime especial previsto no art.108º.

Não sofre dúvidas que os contratos de locação celebrados e dados como provados em 1, resulta que à requerente locatária era permitido no final dos contratos, adquirir os bens locados.

Para optarmos pela aplicação de um regime ou outro, haverá que atentar nas diferenças essenciais nas soluções encontradas em cada um deles – o artigo 102º prevê a suspensão do cumprimento do contrato até que o administrador declarar se opta pela sua execução ou recusa o cumprimento; o artigo 108º estabelece a manutenção do contrato até ao momento em que o administrador opte pela sua extinção mediante denúncia – e nas razões pelas quais o legislador fez questão de dele se afastar no contrato de locação.

(…)

In casu, a obrigação da 1ª requerente, é fracionada quanto ao seu cumprimento, mas unitária em si mesma já que cada uma das prestações a cujo pagamento se obrigou reconduz-se a uma fração do montante global, previamente definido, a reembolsar ao locador. Satisfeitas as prestações e pago o valor residual, o locatário adquire a propriedade do bem. Assim e levando em conta tais características, teremos de concluir pela aplicabilidade ao caso do art.108º do CIRE e não o art.102º como defende a requerente.

Nos termos do nº1 do artigo 108º, a declaração de insolvência do locatário não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja o locatário, mas o administrador pode denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, sendo que, se o não fizer, o direito às rendas que se vençam após a declaração de insolvência constitui crédito sobre a massa. Sendo assim, se os créditos reclamados forem integrados no artigo 108º, não há dúvida que a requerida terá direito às rendas vencidas entre 15.3.2007 (data da declaração de insolvência) e 4.8.2008, data em que produziu efeito a denúncia do contrato por parte do A.I.. Estando o contrato de locação financeira em vigor à data da declaração de insolvência, esta não tem efeito sobre tal vigência, em conformidade com o citado art. 108º, n.º 1 do C.I.R.E.. (…)

Aliás, não se compreende a respeito a declaração da requerida de resolução do contrato por falta de cumprimento das prestações acordadas quando e conforme flui dos factos dados como provados, o contrato já havia cessado por força da declaração do Sr. A.I. que produziu efeitos sessenta dias após a sua transmissão.

De todo o exposto não pode deixar de considerar-se, em consonância com o decidido em 1ª instância que assim, fica por demonstrar, ainda que indiciariamente, o direito que os requerentes pretendiam fazer valer com a presente providência.

Compreende-se o raciocínio: enquanto o AI não optar pela extinção do contrato, continua na disponibilidade do locatário financeiro o gozo da coisa, pelo que, correspetivamente, ao locador financeiro deve continuar a ser reconhecido o direito ao pagamento das rendas na íntegra, solução esta que também encontrará razão de ser na necessidade de proteger o interesse da massa insolvente.

O caso dos autos – em que a sentença de declaração de insolvência da 1.ª requerente acabou por ser revogada (em virtude da procedência dos embargos)1 e a insolvente “continuou a laborar (…) até à atualidade” (ponto 15 dos factos), atividade operacional esta em que, certamente, continuou a incluir as utilidades decorrentes do gozo que lhe era disponibilizado pela escavadora e pelo semi-reboque (que só foram removidos das suas instalações após decisão judicial de 29/09/2022) referidos no ponto 1 dos factos provados – até poderá ser um bom exemplo da possível existência de tal interesse.

Compreende-se pois que a solução de a declaração de insolvência não suspender o contrato de locação financeira em que o locatário é o insolvente (como o art. 108.º estabelece para a locação em que o locatário é o insolvente) seja, de lege ferenda, inteiramente apropriada e não dissonante.

Só que, de lege data, não tem tal solução suporte.

Como é sabido, uma coisa é a locação e outra, diversa, a locação financeira.

Locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa mediante retribuição” (art 1022.º do CC); e “locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o preço acordado, por um preço determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios fixados” (art. 1º do DL 149/95, de 24 de Junho).

E sem prejuízo de ser dogmaticamente discutível a natureza jurídica da locação financeira, o certo é que não estamos perante um contrato de locação (são vários os aspetos do regime jurídico da locação financeira que a afastam da mera locação), mas sim perante um contrato nominado misto de compra e venda e locação ou um contrato de crédito sui generis ou um contrato de crédito com caraterísticas específicas (como defende Gravato de Morais, Manual da Locação Financeira, pág. 238/232).

O que significa – não sendo a locação financeira uma “mera locação” – que o art. 108.º do CIRE (em cuja letra apenas está explicitamente prevista a locação) só poderá ser aplicado à locação financeira por interpretação extensiva, ou seja, por se entender que o legislador (do CIRE) exprimiu/formulou o seu pensamento de forma estreita, aludindo tão só a locação quando queria compreender (e contemplar com a solução do art. 108.º do CIRE) todos os contratos de que resultem relações duradouras.

