Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2237/18.7T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
CASO JULGADO
CONSTITUCIONALIDADE
DIREITO DE AÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 10/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :

I Verificando-se que a sentença e o acórdão recorrido convergiram inteiramente num aspecto fundamental da sua fundamentação, a saber, a consideração de que o A. incorreu em abuso do direito, nos termos gerais do artigo 334º do Código Civil, não podendo ser, por isso mesmo, atendida a pretensão que nestes autos formulou, a aplicação in casu desse instituto acaba por sobrepor-se (prevalecendo) sobre a restante análise jurídica efectuada em cada um dos acórdãos, o que é por si só suficiente para considerar a constituição de dupla conforme prevista no artigo 671º, nº 3, do Código Civil, impeditiva da interposição da revista normal.

II Havendo a interveniente principal aderido ao articulado da 1ª Ré (e não do A.) no qual é expressamente reconhecida a prestação de declarações falsas por parte da dita Ré na escritura em referência, no que concerne à inexistência de outros herdeiros chamados à herança, atribuindo-se toda a responsabilidade por esse facto ao A., que premeditadamente engendrou o estratagema denunciado nos factos (definitivamente) dados como provados, tal significa que a ora reclamante se louvou no articulado em que é precisamente revelada a actuação abusiva do único demandante nestes autos.

III Assim sendo, não pode a interveniente principal, que se limitou a colocar-se ao lado de uma das Rés, não formulando nos autos qualquer pretensão concreta nem desenvolvendo nenhuma actividade processual após a sua adesão ao articulado da Ré, sustentar a admissibilidade da revista e, muito menos, evitar a constituição de dupla conforme na sequência da única causa de pedir apresentada nos autos.

IV Acresce que, nos termos do artigo 320º do Código de Processo Civil, a decisão que julga materialmente a causa versa igualmente sobre a relação jurídica respeitante ao chamado, apreciando-a e vinculando-o ao veredicto que foi proferido (não podendo o interveniente querer alhear-se da ratio decidendi que esteve na base na improcedência da acção e que constitui contra si caso julgado).

V A inadmissibilidade da presente revista, nos termos gerais do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil, não ofende qualquer preceito de natureza constitucional, sendo certo que em momento algum a interveniente foi ou será impedida do exercício, com total autonomia e independência, do seu direito de acção (que aqui se reduziu à sua adesão ao articulado de uma comparte, onde era precisamente revelada a conduta abusiva e censurável do A., o qual formulou o único pedido que a reclamante pretende, agora e enviesadamente, aproveitar).

Decisão Texto Integral:

Revista nº 2237/18.7T8PNF.P1.S1

Acordam, em Conferência, os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Sessão).

Foi proferida a seguinte decisão singular de rejeição do conhecimento do objecto do presente recurso de revista, datada de 14 de Julho de 2023:

“Instaurou AA a presente acção declarativa de condenação contra BB, Novo Banco, SA, CC e DD.

Essencialmente alegou:

A 1ª Ré declarou-se como única herdeira do seu falecido marido EE com o objetivo de prejudicar no seu património os restantes herdeiros e obter uma vantagem que não lhe era exclusiva, não tendo em momento algum o Autor e seus irmãos desconfiado sobre tal situação.

Aproveitando-se de tais factos, a 1ª Ré começou a dissipar todo o património identificado nos artigos 17º, 18º e 19º da p.i. e, com esse intuito, registou-os a seu favor, tendo constituído dívidas junto do Autoridade Tributária, onerando tais prédios com penhoras a favor desta instituição.

O 3º Réu tinha registado a seu favor, no prédio inscrito na matriz nº 430, uma hipoteca, sendo o título subjacente à mesma uma confissão de dívida com hipoteca outorgada pela 1ªRé, tendo ambos celebrado uma escritura de dação em cumprimento, datada de 23 de Abril de 2013, sobre o referido imóvel.

