Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1969/19.7T8PTM.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
SEGURADORA
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO BIOLÓGICO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANOS FUTUROS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Procurando dissipar uma linha rígida divisória entre os danos patrimoniais e os danos não patrimoniais, a doutrina e a jurisprudência adoptaram a expressão “dano biológico”, concebendo este em muitas situações de afectação da integridade físico-psíquica, em que a própria natureza híbrida ou indefinida do dano não é passível de situar ou enquadrar este apenas na esfera patrimonial ou na dimensão não patrimonial, porquanto a sua materialização não se ajusta apenas às dores da alma, assim como não se adequa tão-só na perda de utilidades de índole económica, não dependendo a sua ressarcibilidade da efectiva e comprovada perda de rendimentos, mas sim da demonstração de que, em resultado de tal dano, o lesado passou a ser portador de limitações ou constrangimentos que, não obstante possa continuar a conseguir realizar as suas tarefas profissionais e de natureza pessoal, o faz mediante um esforço acrescido, ou de um vigor muito superior àquele que teria se não tivesse sofrido esse dano, em ordem a constatar-se se tal dano virá a originar, no futuro e durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho, ou se o mesmo se traduz apenas numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade.

II. Com um enquadramento ou com outro, que seja classificado como dano patrimonial, que seja visto como dano não patrimonial, o dano biológico é em si ressarcível, como dano autónomo, mesmo quando não sejam verificadas consequências em termos de perda de capacidade aquisitiva.

III. O valor do dano biológico tem de ser fixado com recurso a regras de equidade (art. 566 nº 3 do CC), mediante a ponderação seria e não arbitrária ou aleatória de diversos indicadores, designadamente a idade do lesado, a sua esperança de vida, o seu grau de incapacidade geral permanente (isto é, a percentagem do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica), as suas potencialidades de ganho em profissão ou atividades económicas compatíveis com as suas qualificações e aquele défice, um exercício muito cuidado de análise de previsibilidade, um cálculo que tem de se alicerçar nos princípios da certeza, da segurança e da igualdade, em observância de outros casos com contornos paralelos anteriormente tratados pela jurisprudência de um juízo sempre presidido pela equidade.”

IV. Adoptando tais critérios de equidade, tratando-se de uma mulher ainda relativamente jovem, com 47 anos de idade à data do acidente, a sua esperança de vida laboral e biológica, bem como o nível de limitação de que passou a ser portadora, que, de forma indelével, a marcou na sua personalidade e na sua capacidade para o desenvolvimento da sua actividade laboral, sendo certo que deixou de trabalhar em 2020 (sendo que à data do acidente, em 2017, auferia o salário mensal de € 1330€, acrescido de subsídio de alimentação de €6.60 diários, tendo no ano de 2018 passado a auferir o salário mensal de € 1360 e o subsídio de alimentação de €6.80), e o défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 15 pontos de que ficou portadora, ainda a circunstância de a Autora ter perdido a sua natural alegria de viver, mercê das sequelas no corpo e no espírito para o resto da vida, o dito “pretium juventutis, deixando de poder fazer as viagens de lazer que fazia mensalmente, também as deixando de fazer como guia turística, devido às lesões sofridas e incapacidade provocada por elas, tornando-se uma mulher angustiada, amargurada, instável e frustrada, mercê da incapacidade de que se viu definitivamente vitimada, pois as lesões serão permanentes, sob o ponto de vista da plena realização das suas tarefas, deixando de ter a vida ativa e plena que gozava antes do acidente, revela-se adequado o montante indemnizatório fixado pelo Tribunal recorrido em 65.000,00 €, correspondente aos danos biológico e futuros sofridos pela Autora.

Decisão Texto Integral:

AA, instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum ordinário contra a ré Companhia de Seguros Tranquilidade SA (agora Generali Companhia de Seguros SA), pedindo em resumo a condenação desta a indemnizá-la pelos danos de diversa natureza que sofreu num acidente de viação, peticionando a indemnização global de € 170.000,00.

Alegou a autora, em síntese, que no dia 19 de Agosto de 2017, pelas 23h20, sofreu um acidente, sendo atropelada pelo veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Renault, de cor azul, de matrícula ..-HQ-.., na Rua ..., em ....

O veículo de matrícula ..-HQ-.. mantinha contrato de seguro automóvel obrigatório com a ré, ao qual foi atribuída a apólice n.º 034/01769078/000, em vigor à data do sinistro.

Tendo a ré contestado, declinando a obrigação de indemnizar a autora, os autos percorreram os seus trâmites normais.

Elaborado despacho saneador, fixado o objecto do litígio e indicados os temas da prova, veio a ser feito julgamento e proferida sentença que julgou os pedidos parcialmente procedentes e condenou a ré a indemnizar a autora nos seguintes termos:

“1. Condeno a Ré a pagar à Autora AA o valor global de 2.974,55 euros, pelas despesas que suportou até à data com medicamentos, tratamentos e consultas, acrescido de juros de mora à taxa de 4% a contar desde a data da citação até ao efetivo e integral pagamento.”

“2. Condeno a Ré a pagar à Autora AA o valor de 50.000 euros (cinquenta mil euros) pelo dano biológico e futuros, acrescido de juros de mora à taxa de 4% a contar desde a data do trânsito em julgado da presente decisão e até ao efetivo e integral pagamento.”

“3. Condeno a Ré a pagar à Autora AA o valor de 25.000 euros (vinte e cinco mil euros) pelos danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora à taxa de 4% a contar desde a data do trânsito em julgado da presente decisão e até ao efetivo e integral pagamento.”

“4. Condeno a Ré nos danos futuros que eventualmente venham a surgir como consequência do acidente.”

“5. Condeno a Ré a reembolsar ao Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de ..., o montante de 3.484,83 euros, pelo subsídio de doença que concedeu provisoriamente à Autora.”

APELAÇÃO

Contra a sentença proferida insurgiu-se a autora através do presente recurso de apelação, no qual contesta o decidido sob os n.ºs 2 e 3, ou seja, os montantes indemnizatórios fixados para ressarcir os danos biológicos e futuros e os danos não patrimoniais, sustentando que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por Acórdão que fixe a indemnização a título de dano biológico e “futuros” em 100.000,00€ e a compensação pelos danos não patrimoniais em 40.000,00€.

A Ré seguradora contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

Foi proferido Acórdão que decidiu julgou parcialmente procedente a apelação, fixando a indemnização a pagar pela ré seguradora à autora para ressarcimento do dano biológico resultante do acidente, referida no ponto 2 do dispositivo impugnado, no montante de € 65.000 (sessenta e cinco mil euros) e a indemnização correspondente aos danos não patrimoniais sofridos, a que se referia o ponto 3 do dispositivo, no montante de € 40.000 (quarenta mil euros), na parte restante julgando improcedente o recurso, mantendo-se em consequência tudo o mais decidido na sentença recorrida.

REVISTA

Inconformada com esta decisão, dele veio a Ré Generali interpor recurso de revista para este Supremo tribunal de justiça, oferecendo as suas alegações, que culminam com as conclusões que se transcrevem:

1. O Tribunal a quo não apreciou convenientemente a resposta às alegações de recurso apresentada pela Recorrente, atendendo que não tomou posição quanto à fundamentação vertida,isto é,quanto ao dano biológico,ao recurso ao cálculo aritmético, sustentado no rendimento salarial médio mensal líquido dos trabalhadores por conta de outrem e na esperança média de vida das mulheres, e, quanto ao dano patrimonial, no aresto invocado e transcrito, referente a um caso análogo, em oposição aos enunciados pela Recorrida nas suas alegações de recurso, que justificam à manutenção das parcelas indemnizatórias fixadas em 1.ª Instância.