Ora – é o ponto – um tal possível entendimento (ter-se o legislador do CIRE exprimido de forma estreita no art. 108.º) é claramente afastado pelo que o legislador dispôs no art. 104.º/3 do CIRE (e também no art. 104.º/5).

O art. 104.º/3 do CIRE, clarifica-se, não é aqui, ao que está sob discussão, chamado à aplicação, porém, o que nele se dispõe – daí a sua convocação – exprime um pensamento legislativo que vai contra a aplicação do art 108.º do CIRE (ou seja, que vai contra a não suspensão contratual) ao contrato de locação financeira.

Diz-se no art. 104.º/3 do CIRE que, “sendo o comprador ou o locatário o insolvente, e encontrando-se ele na posse da coisa, o prazo fixado ao administrador da insolvência, nos termos do n.º 2 do artigo 102.º, não pode esgotar-se antes de decorridos cinco dias sobre a data da assembleia de apreciação do relatório, salvo se o bem for passível de desvalorização considerável durante esse período e a outra parte advertir expressamente o administrador da insolvência dessa circunstância”.

E tal remissão para o art. 102.º/2 do CIRE, o qual, por sua vez, vem no seguimento do que antes se dispõe no art. 102.º/1 do CIRE, significa, muito simplesmente, que, para o legislador e para o seu pensamento legislativo, o cumprimento do contrato de locação financeira – “em que à data de declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte”, como, não se discute, é o caso dos autos fica suspenso “até que o AI declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”.

Repare-se:

Se, por interpretação extensiva, se incluísse no art. 108.º do CIRE a locação financeira, o art. 104.º/3 do CIRE ficava totalmente incongruente: se, por interpretação extensiva, o contrato de locação financeira em que o locatário é insolvente não se suspendesse (podendo, como se diz no art. 108.º/1 do CIRE, o AI denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior), a que propósito é que o legislador haveria de conceder ao locador financeiro (dum contrato considerado não suspenso) o poder de fixar um prazo razoável ao AI para a execução ou recusa de cumprimento do contrato, se, note-se bem, o exercício de tal “poder” concedido ao locador financeiro pressupõe – vem na linha e lógica dos nos n.º 1 e 2 do art. 102.º do CIRE, para que o art. 104.º/3 remete (apenas se limitando a estabelecer uma especialidade quanto ao prazo de exercício de tal “poder”) – a suspensão do cumprimento do contrato, que é exatamente o oposto do que resultaria da aplicação, por interpretação extensiva, do art. 108.º do CIRE ao contrato de locação financeira.

Por outras palavras, se, por interpretação extensiva, se incluísse no art. 108.º do CIRE a locação financeira, passaríamos a afirmar que resulta da lei (de tal interpretação do art. 108.º e do art. 104.º/3) que o locatário financeiro de contrato não suspenso podia fixar um prazo ao AI para executar ou recusar o contrato suspenso.

Serve o “nonsense” de tal afirmação/conclusão para demonstrar que o art. 104.º/3 do CIRE exprime um pensamento legislativo incompatível com a aplicação do art 108.º do CIRE ao contrato de locação financeira, ou seja, exprime um pensamento legislativo que afasta, em caso de insolvência, a aplicação da “regra especial” da não suspensão contratual ao contrato de locação financeira, antes o sujeitando ao “princípio geral” de suspensão do cumprimento contratual constante do art. 102.º/1 do CIRE2.

E, sendo assim, não há uma única prestação (renda trimestral) decorrente dos contratos de locação financeira que possa ser devida pela 1.º requerente: no plano da relação fundamental/causal, os contratos de locação financeira ficaram suspensos com a declaração de insolvência e, depois, ficaram extintos quando, em 4/6/2008, o Administrador de Insolvência comunicou à B........., nos termos do art. 102º do C.I.R.E., que a Massa Insolvente não iria cumprir os contratos de locação financeira3, ou seja, após as suas extinções (nos termos do art 102.º do CIRE), não são devidas as prestações/rendas contratuais e no hiato entre a declaração de insolvência e as extinções os contratos estiveram suspensos e não são por isso devidas as prestações/rendas contratuais4.

Pelo que, nada sendo devido, em termos de relação fundamental, a título de prestações/rendas dos contratos de locação financeira, passa a faltar “causa” para a requerida preencher/endossar/acionar as livranças, uma vez que estas foram entregues tão só para garantir o pagamento das prestações dos contratos de locação financeira e, a tal título, repete-se, nada é devido à requerida.