Em 20 de Junho de 2011, a 1ª Ré, na qualidade de primeira outorgante, constituiu a favor do Novo Banco (à data BES), a hipoteca voluntária sobre o imóvel inscrito na matriz sob o nº 454 da freguesia de ..., tendo tal imóvel sido adjudicado ao Réu Novo Banco no âmbito da execução fiscal, na qualidade de credor hipotecário.

O prédio inscrito na matriz nº 369 encontrava-se inscrito a favor da 1ª Ré e estava onerado com duas penhoras e uma hipoteca voluntária, tal prédio encontra-se registado a favor da 2ª Ré, desde 23 de Junho de 2017, através da ap. 2348 da Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóvel ..., tendo tal apresentação tido por base uma adjudicação em processo de execução fiscal, em que o sujeito passivo da mesma, ou seja, a devedora de tal execução fiscal era a 1ª Ré.

Em Fevereiro de 2018, teve conhecimento que o 2ª Réu já tomou posse efetiva do referido prédio, uma vez que tentou lá entrar com a chave de que era detentor para retirar as máquinas de confeção identificadas no art. 73º da p.i. que adquiriu a título pessoal, em meados de 2013 e que se encontram lá depositadas, tendo verificado que a chave que tinha não cabia na fechadura, tendo a 1ªRé informado o Autor, apenas nessa altura, que alguém a mando do 2ª Réu já ali tinha andado a mostrar aquele prédio a eventuais interessados na compra do mesmo.

Conclui pedindo que sejam declarados nulos os registos de aquisição de propriedade efetuados a favor da 1ª Ré, e, consequentemente serem declarados nulos os registos de aquisição efetuados a favor dos 2º, 3º e 4º Réus e serem os prédios identificados em 17º, 18º e 19º da p.i. declarados como fazendo parte integrante da herança jacente aberta pelo óbito de EE e, consequentemente, bens comuns do Autor, chamados e 1ª Ré, ser o Autor declarado como único e exclusivo proprietário das máquinas identificadas no artigo 73º da p.i. e as mesmas lhe serem entregues.

A 1ª Ré, na sua contestação, referiu que praticou tais atos, a pedido e no interesse do Autor, que a convenceu de que ela era a herdeira dos bens do falecido EE, pois ele deixara o testamento acima mencionado no qual a instituía única herdeira e somente após o falecimento daquela seriam herdeiros todos os filhos que o EE tivera no 1º casamento e a filha que ele tivera com a 1ª Ré, tendo esta acreditado na explicação dada pelo Autor.

A declaração que consta da escritura de habilitação de herdeiros perante a notária não é conforme à realidade, razão pela qual se dá a perda de eficácia probatória dessa escritura notarial e quanto a esses factos, sendo falso o registo do direito de propriedade da 1ª Ré sobre os imóveis supra identificados, o que implica a nulidade dessas inscrições registrais, como dispõe a alínea a) do artigo 16º do C.R.P., deixando, pois, de operar a presunção a que alude o artigo 7º do mesmo diploma, devendo a ação ser julgada procedente.

Os 2º, 3º e 4º Réus alegaram ser terceiros de boa-fé, pelo que a eventual declaração de nulidade ou anulação nunca poderia prejudicar os direitos por estes já adquiridos, nos termos do art. 291º do C.Civil, concluindo que a acção deve ser julgada improcedente.

Os 3º e 4º Réus alegam, ainda, que o Autor atua em abuso de direito e peticionam a condenação do Autor como litigante de má fé em multa e indemnização a favor dos 3º e 4º Réus, incluindo nesta os honorários da advogada.

O Autor, na resposta, manteve os factos por si alegados.

Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os Réus de todos os pedidos deduzidos pelo Autor e condenou o Autor como litigante de má fé na multa de montante igual a três vezes o valor da taxa de justiça devida na ação declarativa, e numa indemnização aos 3º e 4º Réus, consistente no reembolso das despesas que a má fé do litigante os tenha obrigado, incluindo os honorários da mandatária, cuja liquidação se relegou para momento posterior.

O A. interpôs recurso de apelação que veio a ser julgado improcedente, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 28 de Fevereiro de 2023, que manteve a decisão recorrida.