2. Não bastando, em sede de fundamentação, a menção do critério da equidade e da razoabilidade, assim como dos parâmetros apurados em 1.ª Instância (défice funcional, dano stético e quantum doloris).

3. Fixando uma indeminização, a título de dano biológico, superior em € 15.000,00 (quinze mil euros), portanto, no montante de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros), e, quanto ao dano não patrimonial, identicamente, superior em €15.000,00 (quinze mil euros), portanto, no montante de €40.000,00 (quarenta mil euros).

4. Portanto, na fixação de ambas as parcelas indemnizatórias, demonstrou o Tribunal a quo omissão de fundamentação, apreciação e interpretação detalhadas, culminando numa indemnização absolutamente desproporcional ao caso sub judice, sendo certo que sempre se impunha uniformidade de critérios, em observância do princípio da igualdade.

5. Ademais, o princípio da proporcionalidade sempre demanda que aos danos mais graves correspondesse uma indemnização mais generosa, em prol da uniformidade, considerando os parâmetros jurisprudenciais geralmente adoptados para os casos análogos, tais como a idade do lesado e os respectivos danos.

6. Aliás, os Tribunais Superiores têm vindo a fixar indemnizações substancialmente inferiores àquela em que foi a Recorrente condenada em 2.ª Instância.

7. Com efeito, impõe-se invocar a nulidade do acórdão recorrido, sob a égide do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, aplicável exvi artigo 666.º, n.º 1, do CPC, fazendo-se, adicionalmente, referência ao consignado pelo artigo 608.º, n.º 2, do CPC, aplicável exvi artigo 663.º, n.º 2, do CPC, o qual determina que as questões a ser resolvidas pelo Tribunal devem contender com a substanciação da causa de pedir e do pedido, o que efectivamente sucede no caso sub judice.

8. O presente recurso não se prende meramente com a discordância quanto à tese defendida no acórdão recorrido, que sustenta as parcelas indemnizatórias arbitradas, mas sobretudo com o facto do Tribunal a quo ter feito tábua rasa, quanto ao dano biológico, do cálculo aritmético, sustentado no rendimento salarial médio mensal líquido dos trabalhadores por conta de outrem (cerca de € 900,00), no ano de 2021, e na esperança média de vida das mulheres (83 anos), já pugnado pelo Tribunal de 1.ª Instância, atendendo que não se logrou apurar o vencimento auferido pela Recorrida aquando da ocorrência do acidente, e, quanto ao dano não patrimonial, do aresto enunciado que, contrariamente aos enunciados pela Recorrida nas suas alegações de recurso, se reporta inequivocamente a um caso análogo.

9. Não obstante, cumpre evidenciar que não estamos perante uma questão que se encontre prejudicada pelas demais, isto é, pela solução dada a outra questão, bem como que os critérios apresentados não devem ser havidos tão só como argumentos aduzidos pela Recorrente em defesa ou reforço da sua posição, sobre os quais o Tribunal não tem obrigação de dar resposta especificada ou individualizada, dado que consubstanciam argumentos que reforçam a necessidade de uniformidade de critérios, que não veio a ser alcançada pelo Tribunal de 2.ª Instância.

10. Quanto ao dano biológico, não corresponde à realidade que, aquando do acidente, em 2017, a Recorrida tinha o salário mensal no valor de € 1.330,00 (mil trezentos e trinta euros), acrescido de subsídio de alimentação no valor diário de € 6,60(seis euros e sessenta cêntimos), aumentados, respectivamente, em 2018, para € 1.360,00 (mil trezentos e sessenta euros) e € 6,80 (seis euros e oitenta cêntimos), considerando o facto integrante da factualidade dada como não provada.

11. Quanto ao dano não patrimonial, enquanto a Recorrente se socorreu de um aresto referente a caso análogo para justificar o valor a arbitrar à Recorrida, o Tribunal a quo enunciou dois arestos que reflectem situações bem mais gravosas que a dos autos.

12. Face ao exposto, perante a arguida nulidade de omissão de pronúncia, impõe-se a anulação do acórdão recorrido pelo Tribunal ad quem, devendo o processo baixar ao Tribunal a quo, a fim de proceder à reforma da decisão a pronunciando-se convenientemente sobre os critérios pugnados.

13. Caso assim não se entenda, por mera cautela de patrocínio, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, consequentemente, revogado o segmento decisório que condenou a Recorrente a pagar à Recorrida o montante global de € 105.000,00 (cento e cinco mil euros), sendo € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros) a título de dano biológico e € 40.000,00 (quarenta mil euros) a título de dano não patrimonial, substituindo- e por decisão que mantenha as parcelas indemnizatórias arbitradas pelo Tribunal de 1.ª Instância, a saber montante de €50.000,00(cinquentamil euros) a título de dano biológico e dano futuro e € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) a título de dano não patrimonial.

Nestes termos, e nos que V. Exas. muito doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser declarado nulo o acórdão em crise, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), aplicável por força do artigo 666.º, n.º 1, do CPC, com as legais consequências.

Caso assim não se entenda, por mera cautela de patrocínio, Deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, consequentemente, revogado o segmento da decisão que condenou a Recorrente apagar à Recorrida o montante global de € 105.000,00 (cento e cinco mil euros), sendo € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros) a título de dano biológico e € 40.000,00 (quarenta mil euros) a título de dano não patrimonial, substituindo-se por decisão que mantenha as parcelas indemnizatórias arbitradas pelo Tribunal de 1.ª Instância, a saber montante de €50.000,00(cinquentamil euros) a título de dano biológico e dano futuro e € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) a título de dano não patrimonial.

A Autora contra-alegou, pugnando pela manutenção do Acórdão recorrido.

Pelo Tribunal recorrido foi proferido Acórdão que julgou não verificadas e improcedentes as nulidades invocadas pela recorrente nas suas alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que o recurso é delimitado pelas conclusões da Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635 n.º 4 e 639 n.º 1, ex vi, art. 679, todos do Código de Processo Civil.

A questão ou questões cujo conhecimento se demanda na presente revista prendem-se, para além da nulidade invocada por omissão de pronúncia (art. 615º nº 1 al. d) do CPC), com os critérios adoptados pelo Tribunal recorrido na apreciação dos valores indemnizatórios a título de danos não patrimoniais e de dano biológicos/danos futuros e não patrimoniais, pretendendo a recorrente que os mesmos devem ser revertidos aos valores fixados na 1ª instância.

Como vimos a 1ª instância fixou a indemnização pelo dano biológico e futuros em 50.000 euros (cinquenta mil euros) e em 25.000 euros (vinte e cinco mil euros) pelos danos não patrimoniais, mais condenando a Ré nos danos futuros que eventualmente venham a surgir como consequência do acidente.

Apelando a Ré para a Relação, pretendendo que a indemnização a título de dano biológico e “futuros” seja fixada em 100.000,00€ e a compensação pelos danos não patrimoniais em 40.000,00€, veio a ser proferido Acórdão que fixou a indemnização pelo dano biológico no montante de € 65.000 (sessenta e cinco mil euros) e a indemnização correspondente aos danos não patrimoniais no montante de € 40.000 (quarenta mil euros).