Estamos a fazer tal distinção/especificação – a dizer que, a tal título, nada é devido à requerida – uma vez que, em termos de relação fundamental, é convocável/aplicável o art. 104.º/5 do CIRE (que, assim como o art. 104.º/3 do CIRE, também exprime um pensamento legislativo incompatível com a aplicação do art 108.º do CIRE à locação financeira), segundo o qual “os efeitos da recusa de cumprimento pelo administrador, quando admissível, são os previstos no n.º 3 do artigo 102.º, entendendo-se que o direito consignado na respetiva alínea c) tem por objeto o pagamento, como crédito sobre a insolvência, da diferença, se positiva, entre o montante das prestações ou rendas previstas até final do contrato, atualizadas para a data da declaração de insolvência por aplicação do estabelecido no n.º 2 do artigo 91.º, e o valor da coisa na data da recusa, se a outra parte for o vendedor ou locador, ou da diferença, se positiva, entre este último valor e aquele montante, caso ela seja o comprador ou o locatário; ou seja, em face do que aqui se dispõe, não se pode afirmar que a requerida não é/seja credora da 1.ª requerente, porém, não é isso que interessa e releva para o caso sub-judice, em que o que está em causa é saber se a requerida pode preencher/endossar/acionar as livranças e é com relação a isto (apenas a isto) que afirmamos, repete-se, que, uma vez que as livranças foram entregues tão só para garantir o pagamento das prestações/rendas dos contratos de locação financeira e estas não são devidas, temos que (nada sendo, a tal título, devido à requerida) as livranças não podem ser usadas pela requerida.

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Sendo este o desfecho da 1.ª questão jurídica colocada a propósito do primeiro pressuposto da providência cautelar comum intentada – ou seja, sendo aplicável o art. 102.º do CIRE ao contrato de locação financeira, não sendo devidas quaisquer prestações/rendas e não podendo, por isso, a requerida fazer uso das livranças – fica prejudicada (art. 608.º/2 do CPC) a 2.ª questão jurídica colocada, respeitante à prescrição do crédito das prestações/rendas devidas à requerida, pela muito evidente e singela razão de ser inútil apreciar a prescrição dum crédito que se considerou não existir5.

Em conclusão, não acompanhemos a posição das Instâncias (sobre a não verificação do primeiro pressuposto da providência intentada), porém, o desfecho da revista, como no início antecipámos, não será a decretação da procedência da providência cautelar, uma vez que é vedado ao Supremo, nos termos do art. 679.º do CPC (que ressalva a aplicação ao recurso de revista do art. 665.º do CPC), substituir-se ao Tribunal da Relação (e conhecer dos pressupostos não apreciados nas Instâncias por a sua apreciação ter ficado prejudicada, nas Instâncias, pela solução dada à apreciação dada ao 1.º pressuposto).

IV - Decisão

Nos termos expostos, decide-se conceder a revista e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido que se substitui por decisão a considerar verificado o primeiro pressuposto da providência intentada (titularidade do direito ameaçado) e a ordenar que o processo volte ao tribunal recorrido6 para que aí seja apreciada/conhecida a verificação (ou não) dos demais pressupostos da providência intentada.

Custas pela requerida/recorrida.

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Lisboa, 17/10/2023

António Barateiro Martins (Relator)

Ana Resende

Maria Olinda Garcia

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1. Revogação que, menciona-se, “não afeta os efeitos dos atos legalmente praticados pelos órgãos da insolvência” – art. 43.º do CIRE.↩︎

2. Foi exatamente sobre isto – sobre a aplicação da “regra especial” da não suspensão contratual ao contrato de locação financeira ou sobre a aplicação ao mesmo do “princípio geral” de suspensão do cumprimento contratual constante do art. 102.º/1 do CIRE – que se debruçou o Acórdão Fundamento (Ac. da Relação do Porto de 15/06/2025), decidindo em sentido oposto ao Acórdão recorrido; e foi também neste sentido que decidiu, ao contrário da interpretação que dele faz a recorrida, o Acórdão do TR Coimbra de 07/09/2021, in Processo nº 4278/15.7T8CBR-F.1.C2, segundo o qual um contrato de locação de equipamentos que não concede a faculdade de aquisição do bem pelo locatário no termo do contrato, ou seja, que não é sequer uma locação financeira, não fica sujeito ao regime especial previsto no artigo 108.º do CIRE para o contrato de locação, ficando, antes, sujeito ao regime geral do artigo 102º do CIRE.↩︎

3. Em face de tal comunicação do AI, é irrelevante o que se deliberou (ou não) na AG do art. 156.º do CIRE da insolvente, sendo certo que tal comunicação até está em perfeita harmonia com o ali deliberado (e que consta do ponto 7 dos factos); assim como não tem qualquer relevo jurídico a “pretensa” resolução referida no ponto 10 dos factos: só se resolvem relações contratuais vigentes e não era já o caso dos dois contratos de locação financeira.↩︎

4. Podendo acrescentar-se que não é invocado pela requerida (designadamente, a propósito do montante por que pretende preencher as livranças) que, no momento da declaração de insolvência, houvesse prestações em dívida.↩︎

5. Uma tal questão, em rigor, deixa até de se colocar, pelo que a resposta que se desse não seria uma resposta a uma questão concreta, mas tão só a resposta a uma mera “hipótese teórica”.↩︎

6. A quem é aplicável o art. 665.º do CPC.↩︎