Apreciando liminarmente da admissibilidade da presente revista.

Coloca-se, agora, a questão da constituição de dupla conforme, nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil, defendida nas contra-alegações e negada das alegações de recurso (e mesmo no despacho de admissão do presente recurso de revista onde se aludiu a fundamento essencialmente diferente em termos parciais).

Vejamos:

Existe uma diferença objectiva e inegável quanto a parte da motivação jurídica entre o que consta da sentença e do acórdão recorrido.

Enquanto em 1ª instância considerou-se que os RR. beneficiavam da tutela conferida pelo artigo 291º do Código Civil por estarem preenchidos os requisitos consagrados nessa norma, no acórdão recorrido afirmou-se que essa mesma tutela era inexistente na medida em que o verdadeiro proprietário (a herança) fora alheio a essa cadeia de transmissões.

Neste último aresto a improcedência do pedido foi fundada diferentemente no disposto no artigo 2076º do Código Civil, com a avocação da figura do herdeiro aparente.

Todavia, ambas as decisões judiciais convergiram inteiramente num aspecto absolutamente fundamental da sua restante fundamentação: a consideração de que o A., em qualquer circunstância, incorreu em abuso do direito, nos termos gerais do artigo 334º do Código Civil, não podendo ser, por isso mesmo, atendida a pretensão que nestes autos formulou.

Afirmou-se concretamente no acórdão recorrido:

“Assim, também através da ilegitimidade do exercício do direito de petição de herança (reconhecendo a actuação do A. em abuso do direito), a pretensão do A. estava votada ao insucesso”.

O que significa, sem a menor dúvida, que ambas as instâncias acabaram por assentar os seus veredictos na mesma fundamentação essencial e decisiva que por si só implica inexoravelmente o decaimento de todos os pedidos do A. e a consequente improcedência da acção (justificando igualmente a condenação do demandante como litigante de má fé que teve lugar).

Tanto a sentença como o acórdão recorrido convergiram e concordaram em que, perante os factos dados como provados, impunha-se concluir que o A. actuou em abuso do direito, ou seja, ilicitamente, e a acção, por essa razão essencial e comum (uniformemente considerada nestes termos) teria de ser julgada improcedente (quer a tutela da posição dos RR. resultasse do disposto no artigo 291º do Código Civil, quer no estatuído no artigo 2076º, nº 2, do mesmo diploma legal).

Podemos considerar assim que a aplicação in casu do instituto do abuso do direito acaba por sobrepor-se, prevalecendo, sobre a restante análise jurídica efectuada em cada um dos acórdãos, na medida em que tal fundamento jurídico impõe-se-lhes superiormente em qualquer circunstância, determinando isolada e decisivamente a sorte da lide.

É essa no fundo a razão principal e absolutamente inabalável para que a acção não possa deixar de improceder, tal como decidiram ambas as instâncias, com a mesma exacta fundamentação essencial (fundada em que o instituto do abuso do direito impede o reconhecimento de qualquer direito substantivo do A. perante o elenco dos factos dados como provados).

O que é por si só suficiente para considerar a constituição de dupla conforme prevista no artigo 671º, nº 3, do Código Civil, impeditiva da interposição da revista normal.

Ou seja, verifica-se indiscutivelmente total e absoluta coincidência da fundamentação jurídica essencial que veio a determinar a sorte da lide (improcedência da acção), sem a menor divergência ou desacordo (neste aspecto decisivo e inultrapassável) entre as duas instâncias, as quais convergiram em que, seja face ao disposto no artigo 291º ou perante o disposto no artigo 2076º, nº 2, ambos do Código Civil, independentemente da alternativa entre essas duas hipóteses de resolução jurídica da lide, sempre e em qualquer caso a presente acção teria de soçobrar por força do recurso à válvula de segurança do sistema que constitui o instituto previsto no artigo 334º do Código Civil.