Antes do mais, renovemos aqui o acervo fáctico que ficou apurado nas instâncias:

1) No processo crime com o nº 1691/17.1..., foi proferida sentença transitada em julgado, tendo-se considerado provados os seguintes factos “No dia 19.08.2017, cerca das 23:20h, a arguida BB conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Renault, de cor azul, com matrícula ..-HQ-.., na Rua ..., em ..., no sentido Largo ... - Rua ..., sentido ascendente, a velocidade não concretamente apurada, mas não superior a 50 Km/h. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, caminhavam, junto a bares ali existentes, na faixa de rodagem e no passeio direito da via, várias pessoas, nas quais se incluía AA. A via referida supra tem uma inclinação acentuada. A faixa de rodagem tem 2,55m de largura e é ladeada por passeios em calçada, sem lancil, com 0,65 cm. A arguida não abrandou, nem parou, a marcha ao visualizar na rua um aglomerado de dezenas de pessoas a circular apeadas, que ocupavam muitos deles a faixa de rodagem. Nessa sequência, a arguida, ao conduzir o dito veículo, embateu com a parte lateral do mesmo no corpo de AA, levando-a a desequilibrar-se e a cair ao solo, passando de seguida com uma das rodas da viatura sobre a perna direita de AA. A arguida parou a viatura poucos metros à frente do referido embate. No local não existiam vestígios ou marcas de travagem. A velocidade permitida no local é de 50 km/h. Como consequência directa e necessária da actuação da arguida, AA sentiu dores e sofreu as lesões descritas no relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, de fls. 216 e seguintes, designadamente:

- Fractura difásica da perna direita;

- Lesão distal do ciático popliteu externo à direita, iatrogénica, com capacidade de dorsiflexão do pé e extensão dos dedos. Lesões estas que, de forma directa e necessária, demandaram um período de doença de 356 dias, sendo 20 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e 258 com afectação da capacidade de trabalho profissional, e com consequências permanentes. A arguida conhecia o local, sabendo que é uma rua estreita e que, no período de verão, é frequentada por muitas pessoas, pelo facto de nela existirem diversos estabelecimentos de restauração e diversão nocturna. Ao circular naquela via como descrito, desatenta, a arguida imprimiu ao veículo que conduzia uma velocidade que não lhe permitiu imobilizá-lo a tempo de evitar colher o corpo de AA. A arguida, embora podendo fazê-lo, atuou de forma descuidada e não procedeu com a cautela e atenção que devia e podia observar no exercício de uma condução prudente, desrespeitando a velocidade adequada às condições da via por onde circulava, nomeadamente moderando a velocidade, travando e parando se necessário, ou contornando qualquer obstáculo, não conseguindo a arguida imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, continuando a sua marcha sem travar, sem abrandar ou se desviar, desconsiderando a existência de um aglomerado de pessoas na zona, vindo, por tais motivos, a causar a AA as lesões acima descritas, situação que também poderia ter previsto e evitado. A arguida agiu livre e conscientemente, querendo conduzir como se apurou, mas sem prever, nem se conformar com a verificação de um acidente. A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. A arguida está reformada e aufere a título de reforma a quantia de €450 mensais; vive sozinha em casa camarária, pela qual paga a renda social no valor mensal de €50,00. (…)”.

2) No processo crime com o nº 1691/17.1..., decidiu-se “(…) Condenar a arguida BB pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148.º, n.º 1, do CP, na pena de quarenta dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis), perfazendo o total de € 240,00; Condenar a arguida BB na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses; (…)”.

3) No dia 19 de Agosto de 2017, pelas 23h20, a Autora sofreu um acidente, sendo atropelada, no passeio, pelo veiculo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Renault, de cor azul, de matricula ..-HQ-.., na Rua da ... em ....

4) No dia referido em 3, a Autora estava de férias no ... com a família, estando a caminhar com a mesma no passeio da localidade onde sofreu o atropelamento.

5) O veículo de matrícula ..-HQ-.. contraiu seguro automóvel obrigatório com a Ré, ao qual foi atribuída a apólice nº. ........75.

6) A via onde ocorreu o sinistro encontrava-se iluminada e com boa visibilidade.

7) A via onde ocorreu o sinistro tem uma largura de 2,55 m e passeio com 0,65 cm, sendo a faixa de rodagem em asfalto, sendo a berma/passeio em calçada, sem lancil, ao mesmo nível da estrada e encontra-se ladeada por bares de diversão noturna.

8) No dia do acidente e na via encontravam-se outras pessoas a transitar no local, dado que se trata de uma zona de grande concentração de pessoas.

9) A condutora da viatura ..-HQ-.. seguia no sentido ascendente da via, sentido Largo ... a uma velocidade não concretamente apurada, mas inadequada para o local.

10) O veículo de matrícula ..-HQ-.. embateu na Autora e noutra transeunte, invadindo o passeio, sendo que apenas circulava o veículo de matrícula ..-HQ-.. no momento do acidente e, entre este e os passeios laterais,caso o veículo se encontrasse no meio da via distam pelo menos 30 cm.

11) A Autora e seus familiares encontravam-se no lado direito da via, tento o sentido de marcha do veículo automóvel.

12) A condutora da viatura segura na Ré embateu com a frente direita, zona de para-choques e matrícula e com o espelho retrovisor na Autora, não havendo no local vestígios de travagem.

13) A Autora, com o embate, e por força deste, caiu na zona junto à berma, tendo o veículo passado com uma das rodas sobre a perna direita da Autora, ficando de imediato imobilizada.

14) A Autora foi assistida no local do acidente no passeio, e conduzida pelo INEM ao Hospital Distrital de ....

15) Do atropelamento da Autora resultaram lesões e poderão vir a ser diagnosticadas outras futuramente.

16) Do atropelamento da Autora resultou uma fratura difásica da perna direita e lesão distal do ciático popliteu externo à direita, iatrogénica, com capacidade de dorsiflexão do pé e extensão dos dedos.

17) As lesões referidas em 16, determinaram um período de doença de 356 dias, sendo 20 dias com afetação da capacidade de trabalho geral e 258 com afetação da capacidade de trabalho profissional e com consequências permanentes que ainda hoje se verificam e algumas limitações que se vão manter para o resto da sua vida, inclusive incapacidade para realizar plenamente a sua atividade profissional.

18) A Autora trabalhava numa agência de viagens, e como guia turística realizava viagens de grupos no estrangeiro e dado o atropelamento ficou incapacitada de os realizar e não mais poder realizar devido às lesões sofridas e as consequências das mesmas devido ao atropelamento, o que comporta uma grave perda financeira para si, para além da frustração pessoal o que a deprimiu e deprime.

19) Devido ao acidente de 19.08.2017, precisa a Autora, continuamente, de Fisioterapia para a sua recuperação e mobilidade.

20) A Autora, para além de ser seguida pelo médico do seguro, tem também acompanhamento de médico a nível particular para complementar quer os tratamentos quer para que seja rigorosa a analise às suas capacidades, pois ainda existe a necessidade de uma intervenção cirúrgica para remoção do material instalado para corrigir as lesões sofridas.

21) Os Médicos do seguro, nomeadamente, o ortopedista que é o gestor do processo clínico no dia 4 de Maio de 2018 deu alta médica à Autora.

22) No entanto, a Autora continua a ser seguida pelos médicos que a nível particular a continuam a tratar e sobre todo o seu estado até à atualidade têm emitido relatórios.

23) A Autora começou a trabalhar em Maio de 2018 com restrição de 30% e obteve alta em Agosto de 2018.

24) A Autora, foi mensalmente convidada para viagens de grupo como guia turística mas foi obrigada a recusar devido às lesões sofridas e incapacidade provocada por elas.

25) O acidente veio causar a instabilidade da Autora, pela frustração de devido ao acidente ter ficado com incapacidade para o seu trabalho de forma plena como realizava, e porque as lesões serão permanentes.

26) A Autora passou a viver em constante angústia e amargura por ser privada da sua vida ativa e plena quer pessoal quer profissional que tinha.

27) A Ré já reembolsou a Autora do montante global de 16.694,35 euros, relativos a consultas, medicamentos, tratamentos, deslocações e perda de salário.

28) Para além do valor referido em 27, com tratamentos, medicação, consultas a Autora despendeu o montante global de 2.974,55 euros.

29) No relatório pericial conclui-se: “A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 10/08/2018. Período de Défice Funcional Temporário Total sendo assim fixável num período de 11 dias. Período de Défice Funcional Temporário Parcial sendo assim fixável num período de 376 dias. Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total sendo assim fixável num período total de 275 dias. Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial sendo assim fixável num período total de 112 dias. Quantum Doloris fixável no grau 5/7. Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 15 pontos. As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares. Dano Estético Permanente fixável no grau 3/7. Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 2/7. Ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares;(…)”

30) A Autora nasceu a ... .11.1970.

31) A Autora ficou desempregada em Novembro de 2020, por motivo não apurado.

32) O Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de..., concedeu provisoriamente à Autora subsídio de doença no montante de 3.484,83 euros, em consequência do sinistro ocorrido em 19 de Agosto de 2017.

33 – Quando do acidente, em 2017, a autora tinha o salário mensal de € 1330, acrescido de subsídio de alimentação de € 6.60 diários, tendo a partir de 01-04-2018 passado a auferir o salário mensal de €1360 e o subsídio de alimentação de € 6.80.

APRECIANDO:

I – Sobre a invocada nulidade do Acórdão recorrido, por omissão de pronúncia (art. 615º nº 1 al. d) do CPC):

Vejamos:

As causas de nulidade da decisão, taxativamente enumeradas nesse artigo 615º, conforme se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2017, “visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.”.

Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, mas o mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando, que inerem à decisão de mérito, seja mercê de deficiente perceção da realidade fáctica (error facti), seja por erro na aplicação do direito (error juris), resultando a decisão em termos desajustados à realidade ontológica ou normativa, sendo atacável por via de recurso e não determinativos daquela invalidade.

A nulidade processual invocada, por omissão de pronúncia, a que alude o art. 615º nº1 d) CPC, sucede “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Tal regra está diretamente relacionada com o comando “ordem do julgamento” ínsito no art. 608º nº 2 do CPC, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões) relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido.

Como resulta do preceito, na sentença o juiz “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

Sustenta a apelante que a decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia, porque a Relação “ não apreciou convenientemente a resposta às alegações de recurso apresentada pela Recorrente, atendendo que não tomou posição quanto à fundamentação vertida,isto é,quanto ao dano biológico,ao recurso ao cálculo aritmético, sustentado no rendimento salarial médio mensal líquido dos trabalhadores por conta de outrem e na esperança média de vida das mulheres, e, quanto ao dano patrimonial, no aresto invocado e transcrito, referente a um caso análogo, em oposição aos enunciados pela Recorrida nas suas alegações de recurso, que justificam à manutenção das parcelas indemnizatórias fixadas em 1.ª Instância”.

Mais sustentando que não basta “em sede de fundamentação, a menção do critério da equidade e da razoabilidade, assim como dos parâmetros apurados em 1.ª Instância (défice funcional, dano estético e quantum doloris).”

O que a recorrente invoca é, no fim de contas, que o Tribunal não respondeu aos fundamentos vazados pela recorrente em sede de contra-alegações.

Ora, ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607º nº 3 do CPC, havendo nulidade da decisão, que implica a sua invalidade, quando faltem a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão em termos absolutos, não constituindo a mera deficiência de fundamentação qualquer nulidade, pois que a simples indicação do preceito legal aplicável pode constituir fundamentação suficiente (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág 735).

A absoluta falta de fundamentação ou omissão absoluta de motivação é determinante da nulidade da decisão, nos casos de falta de discriminação dos factos provados, ou de genérica referência a toda a prova produzida na fundamentação da decisão de facto, ou de meros conclusivos juízos de direito, e não apenas em situações de mera deficiência da mesma (33Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, pág. 370; Lebre de Freitas, in ob. cit., pág. 332; , de fundamentação alegadamente insuficiente e, ainda menos, de putativo desacerto da decisão Ac. STJ de 2/6/2016, Processo 781/11 e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, Almedina, pág. 737 e Acs. STJ. de 14/11/2006, Proc.06A1986; de 17/04/2017, Proc. 07B418; R.C. de 16/10/2012, Proc. 127963/11.1YIPRT.C1; RG. de 14/05/2015, Proc. 853/13.2TBGMR.G1, todos in dgsi.pt), de fundamentação alegadamente insuficiente e, ainda menos, de putativo desacerto da decisão (Ac. STJ de 2/6/2016, Processo 781/11 e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, Almedina, pág. 737)

E nos casos em que o vício da deficiente fundamentação se coloque ao nível da decisão sobre a matéria de facto, esse vício tem de ser solucionado mediante as regras próprias enunciadas nos nº 1 e 2 do art. 662º.

No caso vertente, não foi suscitado erro de construção do silogismo judiciário, mas, meramente, a relevância dada no Acórdão a certos factos e sua interpretação e valoração jurídica, questão que se prende com erro de julgamento, nunca com a construção lógica da sentença, porquanto o Tribunal conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, de todas as causas de pedir, das exceções invocadas e de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608º nº 2 do CPC), não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado” (sublinhado nosso) (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 737).

Assim, cabe distinguir “questões” das “razões ou argumentos”, pois que uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, como no caso vertente apreciou, e outra, diversa, é invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção.

Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito e já não os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir e a questão resolvida pelo juiz (Ac. do STJ, de 20/10/2015, proc. 372/10).

É neste ponto que a recorrente invoca a nulidade do Acórdão recorrido, faltando-lhe, por conseguinte toda a razão.

“São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões” (Ibidem, págs. 55 e 143

A não pronúncia pelo tribunal quanto a questões que lhe são submetidas determina a nulidade da sentença, não sendo suscetível de determinar a falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.

Assim improcedendo a nulidade invocada pela recorrente.

II – Da valorização do dano biológico e dano futuro.

Insurge-se a recorrente contra a cifra indemnizatória fixada pela Relação pelo dano biológico na modalidade de dano futuro sofrido pela Autora.

Como é sabido, nas sociedades modernas que integramos a saúde é interpretada como um direito fundamental dos cidadãos, proclamada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu artigo 25º, segundo o qual “toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade”.

Assim como a Constituição da República Portuguesa postula a inviolabilidade da integridade física e moral dos cidadãos e o art. 64º o direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover.

A saúde e a doença constituem nos dias de hoje um binómio de primeira linha aos nível das políticas sociais implementadas nas sociedades modernas, tal é a diversidade das situações que se repercutem directamente na realidade complexa e dinâmica, à escala global que as mesmas encerram, tal é nos dias de hoje a facilidade de deslocação de uma simples bactéria ou de um simples e tremendo vírus, entre países e continentes, com carga infecciosa que pode ser letal, veja-se o caso do Covid 19, que coloca as organizações mundiais, nomeadamente a OMS, as governações e o mundo em geral em estado de alerta máximo, assumindo-se a saúde e a luta contra a doença como desígnios primeiros da Sociedade das Nações.