Perante isto, não é razoável nem lógico sustentar que a improcedência da acção se ficou afinal a dever a fundamentação essencialmente diversa (quando a sentença e o acórdão recorrido partilham indiscutivelmente o mesmo fundamento jurídico essencial – a avocação, pelas mesmas razões, da figura do abuso do direito - que determina o inevitável decaimento das pretensões do A.).

Pelo que o recurso de revista não pode ser admitido, julgando-se o mesmo findo, nos termos dos artigos 652º, nº 1, alínea b) e 679º do Código de Processo Civil.

Pelo exposto:

Julga-se findo o presente recurso de revista, não havendo lugar ao conhecimento do seu objecto, nos termos dos artigos 652º, nº 1, alínea b), e 679º do Código Civil.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) UC”.

Reclamou para a Conferência, nos termos do artigo 652º, nº 3, do Código de Processo Civil, a interveniente FF, filha do falecido marido da 1ª Ré, com os seguintes fundamentos:

1º Como resulta da mui douta decisão reclamada, a revista não admitida atento o seguinte, que transcrevemos:

“Tanto a sentença como o acórdão recorrido convergiram e concordaram em que, perante os factos dados como provados, impunha-se concluir que o A. actuou em abuso do direito, ou seja, ilicitamente, e a acção, por essa razão essencial e comum (uniformemente considerada nestes termos) teria de ser julgada improcedente (quer a tutela da posição dos RR. resultasse do disposto no artigo 291º do Código Civil, quer no estatuído no artigo 2076º, nº 2, do mesmo diploma legal).

Podemos considerar assim que a aplicação in casu do instituto do abuso do direito acaba por sobrepor-se, prevalecendo, sobre a restante análise jurídica efectuada em cada um dos acórdãos, na medida em que tal fundamento jurídico impõe-se-lhes superiormente em qualquer circunstância, determinando isolada e decisivamente a sorte da lide.

É essa no fundo a razão principal e absolutamente inabalável para que a acção não possa deixar de improceder, tal como decidiram ambas as instâncias, com a mesma exacta fundamentação essencial (fundada em que o instituto do abuso do direito impede o reconhecimento de qualquer direito substantivo do A. perante o elenco dos factos dados como provados).

O que é por si só suficiente para considerar a constituição de dupla conforme prevista no artigo 671º, nº 3, do Código Civil, impeditiva da interposição da revista normal.

Ou seja, verifica-se indiscutivelmente total e absoluta coincidência da fundamentação jurídica essencial que veio a determinar a sorte da lide (improcedência da acção), sem a menor divergência ou desacordo (neste aspecto decisivo e inultrapassável) entre as duas instâncias, as quais convergiram em que, seja face ao disposto no artigo 291º ou perante o disposto no artigo 2076º, nº 2, ambos do Código Civil, independentemente da alternativa entre essas duas hipóteses de resolução jurídica da lide, sempre e em qualquer caso a presente acção teria de soçobrar por força do recurso à válvula de segurança do sistema que constitui o instituto previsto no artigo 334º do Código Civil.

Perante isto, não é razoável nem lógico sustentar que a improcedência da acção se ficou afinal a dever a fundamentação essencialmente diversa (quando a sentença e o acórdão recorrido partilham indiscutivelmente o mesmo fundamento jurídico essencial – a avocação, pelas mesmas razões, da figura do abuso do direito - que determina o inevitável decaimento das pretensões do A.).”.

2º Em face desta fundamentação, a douta decisão em apreço, em face de revista já admitida, decide pela verificação de causa que obsta ao conhecimento, a saber a regra da dupla conforme relativamente à condenação pelo vicio do abuso de direito.

A recorrente, porém, não intervém como Autora nesta ação, outrossim como interveniente principal, defendendo direito próprio como herdeira de uma herança ilíquida e indivisa despojada por outra herdeira ou herdeiros dos bens imoveis que a integravam.

4º Os factos provados integradores do abuso de direito considerados pelas instâncias, e sancionados na douta decisão de que se reclama, são manifestamente alheios quanto à recorrente, que neles não teve qualquer participação.

5º Destarte, é inaplicável à recorrente a decisão que julga como ferida do vicio de abuso de direito a pretensão do autor de, como herdeiro, reivindicar esses concretos bens para a herança, pelo que a douta decisão que a aplica é violadora do disposto no artigo 334º do Código Civil.

6º Ademais, a interpretação desta concreta norma vinculando a recorrente a tal vicio configura, na modesta visão da recorrente, uma indevida interpretação do disposto no artigo 334º do Código Civil, e representa uma violação da Constituição da República Portuguesa, no seu art.º 20.º – princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva – e ainda no seu art.º 202.º, n.º 1 – princípio da defesa e dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos – no seu art.º 226.º, n.º 2 – princípio da justiça material, e por último no seu artigo 62º - direito de propriedade privada.

7º Na verdade, na esteira do princípio de que «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos» e, bem assim,

«Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.».

8º Por entender ser de apreciar a violação do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, espelho este do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no que respeita ao direito a um processo equitativo, na vertente de respeito pela segurança jurídica e o direito de acesso a um tribunal.

9º Isto porque, malogradamente, no caso dos autos, salvo o devido respeito, é entendimento da aqui recorrente que um tal direito constitucionalmente protegido foi violado, porquanto,

10º é vedado à recorrente a oportunidade de ver um tribunal de recurso analisar o recurso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto por si impugnado na revista a pretexto de um vicio em que a recorrente não incorreu em claro constrangimento do direito de acesso a um tribunal.

11º Com efeito, o direito fundamental de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e obtenção de uma sua tutela jurisdicional plena e efetiva, tendo por referência o artigo 20.º da Constituição, e socorrendo-nos da abundante jurisprudência constitucional sobre o mesmo, tem sido assim entendido o respetivo âmbito de proteção normativa:

«o artigo 20.º da CRP garante a todos o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, impondo igualmente que esse direito se efetive na conformação normativa pelo legislador e na concreta condução do processo pelo juiz - através de um processo equitativo».

12º Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente sublinhado, o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante o correto funcionamento das regras do contraditório (acórdão n.º 86/88, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11º, pág. 741).

13º Como concretização prática do princípio do processo equitativo e corolário do princípio da igualdade, o direito ao contraditório, por seu lado, traduz-se essencialmente na possibilidade concedida a cada uma das partes de “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras” (entre muitos outros, o acórdão n.º 1193/96).

14º Quer isto dizer, fundamentalmente, que no âmbito de proteção normativa do artigo 20.º da CRP se integrarão, além de um geral direito de ação, ainda o direito a prazos razoáveis de ação e de recurso e o direito a um processo justo, no qual se incluirá, naturalmente, o direito da cada um a não ser privado da possibilidade de defesa perante os órgãos judiciais na discussão de questões que lhe digam respeito.

15º Integrando, assim, a “proibição da indefesa” o núcleo essencial do “processo devido em Direito”, constitucionalmente imposto, qualquer regime processual que o legislador ordinário venha a conformar – seja ele de natureza civil ou penal – estará desde logo vinculado a não obstaculizar, de forma desrazoável, o exercício do direito de cada um a ser ouvido em juízo.

16º Importa reter, que, “in casu”, a inexistência de decisão proferida nestes autos – que ignorou a inaplicabilidade à interveniente do vicio de abuso de direito considerado pelas instâncias quanto ao Autor e nunca quanto à interveniente aqui recorrente - vem a provocar na esfera da aqui recorrente grave prejuízo, como a litigância melhor plasmada nos autos evidencia.

17º Razão pela qual, importa, desde já, sindicar da bondade da douta decisão, cabendo, designadamente, ponderar os diversos direitos e interesses constitucionalmente relevantes, incluindo o próprio interesse de ambas as partes.

18º Pois que, conformando-se com o princípio da proporcionalidade, não cabe ao julgador, caso a caso, criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.

19º Como sucede “in casu”.

20º Assim, porque todos estes valores detêm igual relevância e todos eles são constitucionalmente protegidos sejam, os valores da “proibição da indefesa” e do contraditório e os princípios da segurança e da paz jurídica, impõe-se, como se disse, um juízo de censura à luz da Constituição Portuguesa.