Na sua crescente complexidade e dinamismo, os fenómenos da Saúde, em sentido lato, assim como da Doença, assumem plúrimas dimensões, sejam elas biológicas, psicológicas, socioculturais, económicas e ambientais, o que se revela determinante da obrigação de cada cidadão, que, nas sociedades evoluídas em que se integra, beneficia da protecção do Estado e das instituições públicas e privadas no que a essa realidade respeita, colaborar no sentido da sua autovigilância e adopção de condutas preventivas da doença, mas também da sua obrigação de indemnizar aquele cujo bem estar e saúde tiver afectado em consequência de sua conduta, em ordem ao desejável equilibrado bom funcionamento dos sistema de saúde de que todo e qualquer cidadão deverá fazer parte, sistema de saúde que a Organização Mundial da Saúde (2010) define como “um sistema de saúde consiste de todas as organizações, instituições, recursos e pessoas cuja proposta primária é melhorar, promover, restaurar ou manter a saúde”.

Exige, pois, o sistema de saúde a instalação de uma responsabilidade social, individual e colectiva, também de ordem institucional, dada a rede de organizações públicas e privadas que a compõem.

No contexto desta realidade, como fenómeno muito perturbador, inscreve-se o flagelos dos acidentes de viação, que, diariamente e por todo o mundo, dão origem a estados de doença de diversa natureza, de ordem física e psicológica, que se repercutem na vida das pessoas que deles são vítimas, que sofrem os correspondentes danos de natureza patrimonial e não patrimonial, neste aparentemente simples mas complexo acervo se inscrevendo o dano biológico, cuja natureza híbrida se veio revelando na doutrina jurídica e na jurisprudência.

Como lucidamente é referido no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 23/03/2020, (processo 1456/16.5T8VCT.G1.S1), “A expressão “dano biológico” é usada pela doutrina e pela jurisprudência com intuito de superar a rígida distinção entre danos patrimoniais e danos não patrimoniais, que é desadequada à natureza e à unidade da pessoa humana.
O dano biológico é concebido como um dano com duas dimensões ou vertentes: patrimonial ou não patrimonial, consoante se materialize ou não em perdas de natureza económica.
A ressarcibilidade do dano biológico na sua vertente patrimonial (também designado “dano patrimonial futuro”) não depende da comprovada perda de rendimentos do lesado, podendo e devendo o julgador ponderar, designadamente, os constrangimentos a que o lesado fica sujeito no exercício da sua actividade profissional corrente e na consideração de oportunidades profissionais futuras
”.

É este específico, mas não absolutamente determinável dano, porquanto o mesmo se desenha muitas vezes em paredes meias com o dano não patrimonial e não patrimonial, sendo vertente de um destes, que na presente revista está em primeiro plano de discussão, importando encontrar o valor indemnizatório que possa corresponder, para a autora que fora vitimada pelo acidente causado pela segurada na recorrente, à reconstituição da situação pré-existente ao evento lesivo, conforme dispõe o artigo 562º do Código Civil (CC), abrangendo não só o prejuízo causado, mas também os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, devendo o tribunal atender aos danos futuros nos termos do art. 564º nº1 e 2 e, não menos importante, deve ser calculada em dinheiro, na possibilidade frequente verificada no caso que se analisa, de a reconstituição natural não ser possível, como dispõe o art. 566º do CC.

Como se afirma com clareza no recente Acórdão do STJ de 6 de Junho de 2023 (processo 9934/17.2T8SNT.L1.S1), que subscrevemos como adjunto, Independentemente de reportarem a uma concreta incapacidade laboral genérica - com redução consequente da capacidade de ganho no caso dos lesados com atividade laboral e o acidente ser de trabalho ou a uma perda da capacidade de ganho, distinta, no caso de o acidente não ser de trabalho ou os lesados não terem atividade laboral (nomeadamente por não terem entrado ainda no mercado de trabalho) - ou a qualquer lesão nos direitos integrantes da personalidade (desde logo o direito à vida, à saúde, ao corpo e à imagem) a indemnização deveria atingir por força do citado art. 483 nº1 do CCivil todas essas dimensões em que se tivesse repercutido a lesão, desde que alegadas e provadas. Danos como os incidentes na avaliação da intensidade das dores (o “quantum doloris”); o “dano estético” com rebate no prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; o “prejuízo de afirmação social”, respeitante à inserção social do lesado nas suas variadíssimas vertentes (familiar, profissional, sexual, afetiva, recreativa, cultural e cívica); o “prejuízo da saúde geral e da longevidade” traduzido no dano da dor e no défice de bem estar, valorizando-se os danos irreversíveis na saúde e no bem estar da vítima e corte na expectativa da vida e, também, o “pretium juventutis”, sublinhando a frustração da possibilidade de viver em pleno a vida de juventude, a todas estas dimensões, a todos eles existem referências mais ou menos identificáveis, eventualmente com diferenças semânticas, nas decisões dos tribunais e no tratamento dos danos cabíveis nos de natureza não patrimonial e com avaliação segundo os critérios de equidade”.

O recurso a critérios de equidade constitui procedimento judicativo essencial no que toca aos danos não patrimoniais que, nos termos do art. 496º nº 1 do CC, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo o seu montante é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º - o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.

Vem sustentando este STJ, designadamente nos Acórdão de 20.05.2010 (Processo n° 103/2002.L1.S1) e de 26.01.2012 (Processo n° 220/2001-7.S1), aresto este em que é feita uma resenha histórica do surgimento do conceito dano biológico, que neste tipo de se integra toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoa e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais.

O dano biológico reflete-se negativamente nas capacidades em geral e na qualidade de vida do lesado, constituindo um estigma em si potencialmente susceptível de afectar o lesado nas suas rotinas funcionais, nas mais diversas dimensões, designadamente nas laborais, físicas, psíquicas, intelectuais sociais, sentimentais, sexuais, recreativas e outras, sendo por si determinante de prejuízo futuro, um prejuízo que se vai evidenciando e tornando mais penoso com o passar do tempo.

Podendo não pôr em causa a realização dessas vertentes ou dimensões da vida do lesado, mesmo na laboral específica, poderá exigir do lesado, para a sua concretização esforços acrescidos, conduzindo-o a uma posição de inferioridade no âmbito social e profissional em que as mesmas se enquadram, mormente na dimensão laboral genérica, decorrente dos esforços suplementares necessários para a execução do trabalho e da predisposição anímica integral para o exercer de forma totalmente gratificante numa perspetiva de realização pessoal (neste sentido se tendo expressado o citado Acórdão do STJ de 24-2-2022 - processo 1082/19.7T8SNT.L1.S1)), traduzindo-se assim num dano que se converte na diminuição somático-psíquica do indivíduo.

Ora, dada a natureza híbrida do dano biológico, este pode ser considerado como dano patrimonial, assim como pode inscrever-se no espaço dos danos não patrimoniais, na medida em que as respectivas consequências tiverem repercussão num ou noutro âmbito, tal dependendo da situação concreta em que se verifique, como tal se impondo a sua apreciação casuística, em ordem a constatar-se se tal dano virá a originar, no futuro e durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho, ou se o mesmo se traduz apenas numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade.