21º Razão pela qual, perante tal problemática, sempre deveria o recurso em causa ser admitido, apreciado e decidido.

22º Assim não tendo sucedido, tem-se por violado o direito à tutela jurisdicional efetiva, sofrendo de inconstitucionalidade, questão aqui levantada, ofendendo, nomeadamente, o artigo 20.º da Constituição, ou seja, o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

23º A douta decisão em causa representa também a violação da Constituição da República Portuguesa no seu art.º 2.º – princípio da segurança jurídica e proteção da confiança – e ainda no seu art.º 202.º, n.º 1 – princípio da defesa e dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos.

24º Isto porque, na verdade, a não admissão do recurso interposto pela recorrente do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, coloca em causa a segurança e confiança jurídica na administração da justiça.

25º Deste modo, mostra-se inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica e proteção da confiança legítima, o entendimento e dimensão normativa, aqui consignado na decisão em crise.

26º O princípio da boa-fé remete a Administração Pública para um padrão ético de comportamento na sua relação com os cidadãos, agindo de forma correta, leal e sem reservas, o que se mostra extensível à administração da justiça.

Trata-se de um princípio programático de comportamento que se materializa através da observância de três outros princípios: I) da proteção da confiança; II) da materialidade e III) da transparência decisória.

27º O princípio da proteção da confiança remeter-nos-á assim para a tutela da estabilidade dos atos da justiça, como condição indispensável à segurança dos cidadãos e à permanência e estabilidade da ordem jurídica.

28º O princípio da materialidade exige que a atividade judicial seja orientada para a tutela substancial das situações jurídicas.

29º Mostra-se consagrada tal responsabilidade na Constituição da República Portuguesa, art.º 266.º, n.º2, a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei, devendo atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da proteção da confiança e segurança, igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.

30º Na sua dimensão jurídico-normativa, o princípio da proteção da confiança constitui um dos invólucros jurídicos que o ordenamento jurídico e seu edifício não deixarão de dispensar aos valores da estabilidade, da segurança e da confiabilidade.

31º Estão em causa valores que, merecedores de um reconhecimento indubitável e de uma proteção acrescida, são erigidos à categoria de bens jurídicos fundamentais, constituindo-se em cânones orientadores que devem enformar todos os atos dos poderes públicos, principalmente os que encerrarem conteúdo decisório.

32º De um ponto de vista subjetivo, a ideia fundamental a reter é a de que não devem ser permitidas alterações jurídicas com as quais, razoavelmente, as pessoas não podem contar e que introduziriam na respetiva esfera jurídica desequilíbrios desproporcionais justificando-se por isso que seja reconhecida ao poder judicial uma dimensão conservadora tendente a impedir a perturbação que a ação estadual imprevista poderia introduzir.

33º Já numa perspetiva de Direito Público, e na sua configuração clássica, o princípio da proteção da confiança vincula e limita os vários poderes Estaduais, exigindo de cada um deles cuidados suplementares no momento de levarem à prática as diferentes tarefas que se lhes mostrem confiadas.

34º Aquilo que se defende é a íntima ligação entre o princípio da proteção da confiança e o inseparável princípio da segurança jurídica, ao nível da salvaguarda e tutela das expectativas, defesa da estabilidade subjetiva, preservação das esferas jurídicas bem como da solidez objetiva e estabilidade jurídico-decisória.

35º Não poderá assim a administração da justiça tornar-se errática e insegura, deixando transparecer tal insegurança para a esfera jurídica dos administrados, sob pena de não se conseguir rever num interesse público que lhe sirva de referência e que, indubitavelmente, deve estar constitucionalmente ancorado.

36º O que, sucede na temática em causa – a omissão de apreciação e decisão acerca da revista interposta pela recorrente do acórdão do Tribunal da Relação do Porto.

37º Juridicamente, o princípio da proteção da confiança reflete a

preocupação dispensada pelo ordenamento aos valores da estabilidade, da segurança e da confiabilidade.

38º O princípio da proteção da confiança, intrinsecamente ligado

aos princípios da segurança jurídica e do Estado de Direito na sua essência plena, traduz o dever-poder que possuem os três poderes públicos de cuidar da estabilidade decorrente de uma relação matizada de confiança mútua, no plano institucional.


39º Destarte, tendo o princípio da confiança o intento de proteger prioritariamente as expetativas legítimas que nascem do cidadão.


40º Deve, pois, in casu, reconhecer-se que a convicção legítima da aqui recorrente de que as coisas se passarão de determinado modo – apreciação e decisão acerca do recurso interposto pela recorrente do acórdão do Tribunal da Relação do Porto - e cuja violação se pode considerar atentatória da ideia de justiça: a proteção da confiança legítima.


41º Por último, dir-se-á que o direito de propriedade privada exarado no artigo 62º da C.R.P. não é um direito absoluto, tendo ele limites/restrições que são aquelas previstas na própria Constituição.


42º Por isso, a violação do direito de propriedade do quinhão da recorrente que integra o direito a partilhar os imoveis vendidos no total desconhecimento da recorrente carece de ser justificado pela óptica constitucional, isto é, que se legitime na necessidade de salvaguarda de outros direitos ou interesses superiores, constitucionalmente garantidos, e tão-só nessa medida.


43º Não é manifestamente, o caso dos autos, pois que tal violação não é justificada.

Assim e com a devida vénia,

1. Concluindo e sempre com o devido respeito, a requerente aguarda a reponderação das questões e da matéria explicitada, e impetra o provimento desta, razão pela qual requer que sobre a douta decisão singular recaia acórdão por forma a apreciar e decidir acerca do recurso interposto pela recorrente do acórdão do Tribunal da Relação do Porto.

2. Tanto mais que, a decisão em causa coloca em crise os princípios constitucionais acima expostos expressos nas citadas normas da Constituição da República Portuguesa.

Responderam DD e outros e o Novo Banco, S.A., pugnando pelo indeferimento da reclamação.

Alegaram as primeiras que:

1º -Os recorridos dão por reproduzidas, para todos os devidos e legais efeitos, as suas alegações de resposta, bem como os fundamentos aduzidos pelo Senhor Juiz Conselheiro Relator na decisão singular que proferiu.

2.º Assim sendo, a decisão singular não merece qualquer censura, devendo manter-se na integra.

Com efeito, tal como aí decidido, o recurso de revista não pode ser admitido. 3.º Sem prejuízo, os recorridos mantêm o teor das alegações de resposta quanto ao mérito do recurso de revista.

4.º Acrescentam o seguinte quanto à invocada questão de que o abuso de direito é inaplicável à recorrente: Não lhe assiste qualquer razão.

5.º É sabido que a posição que os terceiros vão ocupar no processo varia em função do tipo de intervenção.

A intervenção principal confere ao interveniente a posição de parte principal, com os direitos processuais inerentes; a intervenção como parte acessória (com interesse dependente da parte principal) subordina-se à atividade da parte que vai auxiliar (art. 321º, n.º 1, do CPC);

6.º O interveniente principal faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu (art. 312º do CPC).

Deste modo, cumula-se no processo a apreciação da relação material controvertida entre as partes primitivas, com a da relação jurídica própria do interveniente,mas substancialmente conexa comaqueloutra, Cfr.António Pais deSousa e Cardona Ferreira, Processo Civil, Editora Reis dos Livros, pp. 55/56.

7.º Na intervenção principal provocada, o interveniente assume, com a respetiva citação pessoal (art. 319º, n.º 1 do CPC), efetuada na sequência da admissão do chamamento, a qualidade de parte principal.

8.º Efetivamente, por força do preceituado no art. 320º do CPC, a sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa irá apreciar “a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado”.

9.º Por último: ao contrário do pretendido pela recorrente não se verifica, in casu, a violação de qualquer princípio constitucional.

Apreciando do mérito da reclamação:

Não assiste razão à reclamante.