Com um enquadramento ou com outro, que seja classificado como dano patrimonial, que seja visto como dano não patrimonial. O dano é em si ressarcível, como dano autónomo, mesmo quando não sejam verificadas consequências em termos de perda de capacidade aquisitiva.

Neste sentido se vem pronunciando maioritariamente a Jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, designadamente, também no citado Acórdão de 24-2-2022 e Maria da Graça Trigo, in O conceito de dano biológico como concretização jurisprudencial do princípio da reparação integral dos danos – Breve contributo, Revista Julgar, n.º 46 págs. 268 e segs.

Como também se decidiu no Acórdão de 21-01-2016 (proc. 1021/11.3TBABT.E1.S1) “[a] indemnização a arbitrar pelo dano biológico, consubstanciado em relevante limitação ou défice funcional sofrido pelo lesado, perspetivado na ótica de uma capitis deminutio na vertente profissional, deverá compensá-lo, apesar de não imediatamente refletida em perdas salariais imediatas ou na privação de uma específica capacidade profissional, quer da relevante e substancial restrição às possibilidades de obtenção, mudança ou reconversão de emprego e do leque de oportunidades profissionais à sua disposição, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua atividade profissional corrente, de modo a compensar as deficiências funcionais que constituem sequela das lesões sofridas”.

No caso vertente, temos que a lesada Autora recorrida preenche uma situação em que em resultado das lesões sofridas fica a padecer de um défice funcional permanente na sua integridade física de 15 pontos com previsível agravamento das sequelas sendo estas compatíveis com a sua profissão, mas implicando esforços suplementares, para além do dano estético permanente fixável no grau 3/7 e da repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 2/7. Ajudas técnicas e ainda a sujeição permanente a ajudas medicamentosas e tratamentos médicos regulares.

Não sendo o dano em causa susceptível de avaliação exacta, esta terá de ser efectuada recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566 º n.º 3 do CC, sendo certo que o legislador não definiu o conceito de equidade, deixando a sua densificação para os aplicadores do Direito.

Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela (in Noções Fundamentais Dir. Civil, 6.ª ed., 104, nota 2), a equidade é a justiça do caso concreto. Julgar pela equidade é procurar a justiça do caso concreto "limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal" (DARIO MARTINS DE ALMEIDA, Manual de Ac. De Viação, 1980, pp ­103/104), ou como diz ANA PRATA (Dicionário Jurídico – 4ª ed.- 2005-499), "julgar segundo a equidade significa dar a um conflito a solução que parece mais justa, atendendo apenas às características da situação e sem recurso à lei eventualmente aplicável. A equidade tem, consequentemente, conteúdo indeterminado, variável de acordo com as concepções da justiça dominantes em cada sociedade e em cada momento histórico".

Do que se trata, portanto, é de encontrar a solução mais equilibrada no contexto da prova disponível.

Aqui chegados, e passando aos critérios de fixação da indemnização corresponde ao dano biológico, independentemente de estarem em causa danos patrimoniais ou não patrimoniais, como bem referenciado é no recente e já referido Acórdão do STJ de 6 de Junho de 2023, este Supremo Tribunal tem entendido que o controlo da fixação equitativa da indemnização, designadamente em sede de recurso de revista, deve concentrar-se em quatro aspetos “[E]m primeiro lugar, deve averiguar-se estarem preenchidos os pressupostos normativos do recurso à equidade. Em segundo lugar, terem sido consideradas as categorias ou os tipos de danos cuja relevância é admitida e reconhecida. Em terceiro lugar, se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram considerados os critérios que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, deveriam ser considerados – v.g. no caso da indemnização por danos não patrimoniais se foram considerados o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do lesante e a situação económica do lesado -. Em quarto lugar, se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram respeitados os limites que, de acordo com a legislação e com a jurisprudência, deveriam ser respeitados. Está em causa fazer com que o juízo equitativo se conforme com os princípios da igualdade e da proporcionalidade – e que, conformando-se com os princípios da igualdade e da proporcionalidade, conduza a uma decisão razoável” – ac. STJ de 12-11-2020 no proc. 317/12.1TBCPV.P1.S1 in dgsi.pt.

E como também vem maioritariamente sendo sustentado neste mesmo Supremo Tribunal “A equidade praticada ou a praticar não pode afastar-se de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que se entende, generalizadamente, deverem ser adotados numa jurisprudência evolutiva e atualística para não abalarem a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade de adoção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados e, em última análise, o princípio da igualdade, não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso.” – ac. STJ de 19-10-2021 no proc. 7098/16.8T8PRT.P1.S1 in dgsi.pt.

De acordo com a orientação reiterada da jurisprudência deste Supremo Tribunal, os sendo os danos patrimoniais indetermináveis fixados segundo juízos de equidade - art. 566 nº 3, do CCivil - não compete ao Supremo Tribunal de Justiça “a determinação exata do valor pecuniário a arbitrar, mas tão somente verificar os limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto, sem embargo de a sindicância do juízo equitativo não afastar a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade (ao abrigo do regime do art. 13º da Constituição e do art. 8º, nº 3, do Código Civil), o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto” (Ac. STJ de 24-2-2022 citado e a jurisprudência do STJ aí mencionada).

Este Supremo Tribunal de Justiça tem entendido de forma consolidada que “o juízo de equidade das instâncias deve ser mantido salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade, isto é, se o critério adotado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adotados, numa jurisprudência evolutiva e atualística (acórdão do STJ de 30-03-2023, Revista n.º 15945/18.3T8PRT.P1.S1, Relator Manuel Capelo, em que o ora relator foi adjunto), “abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e, em última análise, o princípio da igualdade”, no seguimento do Acórdão Ac. de 20/5/10, proferido no proc. 103/2002.L1.S1, que, por sua vez, encontra apoio no Ac. de 5/11/09, proferido no P. 381-2002.S1.

Como resulta também do Acórdão do STJ de 03-05-2023 (Revista n.º 291/09.1TCFUN-A.L2.S1, “quando o cálculo de um montante indemnizatório tenha assentado em juízos de equidade, não compete ao STJ a determinação do valor pecuniário, até porque a pura aplicação de tais juízos já não se consubstancia, em bom rigor, numa apreciação de uma questão de direito. As atribuições do STJ reportam-se a sindicar se o recurso à equidade foi indevidamente utilizado, porquanto competia ao tribunal aplicar critérios de cariz normativo, decorrentes dos preceitos normativos atendíveis, bem como aferir se foram ultrapassados os limites do acervo fáctico apurado, pois tal constitui violação da lei, e nessa medida abrangidos pelos poderes desse tribunal.”

A mero título exemplificativo, todos no sentido acima descrito, vejam-se os acórdãos do STJ de 11-05-2023 (Revista n.º 552/07.4TVPRT.P2.S2 – Oliveira Abreu), de 12-04-2023 (Revista n.º 935/20.4T8VRL.G1.S1), de 28-03-2023 (Revista n.º 3410/20.3T8VNG.P1.S1), de 31-01-2023 (Revista n.º 795/20.5T8LRA.C1.S1) e de 15-09-2022 (Revista n.º 2374/20.T8PNF.P1.S1), Relatora Fátima Gomes.

No caso concreto dos autos, atendendo ao valor fixado pela Relação e à factualidade provada, cremos que o juízo de equidade se contém perfeitamente dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima tal valoração, não tendo o critério adotado afastado, de modo substancial e injustificado, os critérios ou padrões que generalizadamente se encontram subjacentes a uma jurisprudência evolutiva e atualística, assim como se revela claro que o critério adoptado pelo Tribunal recorrido em sede de ponderação equitativa da cifra indemnizatória não abala de forma alguma a segurança na aplicação do direito, decorrente da adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, ajustados à realidade apurada, e em última análise, à observância do princípio da igualdade.