A não admissibilidade da presente revista (normal) deveu-se ao reconhecimento da constituição da dupla conforme, nos termos gerais do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil, e que assentou no funcionamento in casu do instituto do abuso do direito previsto no artigo 334º do Código de Processo Civil, que ambas as instâncias, pelos mesmos exactos fundamentos, concluíram corresponder juridicamente à actuação substantiva e processual do (único) A. na presente acção.

Logo, em qualquer circunstância e independentemente de outra (diferente) configuração jurídica constante da sentença e do acórdão recorrido, a qualificação da actuação do A. como manifestamente abusiva impediria inexoravelmente, sempre e em última linha, a improcedência do seu pedido, havendo por isso mesmo sido condenado, a título definitivo, como litigante de má fé (por deduzir censuravelmente pretensão assente numa realidade que bem sabia não ser verdadeira, procurando conscientemente um fim proibido por lei).

Ora, a reclamante não põe em causa esta circunstância (de que existe dupla conforme em relação ao carácter ilícito da conduta do A., impeditiva, por si só, do atendimento da respectiva pretensão).

O que diferentemente sustenta é que nada tem a ver com a prática dessa mesma conduta abusiva (por não ser ela quem pessoalmente a cometeu).

Acontece, porém, que a reclamante é interveniente principal nos presentes autos, tendo aderido (por requerimento apresentado em 28 de Fevereiro de 2019) ao articulado da 1ª Ré BB (e não do A.), apresentado em 8 de Outubro de 2018.

Articulado no qual é expressamente reconhecida a prestação de declarações falsas por parte da dita Ré BB na escritura em referência, no que concerne à inexistência de outros herdeiros chamados à herança de EE, e em que se atribui toda a responsabilidade por esse facto ao A. AA, que premeditadamente engendrou todo o estratagema denunciado nos factos (definitivamente) dados como provados.

O que significa que a ora reclamante se louva no articulado em que é precisamente revelada a actuação abusiva do único A. nestes autos.

Assim sendo, nunca poderia a interveniente principal, que se limitou a colocar-se ao lado de uma das Rés, não formulando nos autos qualquer pretensão concreta nem desenvolvendo actividade processual após a sua adesão ao articulado da Ré BB (não impugnou a sentença de 1ª instância, nem o acórdão do Tribunal da Relação do Porto em causa), sustentar a admissibilidade da revista e, muito menos, evitar a constituição de dupla conforme na sequência da única causa de pedir apresentada nos autos pelo A., que foi aliás denunciada no articulado ao qual aderiu, fazendo-o seu.

De resto, nos precisos termos do artigo 320º do Código de Processo Civil: “A sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa aprecia a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado”, o que significa que a decisão que julga materialmente a causa versa igualmente sobre a relação jurídica respeitante ao chamado, apreciando-a e vinculando-o ao veredicto que foi proferido (não podendo o interveniente querer alhear-se da ratio decidendi que esteve na base na improcedência da acção e que constitui contra si caso julgado).

E óbvio outrossim que a inadmissibilidade da presente revista, nos termos gerais do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil, não ofende qualquer preceito de natureza constitucional, sendo certo que em momento algum a interveniente foi ou será impedida do exercício, com total autonomia e independência, do seu direito de acção (que aqui se reduziu à sua adesão ao articulado de uma comparte onde era precisamente revelada a conduta abusiva e censurável do demandante que formulou o único pedido que a ora reclamante pretende, agora e enviesadamente, aproveitar).

Concorda-se, assim e inteiramente, com o despacho reclamado, para cujos fundamentos se remete.

Pelo exposto, acordam, em Conferência, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em indeferir a reclamação apresentada nos termos do artigo 652º, nº 3, do Código de Processo Civil, mantendo-se a decisão singular reclamada, julgando-se consequentemente findo o presente recurso e não se conhecendo do respectivo objecto, nos termos do artigo 652º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 679º do mesmo diploma legal.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UCs.

Lisboa, 17 de Outubro de 2023.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ricardo Costa

Maria Olinda

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.