Como é referido no Acórdão de 6 de Junho de 2023, que subscrevemos como adjunto, tendo por isso todo o sentido seguir de perto, “a fixação da incapacidade geral de ganho com recurso à equidade (por força do art. 566 nº 3 do CC), realiza-se em função dos seguintes indicadores: a idade do lesado e a sua esperança de vida; o seu grau de incapacidade geral permanente (isto é, a percentagem do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica); as suas potencialidades de ganho em profissão ou atividades económicas compatíveis com as suas qualificações e aquele défice; outros que se revelem no caso e jurisprudência anterior.

Não se fixa através de tabelas utilizadas para determinação dos danos patrimoniais resultantes da IPP para o exercício da profissão habitual – havendo neste ponto uma corrente de entendimento, mesmo no STJ, que continua a referir a esta forma de cálculo como base para o posterior funcionamento da equidade, advertindo no entanto não ser esse cálculo determinante mas apenas um instrumento de abordagem tendente a contribuir para uma maior certeza, segurança e igualdade de um juízo sempre presidido pela equidade.”

A equidade, todavia, não dispensa a observância do princípio da igualdade; o que obriga ao confronto com indemnizações atribuídas em outras situações. “A prossecução desse princípio implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso (acórdão de 22 de janeiro de 2009, proc. 07B4242, www.dgsi.pt). Nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de janeiro de 2012 (www.dgsi.pt, proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1). “Os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vetores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha reta à efetiva concretização do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição” ( cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Fevereiro de 2013, www.dgsi.pt., proc. n.º 2044/06.0TJVNF.P1.S1).

Ora, ponderando os elementos que serviram de suporte à decisão recorrida para fixar as indemnizações, conjugando-os com os critérios de equidade de que lançou mão, mormente a circunstância de se tratar de uma mulher com 47 anos de idade à data do acidente, a sua esperança de vida laboral e biológica, bem como o nível de limitação de que passou a ser portadora, que, de forma indelével, a marcou na sua personalidade e na sua capacidade para o desenvolvimento da sua actividade laboral, sendo certo que deixou de trabalhar em 2020, não podendo excluir-se que tal terminus funcional não tenha a ver com o acidente e a incapacidade de que ficou portadora, pese embora a mesma para tanto não a incapacitasse, e ainda a circunstância de a Autora ter perdido a sua natural alegria de viver, o tal “pretium juventutis”, tanto quanto é certo que deixou de poder fazer as viagens de lazer que fazia mensalmente, também as deixando de fazer como guia turística, devido às lesões sofridas e incapacidade provocada por elas, tornando-se uma mulher angustiada, amargurada, instável e frustrada, mercê da incapacidade de que se viu definitivamente vitimada, pois as lesões serão permanentes, sob o ponto de vista da plena realização das suas tarefas, deixando de ter a vida ativa e plena que gozava antes do acidente.

Assim revelando um dano multiforme que atingiu a Autora na sua integridade físico-psíquica de forma muito marcante, a ponto de lhe deixar sequelas no corpo e no espírito para o resto da vida, num momento em que ainda era uma mulher relativamente jovem, havendo que ponderar que à data do acidente, em 2017, auferia o salário mensal de € 1330€, acrescido de subsídio de alimentação de €6.60 diários, tendo no ano de 2018 passado a auferir o salário mensal de € 1360 e o subsídio de alimentação de €6.80, tudo ponderado, haveremos de concluir que o montante indemnizatório fixado pelo Tribunal recorrido em 65.000,00 €, correspondente aos danos biológico e futuros sofridos pela Autora, porque encontrado através de um exercício criterioso e equilibrado de observação dos elementos concretos e não abstratos que servem o juízo de equidade.

Apenas uma referência à circunstância de este tribunal não poder alterar a matéria de facto fixada pela Relação no ponto 33 dos factos provados com base na sua livre apreciação dos meios de prova, designadamente no documento “declaração da entidade patronal sobre os rendimentos laborais da autora”), o qual nem fora impugnado pela ré.

Diga-se, num parêntesis, a respeito da impugnação da decisão da matéria de facto, que se impõe observar o estatuído no art. 662º n.º 4 do CPC, segundo o qual “das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” estabelecendo, por seu turno, o art. 674º nº 3 que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

De igual modo, estabelece o art.º 682º nº 2 que a “decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674º”, razão para que o Supremo Tribunal de Justiça não possa sindicar o modo como a Relação decide sobre a impugnação da decisão de facto, quando ancorada em meios de prova, sujeitos à livre apreciação, acentuando-se que o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode intervir nos casos em que seja invocado, e reconhecido, erro de direito.

Refira-se, assim, que, o recurso de revista referente à matéria de facto pode dirigir-se ao cumprimento/incumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º (violação ou errada aplicação da lei de processo) ou, numa dimensão substantiva, destinar-se à obtenção de uma alteração decorrente de normativo que reclamasse imperativamente determinada espécie de prova para a demonstração ou que fixasse a força probatória de determinado meio de prova.

São estas as únicas situações em que o STJ pode pronunciar-se relativamente ao julgamento da matéria de facto, razão por que não é sindicável a decisão assumida pela Relação em relação ao facto 33, alusivo a valores retributivos da sua actividade profissional auferidos pela Autora à data do acidente, pelo que cai por terra qualquer reclamação por parte da recorrente neste vector, embora sendo certo que a revista não coloca tal questão de forma directa, mas sim apenas quando põe em causa os critórios adoptados pela relação para a fixação da indemnização pelo dano biológico.

Fechado este parêntesis, uma palavra para decisões jurisprudenciais anteriores, que também justifiquem a decisão alcançada, para além das que a peça recorrida consignou.

E neste campo, desde logo, a situação verificada no Acórdão de 6 de Junho de 2023, já por nós referido, até pela razão de o termos subscrito como juiz adjunto, que versa uma situação de uma mulher, cabeleireira, com cerca de 40 anos de idade, casada, dois filhos, défice funcional permanente na sua integridade física de 12 pontos (em 100), possível agravamento das sequelas tendo em atenção o envolvimento intra-articular da fratura, com agravamento da artrose pós-traumática do tornozelo, compatíveis com a sua profissão, mas implicam esforços suplementares acrescidos, a imagem da Autora em relação a si e em relação aos outros ficou afetada (dano estético permanente) em grau 3 de uma escala de 7 graus, de gravidade crescente, sequelas repercutem-se nas atividades de lazer e convívio social que exercia de forma regular (caminhadas, bicicleta, dança e caminhadas na praia) em grau 3 de uma escala de 7 graus de gravidade crescente, necessitará permanentemente de ajudas medicamentosas, bem como de tratamentos médicos regulares – fixou-se a indemnização pelo dano biológico em 60.000.00 €.

No Acórdão de 24.02.2022 (processo 1082/19), serralheiro, rendimento anual de € 7.798,00, fixou-se o dano biológico em 50.000,00 €.

No Acórdão de 6.12.2022 (processo 2517/16), quantum doloris 4/7 e perda de actividade sexual 3/7, fixou-se o dano biológico em 61.320,00 €.

No Acórdão de 6.12.2018 ( processo 652/16.0T8GMR.G1.S2), 40 anos de idade, 10 pontos de incapacidade geral para o trabalho, 60.000,00€;

No Acórdão de 03.07.2018 (revista 36/12.9T2STC), 44 anos de idade, 7 pontos, 40.000,00€;

No Acórdão de 08.02.2018 (processo 6570/16.4T8VNG) 56 anos de idade, 10 pontos, 70.000,00€.

No Acórdão de 05.05.2020 (processo 30/11.7TBSTRE1.S1), 5 pontos, 34 anos de idade, salário de 900€ -25.000,00€.

Enfim, analisando a jurisprudência deste Tribunal, salvaguardando as diferenças especificas de cada caso, assim como as circunstâncias particulares de cada um dos casos, afigura-se-nos que a decisão recorrida, mercê do seu acerto e equilíbrio, merece ser respeitada quanto à indemnização por danos patrimoniais futuros na vertente da incidência patrimonial do dano biológico, em € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros).

Por fim, analisemos os danos não patrimoniais (art 496º do CC), cuja regra geral de ressarcibilidade é determinada pela gravidade dos danos ocorridos aferida por critérios de normativos e não de subjetividade casuística, assentes na ponderação dos bens jurídicos violados nos quais os da integridade física e saúde e, funcionalmente, no trabalho como expressão de realização.

Para ressarcimento deste dano, na 1ª instância foi arbitrado um montante de € 25.000,00, tendo na Relação tal dano sido fixado em € 40.000,00.

O valor do dano agora em apreciação tem de ser fixado equitativamente, tal como o dano biológico, atendendo à mesma ordem de critérios, desde o grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e a do lesado e tem de ser medido por um critério objectivo que tenha em conta as circunstâncias de cada caso, atento o artigo 494º do Código Civil, aplicável por remissão do n.º 3 do artigo 496º do mesmo diploma.

É sabido que quanto a tal tipo de danos não há uma indemnização verdadeira e própria mas antes uma reparação ou seja a atribuição de uma soma pecuniária que se julgue adequada a compensar e reparar dores e sofrimentos através do proporcionar de um certo número de alegrias ou satisfações que as minorem ou de alguma forma as dissipem.

Distintamente da indemnização pelo dano patrimonial, cujo desiderato se destina a colmatar uma carência ocorrida no património do lesado, destinando-se a manter intacto o património do lesado, o que se pretende coom a indemnização pelo dano não-patrimonial éencontrar uma compensação para a dor da alma.

Por isso, o valor dessa reparação deve ser proporcional à gravidade do dano, devendo ter-se em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida e aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência.

De notar que os padrões da jurisprudência na fixação da indemnização a este título têm vindo a evoluir, nas duas últimas décadas, sendo, aliás, sendo que já nos idos anos de 1993, o S.T.J Ac. de 16.01.93 (CJ (STJ) ano I tomo III, pág. 183) chamava a atenção de que “as compensações por danos não patrimoniais, não podem ser simbólicas ou miserabilistas” e o acórdão do S.T.J. de 11.10.94 (CJ (STJ) ano VII, tomo II, pág. 49) dizia que a indemnização por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do artigo 496º do Código Civil e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tinha de ser significativa.

Para a atribuição desta indemnização, temos como relevante a factualidade supra descrita sob o número 1 (quanto às lesões sofridas pela autora em consequência do acidente – - Fractura difásica da perna direita; - Lesão distal do ciático popliteu externo à direita, iatrogénica, com capacidade de dorsiflexão do pé e extensão dos dedos. Lesões estas que, de forma directa e necessária, demandaram um período de doença de 356 dias, sendo 20 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e 258 com afectação da capacidade de trabalho profissional, e com consequências permanentes), e n.os 13 e seguintes, que aqui damos como reproduzidos)

Trata-se, sem margem para dúvida, de lesões com gravidade relevante para merecerem a protecção e compensação compatíveis, considerando em especial, para além das lesões em si e dores e incómodos conexos, o longo período de tempo de défice Funcional Temporário Parcial (376 dias), com repercussão Temporária na sua actividade Profissional Total (275 dias e parcial e 112 dias), o quantum Doloris fixável no grau 5/7, , pese embora tais sequelas sejam, termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mais relevando aqui o Dano Estético Permanente, especialmente tratando-se de uma mulher jovem de 40 anos de idade (3/7), assim como a Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 2/7, o que de alguma forma permite concluir que a autora passou a viver constamente com uma sombra no seu espírito, num estado de tristeza permanente, isto para além de passr a depender a medicação definitiva e de tratamentos médicos regulares.

Ainda de considerar, pese embora não se tenha apurado o motivo, que a Autora deixou de trabalhar em Novembro de 2020, quando à data do acidente tinha uma situação financeira, que não sendo abastada, lhe conferia alguma estabilidade, pois auferia mensalmente os valores acima consignados.

Assim sendo, ponderando as dores, angústias, tristeza, bem como os acentuados incómodos resultantes dos tratamentos a que a autora se submeteu e continua a submeter, com as inerentes deslocações e alterações no seu ritmo de vida diário, tudo para ela sendo marcantemente incómodo.

De ter ainda em linha de conta a evolução jurisprudencial no que toca aos valores arbitrados a este título, entre outros e para além dos acertadamente referidos na decisão recorrida o Ac. STJ de 24-05-2016 (Revista 2439/14.5TBVNG.P1.S1), o Ac. STJ de 11-11-2021 (Revista 730/17.8T8PVZ.P1.S1), o Ac. STJ de 05-11-2019 (Revista n.º 7053/15.5T8PRT.P1.S1, o Acórdão do STJ de 03.07.2018 (Revista 36/12.9T2STC) – 44 anos de idade, 7 pontos, dano não patrimonial 40.000,00€, e o Acórdão de 25.10.2018 (processo 2416/16.1T8BRG) – 48 anos de idade, 8 pontos, dano não patrimonial 40.000,00€, bem assim como o Acórdão que subscrevemos e que já referimos (de 6/6/2023), num caso com contornos muito similares ao presente (lesões se consolidaram ao fim de um ano, ficando com quatro cicatrizes; com sofrimento físico e psíquico entre o acidente e a consolidação mensurado como de grau 5 numa escala de 7, cujo défice funciona permanente físico foi fixado em 12 pontos, repercutindo-se as sequelas nas atividades de lazer e convívio social que exercia de forma regular em grau 3 de uma escala de 7 graus de gravidade crescente, com dano estético permanente de grau 3 numa escala de 7, sendo previsível o agravamento), em que fora fixada a indemnização pelo dano não patrimonial em 50.000,00 €

Assim, afigura-se-nos que a decisão recorrida respeitou os normativos determinantes do valor indemnizatório, assim como procurou na jurisprudência recente padrões de escrutínio observáveis, revelando-se equilibrada em função das circunstâncias e das consequências gravosas do acidente, máxime às lesões que a autora sofreu e a todas as consequências que estas tiveram e ainda têm para a sua paz pessoal.

Haverá, pois de considerar que a Relação observou criteriosamente todos os parâmetros legais determinantes deste tipo de indemnização por dano não patrimonial, considerando justo e equilibrado o valor alcançado de 40.000,00 € (quarenta mil euros).

Assim improcedendo in totum as conclusões da revista interposta pela recorrente seguradora, improcedendo o recurso e confirmando-se o acórdão recorrido.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que integram a 7ª Secção Cível deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista improcedente, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Relator: Nuno Ataíde das Neves

1º Juiz Adjunto: Senhor Conselheiro Ferreira Lopes

2º Juiz Adjunto: Senhor Conselheiro Sousa Lameira